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“Eu tenho mais tentado do que conseguido trabalhar.”

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Fragmentos da obra literária deRogério Sganzerla

ante-projeto editorialorganizado e proposto por

Mario Drumond

Alô alôRogério

Sganzerla!

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Aos companheiros de resistência que permanecem nos fronts,dedico este pequeno avanço em forma de ante-projeto.O organizador.

Espaço para Ficha Técnica e outros créditos.

Espaço para Ficha Catalográfica

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Carta a RCarta a RCarta a RCarta a RCarta a Rogério, na História.ogério, na História.ogério, na História.ogério, na História.ogério, na História.

Rogério,Da vida para a história, no corte preciso da montagem, neste filme-

livro que começamos há tempos e que agora você retoma, me enviando,da história para a vida, os prometidos “originais”. Chegam-me porém,só alguns poucos, diluídos no liquidificador da internet, espalhados eminúmeros sites, não sei como chegaram lá. Só sei que é você na história,e pincei-os um a um, verificando desde já a ação predadora dos “filtros”e mutilações pelos censores e sensores que sempre tentam se interpor,vigilantes, entre a história e a vida. Isto sem contar as burrices e oamadorismo que se generalizam no vale-tudo ou vale-nada do tal “ciber-espaço”. Mas cá estão, tratei-os com o merecido carinho e a atençãointeressada e curiosa de que precisam para se recompor e compor aomenos o nosso projetado ante-projeto.

No último fotograma do plano anterior (o da vida), estávamos você eeu naquela gostosa caminhada do Posto Seis ao Leme, numa tardemagnífica e carioca como nunca. Eu me mandava do Rio e levava a fotoque escolhêramos para a capa do livro, você ia dar a última vistoria naseleção que fizemos e me enviaria as cópias dos originais, afinalescolhidos. E que seleção! Quase brigamos. Cheguei a dizer, profético,que a edição só sairia póstuma. Foram meses de trabalhos e (des)entendimentos de duas cabeças-duras. Mas curtimos muito. Mantenhoaquela minha opinião de que se você tivesse publicado livros em apoioàs suas obras cinematográficas, a história seria outra, e para melhor.

Relendo-os agora, no plano da história, percebo o quanto eu estavacerto. Aliás, recebi-os quando retocava e penteava um longo texto meu,recém finalizado, de pesquisa em profundidade sobre Oswald de Andradee sua obra. E aí, e não poderia ser de outra forma, você reaparece namágica montagem.

E o que verifico?

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Que a lux aeterna que iluminava Oswald desde os sete ou oito anosde idade, quando rascunhou sua primeira peça teatral, até a morte deleem 1954, por uma razão cósmica qualquer que jamais será desvendada,passou imediatamente o foco para um garoto barriga-verde de sete ouoito anos de idade, em Joaçaba, no interior de Santa Catarina. E essegaroto publicou então um livro de contos por conta própria. Onde estaráhoje, esse foco? Nalguma cidade do interior do Mato Grosso ou do Pará,ou quem sabe no Rio Grande do Norte, onde um garoto potiguar de seteou oito anos está editando seu primeiro vídeo? Tomara que sim, com-panheiro, e se você puder cuide bem disso, tão bem quanto Oswaldparece ter cuidado.

Você reparou que, no corte, deitamos fora aquele take em São Paulo,quando por acaso nos encontramos no lançamento do único livro quenos deixou, cujos textos publicados foram exatamente os que escoimeida nossa seleção? Pelo menos para isso serviu aquela trabalheira toda.Mas aquele livro, meu irmão, valeu mas não bateu! Em verdade, vocênunca quis ser editado e fugiu do livro como o diabo foge da cruz. Porque? Talvez por seguir muito à risca os passos de Welles, outro queescrevia como ninguém, mas não nos deixou uma só obra em livro (excetopor Shakespeare for all, obra precoce, tal e qual seu precoce NovosContos). No mais, tudo filme, acetato. Você também se queria assim,nenhum livro seu superaria um filme seu. Estava certo, e estava errado!Porque seus textos defendem seus filmes muito melhor que os própriosfilmes. Estes foram como granadas que explodiram detonando tudo,inclusive a si mesmas. Seus livros seriam a memória das granadas, queas defendem, as complementam e, enfim, as restauram e as resgatamna genialidade de suas poderosas forças explosivas e ao mesmo tempocatárticas, de renovação.

Proponho agora um flash-back na Floresta da Tijuca, onde fumamosum grosso baseado cujos camarões a diligência e a amizade generosa dopoeta Rolando (o mundo) Monteiro nos trazia de algum plantio encantadoda Amazônia, da Índia ou do Ceilão, sei lá. Estamos os dois, refesteladosà beira do regato cristalino, curtindo a fresca do arvoredo denso, enquantoHelena e Izabel fazem o tai-chi numa clareira das proximidades. Era anossa “rotina” de certas manhãs abençoadas: visitar o paraíso e lá fazerfilosofia com conversa fiada da melhor espécie, a usufruir da liberdadeiluminada e do ócio criativo que a maldição, o ostracismo e os deuses

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nos propiciavam. Mas me refiro a uma certa manhã de domingo, quandofalei que receberíamos, enfim, o dinheiro para montar o espetáculo dasSete Danças no Municipal. E você me respondeu com sapiência e semmaldade, não um mau augouro, mas um lamento por nós que aindaressoa em meus ouvidos, com voz profética, como se fosse um Mojica:- quando o dinheiro entrar na conta vão se abrir para vocês as portas doinferno!

Camarada!... E não é que os demônios-burocratas (os Amnésios)saíram todos pra cima de mim e quase me levaram o fígado ou baço(levaram-me a visícula, mas fiquei melhor sem ela). O inferno, vocêsabia melhor que eu, é a burocracia dos órgãos de cultura. E fomostodos para o beleléu, inclusive o Ministro Antonio Houaiss, pobre sábioe único aliado que tivemos no poder, onde só durou parcos oito meses.Nem o dicionário que acalentou durante toda a vida pode ver impresso.Aliás, no derradeiro encontro que Izabel e eu tivemos com ele, mencioneivocê e ele manifestou grande interesse em conhecê-lo: - não tive opor-tunidade de conhecer-lhe os filmes - disse-nos - mas li alguns de seusescritos em jornais; é escritor, e da melhor cepa!

Mas a saga infeliz daquele espetáculo oswaldiano-villalobiano quevocê viu na estréia - uma obra-prima destruída com todas as forças quea estupidez e a boçalidade possam perpetrar contra nossas obras, forçase poderio que Oswald e você conheceram ainda mais que eu - compensou-me de sobra num só plano que você criou e me contou, já no banquetede estréia, quando me propôs filmar o espetáculo:

a câmera era posta numa grande grua e o plano começava fechadona constelação do Cruzeiro do Sul do céu estrelado que Ronaldo Mourãodesenhou para reproduzir a celeste do dia do descobrimento do Brasil,e que, naquela cena, fazia o fundo infinito do palco. A grua ia retro-cedendo, abrindo lentamente o plano, passando por cima do coro decento e vinte vozes, em cena e em ação, depois por sobre os bailarinosenlouquecidos e a louca orquestra, também em cena e em ação, e porsobre o maestro assediado pelas personagens de Mefisto e Oswald. E,retrocedendo sempre mais e mais, em movimento contínuo e uniforme,ia abrindo o plano para a platéia lotada vivendo o acontecimento artísticomáximo de toda a encenação, na apoteose do genial Noneto de Villa-Lobos, que encerrava o espetáculo com mais de cento e cinquenta artistasno palco, para enfim deixar o espectador, na poltrona em que você se

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sentou junto a Helena, preso definitivamente aos movimentos alucinadosno visual fantástico do palco-boca-de-cena do Municipal, no que seriao registro animado da cena final do espetáculo, com que você iniciariao filme. A partir daí você iria montá-lo à sua maneira, traduzindo emaudiovisual toda aquela magnitude cênica - e a teríamos reproduzidana linguagem da qual você é o maior mestre que tive a felicidade deconhecer em pessoa ou de saber que existira em nossa fértil masdesditosa contemporaneidade.

E você chegou a alinhavar alguma coisa disso em laudas catucadasna velha máquina portátil verde turquesa que batia as letras em desali-nho, metade vermelhas metade pretas, que são a marca, quase ma-nuscritas, dos seus originais. Batia tudo duma vez, o texto saindo diretoda cabeça para a máquina, enchendo as laudas de papel vagabundocom o timbre da redação da Folha de São Paulo numa velocidade impres-sionante, compondo o texto já quase pronto para edição. Eu vi. Vocênão sabe, mas eu vi. Helena abriu a porta do apê da Ramon Castila epude ouvir a velha máquina de escrever. Cheguei de mansinho, masvocê percebeu, fechou-lhe a tampa e conduziu-me até a varanda, namais manjada das suas esquivas. Mas, numa rápida ausência sua, nãome lembro por quê, se foi ao banheiro ou fazer qualquer outra coisa, eufui lá xeretar e vi as laudas, mas só pude ler no topo de uma delas -“Sete Danças (título provisório)” - para em seguida voltar à minhaposição na varanda, a tempo de você não perceber que eu havia saídode lá. Arrependo-me de não ter assumido a indiscrição e deixar queme desse o flagrante, lendo as laudas que estavam prontas. Sabia quenão seria desrespeitoso, eu tinha de você essa liberdade. A esquivafora por conta daquela enigmática timidez em que você muitas vezesse traía, e era fácil percebê-la. Mas ainda assim preferi ficar aguardandovocê mesmo mostrá-las a mim. E até hoje estou aguardando.

- Alô alô Rogério Sganzerla! (imagino seja esta a saudação que tefizeram ao dar ingresso na galeria dos grandes brasileiros da História,representados pelo querido Grande Otelo no papel de mestre de ceri-mônias - e naquela pronúncia escrachada-engraçada que o caracterizae caracteriza também todo um cinema brasileiro que você amou e nosensinou a amar) - Irmão, acuso o recebimento via internet de alguns dostextos que selecionamos para compor o que seria o seu primeiro livro, eque ainda não aconteceu. Faltam muitos outros entre os que conheci (e

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entre os que não conheci), inclusive o que acima mencionei e muitome é caro. De qualquer maneira, estes vieram na hora certa e ao lugarcerto. Depois que a vida bifurcou nossos caminhos, estamos agora,você na história, e eu nessa merda desta vida. Mas não relaxei as ordensque me chegaram com os virtuais “originais”, e ponho-me imediata-mente ao trabalho.

Faço este ante-projeto usando na última capa a foto que separamospara ser a capa (e haverá de estar na capa da edição final), cuja cópiafotográfica em grande formato está bem aqui comigo. Uso também ma-terial colhido na internet sobre O Signo do Caos e outros artigos finaispara compor a “Seção 2” e o “Epílogo” (inclusive um que dizem tersido o último que você escreveu, e acabo de receber - sobre quem? -Oswald de Andrade, claro!).

Faço-o em 21 exemplares. Fora o meu, cinco deles vou enviar paraHelena, torcendo para que ela leve avante a idéia. Dez vou distribuir aamigos de uma lista minha-nossa, que haverão de dar a força que têmpara que a idéia se realize. Os outros cinco reservo em acervo.

E que venha o próximo plano.

Mario DrumondBelo Horizonte, 18 de agosto de 2004.

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O PO PO PO PO Projeto Editorialrojeto Editorialrojeto Editorialrojeto Editorialrojeto Editorial

PPPPPequeno históricoequeno históricoequeno históricoequeno históricoequeno histórico

Minha intenção, quando desafiei Rogério a encarar este projeto,era a de dar a lume o escritor revolucionário que habitava o gênio cri-ador do cineasta, e que teve inúmeros momentos da mais alta brilhânciaentre os anos de 1965 e 1995 (ano em que rebuscamos os baús dosseus originais). Momentos inesquecíveis.

Para a nossa “geração de 68”, tão importantes quanto os filmes (outalvez até mais importantes porque depois dos sucessos de O Bandido eA Mulher de Todos ficou quase impossível ver qualquer um de seus fil-mes) eram os textos, depoimentos e entrevistas de crítica e polêmicaque vazavam da lucidez inquieta de Rogério pelas páginas de jornais dagrande imprensa e da imprensa alternativa.

Rogério exercia entre nós papel muito semelhante ao de Oswald deAndrade nas ofensivas modernistas mais radicais: era o nosso “pontade lança” nos fronts de vanguarda e resistência. Desde cedo ele co-nhecera bem a obra de Oswald, cujas lições permeiam todo o seu processocriativo em letras e fotogramas, e dava como resolvida pelo ponta delança do modernismo a questão da literatura, que praticava com intuição,desenvoltura e liberdade, em pleno usufruto das conquistas revo-lucionárias da obra oswaldiana.

Eis porque se voltou de corpo e alma para a questão do “cinemamoderno”, que para ele estava a precisar de uma “Semana de 22” e deum novo Oswald de Andrade.

Assim, sua obra escrita se dividiu em duas vertentes fundamentais:a intuitiva, do crítico, polemista, poeta, romancista e filósofo, envolvidoaté o pescoço no debate libertário das idéias da nossa geração e dasquestões políticas e culturais, e a do expert, do teórico divisor de águasda linguagem do cinema moderno, em que se projetava o cineastapesquisador das entranhas do fazer audiovisual, mergulhando fundo paratrazer à tona descobertas inovadoras.

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Em minha opinião era a primeira delas (e a mais rica) que deveriaser dada a lume, em livro e antes de tudo. A segunda vertente é, a meuver, de interesse restrito a profissionais do audiovisual, e, dentro desseuniverso - completamente dominado, no Brasil e no mundo, pelostabilishment, o entreguismo reacionário e a mediocridade - a meia-dúzia de boas cabeças resistentes que, de resto, estavam a par de suasteorias e teses, e até já as praticavam.

Rogério, porém, vacilava. E o vacilo nunca fora um defeito dele.Mas naquele momento era compreensível. Para todos os que lidamoscom matérias do conhecimento e da história, os exemplos históricos sãosempre fortes influências em nossas decisões. Ele via, com toda razão,irrecusáveis semelhanças entre o meu projeto e o Ponta de Lança, deOswald de Andrade, que havia custado ao escritor longo purgatório denove anos sem poder publicar livros, e quando isto aconteceu, o livrofoi lançado a um mês da sua morte (que ironia! Rogério em 1995 cumpriajá vinte anos sem poder filmar com decência, e quando enfim, oito anosdepois, pode fazê-lo, teve o filme lançado poucos meses antes de morrer).

Tais castigos balançam as estruturas de qualquer um. Balançou ade Oswald, e balançou a de Rogério, que, além de um grilo esquisito enunca assumido por se publicar em livros (intuo esse grilo inexplicávela uma influência de Welles que, não sei por quê, não publicou livros),era gato escaldado e temia o retorno covarde dos poderosos-poderesdenunciados, a ampliar-lhe os castigos. Tive de enfrentá-lo dentro deuma relação de plena confiança e amizade que ia então por quase cincoanos de companheirismo cotidiano. Consegui que me desse acesso aosbaús de originais e fizesse uma seleção ao meu gosto, nos meus propósitosde editor. Tentei mostrar a Rogério que o nosso “Ponta de Lança” ia serum sucesso e defenderia sua obra cinematográfica melhor que ela mesma.Fizemos juntos um meticuloso trabalho seletivo, em que várias vezesnos engalfinhamos em solenes discussões. Quase rompemos relações.Não logrei convencê-lo. Pensei que isso havia acontecido, mas ele usouo velho estratagema do fake (do qual era mestre), fingindo ter sidoconvencido, me cedendo a foto da capa para elaborar o projeto gráfico eme prometendo a remessa de cópias dos originais assim que se decidisse,pois eu estava a me mudar do Rio de Janeiro. Não tivemos mais contatos.Passados os primeiros seis meses, percebi que Rogério se decidira pormanter os textos na gaveta, e a minha proximidade passava, assim, a

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significar certos perigos que ele queria evitar. Por isso não tive nenhumasurpresa quando, seis anos depois e por acaso, dei com ele em SãoPaulo lançando Por um cinema sem limite,1 justamente com os textosque eu excluíra do projeto (os textos da segunda vertente).

O fracasso de Por um cinema sem limite - não de conteúdo nem dequalidade editorial e gráfica (é um bom livro e muito bem editado, porém,a meu ver, intempestivo), mas pela quase nenhuma repercussão - já megarante metade da razão. A outra metade, tenho certeza, me dará o leitordesta edição, que irá consagrá-la no sucesso de uma tremenda re-percussão, da qual, em minha opinião de editor, Rogério poderia terdesfrutado ainda em vida, vendo-se fortalecido e respeitado até pelosinimigos. Os exemplos históricos nunca devem ser desconsiderados,mas a história não se repete.

A obra literária de RA obra literária de RA obra literária de RA obra literária de RA obra literária de Rogério Sganzerlaogério Sganzerlaogério Sganzerlaogério Sganzerlaogério Sganzerla

Como disse, Rogério não se preocupou em fazer literatura. Nemdevia. Antes de ser cineasta, era escritor da melhor cepa, como bemme avisou Antonio Houaiss, outro mestre inconteste das letras modernas.Tal como Oswald, ele tinha a literatura dentro de si, e com um atributoa mais: em pleno gozo da vitoriosa revolução oswaldiana, cujas alti-tudes frequentou desde moço, muito moço.

Não precisava preocupar-se se o que estava escrevendo era poesiaou prosa, a forma não o azucrinava, estava livre, era poeta, romancista,jornalista, ensaísta e o mais que quisesse ser e quando quisesse ser.

“Monumental aprendi a necessidade de tudo dizer de uma só vez acada instante buscando a verdade através dessa estrutura de constelaçãoinsistente de tudo dizer a todo instante não importa como de qualquermaneira qualquer material que tivesse às minhas pobres mãos milionáriacontribuição de todos os erros livre na maior.”2

1 Sganzerla, Rogério. Por um cinema sem limite. São Paulo : Azougue Editorial; 2001.Lançado em 26 de novembro de 2001, no Cine SESC - São Paulo, com a exibição doscurtas Brasil (1981) e O Perigo Negro (2001).2 Das anotações de argumento e roteiro do longa-metragem Carnaval na lama, realizadoem 1970.

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Seus roteiros e projetos cinematográficos são verdadeiros poemasantropofágicos, que deliciariam Oswald. Seus artigos jornalísticos sãodocumentos históricos e literários que primam pela originalidade,concisão, simplicidade, clareza, elegância de estilo, e elevam a “escola”modernista brasileira aos mais altos patamares.

Não era propriamente um discípulo de Oswald ou do modernismo,era um continuador daquela revolução libertária, a romper as barreirasda história. Sua familiaridade e sintonia com a obra de Oswald davam-lhe a liberdade, inequívoca e inquestionável, de citá-lo sem aspas ecom a consciência de se apropriar dos achados dele com toda a le-gitimidade, como se pelo próprio autor concedida. Ao que conheço, sóNonê e Rogério puderam gozar dessa concessão informal de liberdadecom a obra de Oswald, sem que se lhes assomem as pechas do epígono,do plágio ou do cabotinismo.

Tinha também uma autoridade semelhante a de Oswald ao abordartodo assunto de interesse público, à revelia dos diplomas acadêmicos eoutros reconhecimentos formais de saber. Sua palavra escrita surgesempre significativa em qualquer contexto, nada vindo de sua pena podeser dado como desprezível ou insignificante, tudo é importante, con-tributivo, elevado.

Outro aspecto de semelhança é a coragem e a ousadia de nãoesconder-se por detrás de insinuações maliciosas ou de truques elípticose metafóricos para se posicionar diante dos fatos. Não vacilava em darnomes e endereços precisos ao apontar fraudes, equívocos e fraquezasonde quer que os encontrasse. Sua postura em relação ao Cinema Novo,se escandalizou o stasbilishment, o fez justo por revelar e denunciarverdades mais que conhecidas, mas que ninguém ousava declarar eassinar em baixo. Para as melhores cabeças da nossa geração, seus textos,mais que seus filmes que não podíamos conhecer por conta de censurassuperpostas, eram verdadeiros alívios e desafogos: diziam exatamenteaquilo que tínhamos preso em nossas gargantas sedentas de expressão,de arte e de verdade.

Igualmente importantes foram seus pronunciamentos e entrevistas.Rogério, por precocidade, escapou do estigma imposto à nossa “geraçãode 68”, cuja expressão viria a se dar na década de 1970. Ele foi umavoz da década de 70 que começou a falar na de 60, e isso livrou-odaquele estigma que nos reduziu todos a pó. Nos anos 70, seguindo a

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estratégia do “Sistema de Babilônia” - que era a de calar a juventuderevolucionária antes que ela fizesse a revolução -, a imprensa conspiroucontra nós e bloqueou nosso acesso ao grande público. O fato é que, seisto foi possível contra nós, que mal começávamos a abrir a boca, nãofoi possível contra os que já tinham voz, e Rogério era um deles. Edesses que tinham voz, o Sistema tratou de comprar a consciência decada um, mas Rogério não vendeu a dele. Pelo contrário, ele “ofereceuum peito nu e atlético aos golpes mais profundos de que lançam mão ausura e o latrocínio, com aquela confiança otimista que os temperamentosmilionários oferecem ao sádico frigorífico do capitalismo.” E o resultadofoi “a agrura de uma vida desvaliada e incompreendida, ante a montagemdos grandes carnívoros que se alimentaram muitas vezes das suas idéias,da suas iniciativas e descobertas, como o abutre do Cáucaso ante aentrega messiânica de Prometeu.”3

Mas Rogério tinha consciência do seu talento e do castigo que lhesignificava possui-lo. O talento não deixa outra saída a quem o possuinos níveis da genialidade - não permite que se abra mão da verdade,não permite concessões, sob pena de auto anular-se. Somente a históriapoderá vingá-lo e desde o início Rogério o sabia (“a História está anosso favor”), pois já em 1970, referindo-se ao Cinema Novo, escreveu:

“É preciso ficar mais uma vez claro que isso tudo pega mal paraeles, que o problema é deles, quem passará o vexame histórico serãoeles, aliás como prevíamos desde 1968.”4

Hoje não temos dúvidas de que a história o vingou, já ninguémaguentará pela frente um Vidas Secas ou um Macunaíma - os “filmes”.Mas, em 1970 criticá-los era comprar briga feia. Publicar então...

Como todos os escritores de gênio, Rogério escrevia voluptuosamen-te e com facilidade. O som da sua máquina de escrever, como o de umasuave metralhadora, já denunciava a qualidade do que ia saindo. Nãoé mistificação, quem o viu e o ouviu escrevendo me confirmará. Poistambém ele, como Oswald, escrevia de ouvido: “o escritor escreve oque ouve, nunca o que houve.” Uma boa prova do que falo é a sen-sibilidade musical externada em suas obras. Em quaisquer delas ouve-

3 in Andrade, Oswald de. Ponta de Lança. - Civilização Brasileira : Rio de Janeiro;1972. “Carta a Monteiro Lobato”.4 “A questão da cultura”, texto inédito de Rogério Sganzerla, datado de 1970, estáentre os que selecionamos para publicar.

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se a sonoridade das palavras como se escritas para uma composiçãomusical de vanguarda:

“Desvendo o véu de Isis: tenho para mim que antes de mais nadaé necessário pensar em Hendrix como uma divindade. Não uma‘divindade do som’, se assim posso exprimir, mas divindade do homem.Total mente gênio total – pois ele próprio é uma divindade que sealimenta de sua própria aura; um gênio encarnado suntuosamente numnegro-índio; gênio da América e americano por dentro número um.”5

Mas, se são notáveis as semelhanças e as sintonias dos espíritosque regem as obras de Rogério e Oswald, ao ponto de irmaná-las etornar uma o prosseguimento da outra (sem contar que, como Oswald,Rogério foi também um prolífico frasista), suas pessoas e personalidadesapresentaram características individuais completamente diversas, atéopostas. Só para ficarmos nas mais evidentes, a expansividade retum-bante e cosmopolita de Oswald teria contraponto no retraimento recatadode Rogério, que beirava a timidez do caipira. Em oposição ao coletivismogregário e exacerbado do mestre do modernismo, tínhamos o indi-vidualismo encouraçado do cineasta, quase intransponível. Pesso-almente, a sisudez magrela de Rogério nos fazia lembrar Monteiro Lobatoperto do gordo e bonachão Oswald de Andrade. Mas nada disso é im-portante agora, estão todos na história e são suas obras que nos ficam.De Lobato e Oswald conhecemos muito e muito há por conhecer. Mas aobra literária de Rogério é quase virgem, parte é dispersa nos “inéditosjornalísticos”, outra é diluída na internet e o grosso dela dorme nosbaús de originais.

Ainda não sabemos a extensão desta obra de revelação e registrohistórico que é a obra literária de Rogério Sganzerla. Nem eu que tiveacesso a certos baús por bastante tempo tenho a menor idéia do quetemos a desvendar sob este “véu de Isis”. Sei que muito mais há deaparecer a partir de pesquisas bem conduzidas, e com certeza muitoimportantes. É preciso que Helena não cometa o erro dos herdeiros deOswald e não o entregue à incompetência invejosa de acadêmicos, osmaiores inimigos das expressões de vanguarda, e que sabotarão a obrade Rogério, como sabotaram e ainda sabotam as de Oswald e Lobato.

5 “Jimi, gênio total”, artigo publicado na Folha de São Paulo em 11 de agosto de1980, é outro entre os textos que selecionamos para publicar.

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O nosso PO nosso PO nosso PO nosso PO nosso Projetorojetorojetorojetorojeto

Inicialmente, a idéia era fazer um apanhado de cerca de 100 textosescolhidos entre artigos de jornal, entrevistas e depoimentos à imprensa,roteiros e argumentos de filmes, para publicá-los dentro de seções pré-estabelecidas, tipológicas ou temáticas, como “Artigos publicados naFolha de São Paulo”, n’O Estado de São Paulo, etc, “Roteiros e Argu-mentos de Longas”, de Curtas, etc. Chegamos a selecionar uns cinquentatextos, dos quais usaríamos dez ou doze para montar o ante-projeto esair à cata de uma editora de grande porte que se interessasse. Nãochegamos a pensar num título geral da obra porque achávamos queentre todos os itens de projeto seria o mais fácil de resolver.

Tínhamos de buscar certo equilíbrio de conteúdo, pois eu escolhiaos textos mais radicais e Rogério propunha os mais moderados. Daínossas discussões. Da minha parte, eu acreditava (e ainda acredito)que os textos em conjunto, publicados em livro, resultarão efeito muitomaior do que tiveram quando publicados isolados, em páginas de jornais,a maioria de seus artigos devastadores. Este ante-projeto demonstra-obem. Rogério, além dos grilos mencionados, achava, com razão, que odele é que estava na reta e porradas muito fortes poderiam significarsuicídio político, inviabilizando as esperanças de realização sob a tu-tela das burocracias de governos, já, há tempos, a única forma possívelde fazer cinema “neste quintal d’América”. E nessa, o projeto não andou.

Hoje, relendo alguns daqueles textos, acho que a melhor montagemdo livro é a ordem cronológica, misturando, na sequência do tempo,todos os tipos de textos e temas. Teremos assim uma panorâmica viva daobra rogeriana, a evolução de suas idéias, a coerência e a unidade deum pensamento que não se deixou apanhar em um deslize sequer, alémde demonstrar, com absoluta clareza, o acerto histórico de seus juízos eprognósticos, aliás, impressionante.

Neste ante-projeto incluo, além dos que possuo em meus arquivos ebiblioteca, todos os textos que pude obter na internet, já corrigidos dentrodo possível. Dou-lhe o título provisório de “Fragmentos”, pois o conjuntoaqui apresentado não é mais que isso, pelas lacunas que exibe. Ao queeu saiba, faltam-lhe importantes registros das décadas de 70 a 90 (Semessa aranha, Oswaldianas, entre outros momentos) e os apontamentosaos tesouros que vi conservados no acervo de pesquisas de Rogério,

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cheio de preciosidades, tais como o roteiro original de Perigo Negro,escrito por Oswald de Andrade para Orson Welles filmar, que foraentregue pessoalmente pelo autor ao cineasta norte-americano. Naextensa pesquisa que fiz sobre a obra de Oswald não encontrei sequermenção a tão valioso escrito, só Rogério sabia dele, e possuía cópia dooriginal. Além disso, filmou-o.

Na edição final muitos textos que conheci (ou não conheci) deverãose agregar, preenchendo as diversas lacunas aqui deixadas, e será ne-cessário o cotejamento com os originais datiloscritos de Rogério, depreferência. A transcrição direta de recortes de jornais e internet sódeve ser feita quando não encontrados os datiloscritos correspondentes.Não poucos foram cortados ou mutilados por censuras internas e externasdos veículos, quando não por exigência do espaço para publicar. Umestabelecimento de textos tecnicamente bem feito não será difícil derealizar pois são textos recentes.

A meu ver, na impossibilidade de se publicar todos os textos numsó volume, a tônica da seleção do primeiro a ser lançado deve ser aindaa crítica, a polêmica, a análise e o debate dos problemas culturais epolíticos da nossa geração, os quais não foram superados e se mantémna vanguarda do pensamento universal ou nacional, como queiram.Dará uma obra de interesse geral, atualíssima, e a lucidez do texto deRogério representa o melhor do nosso pensamento, em suas posiçõesmais avançadas. O leitor inteligente, sempre sedento de iluminação ede gênio, o consagrará, bem surpreendido, no reconhecimento de queconquistou crescimento e ganhos expressivos de humanidade e eluci-dação - muito acima dos esperados - com a leitura deste livro.

E agora que está na história, Rogério não tem porque temer respostascovardes a suas porradas, fortes e precisas, é verdade, mas frente-a-frente, nas regras e na melhor ética.

Agora, “o problema é deles”.

Mario Drumond

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Critérios do presente anteCritérios do presente anteCritérios do presente anteCritérios do presente anteCritérios do presente ante-projeto-projeto-projeto-projeto-projeto

Não havendo elementos para o estabelecimento de texto em critériosecdóticos, fiz apenas a correção de erros óbvios.

...Preferi não mencionar os sites onde capturei textos e fotos por não

se informar neles em que bases de direitos autorais e de imagem foipublicado o material que colhi. Em nenhum deles encontrei créditospara fotógrafos, por isso não pude dá-los aqui. É indispensável quesejam obtidos, mediante pesquisa, para a edição definitiva.

...Alguns textos foram transcritos de cópias que possuo em meus

arquivos, e estes estão assinalados nas notas de seus títulos como otermo “(Arquivo)”. Outros são transcritos de publicações impressas,assinalados com o termo “(Referência impressa)”.

...Publico aqui todos os textos que possuo em cópias ou referências

impressas e os que consegui obter via internet, em ordem cronológica....Para os textos não datados estimei a posição cronológica com base

na minha memória (Seção 1) ou em indícios dos próprios conteúdos.Não me preocupei em sustentar as estimativas, já que se trata de umante-projeto. Também não posso afirmar que os textos da Seção 1 foramexatamente aqueles que Rogério e eu escolhêramos. O que posso dizeré que me lembro perfeitamente de ter lido cada um deles, nos originais,durante o processo seletivo em que trabalhamos juntos.

...Nos meus textos de introdução, notas e “intervalos” não há intenção

exegética, são apenas informações que acredito possam ser úteis naelaboração da edição final, podendo ou não ser aproveitados nela, notodo ou em parte.

...A exegética dos trabalhos literários de Rogério, após coligidos em

amostragem bem mais representativa do que a que se segue, deve serentregue a estudiosos consagrados e não acadêmicos. Considero GilbertoFelisberto Vasconcellos, de longe, o nome mais indicado.

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Fragmentosde

RogérioSganzerla

Seção 1:textos de 1965 a 1995

coligidos por

Rogério Sganzerla

e Mario Drumond

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Nas filmagens de Documentário, em 1966.

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O legado de kO legado de kO legado de kO legado de kO legado de kaneaneaneaneane 1

Tradicionalmente efetuam-se revisões críticas de obras consideradas“grandes” sob as luzes de novos sistemas estéticos. Ao mesmo tempoque Delacroix e Chopin passam a ser considerados demodeés, aponta-se a modernidade de Dante, Shakespeare ou Piero della Francesca, etalvez a situação venha a inverter-se daqui a alguns decênios, reabilitandomuita gente através de uma nova e flagrante noção de modernidade...

Não há nada de estranho nisso; é assim mesmo – como disse umensaísta francês: “si le voies de l’art sont imprévisibles, c’est parce quecelles du hasard ne le sont pas”.

Portanto, nada mais lógico do que Griffith, Stroheim, Vidor seremcultuados pelos cinéfilos de 1965 ao mesmo tempo que Eisenstein,Bresson, De Sica e o próprio Welles (O Processo) mergulham no es-quecimento. Talvez seja esse o destino das obras (e autores) de arte.Conhecer o sucesso em fases esporádicas. Brilhar hoje ou esperar pelaspróximas gerações...

Mas sempre existiram destinos privilegiados, exceções. E a exceçãoé Cidadão Kane, filme e personagem.

* * *

Em Orson Welles, como em William Blake, a beleza é a exuberância.Em todos os sentidos: exuberância técnica, acúmulo de personagens,de intenções históricas, histriônicas, de montagem, exuberância do maugosto, e, enfim, a exuberância do cinema americano. Pouco, muito pouco,desta película envelheceu: realizada em 1941, ela parece apresentarprivilégios das obras excepcionais.

“- Não se pode explicar a vida de um homem por uma palavra”, dizThompson, o repórter encarregado de vasculhar a vida de Kane e des-cobrir o significado de Rosebud, pronunciada no leito de morte.

Da mesma forma, “não se pode explicar a vida de um homem porum filme...”

1 Publicado no Supl. Literário d’O Estado de S. Paulo, sábado, 28 de agosto de 1965.

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Alô alô Rogério Sganzerla!

Citizen Kane constitui, até prova em contrário,o primeiro filme (1941) baseado em princípiosrelativistas de captação do universo e de um per-

sonagem.O que é um filme? Segundo o Welles de

1941 é um objeto de 119 minutos de duração,limitado e relativo. O filme vai até ondepode. Não consegue abranger “em absoluto”

os homens e seus dilemas interiores, a civi-lização americana e sua essência barroca; isto é, não consegue conhecê-los. No máximo apreende alguns aspectos unilaterais e falsamenteobjetivos.2

Daí a fragmentação formal. Inspirado em novos recursos narrativos,principalmente do romance (Faulkner, John dos Passos), Welles recusaa construção clássica (clara e unitária), linearmente progressiva daspelículas de então. Cidadão Kane apresenta uma estrutura volun-tariamente fragmentária. Sete depoimentos mais ou menos controversossobre Charles Foster Kane além de outras individualidades: cenas,planos-seqüências, personagens e efeitos de som.

O imenso puzzle de que fala o repórter e que Susan simbolicamentemonta parece ser a fita em si, ao compor um extenso painel histórico-humano, o filme-objeto – ou filme-puzzle – não chega a se completar.Falta um último fragmento: Rosebud, palavra ou palavra-objeto, comodiria Sartre. A fita possui uma forma aberta (como na arte barroca e na

2 Nota do A. - Verdade é que o tratamento varia. Apesar de tudo, o cineasta não sedesligara completamente do cinema clássico da época, como não seria possível, de res-to. O cinema clássico infiltra-se ainda por entre o relativismo predominante, o que é a-centuado pelo fato de Welles ser um homem a viver – e a filmar – oscilações constantes.Cineasta de envergadura, sim, Welles não chega a solucionar tais oscilações numa sínteseque diz procurar, encontradiça em cineastas de primeira grandeza (Lang, Hawks, porexemplo). Ao mesmo tempo que a fita oferece uma visão relativa e condicionada douniverso (a impossibilidade de conhecer Kane, as limitações do nosso mundo), pretende,no desenlace, oferecer uma visão ideal, absurda – própria de um Deus ou de um psi-canalista... (nos momentos em que revela o segredo da palavra). Idêntica ruptura observa-se na representação física da mise-en-scène diante do real; em alguns momentos acâmera localiza-se numa altura sóbria, junto ao décor (especialmente nas entradas),em outros ela projeta-se de alturas inimagináveis, talvez dos “céus da RKO”, destacandoos momentos em que o diretor pretende penetrar diretamente, com a câmera, em segredosindevassáveis (diante da boite, do palácio de Xanadu etc.)

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Seção 1 Fragmentos (de 1965 a 1995)

arte contemporânea), “incompleta”; trata-se de um jogo a ser men-talmente organizado pelo espectador.

Orson Welles recusa as habituais cumplicidades entre câmera epersonagem, em que ambos se oferecem integralmente um ao outro epossibilitam uma relação direta e ideal. Em Cidadão Kane, filme epersonagem(ns) são elementos autônomos e até adversos. O filme já nãopossui estrutura fechada e definitiva, é aberto enquanto o personagem é“fechado”: invertem-se os papéis clássicos de filme e personagem diantedo mundo.

Welles introduz um novo tratamento do personagem: nesteSuplemento (21-11-64) já tive oportunidade de referir-me ao “heróifechado”. Como se sabe, o herói clássico requisitava a sua ilustraçãofrente à platéia, sendo-nos generosamente ofertado através de análisesclínicas, lavagens cerebrais, dissecações psicológicas ou intimistas. Aocontrário, o “herói fechado” distancia-se de nós até tornar-nos um núcleoinatingível – como foi tratado este cidadão.

Igualmente “fechados” são os personagens e objetos; Rosebud, otrenó, a fortuna de Kane são elementos desconhecidos para nós.Thompson, por exemplo, não o vemos claramente, não há informaçõespsicológicas sobre a sua pessoa; é quase sempre uma presença apagada,vista de costas, uma sombra que perscruta o mundo, talvez a visão daHistória. Ou então do cinema.

É verdade que tal tratamento corresponde ao ideal expressionistade transformar os seres e objetos em símbolos. Mas eles não são somentesímbolos, há algo mais. A certa altura, Rosebud, por exemplo, deixa deser somente o signo da melancolia de Kane para tornar-se, também, umelemento de conflito, isto é, para materializar-se. Os significados sãoinúmeros (símbolo da pureza, da infância perdida, do amor e implicaçõesmaternas, da regressão, da felicidade etc.) mas o que é, finalmente,Rosebud? Também Welles não intenta decifrá-lo.

O princípio da película – fornecer múltiplos pontos de vista sobreuma mesma incógnita – aproxima-se muito daquele tom de entrevistaevidenciado em diversas fitas modernas, chegando mesmo a instituiruma técnica cinematográfica de reportagem. Neste sentido, lembroalgumas posições de câmera diante do décor: um entrevistador diantedo entrevistado; a filmagem desdramatizada, em cenas longas, de um

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grupo de pessoas conversando, rindo, discutindo geralmente ao mesmotempo (Welles não filma ações mas discussões, agravadas posteriormenteem A Marca da Maldade e O Processo). Cidadão Kane antecipa a “es-tética da conversa fiada”, característica do cinema moderno, a que serefere o crítico J. C. Ismael.

Outro crítico, o francês Jean Domarchi, declarou, num artigointitulado “América”, que “para Welles ver o mundo significa falar dessemundo”. Não é à toa que Kane renuncia à fortuna por um minúsculomatutino nova-iorquino ou que o fio condutor da história seja umjornalista: a fita parece, de fato, uma imensa reportagem sobre umagrande personalidade. E como na reportagem, detém-se em perguntar:quem é Kane? Rosebud? O amor, a civilização americana? O dinheiro?Naturalmente as respostas não são dadas: “os grandes cineastas pri-mam pela enunciação de problemas e não por sua resolução”, dizia naocasião o próprio Welles.

Outro fator de modernidade é a proximidade com o teatro. O cineastaaproveitou a sua carreira anterior, que movimentara fortemente Broad-way e arredores, oferecendo inéditas experiências sonoras ao cinema deentão. Neste sentido, nada mais teatral, no cinema, do que o “estiloradionovela” adotado em algumas seqüências, talvez em homenagem àsua carreira de rádio. Esquematicamente, pode-se definir esta fita comouma híbrida junção entre reportagem e teatro... a serviço do cinema.3

3 Este texto pertence à série publicada no Suplemento Literário de O Estado de SãoPaulo nos anos de 1964 e 1965. É de uma fase em que o cineasta-escritor ainda não sebifurcara nas duas vertentes fundamentais do seu pensamento. Dessa fase, tínhamosselecionado apenas este e um outro texto intitulado “Noções de Cinema Moderno” (1965),que Rogério publicou em Por um cinema sem limite junto a alguns outros textos da sé-rie. O que nela já diferenciava Rogério dos demais críticos era a preocupação paraalém das razões estéticas e técnicas do cinema. Já enxergava a linguagem cinematográficacomo nova ferramenta, ainda que com limitações e indefinições, de especulação psi-cológica e filosófica. Sem que tenha usado a palavra “filosofia”e derivadas em seustextos (como Kierkegaard, mesmo sendo filósofo por natureza e intuição Rogério não seassumia como tal), são as buscas na direção da verdade e as essências do homem e dahumanidade que mais o preocupavam na análise do que ele batizou, apropriadamente,“cinema moderno”, identificando-o, não na natureza estética revolucionária quecaracteriza a expressão “moderno” em relação às outras artes, mas com o pensamentofilosófico moderno que, de Hegel para cá, introduz as noções de relatividade nas abor-dagens revolucionárias da realidade.

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Cinema FCinema FCinema FCinema FCinema Fora da Leiora da Leiora da Leiora da Leiora da Lei 4

Manifesto de Rogério Sganzerla

1 – Meu filme é um far-west sobre o IIIMundo. Isto é, fusão e mixagem de váriosgêneros. Fiz um filme-soma; um far-west mastambém musical, documentário, policial,comédia (ou chanchada?) e ficção científica.Do documentário, a sinceridade (Rossellini);do policial, a violência (Fuller); da comédia, o ritmo anárquico (Sennett,Keaton); do western, a simplificação brutal dos conflitos (Mann).

2 – O Bandido da Luz Vermelha persegue, ele, a polícia enquantoos tiras fazem reflexões metafísicas, meditando sobre a solidão e aincomunicabilidade. Quando um personagem não pode fazer nada, eleavacalha.

3 – Orson Welles me ensinou a não separar a política do crime.4 – Jean-Luc Godard me ensinou a filmar tudo pela metade do preço.5 – Em Glauber Rocha conheci o cinema de guerrilha feito à base

de planos gerais.6 – Fuller foi quem me mostrou como desmontar o cinema tradicional

através da montagem.7 – Cineasta do excesso e do crime, José Mojica Marins me apontou

a poesia furiosa dos atores do Brás, das cortinas e ruínas cafajestes edos seus diálogos aparentemente banais. Mojica e o cinema japonês meensinaram a saber ser livre e – ao mesmo tempo – acadêmico.

8 – O solitário Murnau me ensinou a amar o plano fixo acima detodos os travellings.

9 – É preciso descobrir o segredo do cinema de Luís poeta e agitadorBuñuel, anjo exterminador.

10 – Nunca se esquecendo de Hitchcock, Eisenstein e NicholasRay.

11 – Porque o que eu queria mesmo era fazer um filme mágico ecafajeste cujos personagens fossem sublimes e boçais, onde a estupidez4 Escrito em 1968, durante as filmagens de O Bandido da Luz Vermelha.

Paulo Vilaça e HelenaIgnez em O Bandido

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– acima de tudo – revelasse as leis secretas da alma e do corposubdesenvolvido. Quis fazer um painel sobre a sociedade delirante,ameaçada por um criminoso solitário. Quis dar esse salto porque entendique tinha que filmar o possível e o impossível num país subdesenvolvido.Meus personagens são, todos eles, inutilmente boçais – aliás como 80%do cinema brasileiro; desde a estupidez trágica do Corisco à bobagemde Boca de Ouro, passando por Zé do Caixão e pelos párias de Barravento.

12 – Estou filmando a vida do “Bandido da Luz Vermelha” comopoderia estar contando os milagres de São João Batista, a juventude deMarx ou as aventuras de Chateaubriand. É um bom pretexto para refletirsobre o Brasil da década de 60. Nesse painel, a política e o crimeidentificam personagens do alto e do baixo mundo.

13 – Tive de fazer cinema fora da lei aqui em São Paulo porque quisdar um esforço total em direção ao filme brasileiro liberador, revo-lucionário também nas panorâmicas, na câmara fixa e nos cortes secos.O ponto de partida de nossos filmes deve ser a instabilidade do cinema– como também da nossa sociedade, da nossa estética, dos nossos amorese do nosso sono. Por isso, a câmara é indecisa; o som fugidio; os per-sonagens medrosos. Nesse País tudo é possível e por isso o filme podeexplodir a qualquer momento.

DepoimentosDepoimentosDepoimentosDepoimentosDepoimentos

(Em 1968, aproveitando a seleção e aposterior premiação máxima em Brasíliapara O Bandido da Luz Vermelha, RogérioSganzerla toma de assalto as redações com depoimentos ácidos sobre oestado do cinema brasileiro e o gesto que seu primeiro longa-metragemsignifica. Alguns deles, junto com a parte “1” de seu manifesto “Cine-ma fora-da-lei”, permaneceram sendo citados por anos e anos. Perdidasas referências principais, publicamos aqui as declarações de Sganzerlasobre suas influências e seu processo de criação [R.G.])5

“Podia falar muito da chanchada, que considero uma das nossas

5 “Nariz-de-cera” da Contracampo - Revista de Cinema, nº 58.

O Bandido da Luz Vermelha

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mais ricas tradições culturais, como também sobre o estilo radiofônicodesse filme; o rádio brasileiro é outra tradição que não pode ser des-conhecida, principalmente quando se tenta mergulhar nas origens eimplicações do subdesenvolvimento. Não tive pudor nenhum em realizaresse ou aquele plano inclinado, tal diálogo ou situação cafajeste. Fizquestão, inclusive, de filmar como habitualmente não se deve filmar,isto é, utilizando angulações preciosistas e de mau gosto, alterando aaltura da câmera, cortando displicentemente, não enquadrando di-reitinho, sendo acadêmico quando me interessava. Nesse filme mar-ginal há citações de Primo Carbonari e de peças dirigidas por José CelsoMartinez (O Rei da Vela), além de José Mojica Marins. Fiz um filmevoluntariamente panfletário, poético, sensacionalista, selvagem, malcomportado, cinematográfico, sanguinário, pretensioso e revolucionário.Os personagens desse filme mágico e cafajeste são sublimes e boçais.Acima de tudo, a estupidez e a boçalidade são dados políticos, revelandoas leis secretas do corpo explorado, desesperado, servil e subde-senvolvido. Meus personagens são, todos eles, inutilmente boçais, como,aliás, os de 80% dos filmes brasileiros desde a estupidez trágica doCorisco à cretinice do Boca de Ouro, passando por Zé do Caixão e pelosatrasados pescadores de Barravento. Assim, o bandido da luz vermelhaé um personagem político na medida em que é um boçal ineficaz, umrebelde impotente, um recalcado infeliz que não consegue canalizarsuas energias vitais.”

“O novo cinema deverá ser imoral na forma, para ganhar coerêncianas idéias, porque, diante desta realidade insuportável, somos anti-estéticos para sermos éticos. Fiz O Bandido da Luz Vermelha porquetodos os cineastas que admiro fizeram filmes policiais mas no meio doprojeto percebi que não poderia parar, que tinha de incorporar outrosestilos sem sair da poesia noturna do policial classe B, para procurar averdade nos espaços externos do western, nos interiores pobres da chan-chada, na estilização do musical. Não tive pudor em fundir a 5ª Sinfonia,de Beethoven, com Asa Branca, de Luiz Gonzaga, e, em certos momentos,sobrepor três ou quatro músicas. A narração é outro elemento original,pois restitui o filme a uma de suas origens fundamentais – o rádio. Nofundo, ela é uma tentativa de captação e abstração da realidade porqueo jogo da narração repousa na possibilidade da palavra em si. No final,os narradores entrecortam-se progressivamente, manifestando umaperplexidade verbal que é o signo do próprio filme.”

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Alô alô Rogério Sganzerla!

Sganzerla ataca de BandidoSganzerla ataca de BandidoSganzerla ataca de BandidoSganzerla ataca de BandidoSganzerla ataca de Bandido 6

Não obstante a alta qualidade da seleção de Brasília, sabe-se queRogério Sganzerla venceu bem o IV Festival do Cinema Brasileiro comseu O Bandido da Luz Vermelha. Em suas declarações a nossos colegasno Jornal do Brasil, Rogério Sganzerla – nascido em Joaçaba, SantaCatarina, em 1946 – disse acreditar que seu filme contém, “prin-cipalmente, uma reformulação formal dentro do cinema brasileiro.Chegou a hora dos filmes sujos e poéticos, impuros e pretensiosos, dasformas novas para novos conteúdos. De um cinema de linguagem quefalasse da política ou de banditismo sem respeito estético, adotandoinclusive – como Gustavo Dahl em O Bravo Guerreiro – uma liberdadeobscena”.

Um fenômeno de precocidadeRogério Sganzerla aproximou-se do cinema ainda garoto.– Aos doze anos, escrevi meu primeiro roteiro; e era um roteiro de

longa-metragem.Como crítico e como cineasta, Sganzerla filia-se claramente às no-

vas correntes que vêm revolucionando o cinema no mundo inteiro.– Se faço cinema no Brasil, então faço Cinema Novo. É difícil defini-

lo, sem dúvida. É uma igrejinha, mas também um movimento coletivo,talvez o mais importante da cultura brasileira nestes últimos vinte anos.Se existe algum lado negativo então é o caráter sub-literário e o des-preparo de muitos diretores com pretensões estritamente intelectuais.O filme que sintetiza o Cinema Novo ainda é Deus e o Diabo na Terra doSol, de Glauber Rocha, embora reflita os entusiasmos, as indecisões e aingenuidade da primeira fase. Barravento, do mesmo Glauber, é o melhorfilme baiano. E Terra em Transe abre, com O Desafio, o novo momentodo Cinema Novo. Não se pode defini-lo: aí está sua força. Os filmes têmque ser políticos, mas podem sê-lo de outras maneiras, não somentecomo Rocha e Sarraceni. Não se pode nem tentar imitá-los. É precisoque a turminha de hoje, mais nova, abra os olhos e enverede por outrassaídas. O cinema evolui em meses e mesmo assim está atrasado emrelação às outras atividades artísticas.6 Depoimento a Alex Viany, publicado na Tribuna da Imprensa, quinta-feira, 5 dedezembro de 1968.

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Discordo de um cinema bra-sileiro estritamente crítico, realista(no sentido tradicional) e objetivo,embora respeite certas opiniões doslukacsianos. Nossa realidade nãoadmite cinismo nem constataçãoseca dos fatos. O distanciamento eas teorias brechtianas, aplicados aocinema, são coisas do passado.

Hoje, não se pode pensar em aplicá-los a nossos filmes. O cinemabrasileiro é um processo naturalmente cruel: Godard e Rosi precisamser destruídos urgentemente. É o novo Cinema Novo quem pede.

Por um cinema imoralNas declarações ao Jornal do Brasil como que completando o

depoimento que me fez há tempos, Sganzerla acrescenta:- O novo cinema deverá ser imoral na forma, para ganhar coerência

nas idéias, porque, diante desta realidade insuportável, somos anti-estéticos para sermos éticos. Fiz O Bandido da Luz Vermelha porquetodos os cineastas que admiro fizeram filmes policiais mas no meio doprojeto percebi que não poderia parar, que tinha de incorporar outrosestilos sem sair da poesia noturna do policial classe B, para procurar averdade nos espaços externos do western, nos interiores pobres dachanchada, na estilização do musical.

Enquanto esperava sua vez de fazer cinema, Rogério Sganzerla fezcrítica.

– Foi meu meio de dizer as coisas, de violentar o cinema durantequatro anos. Hoje, não consigo escrever mais de vinte linhas sobre umfilme; antigamente, escrevia laudas e laudas. A crítica, agora, para mimserve como política de cinema; mais nada. Lamento que eu seja o únicode minha geração a interessar-se pela crítica; todos os outros nem queremsaber de jornalismo e crítica. A crítica brasileira continua ruim.

Por muitos vietnãsPara Sganzerla, todos os jovens “estão um pouco viciados pela

nouvelle vague e seus famosos macetes; aquilo que todo mundo chamade mise-en-scène”.

– Ou seja: a montagem solta, o estilo documental, os planos-se-

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qüências, as personagens politicamente indecisas, elegantes e amorais,a câmera na mão, etc. Ficam só nisso: o cinema pelo cinema. Godard.Godard é o primeiro e único capítulo dos novos, mas precisa ser situadoe criticado. Godard é um intelectual vítima da sociedade industrialfrancesa, que fala de outras realidades. Fico com Pasolini quando elediz que “o cinema agora tem que ser bárbaro e barroco”. Glauber Rocha,cineasta brasileiro, meu irmão, meu semelhante. O cinema brasileironasce com Humberto Mauro, vive com Nelson Pereira dos Santos, excita-se com Paulo César Sarraceni, desespera-se com Glauber Rocha e morrecom todos nós. Godard falou: “É preciso criar um, dois, três, quatroVietnãs cinematográficos”. O cinema brasileiro, mesmo o Cinema Novo,está se aburguesando; virou cinema novo-rico. Por outro lado, volta ooutro cinema, isto é, o cinema gagá (de São Paulo, principalmente, denossos clássicos expressionistas caipiras).

O cinema do riscoO novo cineasta não vê muitas perspectivas para os jovens que

desejam fazer cinema no Brasil.– Mas é preciso lutar. Estamos aí para isso mesmo. Em verdade,

hoje existem dois cinemas: o novo rico e o cinema de guerrilha. Nestaúltima perspectiva é que se alinha a nova geração. Não sei bem quem éa nova geração, mas sei que está aí. Há muito interesse por parte degente inexperiente ou quase, em trabalhar com celulóide, fazer filmes,mudar as atuais condições do Cinema Novo. Ele está um pouco desgas-tado.

E aí está O Bandido da Luz Vermelha, ganhador do grande prêmiode Brasília 68. “Se escolhi o bairro para falar do Brasil”, disse aindaSganzerla ao JB, “é porque esse bairro se chama Boca do Lixo. Não ésímbolo, mas sintoma de uma realidade. Dentro de uma sinceridadetotal, tentei mentir e dizer a verdade, ser triste e violento, boçal e sensível,acadêmico e criador. Enfrentei uma parada diabólica: os maiores riscospara um estreante na longa-metragem com a simples certeza de que ocinema brasileiro é o cinema do risco, onde tudo é possível”.

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Notas para Notas para Notas para Notas para Notas para O Índio e a VO Índio e a VO Índio e a VO Índio e a VO Índio e a Vampiraampiraampiraampiraampira 7

1. ela é uma mulher sexualmenteinsatisfeita. sinais: dá para muitos(pessoas feias gordas sujas). em todanarração.

2. ela está quase sempre debiquíni duas peças. outros idem.

3. esse poderia ser o filme doúltimo dia de vida dos seus per-sonagens. nesse filme todos os personagens morrem naquele mesmodia.

4. importante: passagem da alienação ao comunismo dela: no striptease com guerrilheiro. ela sente o clima da subversão. um climaaltamente sedutor e subversivo. momento forte.

5. diluir todo estilo documental.6. expressar idéias através da mitologia e do mundo da aventura.7. em Shangri-lá a classe média é aterrorizada a se destruir como

classe tragicamente insolúvel.8. X-9 sempre de moto, assim como as duas quadrilhas.9. X-9 enterra diversas cargas de dinamite no décor (início do filme)

em que personagens pisam. algumas explodem. outras, não.10. homossexualismo feminino: falta?11. por diversas vezes, ele dirige carro aberto com lenço. exerce

telepatia, falando com pessoas que encontra: fecha os olhos e diz tudosobre sua roupa, casos. É um mago. X-9, o mago.

12. o marido Peter usa um turbante turco na cabeça: tem origensianques, turcas ou rumanescas?

13. gesto a repetir: ela levanta saia até a coxa14. ver romances15. Personagem: Marilyn Monroe; Mr. Universo16. índio faz fogo e fumaça

7 Escrito em 1968.

Fac-símile (parte) dodatiloscrito de Rogério

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Alô alô Rogério Sganzerla!

FFFFFilme em Questãoilme em Questãoilme em Questãoilme em Questãoilme em Questão 8

Aos senhores críticos:Definitivamente, queria esquecer O Bandido da Luz Vermelha

(rodado em abril-maio de 1968) de uma vez, já que foi feito para servisto num poeira, esquecido ao fim da sessão, jogado no lixo enfim, aoinvés de ser conservado na memória dos cineclubes e cinematecas. EmSão Paulo tive também de fazer a crítica porque picharam ou elogiaramsem entender. Continuo esperando uma crítica inventiva, ao nível doprovável e não da certeza idealista, das especulações sentimentais eperspectivas do passado (e do provincianismo, principalmente). Não dápé escrever que “Helena Inês está genial, é uma personagem fatal.” Épreciso repensar – no cinema como na crítica – o nova dimensão doator, da câmera, do diálogo; discutir as noções de belo, talentoso, sensível,etc. Pelo amor de Deus, senhores críticos, não publiquem o óbvio, queeu sou “um talentoso influenciado por Welles e Godard.” Falem da minhadívida a Mojica, que vocês detestam, por exemplo.

É preciso, outro exemplo, dizer que com este filme o cinema modernofinalmente chega ao Brasil; que eu me recuso a fazer literatura na tela;que enfim surge um filme brasileiro ligado a Hawks e Godard e não aVisconti e Fellini (isto é fundamental). Reparem as inovações da bandasonora. Necessário dizer, também, que eu e alguns poucos estamos pordentro, ao contrário dos deslumbrados provincianos do cinema novorico. Se tivesse que definir falaria de um cinema péssimo e livre, pa-leolítico e atonal, panfletário e revisionário – que o Brasil atualmentemerece. Repito isso tudo simplesmente porque não agüento mais o quevem sendo feito pelo cinema novo. Falo como espectador comum,agredido pela burrice institucionalizada.

Felizmente, Formosa Pistoleira – meu segundo longa-metragem, emfase de finalização e mixagem – é o contrário deste: escolhi a teleobjetivaao invés da grande angular, longos silêncios substituem esta apocalípticabanda sonora; um filme calmo, afirmativo e fechado sobre si mesmo.

Outro dia, numa entrevista a O Cruzeiro, que ninguém leu, disseque “o cinema não me interessa, mas a profecia”. Com essa frase resumoo meu desprezo pelas pequenas sensibilidades, pelos autores levemente8 Escrito em 1969.

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corajosos, sutilmente inteligentes, afirmando munha ruptura ao movi-mento de elite, aristocrático, paternalizante e acadêmico denominadoCinema Novo. Vendo O Bandido, compreenderão minha radicalizaçãosincera.

Já fui crítico; e se deixei o jornal para realizar provocações anti-ocidentais não foi para virar autor como Bergman ou Antonioni maspara, no máximo, ser um anônimo copydesk de Mack Sennett.

A ExibicionistaA ExibicionistaA ExibicionistaA ExibicionistaA Exibicionista (título único) 9

Close de chinesa que fala em som direto– Cada vez mais mística e raivosa, a guerra e a revolução dentro de

mim, com essa necessidade besta de tirar roupa. me exibir por nada(vai tirando a roupa, no fim da seqüência tem um tipo dormindo ao ladoque a beija) fim da seq. Ela está contra telão do Monte Fuji. Fala sobreo Oriente. títulos. depois a seq. na rua com autos.

– Não agüento mais Hong Kong, quero cair fora do Japão, ser freirano Paraguai, contrabandista em São Francisco, ladrona em Belém doPará, traiçoeira no Oiapoque, mística no Chuí.

– Eu rezo a única maneira de salvar-me, tirar o pé da lama mundial,vou atrás do misticismo e da aventura, só acredito nelas. Eu penso muitoem mim porque quero me limitar, situar, mostrar-me a mim mesma, oque eu queria era partir da minha própria superação, indivíduo e detalhesexual subdesenvolvido e sem nenhuma importância.

– Detesto esse meu jeito moderninho de falar; esses meus gestos, osmacetes da nossa civilização ocidental. Contra a propriedade, pela posse.Misticismo é a visão direta. Documentário é misticismo; câmera fixa édelírio; som direto é exacerbação. Só da raiva pode sair alguma coisa.

9 Atribui ao ano de 1969 a redação deste escrito, e dos três outros que se seguem.Lembro-me de tê-los separado (estes e outros argumentos e anotações para roteiros)porém não cheguei a conversar sobre eles com Rogério. Mas me parecem a continuaçãodas idéias que se vão formando na cabeça do cineasta desde O Índio e a Vampira, e quevão dar em Carnaval na Lama e A Mulher de Todos.

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Alô alô Rogério Sganzerla!

Por exemplo, o José Celso Martinez, o que é? não gosto mais de ninguém,não tenho nenhum medo da morte. Tenho medo de mim. É o que mesalva. O terror dentro da minha cuca. Sempre preferi a maldade e atraição. São os nossos caminhos, de onde pode sair qualquer esperançacoletiva. Mudar a face da terra. Só a violentação é moral, o resto é lixo.Transformar, sujar, botar as mãos na massa; Antes do Carnaval em Caxias,a trepada oriental. O Oriente também é uma bosta, estético, contem-plativo, auto-suficiente. Prefiro a convulsão da. Gostaria que. Escolheria.O terror ainda é a saída intelectual para nós, indivíduos talentosos esuperáveis do Ocidente subdesenvolvido, na tentativa inevitavelmentecruel de entender nosso mundo e agir contra ele; intelectualmente, diriaque o terror é o caminho mais sensato e adequado ao relacionamentodidático-visionário dos seres e objetos.

A profecia hoje é obviamente oriunda do neo-realismo e do natu-ralismo. A televisão é visionária, o rádio também. O jornal é profético.Adoro seu sensacionalismo – elemento altamente marxista, e provocador.A provocação é o último estilo literário (ainda) do século XX. Dela podesurgir a invenção formal e a revelação do conteúdo místico. Por umaforma pobre, limitada, ascética, asséptica, que contenha um extra-vasamento anti-cristão e religioso.

Estou com a saída nas mãos e o que é que eu faço? Estou vendodiretamente as coisas como elas são para mim. Sei que sou o maior,ainda bem. Infelizmente, mistificação no ponto mágico vira sensatez.Os místicos e os mistificadores serão os personagens dos meus filmesporque minha imaginação só comporta essa raça de revolucionários.Mentindo, sendo parcial e demagógico, encontro a verdade sincera. Sendosuperficial, sou profundo – evidentemente. Agora é a vez da América.Por uma arte americana de invenção, barroca ao nível da forma (umaforma ascética e baseada no excesso, bárbara e realista como a televisão);clara, didática, revolucionária ao nível do conteúdo: não há conteúdopossível nesta situação e estado de coisas, meados do século de praxis-Marx; o conteúdo é a forma, está na cara; o conteúdo é este: deixar cair!isto é, deixar explodir; as coisas andarem; o tempo correr; o mundocaminhar para soluções inevitavelmente simples, poéticas e revo-lucionárias. Meu destino intelectual continua sendo simplesmente o danossa face direita da Terra. Quero pensar como um telex e é só; nemmais nem menos; essa é minha proposição, mítica, mística e mistificadora

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– para melhor achar a verdade, ou melhor, provocar a verdade nos outros,me discutir e corromper internamente, me situar como o mais mentirosodos novos autores talentosos do novo cinema, vítima do ancestral cine-ma de autor; tudo é possível; simplesmente; então para que essa ondatoda? cinema, parcela da infra-estrutura de direita diante da qual cini-camente nós criamos, inventamos, tentamos dar do nosso melhor, então,diante da direita pura e simplesmente institucionalizada, nós, colabo-racionistas e criadores do sistema, nós produzimos uma arte inevita-velmente imoral e obscena.

BETTY BOMBABETTY BOMBABETTY BOMBABETTY BOMBABETTY BOMBA(anotações)

Abertura: Número musical Lennycomédia para rir bastanteexterior dia num jardim – festa bacanalajaponezado jogando dinamite numa festaclose de Helena que vê o objeto, pega e põe na bolsa (tudo pode ser

útil)picnic de pessoas nuas com música (Sonda boys) o tempo todotrepam: mulher por cima e o cara quase gozando.todo mundo amontoado no chão; bêbados no jardim– tensão em xangai(o cara trepando, com passagem para Xangai, detalhe)entrada de Helena botando dinamite debaixo de uns três caras que

querem comer ela. Ela diz: “Detesto o sexo” e enfia a dinamite, calma-mente, acende a dinamite e troca, botando dinamite acesa na mão docara por baixo e sai

o casal que trepa explode, caem braços e pernasletreiros

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é a Betty Bomba, BBela vê (figuração Petticov, Mojica) um garçom contratado para a

festa, o uísque acabou e o garçom está sem fazer nada, de smoking. eladespreza os outros e leva o garçom para casa

ela sai no seu carro, um chevrolet antigo, e leva para um apartamentoque ela sabe que não tem ninguém; esqueci minha chave; arromba aporta; ele arromba; eles entram num apartamento burguês, que ela nãoconhece.

ela vai tomar banho antes de trepar: ela manda ele tomar banho efica fumando, assistindo, sentada na privada, contando uma historinha(examina casa, vê janela, tapa com cortina e põe banquinho)

ela enche banheira (ela organiza banho para ele, quase mudo) dechampagne, cerveja, perfumes aí ela entra junto. a tara dela é ver alguémtomar banho com esse ritual mas ela tem nojo e fala: você trabalhoumuito hoje, vou te preparar um banho, você é garçom há quanto tempo?põe repolho, flores, conversando com ele.

você trabalha há muito tempo de garçom?estou fazendo a volta ao mundo, hoje eu devia estar no Méxicoquando ele entra no banheiro ela traz pick-up imediatamente e põe

disco de música japonesa.– olha que engraçado, um disco japonês– eu ainda não conheço o Japãoela pega roupas e objetos pondo numa malinha– olha, mas esse apto. é seu mesmo?ela enfeita-o com roupas, bem ridículocomeçam a beijar. ela prepara a mala. bulinam no sofá. ainda não.ela interrompe para roubar algo. tira livro da estante, lê em voz alta

e escreve na parede com batom:A LOUCURA É O SOL QUE NÃO DEIXA O JUÍZO APODRECER;

STO AGOSTINHOse beijam, rolam pela parede.ela manda ele subir no banquinho; beija-o desbragadamente, ela

está parada

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ele faz pose de Charles Atlas, ele confessa– você é louca mas gamei... tão diferente... você é tão estranha, é

normal?– normalíssima

BETH BOMBA – A ExibicionistaBETH BOMBA – A ExibicionistaBETH BOMBA – A ExibicionistaBETH BOMBA – A ExibicionistaBETH BOMBA – A Exibicionistaum filme para a jovem guardaum filme para a jovem guardaum filme para a jovem guardaum filme para a jovem guardaum filme para a jovem guarda

programa livre ou interditado pela censurase não tiver os recursos para a idéia, pelo menos sugerir apolo-

geticamente essa idéia.carregar em algum dadocortar as motos sem bomba, sp à noite, etc.

Para os senhores paisHelena entra dizendo: foi vocês que me fizeram: eu fui feita por

vocês, seus palhaços: eu sou a Beth Bomba: a Exibicionista: eu sou ofilme de Rogério Sganzerla que vocês detestam, também sei, ele é oprimeiro a saber, também sei também sei (cantarolando) nós somos aquio produto dos nossos pais é óbvio eu então vou mostrar para vocês.

Nosso relacionamento com o Brasil é o alheamento, o desprezo e odesespero.

gostaria de fazer um filme sobre o desespero e o Brasil.Nós, mal-comportados de todo o Brasil, detestamos isso que nós

somos: todos os mal-comportados detestam e morrem pela terra. Euquero falar de nós todos: fazer um cinema deliberadamente não íntimo,não psicológico, não expressivo mas ao tom folhetinesco do rádio, dagrosseria provocadora, do cafajestismo barroco.

esse é o tom, do rádio, do programa de auditório, das letras de umNoel, por exemplo. Agora ninguém entende... Ninguém entende mas euentendo a burrice.

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um filme folhetinesco, sujo, aotom da sacanagem proposta, play-boísmo estético do melhor.

se envolver no estilo sujo.

A PA PA PA PA Pornográfica ouornográfica ouornográfica ouornográfica ouornográfica ouOs POs POs POs POs Pornográficos do Mundo Inteiroornográficos do Mundo Inteiroornográficos do Mundo Inteiroornográficos do Mundo Inteiroornográficos do Mundo Inteiro(ou Golpe do Baú)(ou Golpe do Baú)(ou Golpe do Baú)(ou Golpe do Baú)(ou Golpe do Baú)

A exibicionista. Vigarista. Ladra profissional, hipnotizadora, cinetistalouca, socióloga, stripper internacional.

1 - int dia casa japonesa– número musical –plano fixo som direto, grande close up de H. vestida com enorme

chapéu de palha oriental, rosto pintado, roupa de gueisha. Ao fundotelão do Monte Fuji, locomovendo-se lentamente. Luz incide no telão,variando. Um vidro entre a câmera e H., que limpa boca de açúcar;vidro em frente. Silêncio. Vidro quebra. Ela fala bruscamente:

Helena (Madame Zero) – Estou até aqui do Oriente (faz sinal natesta), quero cair fora de Hong Kong (gritinho; mão introduz galinha noquadro – ela a corta com faca. sangue cai na cara e na coxa, que estápintada com letras e desenhos, nua). Chega de misticismo oriental, prefiroser freira no Paraguai, ladrona em Belém do Pará, traidora no Oiapoque,escrota no Chuí. A única maneira de me salvar (ininterruptamente, eacumulativamente, neuroticamente seguida) e como me salvar os outros?eu rezo! enfim tirar o pé da lama internacional indo atrás do misticismooriental e da aventura, se eu penso muito em mim é porque eu queromostrar pra mim mesma que eu não sou nada, sou uma limitada, umacoitada, queria partir de mim, Madame Zero, pessoinha e detalhe sexualsubdesenvolvido (rosna, late) (berrando) sei que sou uma coitada lúcida!se eu sei então consigo ser uma santa! (vira-se de costas para a câmera

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– quebra coisas e fala de costas – cena ainda fixa, telão ao fundo mexe,luz no telão) Ontem deixei de gostar de mim... não tenho medo da morte...tenho medo de mim, é o que me salva, eu me adoro! o terror dentro daminha cuca, aqui em Hong Kong sempre preferi a maldade e a traição...a trama é essa: simplesmente mudar a face da terra (pan pelo seu corposeminu tatuado e com letras. Corpo, abaixo da cabeça, anda pelo quartoquebrando objetos)

Helena Zero – Antes de meter uma bala na cabeça no Carnaval emCaxias, não sei; onde é que vamos parar com isso? onde é que esse copo(olha copo de uísque na mão) e esse meu corpo vão me levar?

Preferi a convulsão da. Gostaria de prep. Que. Escolh.O.Ant.Terror.É.Sensato... onde é que esse corpo vai me levar, senhoras esenhores” a provocação é a última literatura do século vinte... estoucom tudo, a saída nas mãos e o que é que faço? agora, nesse momento,estou vendo diretamente as coisas como elas são para mim. Sei bem oque eu sou, ainda bem (berrando) Tudo legal, macacada! Ago-ra.É.A.Vez.Da.América. O conteúdo é a forma está na cara! Não háconteúdo possível nesta situação, meados do século vinte... o conteúdoé este, deixar cair! com a mão na massa! Vai que é mole! sai de baixo! éde chuá! metido a bacana! alô alô Brasil! Atenção que minha sogra é dapolícia! tudo é possível! ah, onde é que esse corpo vai me levar? (gritose berros deselegantes, atonais, animais)

(enquanto sai este monólogo ininterrupto, planos dela, telão, planosde Chinatown e bairro japonês, cortados com tipo deitado na cama,parado por algum tempo; outro – também tatuado no corpo e um terceiroque todos a abraçam etc. etc.) Cada vez mais mística e furiosa, comessa necessidade besta de tirar a roupa, me exibir por nada (vai tirando– grande close-up dela – a roupa) (no fim da seq. tipo acorda e a beija)

Helena – Hong Kong não é como vocês pensam. É o fim, o lixo!(refere-se como se fosse o Brasil de “O Picareta”) queria entrar numaaventura lá dentro do continente. me interessa o mundo. (começa a cantardesafinada, berrando como um bicho sufocado com uma espinha nagarganta).

2 ext dia bairro orientaldiálogo morre em cima de Close japonês dirigindo carro de óculos

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escuros. Close dela, saindo do carro exatamente no início da cena. Paradanuma esquina. plano fixo.

Pan de carro que passa e pára. Carro 1 segue carro 2. Morumbi.Bairro japonês. Gângster de carro 1 enfia faca ou navalha no seu própriocorpo, dirigindo. No final tira máquina de fotografia de dentro do portaluvas (corte no detalhe)

3 int noite aptoMúsica forte. Cinema japonês. Dança em cima duma cama. Japonês

a vê, tira paletó. Ela dança.Câmera dentro do guarda roupa ou banheiro, com Gângster 1 em

primeiro plano preparando câmera e flash.Fotografa-os. Chantagem. Planos oblíquos japonesados (Yoshida)

do casal trepando. Quando trepa o japonês trouxa fala verdades essen-ciais, como em Sou pago para Matar

– Eu sou o Japonês Trouxa do Oriente, e você? qual é teu jogo,gueisha?

Ela murmura – Não sou gueisha. Sou mineira.Japonês – O japonês trouxa só fala verdades essenciais quando tem

uma mulher na mão, assim... (fala em língua pseudo-oriental) (tom dechanchada exótica) (poderá ser um cômico de teatro de revistas)

(corte com planos-flash exteriores de Chinatown e Liberdade)Chantagista fotografa-osfim do amor[aquele era um dia normal na vida de senhorita Ângela, bêbada,

secretária, falida]

4 ext diaprédio oriental, fachada: 3 ou 4 planos rápidos

5 int dia escritórioclose do japonês trouxa, dono das indústrias, que abre carta; detalhe

de carta em japonês, ameaçando pagar senão saem fotos nos jornais e

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ele perderá as eleições para presidente do Japão. (sub-título explicaisso)

6 ext dia depósito de lixoPAN demagógica pelo lixo, japa trouxa anda apavorado. encontra

japonês; dinheiro é entregue.1. detalhe da transação. eles falam mas a cena é muda. coberta por

cantora sexagenária em cima do lixo (ou gravação oriental)quando os dois saem, off, metralhadora: caem os dois no lixo.detalhe de metralhadora no meio de ciprestes. quando os dois saem,

sai Helena que apanha o dinheiro da chantagem, revista corpos, can-tarola; roupa, máquina fotográfica, dinheiro, carteira, alguns trocadosdeles, tudo dentro da mala de onde tirara metralhadora, rouba roupa,deixando os dois nus no lixo, abre carteira e encontra fotos de família euma passagem (detalhe)

[ou entra no aeroporto, segura na roda do avião. Avião levantandovôo]

pan 180º pelo lixo

fim do rolo 1

A Mulher de TA Mulher de TA Mulher de TA Mulher de TA Mulher de Todosodosodosodosodos 10

(trecho)

INTRODUÇÃO (letreiro México 1946)

1. ext dia jardim ou praiaTrês planos fixos, rápidos, mudos – insólitos:pick-up na praia (fixo) mão força braço arranhando o disco

10 Escrito em 1969.

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alto-falante (fixo)

2. ext dia estradaCâmera na mão sobe

diante do pé de canga-ceiro.

3. ext dia qualquerTipo enfia sarrafo na

boca de homem ou mu-lher.

alto-falante – Três cangaceiros mataram hoje na via Dutra Mr. Welles,Mr. Lucas, Mr. Straub e Dr. Indefectível.

4. ext dia qualquerCloses de cabeças sangradas, diferentes dos tipos mencionados

5. ext dia jardimBoca de mulher (verticalmente)Boca – hoje... meu desespero se chama...

AÇÃO (BRAZIL 1959)6. ext dia rua S. PauloTRAV P/ frente: Flávio bate em Ângela (ele manca)F – Sua vagabunda, não presta mesmo, sua cínica. Não vale nada...A – E você? seu recalcado? aleijado recalcado!(gritos; repetições)F – Você não vale nada, corre atrás de tudo quanto é homem e não

quero mais que você telefone para seu marido, cínica!(ela está com filhos) (entra em moto com óculos)Corre com as crianças. Pega táxi ou seu próprio carro, entrando

rápido.

Helena Ignez em A Mulher de Todos

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7. ext dia esquina(crime inicial: pretexto p/ week-end dela transporte de jóias em

contrabando. Ela vai pra S. Paulo)Desce do táxi ou de seu carro. Johny Herbert a espera.Trocam beijos doces. Ele sai da igreja (sinos batem)Johny – Tudo bem, amor?Ângela – E você, querido?Johny – Não vou poder ir à praia contigo...Johny agitado, falando e mexendo-se bastanteJohny – Não sou canista não... é que eu prometi um trabalho...A – Péra que eu vou deixar as crianças com a babá (deixa-as no

carro com chofer ou babá. provavelmente logo no início da seqüência)Travelling os segue: namoram, aproximando-se de edifício.Pan até placa de hotel.

8. int dia hotel ou apartamento (dependendo da produção)tela escura. Vozes de amantes na escuridão, ruídos.Acende a luz. Johny se veste rapidamente. Ela permanece seminua

na cama.A – Pressa, querido?J – Tenho que sair correndo com essa história toda...A – Péra que vou contigo, preciso telefonar pro meu marido!J – Aquele boçal?A – Não xinga o meu amorzinho... eu gosto dele também... você

sabe...J – Mas de quem você gosta mais...?A – De você...

9. ext dia telefone públicoÂngela fala com Jô. Pelo vidro faz sinal para Johny Herbert que se

despede e entra em carro ou táxi. Profundidade de campo ou contra-plano.

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A – Sou eu, meu amor... acabando de chegar da fazenda...(olha na direção de Johny e, através do vidro, trocam o último beijo)...Vim com Dona Glorinha, a professora de italiano, vou deixar ela

em casa... saudades de você... claro... muitas...

10. ext dia fachada de prédioPAN vertical na mão, muito rápida – terminando em tempo morto.câmera se afasta ou avança. O big boss ao telefone, cercado de duas

ou três mulheres(exagerado) com café e bebidas.Jô – também, morrendo de saudades mas não posso largar esse

negócio assim... (malicioso) preciso faturar, claro... (muda de tom) vocêparece que não gosta mais de mim, está me traindo por acaso? (rindo)pra mim é impossível imaginar... sem você largava uma bomba aqui,não queria nem ver a cara de uns banqueiros suíços, só para te ver...Não, não posso, Ângela: antes de domingo é impossível eu sair de SãoPaulo. Te encontro na praia... sim, claro; ah, meu bem, fui obrigado aconvidar um funcionário aqui do escritório, simpático, acho que vocêconhece, o Armando... aquele alto que quase tirou o campeonato detênis no ano passado... só assim arrumo um parceiro para emagreceruns cinco quilos; acho que você se lembra, péra que ele está chegandoagora.

Uma porta abre: é Johny que entra rindo, saudado pelos com-panheiros.

Cumprimenta Jô...Jô – Você já conhece minha mulher, não?J – Devo conhecerJô – E as raquetes, está levando...? ciao... Não se esquece das minhas

bolas... de levar meus balões, querida... outro.Funcionários entram pelo escritório, efusivos, com flores.Cantam “Parabéns a você”.Jô, lisonjeado, recebe beijo da secretária. Um beijão de uma

secretária exuberante.Jô (excitado) – Pode liberar todo mundo... não quero ver ninguém

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trabalhando no dia do meu aniversário... menos o Renatão que eu precisofalar com ele.

corteDentro do elevador do edifício, Jô se afasta de funcionários e se

aproxima de RenatãoJô – Preciso te instruir, um negócio. Um trabalhinho, Renatão...R (silencioso, o ouve)Jô – Mas dessa vez é delicado... mulherRenato – Legal...Jô – Só que é a minha mulher...Renato (ouve) – Ah...saem ambos do elevador. Câmera idem.Num canto, Jô dá dinheiro e pistola cano longo ao TipoJô – Dessa vez capricha... Não me mata ninguém, Polenguinho. Não

tem desculpa (ao ouvido do outro) Sem essa.Renatão – Ia me esquecendo: feliz aniversário, patrão...corte.

11. ext dia posto de gasolina ou praça (beijos)Traveling acompanha Ângela que fala o tempo todo; depois de ter

pago conta de gasolina. No carro está Johny sentado, lendo gibi e ras-gando folhas à medida que as lê.

Johny – Queria ou não queria vir?A – Queria...J – Então por quê? Capaz de ter desconfiando...A – Imagine! Falou em encher balões! (muda o tom) Você trouxe o

balão que eu te disse?(J abre porta malas do carro)(repleto de balões vazios)J (ao mesmo tempo, entrando no carro) – Me desculpe, Ângela, mas

teu marido é um boçal... só pode ser um boçal...A – Não fale assim de Plirtz... não sei se você entende... no fundo

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você é crianção imaturo... mas eu sinto por Plirtz uma sensação... seilá... eu preciso tanto dele como de você... Nunca menti na minha vida,Armando, você sabe; quero que você me acredite: sou sincera contigo,com ele, com todo mundo.

J – Só com muito amor para agüentar aquele gordo feio...A – Feio mas é seu patrão...J – Por enquanto. Pára o carro.(traveling de anônimo de carro que faz sinal: pneu furado)J – O pneu está furado.corte: passagem de tempoJohny termina de consertar pneu. abre porta malas. Balões (vazios

ou cheios) saem e flutuam. Do fundo ele vê a perna estendida de Ângela.Situação romântica. Bruscamente, ele a carrega. Amam-se nasimediações da estrada vazia do litoral paulista.

os balões. um estoura.Amam-semúsicacâmera se afasta.(podem namorar e bejiar no carro. litoral. praias. chegando à casa

de Jô)

O incômodo RO incômodo RO incômodo RO incômodo RO incômodo Rogério Sganzerlaogério Sganzerlaogério Sganzerlaogério Sganzerlaogério Sganzerla 11

Ele surgiu há algum tempo fazendo curta-metragem para o FestivalJB. Todos viram nele muita capacidade de realização. Em São Paulo,aos 19 anos de idade, já fazia crítica de cinema, surpreendendo a todoscom as suas idéias radicais. Orson Welles, Howard Hawks e Godard(além do cinema americano classe B de 35 a 45) eram os únicos quesobravam. O crítico revolucionário passou a ser mais um jovem talentosodo Cinema Novo, pensavam os seus realizadores. Surge, então, O Bandido11 Entrevista a Alex Viany publicada em O Jornal, sexta-feira, 23 de janeiro de 1970.

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da Luz Vermelha e logo ele dá declarações sensacionais: – “Não tenhonada com o chamado movimento do Cinema Novo, pois não gosto deseus filmes. Faço uma pequena exceção para Glauber Rocha”. Daí emdiante, ele passou a ser o incômodo Rogério.

Essas declarações cada vez aumentam mais, a cada filme que realiza,mais oportunidade ele tem de falar. Agora, ele esculhamba a tudo e atodos. Frase de Rogério sobre o Dragão: – “Esse filme é um vexame”;sobre Macunaíma: – “um lixo”.

Tudo isso fez com que ele se tornasse o cineasta mais detestado doCinema Novo. Mas Rogério continua, incomodamente (inclusive comseu cabelo) a carreira de filmes grossos, cafonas, sujos, agressivos, demau gosto, bossais, verdadeiros lixos cinematográficos: é o caso de seupróximo filme A Mulher de Todos. Fala Rogério, aliás, cospe na moçada:

– “Depois do Bandido, tentei fazer uma chanchada com Gil, masacabei realizando a aventura pornográfica A Mulher de Todos, em ho-menagem às fitas alemãs ou suecas classe B. É outro pejorativo cujoestilo obsceno serve para melhor retratar nossa realidade – não pormoralismo mas por ideologia. Estou satisfeito porque não fiz ‘o filme daminha vida’, mas de certo momento de minha carreira. Quis aprender afilmar sem nenhum roteiro, escrevendo à medida que filmava, apro-veitando diretamente a realidade”.

Antibandido da luz vermelha?– “Sim. Eu gosto de trabalhar com a câmara fixa, com travellings

elucidativos, as panorâmicas didáticas, sem artifícios. Prefiro os longossilêncios, a música em volume baixo. Evidentemente O Bandido da LuzVermelha era o contrário disso tudo porque se tratava de uma inspiraçãoviolenta, espanto e agitação diante da realidade. Mas agora não consigomais contrariar a minha tendência profunda pela simplicidade”.

Tem chanchada nesse também?– “Claro, e como nos tempos da chanchada eu e Jô Soares impro-

visamos muito. Suas inúmeras interferências foram todas aproveitadas,enriquecendo os conflitos. Chamei Paulo Villaça e Stênio Garcia, porqueprefiro atores inteligentes e criativos. Antônio Pitanga também teveliberdade para trabalhar à vontade, no papel de um playboy conservadore antipático, porque precisava criticar seus anteriores papéis de heróiracial. Todos sabemos que a situação colonial do negro no Brasil é muito

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menos confortadora do que qualquer heroísmo oferece”.E a sua mulher, a mulher de todos, como está ela no filme?– “Com Helena corri o meu último risco: evitar o galanteio e a

homenagem fácil à minha mulher, Helena Inês. Fotografando-a comcuidado, quis mostrar também o lado neurótico, incômodo, difícil, damulher moderna. Pela primeira vez em nosso cinema, uma mulher canta,berra, bate, dança, deda, faz o diabo. Neste filme ela é Marlene Dietrichco-dirigida por Mack Sennet e José Mojica Marins, isto é, por mim”.

Os planos, como será o futuro?– “Vai aí um furo de reportagem para vocês. Ainda farei um do-

cumentário político em 16mm – evidentemente com sons e fotografiaspéssimos – sobre as abelhas, moscas e mosquitos e outras variedadesdo litoral paulista, onde rodamos 80% de A Mulher de Todos”.

Helena – a mulher deHelena – a mulher deHelena – a mulher deHelena – a mulher deHelena – a mulher detodos – e seu homemtodos – e seu homemtodos – e seu homemtodos – e seu homemtodos – e seu homem 12

O Pasquim entrevista Rogério Sganzerlae Helena Ignez

A entrevista de Rogério Sganzerla e deHelena Inês marca a volta das entrevistasesculhambadas d’O Pasquim. Esculham-badas no sentido da linguagem e daesculhambação. Rogério, um dos caras maisimportantes do novo cinema brasileiro, fixa sua posição diante das coisasque estão acontecendo com uma franqueza que só pode ser comparadacom a de Helena Inês, sua mulher.

Sérgio Cabral – Por que a guerra com o cinema novo?ROGÉRIO SGANZERLA – Eu sou contra o cinema novo porque eu

12 Publicada em O Pasquim nº 33, de 5-11 de fevereiro de 1970.

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acho que depois dele ter apresentado as melhores ambições e o quetinha de melhor, de 62 a 65, atualmente ele é um movimento de elite,um movimento paternalizador, conservador, de direita. Hoje em dia, comoeu estou num processo de vanguarda, eu sou um cineasta de 23 anos,eu estou querendo me ligar às expressões mais autênticas e mais pro-fundas de uma vanguarda e eu acho que o cinema novo é exatamenteanti-vanguarda. O cinema novo está fazendo exatamente aquilo que em62 negava. O cinema novo passou pro outro lado. Como eu estou surgindohá pouco tempo, há exatamente dois anos, eu acho que tenho que rompertambém com esse condicionamento e partir pra uma outra jogada semsaber exatamente o que seja esta outra jogada mas, de qualquer maneira,fazendo o que eu acho. Então eu sou um cara em liberdade o que é ummotivo de espanto pra maioria dos meus colegas de cinema, mas dequalquer maneira eu sou uma das poucas pessoas que estou continu-ando a me manter livre, o que eu acho extremamente difícil no Brasil dehoje. Eu estou feliz porque estou mantendo minha liberdade. Agora, euacho que este debate aqui não deveria ser centrado no problema de sercontra ou a favor do cinema novo, mas, principalmente, por nessa opor-tunidade eu ter feito um filme, que, como direção, é um filme extrema-mente simples, mas que revela um trabalho de atriz absolutamenteimprevisível e original dentro do panorama do cinema brasileiro. Euquero dizer que A Mulher de Todos é um filme que revela, sem dúvidanenhuma, sem falsa modéstia, o maior trabalho de atriz do cinemabrasileiro. Eu queria que vocês vissem o filme pra poder sentir, realmente,o trabalho de Helena Inês.

Millôr Fernandes – Quer dizer que você está recuperando a HelenaInês? Porque ela já era do cinema novo anteriormente.

ROGÉRIO – Não. Eu acho que a Helena Inês sempre foi uma forçaoriginal e criativa. Mesmo quando ela fez cinema novo teve ótimos mo-mentos como, por exemplo, no de do Padre e a Moça, no próprio Assaltoao Trem Pagador, onde ela faz uma vamp de filme mexicano, eu achoque é um achado, ela se saiu muito bem.

Sérgio – Helena, você concorda com tudo isto que ele disse sobre ocinema novo e sobre sua atuação em A Mulher de Todos?

HELENA INÊS – Como eu te falei, alguém me entrevistar sem tervisto A Mulher de Todos pra mim não é nada bom. Eu acho que a minhavida mudou depois do momento que eu encontrei o Rogério e eu concordo

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com isso que ele falou do cinema novo. Eu estava praticamente intoxicadade cinema novo então eu não conseguia fazer uma crítica ao cinemanovo. Eu estava tão dentro dele, a minha vida era aquilo e eu não podiater uma visão crítica. O Rogério me abriu exatamente isto. Eu conseguiver melhor as coisas e talvez por isso, eu acho, que fiz uma coisa extre-mamente bacana, que foi essa interpretação em A Mulher de Todos.Como Rogério diz: criativa e importante. Exatamente porque era umanovidade como se eu estivesse nascendo. O negócio é esse: eu me atireide uma tal forma que ficou especialmente bacana.

Millôr – Rogério, você definiu o cinema novo...ROGÉRIO – Não, eu não defini, não, porque não gosto de definições.Millôr – Mas de qualquer maneira você deu uma definição política

a partir do cinema novo. Você classificou-o como de direita. Então,acontece o seguinte: todo o movimento novo, mesmo que esse movimentoseja puramente individual como me parece que é o seu, que aparece,ele começa a classificar o movimento artístico anterior como movimentode direita. Isto me parece que traz o perigo de você engrossar cada vezmais as fileiras de direita porque o de esquerda e de vanguarda passama ser somente o ultimíssimo e todos os outros passam a ser reacionários.Isso não é perigoso politicamente?

ROGÉRIO – Eu não acho que é perigoso. Se fosse perigoso euacharia interessante também. A civilização do século XX já cansou decultivar o perigo, o perigo hoje é uma coisa obviamente bacana. Talvezeu até nem goste do perigo, mas eu acho bacana. O que eu senti foi quedesse processo você tirou uma conclusão extremamente mecânica. Vocêacha que o último seria o melhor. Eu acho que não porque o processocinematográfico, o processo de criação, (o processo de cinema não estátão longe dos outros processos de criação), ele vive de fases. Então, nósestamos vivendo uma fase agora onde você pode, por exemplo, como agente estava há três meses atrás, falar bem da chanchada e falar mal docinema novo. O que era antigo em 59, a chanchada, hoje é um dado decriação, um dado inventivo e o que era novo, o cinema novo, virou umdado conservador. Então eu acho que faz parte da dinâmica.

Tarso de Castro – Você está saindo pela tangente. A colocação doMillôr foi a seguinte: tudo que não for a ultima moda é de direita. Você,então, vai ter que diferenciar entre conservador e de direita. Ou vocêaplicou mal o termo direita, ou aplicou mal o termo conservador.

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ROGÉRIO – Não, eu apliquei muito bem o termo direita. Eu achoque não é problema de moda, não. Basta ver os filmes do cinema novo.A gente fala do cinema novo eu acho chato. É melhor não falar das pes-soas, nem dos criadores, mas ver os filmes. Quando você for ver osfilmes do cinema novo vai sentir o que eu estou falando. O Luiz CarlosBarreto é um cineasta que começou produzindo o Assalto ao Trem Pagadorque era um filme, na época, relativamente importante. Depois, juntocom Glauber e Nelson Pereira dos Santos, ele eclodiu um movimento,explodiu toda uma nova conceituação sobre cinema. Mas, agora, o queé que ele está fazendo? Ele está fazendo co-produção com os filmesfranceses, com um cineasta péssimo que eu não sei o nome, aliás nemvou citar o nome pra não dar cartaz ao cara, e está fazendo filmes comos piores cineastas do Brasil. Os piores filmes de 68 quais são? BrasilAno 2000, Capitu, A Vida Provisória, quer dizer, os piores filmes quemfoi que fez? Foi o Luiz Carlos Barreto. Então, você pode notar que o LuizCarlos Barreto significou alguma coisa. O trabalho do Joaquim Pedroem Macunaíma é um trabalho falso, um trabalho deturpador, é umtrabalho que não corresponde aos ideais cinematográficos. Não dá pé,realmente, não dá pé. Você pode notar pelos filmes.

Millôr – Rogério, talvez você esteja assim nessa posição porqueesteja falando especificamente de cinema. Eu, por exemplo, se fossefalar de literatura não negaria nem a obra importante de seis mesesatrás nem a obra importante de 60 anos atrás. Você, possivelmente,esteja falando assim porque o cinema é definitivamente um arte infe-rior, cuja obra-prima de seis meses atrás está definitivamente acabada.É isso?

ROGÉRIO – Eu também acho que o cinema é inferior. Eu nãochegaria a dizer que o cinema é uma arte, entende? Qualquer cineclubistadiria: não, Millôr, o cinema é uma arte. Eu, inclusive, gosto no cinemadesse lado panfletário, esse lado quase vulgar, esse lado popular,visionário, o lado que eu vi muito no cinema americano. Eu tambémacho inferior e por isso faço filmes inferiores. Quando eu faço um filmeeu tenho mil problemas de subdesenvolvimento da produção e tal, então,eu escolho o subdesenvolvimento não só como condição, mas, também,como escolha do filme. E aqui os filmes são subdesenvolvidos pornatureza e vocação. Você falou em cinema inferior, eu faço cinema infe-rior, acho perfeito. Acho que obra-prima não existe, não.

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HELENA – Rogério tem uma frase que eu acho perfeita: Eu faço osmelhores filmecos do Brasil. Eu acho exatamente isso.

Sérgio – Você acha que o Orson Wells faz os melhores filmecos domundo também?

ROGÉRIO – Não, mas ele fez alguns filmecos como, por exemplo,um filme chamado O Estranho, que eu não vi mas dizem que é horroroso.

HELENA – Você está dizendo como produção não é?ROGÉRIO – Como produção e como criação. É um filme que em

vez de estar baseado no luxo e no equilíbrio do Cidadão Kane, ele estábaseado na miséria, na escrotidão dos atores, na diferença de qualidade,técnica e de negativo.

HELENA – Eu quero ressalvar aquele negócio que você falou aquique você fez uma direção humilde etc porque você é um megalomaníaco,uma pessoa extremamente orgulhosa e faz isso de (*)13 , dizendo quesua direção é humilde quando é, muito pretensiosa.

Millôr – Uma vez que você tem essa opinião, é evidente que istoserá uma atividade sua passageira, pode ser passageira de 6 meses, de10 anos, ou de dois anos. Você quando crescer o que é que pretendeser?

ROGÉRIO – Não sei, acho que jornalista. Eu queria fazer o quevocês fazem porque eu acho que o quente é ser jornalista. Eu uso cine-ma de uma forma jornalística. Eu também fui jornalista. Fui até repórterpolicial. Eu acho que o jornal dá uma visão diferente. Quando vocêsfizeram O PASQUIM, vocês não foram fazer como qualquer jornalsubdesenvolvido, um Estado do Rio de Janeiro ou um jornal de S. Paulo,vocês fizeram O PASQUIM. Quer dizer, já partiram da própria limitaçãodo jornal, da própria sujeira do jornal pra fazer disso um negócio bacana.É o que eu faço em cinema. Quando eu vejo um filme da Atlântida euacho bacana porque eu vejo lá um clima de perversão estética. Você

13 Os astericos que vão encher a paciência do leitor até o fim da entrevista eram exigênciada censura que os impunha em substituição aos considerados “palavrões” pela dita emaldita censura da ditadura militar. Uma pesquisa nos arquivos de O Pasquim pode serrestauradora desta entrevista importantíssima, não só para os casos dos tais “palavrões”,mas também, e muito mais importante, para recuperar os prováveis cortes por razões deespaço ou pela censura “política”, que era ainda mais dura e implacável do que a“léxica”. No caso deste asterisco, a palavra usada por Helena deve ter sido “sacanagem”,vejam só!

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pode notar que eles pegam filmes americanos de grande sucesso, filmesassim fascistas como Matar ou Morrer, o próprio Sansão e Dalila e trans-formam em aventuras com Oscarito e José Lewgoy. É exatamente nistoque estou interessado.

Jaguar – Você leu o artigo de Glauber Rocha neste último OPASQUIM?

ROGÉRIO – Não, eu não li o artigo, mas eu li um outro artigo doGlauber, na Manchete desta semana, que eu acho também um artigodecadente. Porque eu acho o Glauber como ser humano uma figurafantástica, mas no artigo ele faz uma pichação aos jovens que estãofazendo no Brasil um cinema de vanguarda e como eu sou um cara queassumo o papel que estou desempenhando eu gostaria, inclusive deresponder ao Glauber. Ele fala que os jovens cineastas...

Tarso – Você está chamando o Glauber de reacionário?ROGÉRIO – Não, eu acho um ser humano maravilhoso.Millôr – Deixa eu fazer uma pergunta íntima. Você não está dizendo

isto do Glauber no fundo por uma problema freudiano. Por ele ser seucomeço?

ROGÉRIO – Não. Eu queria explicar o seguinte: ele falou no meioda entrevista que os jovens cineastas brasileiros estão fazendo umaparafernália tropicalista, quer dizer, me acusando, a mim e a outrostalentos, de fazerem tropicalismo quando quem faz tropicalismo são osvelhos como Joaquim Pedro de Andrade e Walter Lima Junior. Tentaramfazer tropicalismo e não conseguiram. Ainda nem chegaram aotropicalismo. O que não é meu caso, que pô, desde o início estava ditoque não era essa a jogada. [ilegível]14 ele falou que nós fazíamos aparafernália tropicalista, especificamente no meu caso, que nós es-távamos refazendo o Godard de cinco anos atrás. Aquela coisa: osubdesenvolvimento está cinco anos atrás. Agora, no meu caso, eurealmente chupo o Godard de cinco anos atrás, quer dizer, eu façocitações, eu não estou fazendo imitações que foram feitas em Macunaímae disfarçadas. Não, eu faço bem feitas as chupações e não tento disfarçá-las, porque eu sou uma pessoa inteligente, só por isso. Eu não só imito14 A ilegibilidade apontada aqui, e outras que se seguirão, provêm do “ori-ginal”capturado na internet. É provável que este e outros textos que aqui publicamostenham sido digitalizados com reconhecimento ótico de caracteres, que é uma ferramentaútil mas que exige rigorosa revisão depois de aplicada.

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o Godard de cinco anos atrás como o Orson Wells de 15 anos atrás, achanchada de 25 anos atrás e o Mojica de sempre, porque eu sou umcara apaixonado por José Mojica Marins. Agora, se tivesse de imitar oGlauber, eu não imitaria o Glauber de hoje do Dragão da Maldade, queé um filme que vocês viram e conhecem, eu imitaria o Glauber de oitoanos atras, quando ele fez Barravento, que é o melhor filme dele.

Tarso – O filme que vocês viram e conhecem quer dizer o quê?ROGÉRIO – Quer dizer que o filme é um lixo. É um filme primário,

um filme ginasiano, é um filme que agride, mais pela burrice. Quando oZé Celso faz uma agressão é uma agressão mesmo, agora ele me agrideporque eu sou uma pessoa inteligente, entro no cinema pra ver aquilo enão sou tão burro assim! Ver um cangaceiro com um lenço rosa-shokingsó porque o filme é colorido é um troço que me agride fisicamente.

Millôr – Não é proposital a agressão dele?ROGÉRIO – Não, aquilo é cineclubismo estetizante e baiano.Millôr – O intelectual, por definição, ele racionaliza. Você, como é

um cara extremamente inteligente, já pensou que estará fazendo estacoisa ou instintivamente, o que é melhor, ou definitivamente, como meparece que é o caso. Você sabe que esta sua atitude agressiva em relaçãoao cinema novo em bloco e ao Glauber que é seu papa (seu papa,[ilegível], do cinema) só poderá te dar lucro. Esta atitude, ela é conscienteou inconsciente?

ROGÉRIO – Ela é consciente porque eu não sou uma pessoa burra.Você mesmo falou que eu sou inteligente. Falando mal do cinema novoeu me esculhambo, eu me estrepo, é um negócio, inclusive, com umcerto tom suicida, mas também eu ganho uma projeção que me interessa.Eu preciso jogar com isso.

HELENA – Você é levemente oportunista, no caso?ROGÉRIO – Não. Eu sou uma pessoa honesta. Se eu fosse

oportunista eu iria tratar bem as pessoas, que eu ganharia muito mais,eu venderia meus filmes pra Europa. Não vendi até agora porque eu souum cara ingenuamente livre.

Millôr – A tua preocupação não é do lucro material, nem é dissoque estou falando. A tua preocupação maior é do lucro intelectual quevocê sabe que tirará muito maior com esta atitude.

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ROGÉRIO – Não. O Glauber disse assim: esses fulaninhos quefalam mal de seus colegas. Então ele acha que é muito imoral, dentro damoral dele, da moral do cara que tá lá com a mulher dele, falar mal deseus colegas. Acontece que o Joaquim Pedro é um cara bacana, porexemplo, mas ele nunca me aceitaria como colega dele porque eles estãodentro de uma série de quadros e não querem mexer nesses valores. Euse fizer um filme, já sou automaticamente uma modificação que nãointeressa a eles. Então eu não sou colega deles, porque eu não estounessa. Se isso é oportunismo, sei lá, minha saída é esta, meu lance éesse. Se tá errado estamos aí, o negócio é esse.

HELENA – Uma ressalva, que pra mim tem que ficar claro. Euacho que politicamente o cinema novo é irrepreensível.

ROGÉRIO – Se eu tiver que escolher, eu vou escolher dos males omenor. O cinema novo são as pessoas mais inteligentes, mais beminformadas, ideologicamente mais interessantes. Quer dizer, são aspessoas que me interessam. Agora, eu acho importante um cara comoeu, sem meios nas mãos, pichar as pessoas pra poder criar e mexer nascoisas. Eu acho que meu trabalho é um trabalho reformista, quer dizer,eu sou um cara que tou na jogada do cinema novo.

Tarso – Há uns sete, oito anos atrás, o Glauber fez um negócio, achamada revolução do cinema no Brasil. Reuniu todo o pessoal devanguarda da época pra criar uma imagem nova. Você não está repetindoessa jogada contra o cinema novo?

ROGÉRIO – Não, eu não estou repetindo, porque inclusive eu estousozinho. Eu acho que um tabalho deste tipo, de projeção internacionalcomo o Glauber fez, ele lançou trinta caras e quem se projetou com issofoi ele. Eu não sei se foi intencional ou não, mas foi um cara que saiufavorecido com isso.

Tarso – Desses trinta caras quantos valiam a pena ser lançados?ROGÉRIO – Pouquíssimos! Mas no meu caso, eu não encontro

pessoas na minha geração que estejam interessadas em modificar ascoisas. O cinema novo começou em 62, em 65 ele chegou ao fim.Exatamente no momento em que ele acabou-se e ganhou uma projeção,começou a ganhar prêmios internacionais e se impôs como escola. Entãotodo cara que aparecesse a partir dali ou ele era paternalizado ou entãomarginalizado. Eu fui marginalizado. Todos os outros caras bacanas foram

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paternalizados. Hoje eles estão saindo dessa. Eu não estou fazendo oque o Glauber fez nem seguindo o que ele fez porque não existem ascondições que ele encontrou, nem esse número de pessoas.

HELENA – Do momento que o Rogério pichou um cara do cinemanovo, o cinema novo inteiro se voltou contra ele. Claro, porque não sepode mexer nas coisas, os casais não podem mudar, os filmes têm queser perfeitos, tem que tudo ficar como estava.

ROGÉRIO – é uma ordem econômica, social, de distribuição, éuma ordem familiar, uma ordem estética, aristocratizante. Eu falei malde um filme, um filme fraco que eu não gostava. Aí eu falei pras pessoase elas disseram: mas como, Rogério? Você não pode falar mal dessefilme. Aí um cara falou assim: mas fulano, você não pode esculhambaro Rogério porque ele não gostou daquele filme, mas gosta dos seus. E ocara respondeu: não me interessam os meus. Falou mal do meu amigotem que se (*).

HELENA - É um esquema baiano, miserável.Millôr – Você falou em sua geração e eu não estou muito por dentro

dela. Mas me parece, que a sua geração que eu conheço em cinema évocê, Julinho Bressane e Neville. De modo que em relação ao cinemanovo eles são uns matusas perto de você. Eu tenho a impressão que nãoexiste a sua geração. Você é que está inventando.

ROGÉRIO – Eu quis disser a última safra. E isso existe. Eu, Neville,Julinho. Agora, Neville e Julinho são paternalizados e hoje saem dessa.Eu sou um cara que fui além, eu já de cara esculhambei.

Sérgio – Essa atitude, como você coloca, assim, está modificando aluta política do cinema brasileiro. Porque o cinema novo tem uma posiçãoe outras pessoas que são contra o cinema brasileiro têm outra posição,como o caso do Moniz Viana no Instituto Nacional do Cinema. Entãonesse conflito você está com o cinema novo ou está com o Moniz Viana?

ROGÉRIO – Nesse conflito, eu estou fazendo um cinema revo-lucionário. Quando o Stalin estava fazendo da Rússia uma potênciasensacional ele estava ao mesmo tempo obstruindo um trabalho geral,internacional. Então você pode sentir que naquele momento as opçõeseram dualísticas. Você ficava com um lado ou com outro. Agora, teriasido muito mais criativo se você tivesse feito, dentro do regime soviético,um trabalho de modificação e de complicação geral que é o que eu

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estou fazendo. Eu já escolhi o caminho que é o caminho conseqüente datransformação da sociedade. Dentro desse caminho eu sou incômodo. Éum papel óbvio, primário, mas tem que ser desenvolvido.

Jaguar – Mas você tem consciência de que está fazendo o jogo doINC? Você tem consciência também do que você está prejudicando ocinema brasileiro em bloco? Você sendo um cara de prestígio vai serprestigiado pelo INC?

Tarso – Só pra completar a pergunta dele: você acha que vale apena dar essa engrossada em prejuízo do cinema brasileiro, prejuízo daindústria?

ROGÉRIO – Eu acho que vale a pena sim. No Brasil não existeindústria, ainda bem que não existe. Eu não estou fazendo o jogo doINC, não. Se você for ver cada um dos meus fotogramas você vai ver quenão tem nada com o INC. Eu não tenho nada a ver com eles.

Jaguar – Mas você está contra os interesses do cinema novo.ROGÉRIO – Os interesses do cinema novo eu quero que se (*). Eu

acho que o cinema novo não pode ter esses interesses. São interessesestratificados. Não dá, realmente não dá. Eu não estou nessa.

Fortuna – Na revista Veja da semana passada saiu uma entrevistacom o Mazzaropi em que ele se lançava contra o cinema novo. Eu queriaregistrar uma certa identidade entre você, que é um cara esclarecido, eo Mazzaropi.

ROGÉRIO – Você falou uma grande verdade. Você pode notar queo Mazzaropi fala mal do cinema novo, mas quando o Rogério Sganzerlafala mal do cinema novo é outra. Existem dois níveis diferentes. Agora,as pessoas não querem reconhecer isto então usam o argumento: oRogério está virando Mazzaropi. Não é isso. Como os caras não podemdefender os filmes eles atacam assim. Eu queria que eles defendessemos filmes que são uns vexames, são ridículos, subalternos, subservientes.Isso ninguém faz, ninguém defende os filmes.

Sérgio – Qual é a sua posição em relação ao INC?ROGÉRIO –A minha posição é indiferente.HELENA – Independente.ROGÉRIO – Sabe o que é? Eu não sou uma força, eu não estou

significando nada, entende? Eu nunca defendi o INC, como eu já defendi

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o cinema novo no tempo em que eu era crítico. Eu não ataquei o cinemanovo para melhorá-lo. Eu não faço aquele equívoco do cineasta que vaianalisar a classe média para melhorar a classe média. Não, eu nem falo.Eu sou contra. Eu estou achando que a orientação do INC não me in-teressa nem interessa às pessoas que querem fazer do cinema brasileiroum fenômeno qualidade, de envergadura. A minha posição é indepen-dente, radical. Eu não posso endossar a luta nos termos que ela foiplanejada pelo cinema novo porque é uma luta inglória. Eu não voudefender um negócio pra defender outro INC, dentro do cinema novo.Dentro do cinema novo existem os mesmo valores hierárquicos e pre-conceituosos que o INC. Então isso eu não quero endossar. A minhaposição é suicida, mas é isso mesmo e acabou.

Tarso – Quando você diz assim: tudo isto é história, não vou de-fender filme (*). Você diz também uma coisa: não vendi meus filmes noexterior. Como só foram vendidos os filmes do cinema novo, e você achatodos uma (*), essa aceitação geral dos filmes brasileiros no mundo éuma (*), é um jogo político?

ROGÉRIO – Eu acho que a aceitação agora dos filmes feitos agoraé uma grande (*). Eu acho que o cinema novo de 62 a 65 tem filmesexcepcionais. O Nelson Pereira tem filmes maravilhosos. Boca de Ouro,Mandacaru Vermelho que é dez vezes melhor que Fome de Amor, emboraele não saiba, Barravento é sensacional, gosto muito de Deus e o Diabo,gosto do primeiro filme do Miguel Borges que chama-se Canalha emCrise. O cinema brasileiro quando era feito no mato ou na favela são oscaminhos que Oswald de Andrade apontava: no sertão ou na favela.Eram filmes extremamente interessantes pela ingenuidade. Do momentoem que o cara deixou de ser ingênuo pra ser um pouquinho menosingênuo se (*) todo. Deu aquela: sou autor, vou filmar o meu universo, omeu estilo, os meus mitos, as minhas sensibilidades. Aí o cara não tinhanem muita sensibilidade, nem muita coragem, nem muito talento. Aívirou um (*) porque o cinema de autor, que é um fenômeno mundial, éevidentemente um fenômeno que daqui a cinco anos vão dizer que éuma (*). É um negócio que acabou. Serviu pra mediocrizar o cinema.Então esses caras viraram vítimas de um equívoco nacional acrescidodo fato de que de 64 pra cá a situação ter mudado diametralmente.Então até 64, 65, os filmes brasileiros são muito bons, agora os filmesque conseguiram sucesso são os piores, os de 65 para cá: Grande Cidade,

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Menino de Engenho, o Dragão da Maldade... O Terra em Transe, doGlauber, eu acho interessante, mas...

Tarso – Heleninha, você sabe que eu gosto muito de você, não sabe?Então não leve como pessoal isso. Mas, há no Brasil, entre o público, oseguinte negócio: só filma mulher de diretor. Você foi casada com oGlauber, com o Julinho e com o Rogério. Você fez filmes com os três.Você acha que só filma mulher de diretor?

HELENA - É, eu acho. Eu concordo inteiramente com Maria Gladys.Eu acho que os diretores ficam inteiramente apaixonados por suas mu-lheres e lançam elas como atrizes. Eu acho um esquema inteiramente(*). Daí você ver as piores interpretações do cinema brasileiro. Mulheresque não têm nada a dizer, não interessa, não interessam a coisíssimanenhuma e estão lá na tela. Eu sou contra esse esquema que eviden-temente não é o meu. Eu sou uma atriz maravilhosa, premiadíssima.

Millôr – O Rogério diz que você está começando agora com ele, queestá se revelando.

HELENA – Não, eu mudei. Eu acho que o Rogério descobriu umaoutra coisa em mim. Não que descobrisse, eu sabia que tinha, mas nuncatinha a oportunidade de fazer. Eu fiz um filme com o Rogério em que eutinha uma incrível influência, não no filme, mas no que eu fazia. E agente tem uma tal comunicação que um filme dele, naquele momento,também teria que ser um filme meu. E eu tive essa possibilidade, umaliberdade incrível de fazer diabos, misérias. Como eu te digo, você temque ver A Mulher de Todos que é uma outra coisa.

Tarso – Me diga o que você acha das quatro ou cinco pessoas quetêm trabalhado com você.

HELENA – Rogério Sganzerla: um louco, megalomaníaco, fantástico,ambicioso, uma pessoa fantástica. É mistificação, mas eu endossointeiramente. Julinho Bressane – que (*) pra todos. Como diz Millôr, fazmuito bem. E David Neves. São os cineastas anormais do cinemabrasileiro.

Millôr – esse assunto é muito importante. É um assunto pessoal,existencial. Vocês me acusam de maníaco sexual, mas não é não. Existenisso uma conotação biológica e sexual. Você trabalha bem com oshomens com quem você se encontra sentimentalmente? Digamos assimpra ser pudicos.

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Alô alô Rogério Sganzerla!

HELENA – Eu acho perfeita a pergunta. É ingênua, grossa. Mas euacho que não é isso não. Eu tenho uma tal admiração intelectual pelaspessoas que eu acho que isso poderia ser confundido com uma granderelação sexual. Seria sempre nesse nível intelectual primeiro. Eu tenhoesse vício de achar as pessoas mais bacanas as mais desejáveis e não asmais desejáveis as mais bacanas.

Tarso – Como diz o Intervalo, vocês se identificam intelectualmente?ROGÉRIO – Helena, essa é pra você. Eu queria abrir um parênteses.

Eu queria relembrar um negócio que me deu um certo espanto aqui.Como o Millôr se parece com a obra que ele faz e o Fortuna também. Euqueria saber se eu também. Quando eu vejo aqueles filmes malucosque eu mesmo não entendo...

HELENA - Mas eles não viram o teu filme. Isso é imperdoável! Éfalta de cultura e conhecimento dele.

ROGÉRIO – Eu fico pensando: será que eu também lembro como oFortuna também lembra aqueles bonequinhos dele? É um negócioterrível!

Millôr – Me disseram que você gostava do Rogério porque, semtrocadilho, ele é um grande artesão?

HELENA – Também.Fortuna – O Tarso falou que a pergunta de que vocês se identificam

intelectualmente é uma pergunta de Intervalo. Eu acho que a respostatem que ser a dois. Então uma resposta pra revista Capricho.

HELENA – a minha é uma gargalhada.Tarso – Você não precisa se preocupar com esse negócio de se

identificar ou não que todo mundo sabe que você é bicha, Rogério.ROGÉRIO – A única coisa que não me chamaram até hoje foi de

bicha porque o resto tudo já me chamaram. Mau caráter, pichador.Tarso – Eu digo por experiência própria, Rogério, que você chega

lá. Porque eu estou nessa firme.Jaguar – Rogério, e esta cabeleira parecida com a do Tarso, como é

que é?ROGÉRIO – Essa cabeleira é o lado da concessão voluntária. É o

lado sórdido, da recauchutagem. Eu fui uma pessoa recauchutada pela

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Helena. Eu acho uma falta de personalidade total e ao mesmo tempouma grande grandeza.

Jaguar- Quer dizer que quando ela te conheceu você tinha um cabelopríncipe Danilo e tal.

HELENA – Tinha um cabelo Maracanã, se vestia muito mal. Entãonós fomos a Nova York, compramos roupas fantásticas no GreenwichVillage. Penteei Rogério. Eu acho fantástico. Um homem inteiramentesem personalidade na vida familiar e aquela pessoa ótima jogada prafora. Acho genial.

Millôr – Como é que vocês se conheceram?HELENA - eu o encontrei há muito tempo numa festa de Natal,

dando um vexame.Sérgio – Aquelas festa que a Leila Diniz encontrou o Domingos

Oliveira?HELENA - Não, foi depois.Millôr – Tem uma festa que já é tradicional n’O PASQUIM. É uma

festa de Réveillon que foi na casa do Luiz Buarque de Hollanda em quehouve uns 15 divórcios e 15 ligações novas.

HELENA – Não, não foi nessa festa não. Naquela festa eu estavatambém, mas foi tudo perfeito. Estávamos todos. Era aquele esquemade ter namoradinho e continuava casada. Rogério encontrei antes e estavaem coma alcóolico. Tinha acabado de botar uma placa de metal na testa.Foi antes da festa do Jaguar. Eu não fui à festa do Jaguar porque naquelaépoca eu estava com o cinema novo e era chique não ir pra ficar emfestas chatas. Agora eu vou voltar às suas festas.

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Alô alô Rogério Sganzerla!

Tarso – Agora nós podemos entrar na vida particular mais radi-calmente. Você, Rogério, foi casado quantas vezes?

ROGÉRIO – Eu acho que a palavra casar é meio esquisita...Tarso – N’O PASQUIM casamento é o seguinte: mudou de casa já

está casado.Sérgio – Você viveu maritalmente com quem?ROGÉRIO – Eu maritalmente com Helena. Anteriormente eu era

um aventureiro. Atualmente eu estou ficando mais conservador, maissedentário, mais (*).

HELENA – Sem essa!Millôr – Nós não fazemos muito esta pergunta, mas no teu caso eu

acho importante que para O PASQUIM você desse um mínimo dochamado curriculum vitae. De onde você veio? Que tipo de formaçãovocê tem?

ROGÉRIO – Essa pergunta é fundamental porque eu tenho umapéssima formação. Eu sou uma pessoa de péssimas origens. Eu nãotenho origens ruins, tenho origens médias, o que é pior ainda. Eu nasciem Santa Catarina, numa cidadezinha do interior. Não é nem Paraíba, éS. Catarina, um lixo total. Num estado que cultivou toda uma civilizaçãode classe média. Eu tenho origem italiana por parte de pai e de mãe. Eutenho uma grande aversão pelas minhas origens e sou uma pessoaobviamente recalcada. Eu não escondo os meus conflitos. Acho péssimoter nascido em Santa Catarina e ao mesmo tempo maravilhoso porque émuito pequeno. O Brasil no fundo é uma grande Santa Catarina. Isso aomesmo tempo me ajuda e me (*). É meio trágico. Não pela grandezamas pela pequenez.

Jaguar – Como é que você veio pro Rio?HELENA – Eu saí de casa aos onze anos. Tem uma história muito

engraçada que eu nunca falei, mas vou falar hoje porque estou bebendocom vocês aqui. É o seguinte: na infância eu fui um menino obviamenteinteligente, como você falou, meio prodígio.

HELENA - Até os cinco anos não falava!ROGÉRIO – é. Até os cinco anos não falava e com sete anos escrevi

um livro de contos infantis e fui a uma tipografia e publiquei um livrode contos meus. Chama-se Novos Contos e, lá embaixo, de Rogério

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Sganzerla. Quando tinha onze anos eu estudava em colégio de padre,aquela formação horrorosa. Padres maristas, todos sujos, sórdidos. Depoiseu saí e fui morar em São Paulo. Morei numa pensão durante cinco ouseis anos. A pensão foi um negócio que me abriu, porque é um negóciosórdido brasileiro. Tem aquilo que os filmes de Glauber Rocha não têm.Um negócio totalmente visceral, sórdido. Morando na pensão eu deixeide ser um cara preconceituoso pra ser um cara liberal. Nessa época éque houve o grande momento de transformação de 62, 63, 64. Depoiseu fui estudar Direito e Administração de Empresas. Duas coisas quenão têm nada a ver comigo. Administração eu ainda fui até o fim. Direitoeu larguei no meio. Eu já fazia crítica desde os 17 anos, escrevia nosuplemento literário d’O Estado de S. Paulo. Tinha um cara lá que achavaque eu era bom, o Décio de Almeida Prado, que é um ótimo crítico deteatro. Ele gostava de mim e me deu uma colher-de-chá e eu comecei aescrever. Depois eu fui redator de cinema na Visão, na Folha da Tarde,Última Hora. Então, foi um negócio que abriu. Quando eu fui fazercinema tinha, apesar de uma grande ingenuidade, uma malícia que osoutros caras não tinham. O Glauber quando pega a realidade brasileira,que é um negócio monstruoso, ele pega de um lado conceitual. Querdizer, ele está indiretamente filmando a realidade brasileira, porque eleestá através dos conceitos. Ele nunca entrou nessa.

Jaguar – eu achei essa autobiografia tão bacana que eu acho quevou perguntar para Helena uma coisa no gênero.

HELENA – Ah, é altamente conhecida. Quando eu soube que ia terentrevista n’O PASQUIM eu disse: vou mentir pra burro. Aí, Paulo CésarSarraceni estava aqui em casa, disse assim: não minta não que Macielsabe das coisas. Maciel não tá aqui, eu podia mentir a valer. Mas, eu toucom preguiça. Maciel é gaúcho, mas foi pra Bahia, eu fui madrinha decasamento dele. A gente cai de saber um da vida do outro. A minhavocês já estão caindo de saber. Acho que eu não tenho que contar maisnada. Fiquei na Bahia, não tinha nada que fazer, fiz escola de teatro.Tava fazendo Direito e escolhi teatro [fim da frase apagado].

Millôr – As origens, diz as origens.HELENA – Eu sou baiana. Salvador-Bahia. Signo de Gêmeos.Millôr – classe econômica social.HELENA – Minha família é de alta classe média baiana. A gente

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Alô alô Rogério Sganzerla!

vê, não tenho mau gosto, me visto bem. Não sou nenhuma miserável daBahia. Depois vim pra cá, fiz o Assalto ao Trem Pagador porque LuizCarlos Barreto ficou deslumbrado com Glauber em Barravento. Ele sabiaque eu era muito boa atriz porque tinha visto uma peça de teatro minhana Bahia. E até aqui foi só uma carreira de sucessos, primeiros filmes,protagonistas, etc. Me separei do Glauber, tenho uma filha com ele,Paloma, que é uma menina maravilhosa.

Jaguar – Quantos anos tem a menina?HELENA – Tem nove anos. Vive comigo e a avó. Mas não tem

nenhum conflito desse tipo. É extremamente moderna ao mesmo tempoque não é. É sertaneja antiga, ligada às origens. Tem um tremendo caráter,uma coisa que eu não tenho. Ela ainda não foi contaminada por Ipanema.Continua uma menina de nove anos de idade. Tem um charme incrível,é fantástica! Depois conheci Julinho, me casei, fiquei três anos casadacom ele. Depois eu vi que seria maravilhoso a gente continuar junto,mas não dava pé. Aí me separei. Profissionalmente fiz uma série defilmes. Atravessei todo movimento do cinema novo. Fiz o primeiro filmedo cinema baiano que foi a Grande Feira em 1960. Eu tinha 19 anos efazia uma mulher que não podia mais ter filho, tinha que usar rugaspostiças e tal.

Tarso – Você tem 29 anos?HELENA – 28. Sem mentir, porque às vezes digo que tenho 18

quando estou ótima no espelho. Fiz um filme com Julinho. Um filmeanormal como eu já disse. Acho o Julinho um dos bons diretores docinema brasileiro. Naquela época ele estava com péssimas influências,ligado a esquemas que não são o esquema dele. Agora ele se libertou efez dois filmes inteiramente fora que são: Matou a Família e Um AnjoNasceu. Depois eu conheci o Rogério e de repente eu fiz uma revisãocrítica em minha vida. Minha vida, porque de uma certa forma eu vivinum mundo de idéias e isso seria minha vida. Eu vi que essas coisasnão davam pé e parti pra uma outra. Uma outra que eu absolutamentenão sei o que é, mas que é bacana.

Tarso – Você, quando partiu de Julinho pra Rogério, qual foi o seuprocesso?

HELENA – O meu processo foi, realmente, de cansaço de umesquema. Um esquema que absolutamente não dava pé. Como mulher

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eu vi que aquele esquema não dava pé. Com aquele esquema eu vouparar.

Millôr – Esquema é muito vago.HELENA – São dez anos de coisas que eu já sabia. Esse esquema,

realmente, não dá pé pra mim. Me enchia o saco. É um esquema que euachava que estava falido.

Tarso – Você não tem certo domínio sobre o Rogério?HELENA – Domínio nessas coisas que eu acho maravilhosas. A

roupa, o cabelo, a paginação total. Isso é uma graça enorme pra mim epra ele. Acho maravilhoso o Rogério perguntar no restaurante: o que euvou comer? Isso é maravilhoso, porque é ele que está dizendo isso, é umcara que rompeu com todos os esquemas que eu conheço e me perguntao que vai comer. Pergunta à mulher amada o que vai comer. Eu achofantástico ele perguntar: Helena, que camisa eu vou botar? Eu querocomer carne ou peixe? Essa dependência total que Rogério tem de mimé absolutamente maravilhosa. Porque é radical e total.

Millôr – Existe uma discussão aí que está se renovando agora,imbecilmente, sobre a emancipação da mulher. Eu conheço muito bemesse esquema do Rogério. Eu sou absolutamente submisso, me deixolevar pra onde quiserem.

Tarso – Eu quero registrar aqui que isto é uma mentira absoluta.HELENA – Eu quero registrar que esses homens são quentíssimos!Millôr – Eu quero apenas acrescentar o seguinte: eu faço toda a

submissão com absoluta superioridade, entende?HELENA – Sem essa, Millôr. Eu acho que é um esquema de de-

pendência maravilhoso. Eu tenho um lado sádico e protetor. Então édivino! Eu detestaria um homem se opor a mim nessas coisas mínimas.

Jaguar – Quando aparece uma barata, quem é que mata?HELENA – Eu acho que sou eu...Tarso – Quer dizer que a fórmula pra mulher não ser infiel é o homem

ser submisso a ela?HELENA – Que loucura, Tarso, você juntar as duas idéias: ele me

perguntar que camisa vai botar é ser infiel? Tua cabeça é mesmo umbarato. Não tem nada uma coisa com outra.

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Millôr – Helena, houve uma entrevista da geração Realidade, mu-lheres que falam mal dos homens, dizendo que os homens não são denada, e tal. Inclusive a Ítala Nandi disse que só existem no Brasil 10homens. Como ela estava falando sexualmente, evidentemente, 10homens de cama. Citou a nós nominalmente, mas a modéstia impedeque a gente volte a citar. Agora, você acha que o homem brasileiro nãoé de nada?

HELENA – Eu acho Ítala uma chata e os homens quentíssimos. É ooutro lado da jogada. Eu não tenho nada que ver com a geração Realidade.Acho os homens ótimos. Tenho experiências pessoais quentérrimas. Ela,simplesmente, escolheu os homens errados.

Tarso – Que você acha da emancipação da mulher?HELENA – Sem essa, Tarso. Daqui a pouco você vai perguntar o

que eu acho do Governo Médici. Como eu poderia mudar essa situação,e tal. Eu acho esse tipo de papo totalmente óbvio e não vou respondercoisa nenhuma no gênero. Não dá pé. Na praia da Montenegro a gentejá sabe que não dá pé. Eu não vou responder n’O PASQUIM o que euacho do homem brasileiro, da emancipação da mulher.

ROGÉRIO – Eu pressinto que os homens brasileiros não são satis-fatórios, atrapalham o comportamento feminino. Eu acho que há umadeficiência. É uma intuição de artista, não de um cara experimentadoporque eu não...

Millôr – Não é experiência pessoal não?ROGÉRIO – Não é experiência pessoal, é visionária.Millôr – Voltando ao negócio de cinema que nós abandonamos pra

ir pra cama. Você está numa jogada que pretende renovar o cinema. Eu,por exemplo, sou um jornalista e acredito que o meu papel se encerrano jornalismo. Eu acredito que se possa fazer com o jornalismo umaprofissão pra frente constante. Você acredita que com o cinema vocêpossa realizar alguma coisa socialmente?

ROGÉRIO – Alguma coisa sim. Mas essa coisa é muito pequena,mas sempre é possível. Cada filme que você faz é diferente do outro.Cada filme tem uma força dele.

Paulo Francis – Eu vi um filme ontem que, apesar de ter algumas(*), eu fiquei muito impressionado.

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HELENA – Qual é o filme?Francis – Vergonha. Tem umas cenas de guerra Hollywood B. Tem

uma hora lá imbecil que o sujeito chega e diz assim: a sagrada liberdadeda arte! Depois: a sagrada frouxidão da arte! Mas o filme eu achoimportante. Esse negócio de sagrada liberdade e frouxidão da arte, oque você acha?

ROGÉRIO – Eu não te conhecia e gostei muito do seu tom de locutorsofisticado. Eu gosto muito das coisas que você escreve. Mas aquelediálogo eu acho que é mal traduzido porque como está na tela eu nãoentendi.

Francis – Quando aquele cara mata o outro pra roubar as botas éótimo, não é? É de uma verdade absoluta. Quando a menina diz queassim eu não vou com você e ele diz: vai ser mais fácil pra mim, tambémé ótimo. Então por que aquela frasezinha? Por mais mal traduzido deveser por aí.

ROGÉRIO – Eu gosto muito do Bergman, mas pensando, eu achorealmente, vexaminoso. Eu gosto do Bergman de 52, 53. Agora, sei lá.

Tarso – A Helena disse que você acha o Bergman uma (*).ROGÉRIO – Quando você vê um filme no barato, você valoriza

aquelas coisas (*). A fotografia fica linda, o som, que é direto, ficalindo. Agora, o filme é uma (*).

Millôr – Você falou em suas péssimas origens. Ora, péssimas origensnão podem ser delimitadas por uma localização geográfica. Péssimasorigens são origens de caráter teratológicos, que a pessoa nasce de-feituosa, ou são as grandes péssimas origens, que são as de carátereconômico. Você está sendo demagógico e Santa Catarina vai ficar (*)da vida com você.

ROGÉRIO – Eu acho que essa demagogia me auxilia. Ela me ajudaa compreender um negócio interior. Eu preciso desesperadamente dessademagogia pra poder me entender. Não são as grandes péssimas origens,são as pequenas péssimas origens que são realmente as péssimas origens.

Francis – Você está fazendo cinema como um negócio auto-suficienteem que você se realiza como pessoa, como profissional? Ou você achaque esse negócio não tem nenhum sentido e que é apenas um instrumentopra você dizer as coisas?

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ROGÉRIO – Você é uma pessoa inteligente. Eu sou uma pessoamediana. Eu acho que o cinema não me realiza e ao mesmo tempo merealiza um pouquinho. Falar de cinema nacional é diferente de falar decinema em geral. Então, quando eu falo em cinema nacional, eu querodizer que eu não estou realizado, mas estou um pouquinho. Naquelamesma situação do sambista que coloca um samba e tal, e se (*).

Tarso – Ele fala isso olhando pro Sérgio Cabral.Francis – Não. Termina a minha pergunta.ROGÉRIO – Eu não me realizo porque eu acho que o cinema bra-

sileiro hoje, é um fenômeno estratificado, desinteressante. Eu acho queo público só se enche o saco com pequeninas coisas que só interessamao diretor, não muito ao diretor e nada ao público. Eu não estou realizadonem quero estar realizado. De qualquer maneira a saída é essa. Fazercinema é péssimo no Brasil de hoje, mas a minha saída é essa.

Francis – Você pega por exemplo um filme como Os Companheiros.É um filme acadêmico, bem feito dentro daquele esquema. É um filmeque você sentia na platéia uma reação fantástica. Eu não tenho nadaque ver com o Partido Comunista em primeiro lugar. Estou (*) prospartidos comunistas do mundo, que vão pra (*) que (*). É o meu mani-festo. Eu acho a coisa mais reacionária que existe no mundo é o PC,mas isto é outra coisa. Mas de qualquer maneira tinha o Marcelo Mas-troianni, magnífico no filme, tem cenas belíssimas, etc. Agora, vocêpega o Warhol, o pessoal do underground. Eu vi vários, não tive nenhumareação, talvez por falta de familiaridade. Quando você faz um filme quetipo de coisa você objetiva? Você quer este tipo de comunicação, ondevocê pode dizer: eu quis dizer isso? Por exemplo: eu sou jornalista.Quando eu faço um artigo eu quero dizer uma determinada coisa e queroque as pessoas entendam ou, então, eu quero dar uma que (*) quem nãoentendeu, mas eu quero dar aquela. Eu quero saber a sua versão.

ROGÉRIO – Eu acho que quando você é jornalista você faz o quequer, mas quando você é cineasta, você não faz o que você quer. É umagrande complexidade. Cinema, mesmo que você faça no Paraguai é difícilpra burro. Eu faço (*) pro cinema, sempre gozam aquela coisa que euestou fazendo. Procuro sempre ironizar na linguagem do filme. Masaquela coisa que você consegue como jornalista, como diretor de cine-ma é muito difícil. Especialmente cinema subdesenvolvido, ridículo, e

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tal. Isso que você falou eu acho perfeito porque isto que você está pro-curando é um negócio que você consegue fácil com o jornalismo. Eupego a máquina de escrever, eu acho maravilhoso. Eu faço tudo que euquero, eu pego as palavras e transformo, faço o diabo. Agora, pra filmaré difícil. Principalmente no cinema brasileiro. Então eu me (*), eu mejogo. É um negocio terrível, é uma experiência de suicida e ao mesmotempo é medíocre, não leva a nada, não resolve (*) nenhuma. Eu achoque a grandeza do cinema está baseada nessa grande dificuldade. Eutenho um grande prazer de sentar numa máquina de escrever. Outrodia, eu fiz um artigo pra revista Shell. Mas pra fazer cinema, não existeessa unidade semântica que é a palavra.15

15 Não tenho como saber se é este mesmo o fim da entrevista, parece-me que não. Omeu exemplar do jornal foi doado a um Museu da Imprensa Alternativa, criado pelaRioArte, mas hoje desaparecido e ninguém dá notícias de onde foi parar todo aqueleacervo. Coisas do III Mundo. De qualquer forma a confrontação com o jornal e, se pos-sível, com os originais do acervo do jornal, se ainda existem, deverão ser feitas na edi-ção final. Foi nesta entrevista que Rogério declarou guerra total a todos os stabilishments,inclusive os ditos “de esquerda”, e não estava sozinho, como tentou insinuar ostabilishment de O Pasquim. A entrevista provocou grande impacto favorável a Rogérionas melhores cabeças da nossa geração e modificou a postura da juventude em relaçãoà cultura brasileira, ainda um tanto vacilante antes da entrevista em afrontar os valorestidos por “revolucionários”, mas que, sabíamos, não eram nada disso. A repressão jácaía mesmo era em cima de nós, os taxados de “marginais”, hippies e underground(“udigrudi”, segundo o bom humor glauberiano, que é um termo melhor e mais perto doreal, pois não há como negar que havia muito equívoco também entre nós). Mas os“comunistas”, estes estavam todos muito bem, obrigado, protegidos por cargos públicos,empresas jornalísticas, mul-tinacionais e até em exílios dourados. Na verdade Oswaldde Andrade já identificara o fenômeno das “catacumbas” (em inglês underground) desdeque escreveu A Morta, em 1937, tema que explorou detalhadamente em Marco Zero,de 1944-45 (“O Subsolo das catacumbas”). Aliás, a presença de Oswald, que vinha nasentrelinhas dos textos anteriores, com menções ao Rei da Vela, na montagem de JoséCelso, e algumas frases entrelinhadas em conceitos oswaldianos, aqui se torna explícitae identificadora de uma diretriz fundamental para o cineasta e, de tabela, para toda ageração que representava: “o cinema brasileiro quando era feito no mato ou na favelasão os caminhos que Oswald de Andrade apontava: no sertão ou na favela.”

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Alô alô Rogério Sganzerla!

A questão da culturaA questão da culturaA questão da culturaA questão da culturaA questão da cultura 16

64 e 68 não foram suficientes ainda para a inteligência brasileira (aestas alturas pode-se ler burrice) superar o culturalismo e o liberal-reformismo institucionalizado a partir de 1922 por Mário de Andrade.

Longe das metrópoles ocidentais que tentam se libertar da moral eda cultura opressivas do passado, nas colônias distantes os culturalistascontinuam sabotando toda invenção em nome da “cultura brasileira” eda Arte com A maiúsculo para tranqüilizar o ocupante. Oswald deAndrade (1890-1954) continua sendo tabu pois fora do revisionismooficial ninguém admite a invenção considerada “irresponsável”.

(os culturalistas que tentaram matar Oswald vão pagar em futuropróximo a dívida histórica; jamais conseguirão substituí-lo por Mário, odiluidor, o bibliotecário erudito.)

Sabotando toda criação fora dos moldes oficiais em nome de “umafrente única contra o inimigo”, os culturalistas se esquecem de que oinimigo está também entre nós. Defender a cultura nacional equivale aimitar a remota cultura ocidental e outras noções importadas das me-trópoles que há muito tempo jogou-a no lixo. “Um dos maiores erros”,assinala Fanon, “é tentar revalorizar a cultura no quadro de dominaçãocultural”.

A cultura, objeto de segunda mão ainda em uso em certas colôniasdistantes no tempo e no espaço, continua sendo expressão da classepossuidora e exploradora que a criou.

Trótski: “Cada classe dominante cria a sua cultura e em con-seqüência sua arte. A história conheceu as culturas escravistas daantigüidade clássica e do Oriente, a cultura feudal da Europa medievale a cultura burguesa que hoje domina o mundo. Daí a dedução de que oproletariado deva tentar criar a sua cultura e a sua arte (...) É fun-damentalmente falso opor a cultura e a arte burguesas à cultura e à arteproletárias. Essas últimas, de fato, não existirão jamais porque o regimeproletário é temporário e transitório. A significação histórica e a grandezamoral da revolução proletária residem no fato de que esta planta osalicerces de uma cultura que não será de classe mas pela primeira vezverdadeiramente humana (...) Contrariamente ao regime dos possuidores16 Escrito em 1970.

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de escravos, dos senhores feudais e dos burgueses, o proletariado con-sidera a sua ditadura como um breve período de transição.

“Pode-se portanto concluir que não haverá cultura proletária. Epara dizer a verdade, não existe motivo para lamentar isso. O proletariadotomou o poder precisamente para acabar com a cultura de classe e abrircaminho a uma cultura da humanidade. Esquecemos isso, ao que parece,com muita freqüência”.

A cultura em si – a própria idéia de cultura – já apresenta umcaráter de classe e é preciso acabar, dissolver com a noção de cultura –seja cultura feudal, burguesa ou proletária.

“Prefiro um bom poema de amor a um mau poema político, porqueo mau poema político desserve a revolução”.

Nem a classe intelectual, os poetas e os camponeses têm qualquerchance histórica de tomar o poder num contexto subdesenvolvido. Poisfoi exatamente em torno desses falsos dilemas que a inteligência sub-desenvolvida adjetivou, mentiu, enganou e perseguiu uma estéticaaristocratizante-sentimental-europeizante. São as alegorias camponesas,as vocações reformistas de maus poetas, as heranças cultivadas que –mais do que ninguém – intoxicam, deturpam e exploram o públicobrasileiro. Ninguém pode, em momento nenhum e em qualquer país,negar que a obra de Arte com A maiúsculo não seja comprometida como sistema – a não ser que seja burro ou desonesto.

Ao contrário do que pensam os piedosos culturalistas, não existeobra política reacionária na forma e progressista na mensagem. Naverdade, o equívoco não é um equívoco, mas uma contrafação ideológicaa oferecer prestígio, dinheiro e má consciência aos responsáveis não sópela “cultura nacional brasileira” mas pela infra-estrutura intelectualque oprime o colonizado.

Quanto a mim, há muito tempo luto não só contra a cultura ocidentalmas contra a criação de uma cultura subalterna nos moldes ocidentaiscomo também contra a comprometedora idéia de cultura.

Diante do incêndio universal, é mesquinho, provinciano e reacionárioquerer defender o que é nosso; a partir da destruição da cultura dosoutros, tentar salvar o nosso pequenino patrimônio de idéias. Ao mesmotempo não deixo de rir antropofagicamente e dar mais um tchau cultura.Ou como ameaçava Maiakóvski: “acabaremos contigo, mundo

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Alô alô Rogério Sganzerla!

romântico!”Quem é, então, o inimigo mortal do cinema novo?Os produtores independentes, os não-reformistas, os radicais, os

profetas, os criadores.(É preciso ficar mais uma vez claro que isso tudo pega mal para

eles, que o problema é deles, quem passará o vexame histórico serãoeles, aliás como prevíamos desde 1968)

Quem ganhou quase todos os prêmios oferecidos pelo InstitutoNacional de Cinema no Brasil de 1970? Antônio das Mortes e a pobrecúpula do cinema novo. E pronto.

Consciência dividida e má consciência.Agora nós tocamos no problema chave e na vida íntima de cada um

deles: a má consciência.A consciência dividida entre a vanguarda e a reação os estagnou na

tradicional má consciência formalmente traduzida por um esteticismoautocomplacente e tardio.

Ninguém do cinema novo pode tratar de outro tema que não seja amá consciência. Impossível deixar de fazer filmes de má consciência(Antônio das Mortes, Macunaíma, Os Herdeiros, Brasil Ano 2000, a máconsciência aflorando principalmente na safra colorida “grande pro-dução”, onde a concessão chega a ser escandalosa e poderia para-doxalmente dar em bom cinema se não fosse o complexo de culpa e oarrependimento sobrecarregados).

Ainda em 1970 a técnica principal do stalinismo latino-americanocontinua sendo a conciliação – principalmente com a burguesia nacional.

Lenin convidou o proletariado a estender a luta de classes ao planoda moral. “Aquele que se inclina perante as regras estabelecidas peloinimigo jamais vencerá!” (Trótski)

No Brasil, a conciliação continua sendo a estratégia vital doculturalismo stalinista. O deslumbramento constitui forma de impulsode ascensão social para a classe média colonizada que “quer fazer cine-ma de autor” precisamente depois da falência total deste último respiroliberal da social-democracia ocidental.

Reduzidas às devidas proporções, este movimento é um meio dealguns ascenderem socialmente satisfazendo seu deslumbramento dentro

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de uma moral paternalista e repressiva (por exemplo: as pessoas e obrasnão-desejáveis ao movimento, por determinação expressa da cúpula,são sistematicamente sabotadas, caluniadas, queimadas e denunciadas).

Trágica é a vocação do brasileiro para a conciliação, a bajulação e opaternalismo repressivos.

Como toda diluição, não vale a pena falar mal do cinema novo. Écomo criticar a censura: ninguém por dentro tem coragem de gostar dacensura ou do cinema novo.

O que nos interessa é destruir a infra-estrutura intelectual que oprimeo colonizado: o culturalismo ainda poderoso nas províncias distantesainda não atingidas pela revolução industrial, onde predomina o auto-ritarismo paternalista e/ou populista. À teoria ingênua de que “o elementonacional já nos basta” somam-se os preconceitos e os complexos deculpa, o deslumbramento, o sentimentalismo discursivo e a tradicionalmá consciência, disfarçados pela política do culturalismo, da culturanacional, da colaboração com a burguesia nacional e da teoria stalinistada revolução num só país.

A América Latina continua sendo um dos últimos redutos inter-nacionais do stalinismo. Os PCs só formalmente apoiaram a luta ar-mada entre nós.

O intelectual latino-americano, quando se julga “participante”, éum cristão ingênuo, deslumbrado e auto-complacente, exclusivamenteracional e auto-censurado (seu grande inimigo não é a ditadura mas... oirracional) com acentuada tendência ao stalinismo que na América Latinaacomodou-se maravilhosamente ao tradicional populismo. Daí a criaçãode uma cultura centralizada, “nacional”, populista e de preconceitos,liberal-humanitária-estetizante, conteudística, sentimental, individual,anti-industrial, anti-antropofágica, anti-internacionalista.

Diariamente a realidade continental se encarrega de destruir taispreconceitos mas cabe a nós extirpar definitivamente o culturalismo denosso subconsciente explorado e subdesenvolvido. Cabe a nós extirpara moral stalinista, o culturalismo e o reformismo populista – deformaçõesinseparáveis, que precisam ser destruídas de um só golpe interna-cionalista.

Todo mundo tem direito de fazer abacaxis. Principalmente nós,cineastas brasileiros, podemos experimentar à vontade sem se preocupar

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com a qualidade de nossos filmes voluntariamente impuros, anormais,subdesenvolvidos por condição e escolha. Qualquer um pode fazer seusabacaxis. Não é contra a qualidade de alguns filmes do Cinema Novoque chamamos a atenção; pelo contrário, o insucesso de um abacaxinão quer dizer nada nem responsabiliza o seu autor, pois cada filme éuma unidade diferente, uma nova aventura.

Quando começamos o ataque contra os culturalistas, procurei deixarbem claro: não era contra a qualidade de um ou outro filme que nosdirigíamos mas contra o projeto geral, a política do Cinema Novo,aprioristicamente, globalmente reacionária nas suas intenções, na moralde grupo, no paternalismo familiar, no que se quer de um filme noresultado, na baixa densidade criativa desses filmes. Eles não são ruinssomente por problemas de produção, mas principalmente porque odiretor, há muito tempo atrás, antes de começar a fazer cinema, ele jáestava conciliando, traindo o irracional, se comportando perante o Cine-ma Novo. Os filmes são aprioristicamente ruins e deixamos claro que,quando criticamos, não é o filme mas todo o Cinema Novo, seus filmestodos em bloco não conseguem sobreviver à castração imposta pelosquadros cinemanovistas. Atacamos simbolicamente todos os filmes docinema novo, em bloco, principalmente os vexames mais vulneráveisda cúpula, na verdade, a única responsável pelos seus próprios abacaxise pelos abacaxis de outros. A cúpula é quem mata os filmes muito tempoantes de ser escrita a primeira linha do roteiro. É essa cúpula que vamosdestruir. Ou destruí-la ou o cinema brasileiro afunda de uma vez.

Todos sabem que mexer na infra-estrutura intelectual é dinamizar(isto é, incomodar; pois é o que fizemos, incomodamos, abrimos a po-lêmica), a infra-estrutura política do subdesenvolvido.

Discutir cinema oficial é abrir fogo contra o partido e os stalinistas,não há dúvida.

O que eles fingem não saber é que o culturalismo perderá maisterreno ainda com a falência do liberalismo e da social-democracia.Maio, o terrorismo e a extrema-esquerda se encarregam de tirar-lhestodo sentido.

Não será mais possível ilustrar demagogicamente mensagenspopulistas para a burguesia nacional aplaudir, caricatura sórdida edependente da burguesia ocidental. Os cúmplices da burguesia nacional

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estarão fora das decisões reais do futuro.A incômoda radicalização atual destruirá suas principais forças de

apoio; o resto deixo para a história contar. Acabou. Fim de papo. Nãodarei mais nenhuma colher de chá. Chega, Brasil!

fim17

MONUMENTMONUMENTMONUMENTMONUMENTMONUMENTAL APRENDI...AL APRENDI...AL APRENDI...AL APRENDI...AL APRENDI...(1970 – Carnaval na Lama)

Monumental aprendi a necessidade de tudo dizer de uma só vez acada instante buscando a verdade através dessa estrutura de constelaçãoinsistente de tudo dizer a todo instante não importa como de qualquermaneira qualquer material que tivesse às minhas pobres mãos milionáriacontribuição de todos os erros livre na maior. Descobrira um método.Pré-colombiano sem dúvida. E sem querer. É fácil; muito fácil tudodizer ao mesmo tempo não importa como e com o quê. Assim aprenderaa colar planos fortes com planos fortes – isto é crescer ou aumentar ouverticalizar um filme para ver o que saía de bom e de ruim, operação“feed back” reversão exclusivamente a partir (da discussão do que seja)ruim ajuntar cenas (mais) fracas com cenas fracas. Isto na concepçãodo diretor de vanguarda querendo fazer o que não se pode fazer ou sejafazer um filme voluntariamente péssimo e livre ou ao menos equacionaressas questões, tal me parece a função necessariamente insinuante doser17 O leitor terá sentido, na força deste texto magistral, o salto enorme que se deu navida do cineasta-escritor no curto período de cinco anos. Em 1965 tínhamos um críticoinovando a informação do cinema mundial e lançando as bases teóricas e sistêmicas doque ele chamou “cinema moderno”, cujos elementos colhia cuidadosamente nos maissignificativos exemplos históricos e contemporâneos. Em 1970 temos o primeiro gêniocriador deste “cinema moderno” no Brasil, já com duas obras-primas realizadas emlonga-metragem e três em curta-metragem, e o genial escritor-líder-ponta-de-lança dopensamento da geração rebelde de “68”, se expressando no pleno domínio de uma es-critura revolucionária e comprometida com as melhores raízes da criação nacional -balançando as estruturas do status quo, onde quer que fosse conservador ou reacionário,seja “de direita”, ou “de esquerda”. E não deixa pedra sobre pedra. Neste interregno,como se verá mais a frente, o ponto marcante de sua trajetória é a descoberta do Brasilque, à semelhança de Oswald de Andrade e Villa-Lobos, se deu quando estava na Europa.

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3 resumos de 3 resumos de 3 resumos de 3 resumos de 3 resumos de O Capitão do CangaçoO Capitão do CangaçoO Capitão do CangaçoO Capitão do CangaçoO Capitão do Cangaço 18

projeto não-realizado

.1.O Capitão do Cangaço (sinopse)título definitivo: “Reinado Sangrento”Raso da Catarina ao meio-dia – calor insuportável provocado pelo

incêndio criminoso de uma casa. Inicialmente os facínoras cercam acasa e disparam contra o proprietário. Impõem o terror num lugar remotoonde a Lei jamais alcança seu braço forte. Atrás dos cangaceiros vem avolante numa marcha nada fácil. Horas depois estão cansados, famintose sedentos, disputando entre si as últimas gotas d’água de um cantilque passa de mão em mão. Dois ou três integrantes passam a protestare a discutir. Intervém o chefe do bando, Capitão Edevino Ferreira daSilva. A ensimesmada esfinge parece um duende das estradas. Atravésde um emissário – cangaceiro disfarçado de cego – tenta extorquir oscomerciantes de um lugarejo que pretende ocupar na madrugada se-guinte. E O CONSEGUEM. Ocupam a vila e libertam um preso que nãoquer sair da prisão.

O destacamento está preparado para recebê-los a bala. Tentam econseguem atacar de surpresa o lugarejo. Atacam de surpresa depois dechegar sorrateiramente, na melhor tradição do cangaço – antes da horacombinada.

Fazem as melhores estrepolias no povoado, onde são recebidos pelopadre em casa paroquial, onde está escondido o cangaceiro Elétrico,compadre do Capitão do Cangaço.

Também ele era seco como um graveto e não conhecia o repouso. Ocomandante sente que o grupo escapa-lhe completamente por ter armadoum truque que despistava-os entre nuvens de poeira, assaltando edevastando o que encontrasse pela frente. “O poder do cangaço se medepelo poder de devastação”, dizia o Capitão, que não só matava comotorturava.

No povoado acorre o destacamento, somente horas após a ocupação,submissa a um anti-herói de mil tropelias.18 Atribui ao ano de 1972 a redação deste argumento-poema-cine-sertanejo

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ELÉTRICO vai ao encontro de sua mulher ATIVIDADE que oaguarda.

Evidentemente, pretendiam fazer ainda muita coisa naquele mesmodia. A força volante disfarçava-se em trajes de cangaceiros com chapéuse enfeites para confundir os homens da Lei com os bandoleiros. Era ouniforme de luta nas caatingas. Grotescas ironias que se sucedem emalguns dias na vida de um bando de maltrapilhos bandoleiros que roubamcavalos e afundam na vastidão da caatinga e desaparecem do mapa.

Antes disso, porém, divertem-se com o produto do roubo. Orgasmoruidoso pelos chapadões que parecem ruínas pré-históricas de erasimemoriais – serpenteando a caatinga, homens que mais parecemserpentes são afinal dizimados pela investida vitoriosa das forças da Leique lhes vêm no encalço.

ELÉTRICO está perto dali e ouve os tiros.Invade a casa do coitado sobre quem vinha recaindo a suspeita.Tenta fazer justiça com as próprias mãos mas Atividade pede

clemência.Fim

.2.O Capitão do CangaçoResumo do argumento de Rogério SganzerlaPoeira – a princípio só poeira – uma nuvem de pó: cobre tudo. O

vento assovia e redemoinhos de pó se levantam da terra calcinada, cheiade pequenas pedras, em chicoteios furiosos no tabuleiro e chapadões aofundo, onde se divisa uma cruz rústica e cavaleiros atravessando acaatinga. O Capitão do Cangaço era seco como um graveto e não conheciao repouso e o sono!

Em primeiro plano, resquícios pré-históricos de uma cidadepetrificada, tão tosca quanto os personagens – cangaceiros encarnandoa luta do homem contra o destino – que atuam como ninguém nesteproduto acabado do laboratório cultural sertanejo...

No tempo em que o sertão era sertão, quadro arqueológico dasociedade brasileira, dominado pela esfinge lendária de um Deus cegodo Sertão – o capitão de um grupo de cabras cangaceiros quase sem

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armas, esfaimado e rasgados pela vegetação agreste, sem comer desde odia anterior...

Perseguidos por um destacamento policial que segue seu rastro,palmilhando os poucos rastros de penosa marcha de vaivém e caminhana trilha dos perseguidos com passos vigiados, mais parecem duendesdas estradas impossíveis, assombrações míticas da catinga, onde osfenômenos naturais se transformam em lendas, atravessando geraçõesinteiras e desvendam uma face armada de nossa história recente.

Tomando conhecimento da direção em que se acham os cangaceiros,o destacamento policial palmilha seus rastros à procura de possível“coito” (esconderijo) e tenta sitiá-los nas imediações para fazer pe-netrações de surpresa sobre o apertado cerco. Recorrem a todos osesforços imagináveis naquela marcha macabra que não anda fácil paraambas as partes, perseguidos e perseguidores, pois viajam noite e diasem parar, tendo se acabado as poucas provisões que traziam consigo...A fome é negra e o pau comia de todos os lados, tendo de agir com amaior cautela para tirar o melhor partido possível. Nesta luta sem quartelas peças chaves são os rastejadores [segmento ilegível] sob o solescaldante.

– Vamos parar pro descanso!Antes de preparar alguma tropelia e aterrorizar a população

amedrontada dentro do próximo povoado, o capitão se define como umser de contrastes, diapasão extremado e do tipo oito ou oitenta...

É uma figura ímpar na história universal do banditismo e não háquem ofereça contraste à maior vírgula de nossa história.19

– SÓ ERA BOM QUANDO QUERIA SER BOM...QUANDO QUERIA SER RUIM NINGUÉM COMETIA MAIS

MALVADEZA DO QUE SUA FIGURA TENEBROSA... E FAZIA ASCOISAS DE SOPETÃO SEM SE IMPORTAR COM AS CON-SEQÜÊNCIAS... NESSAS HORAS ELE ERA UM RAIO DE PE-RIGOSO.

SE TEM QUE MATAR MATE LOGO... PARA MIM TANTO FAZUM COMO MIL... É A MESMA COISA.

19 Em sua “Enciclopédia do Povo Brasileiro” (editada parcialmente pela Editora Globocom o título “Dicionário de Bolso”), Oswald de Andrade define “Lampião” como “umavírgula na História do Brasil”.

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VAMOS ABRIR NO OCO DO MUNDO PARA MORRER OUMATAR!

.3.O Capitão do Cangaço(Voodoo Chile)Argumento de Rogério SganzerlaApresentação: caatinga imensa e seca no alto-sertão.No tempo em que o sertão era sertão, quadro arqueológico da so-

ciedade brasileira (a princípio, só poeira, uma cruz e quatro cavaleiros).Uma nuvem de poeira cobre tudo, próximo a uma cidade petrificada

indicada pela pedreira encimada por um rústico cruzeiro – tão toscoquanto os personagens que atuam nesse produto acabado do laboratóriocultural sertanejo.

A esfinge lendária de um Deus vesgo do sertão retira o chapéu decangaceiro, persigna-se e atira uma pedra na estrada. Suas mãoscompridas, parecendo garras, protegem o olho direito onde repousa umóculos de aro de ouro e lentes coloridas que rebrilham junto às mãoscheias de anéis de jóias falsas e verdadeiras. Seu tórax está guarnecidopelas mal-providas cartucheiras e sob a calça de brim e o paletó deriscado claro se divisam as medalhas, santinhos de padre Cícero, umpunhal e duas pistolas “Parabellum”, além de um velho fuzil fabricadono início do século, e que suas mãos ágeis não abandonam – a não serpara ajoelhar-se e orar pelas almas em pleno meio-dia, sob o sol es-caldante da catinga...

Inimigos do progresso, perseguidos pela justiça, isolados por estradasimpossíveis e sujeitos a periódicas secas, os cangaceiros encarnam comoninguém a luta do homem contra o destino. O vento assovia e osredemoinhos de pó se levantam da terra calcinada em chicoteios furiososnos tabuleiros chapadões e terrenos duros cobertos de pedras.

Não se trata somente de quatro cavaleiros atravessando o alto-sertãomas o próprio Capitão do Cangaço com 17 “cabras” preparando algumatropelia dentro do próximo povoado.

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Sinopse de AbismuSinopse de AbismuSinopse de AbismuSinopse de AbismuSinopse de Abismu 20

ABISMOProdução: Rogério SganzerlaCo-produção: Norma BengellArgumento, roteiro e direção:

Rogério SganzerlaDiretor de produção: Ivan CardosoDiretor fotografia: Renato LacleteCâmera: Rogério SganzerlaSonografia: DudiStill: Ana Lucia SetteLaboratório: Líder

ELENCO:Jorge Borges (Jorge)Norma BengellJosé Mojica Marins (professor Pierson)Wilson Grey (capanga)Jorge Loredo (Zé bonitinho) (Medium de MU)Edson Machado (baterista)Mário Thomar (marítimo)Participação: Mariozinho de OliveiraMúsica: Up from the skies, Pali Gap, Wait until tomorrow, de Jimi

Hendrix; Faceira, de Ary Barroso com Silvio Caldas; Positivismo, deNoel Rosa com Noel Rosa e Orestes Barbos; Mambo Jambo, Sabor a mi,de Perez Prado.

SINOPSE:Numa asa voadora, do alto da Pedra Bonita, diante do Gigante da

20 Estimo ter sido escrito em 1977, para a divulgação de lançamento.

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Gávea, e em direção ao abismo, um jovem desportista se atira e voa,enquanto um assassino (Wilson Grey) agilmente monta um fuzil teles-cópico – engatilha, mira, atira – e acerta – no desportista.

Um fotógrafo que é egiptólogo e arqueólogo amador, por acaso atudo vê: saca de sua câmera fotográfica, registra o incidente mas chamaa atenção do homicida, que foge em seu automóvel, seguido pelo fotógrafo(Jorge Borges) numa rápida perseguição automobilística numa ladeirado Joá. Numa curva de duzentos graus, Jorge acelera ao máximo mas éimpedido e obrigado a reduzir devido a presença – descomunal – de umconversível Cadillac dirigido por uma mulher, Madame Zero (NormaBengell) – impedindo-o de seguir a pista do assassino.

Diante da asa, caída na praia, próximo ao local do crime, Jorgepromete virar mar e terra “se preciso for para encontrar o dono daquelecano assassino...” e vingar o amigo morto.

Enquanto isso, observando-o do alto o assassino previne seu cúm-plice Dr. Pierson (José Mojica) de que aquele tipo “viu tudo e vivo énocivo...”. Pierson requisita os serviços de Madame Zero como espiã eamante, preenche-lhe um cheque e manda-a “ganhar o cara”.

Sucede-se um diálogo entre ela e o fotógrafo, terminando num mo-tel.

Na suíte egípcia do motel “Vale dos Reis”, ele menciona seu inte-resse por pesquisas e escavações ar-queológicas, baseado num manuscritoseiscentista de um tesouro encontrávelnuma ilha da costa Atlântica, “Ilha Sel-vagem”, para onde convida-a.

Fingindo-se desinteressada detrás deum biombo chinês, Madame Zero liga umavitrola, muda roupa, levanta saia, des-vendando na altura da coxa, um punhalenvolto em bainha de pele-de-tigre, deonde retira uma pílula sonífera que de-posita num cálice e cantando “DrumiNegrito” (em play-back) atravessa o quartolevando-o para Jorge, com quem troca cá-lice, brinda e bebem. Grey e Rogério nas filmagens

de O Abismo

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Alguns minutos depois, devido ao efeito da pílula, Jorge adormece,enquanto ela rapidamente se transforma em veloz felina: vasculha seubolso, fotografa o manuscrito, encontra afinal a câmera fotográfica quedocumentou o homicídio, retirando o filme comprometedor. Ao fim dacanção em play-back desliga a vitrola e em seu Cadillac dirige-se aoobservatório astronômico, ao encontro do Dr. Pierson e o assassino.

Insatisfeito com os resultados apresentados. Pierson exige pesquisaem profundidade, pois ela “em sua nulidade, não distingue um faraó deum pobre diabo”. Ao que, adianta Wilson Grey: “doutor, deixe ele cavarsua própria cova. Do tesouro, ficamos com o ouro, pra ele dou a cova” –convencendo-o plenamente.

Dirigindo-se à Ilha Selvagem em sua lancha ultra equipada, baseadoem duas teses fundamentais, ou seja, da origem vulcânica das rochasda costa brasileira e do princípio de comunicação, desde alta antiguidade,entre oriente e ocidente, Jorge confessa não duvidar nem por um instanteda eficácia de seus planos, apoiado na pesquisa de ideograma e caracterespaleográficos, isto é, desenhados do grego arcaico. Consultada a obrade Bernardo da Silva Ramos Inscrições e Tradições da América Pré-História, a bordo decifra o manuscrito.

Norma Benguel em O Abismo

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Um marítimo que lhe acompanha na investigação sobe ao alto deum precipício e cai.

No dia seguinte, chega á ilha uma lancha apressada, trazendo o as-sassino, sempre armado, e Madame Zero.

Jorge empenha em mato fechado, deparando-se bruscamente com aentrada, enorme, de uma caverna onde ingressa e encontra, entreestalagmites e estalactites, a figura insólita do médium de Mu (JorgeLoredo) que lhe instrui sobre os perigos e inimigos a serem enfrentados.Para acender seu charuto, o médium retira-lhe algumas folhas do ma-nuscrito e queima-as, para espanto do pesquisador, que ao retirá-las dofogo vê, em detalhe, misteriosamente, letras aparecendo no papel (escritaem alumen de potassa, sob efeito térmico) que podem lhe desvendar ocaminho a seguir.

Alterando seu itinerário, avança por uma sombria galeria. De láretorna, trazendo um baú de época.

Enquanto isso lá fora, o máximo que Madame Zero conseguiu é en-contrar o médium de Mu, que enche sua bolsa de moedas antigas, semque ela perceba.

Diálogo de Madame Zero e o médium na estrada da caverna. Elemanda-a evitar o assassino, ela responde: “por enquanto ainda souterrestre, meu mundo é alegre”.

Vai ao encontro de Dr. Pierson que espera-a em seu iate com música,bebida e mulheres...

– Encontrou o tesouro?– Não, achei a mim mesma.– Então vá tomar banho – joga-a ao mar com bolsa – ao que moedas

rolam ao chão, caindo n’água.Furioso, Pierson amarra-a no mastro da embarcação e interroga-a,

enquanto um garçom traz uma bandeja com um frasco de ácido expelindofumaça.

– Mulher, você agora vai me contar tudo.– Mas eu não sei de nada.Pierson aponta-lhe a mauser, mas aproxima-se demais, ela rapi-

damente saca de seu punhal (guardado na coxa) e defere-lhe golpecerteiro, enquanto o garçom ao vê-lo abatido, joga contra Pierson o

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conteúdo do frasco.O assassino não tem outra saída senão seguir à risca as reco-

mendações de seu ex-cúmplice: suicida-se o mais rápido e higie-nicamente possível.

A tudo observa de luneta, o arqueólogo. Aponta o cano quente desua arma contra o detalhe de uma gasta fechadura de um baú, abre-o(efetivamente cheio de jóias e estatuetas) conduz-o à praia, entra eembarca em lancha para seguir à vontade, vitorioso e tranqüilo, a desafiara maré alta – que com a terra e a despeito dela – tudo encobre projetando-o no mar.

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Fazemos aqui um rápido “intervalo” para comentar Abismu. Eninguém melhor para fazê-lo do que o saudoso crítico Jairo Ferreira, noartigo “Chanchada fantástica”, publicado na Folha de São Paulo,domingo, 16 de abril de 1978:

“Exibido esta semana na Cinemateca do Museu de Arte Modernado Rio de Janeiro, O Abismo ou Sois Todos de Mu, marcando a volta deRogério (O Bandido da Luz Vermelha) Sganzerla, decepcionou de formaretumbante a expectativa imediata de primeiro grau, ou seja, a turmaque esperava um recado objetivo do cineasta em relação ao Brasil dosanos 70 e seu cinema de grande mercado e nenhuma criatividade. ‘Ofilme é um verdadeiro purgante’, desabafou o cineasta Luis RozembergFilho, um dos mais coerentes do cinema Udigrudi, enquanto outroscineastas torciam o nariz e se recusavam a fazer comentários.

“Particularmente, porém, considero minha ida ao Rio bastantecompensadora. Rogério, ao lado de Bressane, e ainda Glauber Rocha, éuma das poucas bandeiras de um cinema deflagrador. Agora ficou claroque a Embrafilme ainda não conseguiu – nem conseguirá – dominar aspoucas mentes livres do cinema nacional, aquelas que resistem com umcinema independente. Só lamento que o filme do Rogério não tenhauma dose tão grande de invenção, já que ele não encontrou outro caminhoa não ser diluir-se a si mesmo, repetindo lances do Luz (1968).

“O que é o filme? Uma revelação arqueológica sobre as origens o

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Brasil. ‘O Egito é neto da América’, ‘Só me interessa a profecia’, ‘Odestino do homem é uno, de Mu a um’ – são frases que o próprio Sganzerladiz no início do filme, cortando-se em cacos de vidro. Depois passa adirigir um Cadillac rabo de peixe, branco, começando a viagem (naverdade, bad trip, isto é, mal sucedida) ao continente perdido de Mu(localizado na Gávea, Búzios e Alto da Boa Vista) ou à Atlântida que ocineasta toma pelo Brasil.

“Como o filme não tem história, sem mais nem menos surgempersonagens em meio a rochas, inscrições e ruínas lendárias do Brasil.O primeiro é o professor Pierson (José Mojica Marins mais elegante doque nunca), que logo diz em primeiro plano: ‘Além de ser grande, eusou o maior’. Depois surge Norma Bengell, dirigindo o mesmo Cadillaccom muito charme e fumando um charuto de meio metro (desses alusivosa Itu). Wilson Grey, o ‘vil criado’ de Mojica, exibe uma grande borrachade apagar, onde se lê: ‘Para grandes erros’. Igualmente delirante é aaparição de Zé Bonitinho: ‘Mulheres, cheguei. Vós sois todas de Mu enão sabeis’.

“Em suma: O Abismo é um filme finíssimo sobre a grossura, umvôo poético avançado, uma chanchada fantástica, situada aliás muitoalém dos rótulos (a base é o Udigrudi, mas o resultado é outro). A câmerageralmente é péssima, o que não exclui angulações geniais e cortesfulgurantes. Tudo isso é muito simpático enquanto Rogério não insisteem se auto-afirmar através de José Mojica Marins: ‘Eu sou o maiormesmo. Boçais e recalcados, uni-vos!’. Uma carapuça que certamenteserve também ao autor, coisa que a filosofia geral do filme deixa clara(‘Tudo é uma coisa só e isso é tudo’).”

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Jimi, gênio totalJimi, gênio totalJimi, gênio totalJimi, gênio totalJimi, gênio total 21

De 1965 a 1970, um gênio reinou sobre a Terra – Jimi Hendrix (27/11/45 – 18/9/70); mais uma vez a Terra não soube coroar seu rei. E seassim não o foi mais porque por dentro de altas estruturas astrais (isto é,

21 Publicado na Folha de São Paulo, segunda-feira, 11 de agosto de 1980.

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físicas, e seguindo o princípio único da lei de encarnação)ele como rei sabia que iria partir breve. “He’s not gone,is just dead”, prediz Hendrix em 1965, numa gravaçãocom Curtis Knight, de uma canção intitulada justamenteBallad of Jimi, onde fala, com diferença de um dia, aexata data – mês e ano – de passagem deste para outro(s)mundo(s) onde segundo ele estará nos esperando para a

próxima revoada de trovões que transformará a face da Terra, mas até láele voltará (“I’ll return” – repete em Highway Chile, presciente de suavida transitória e abissalmente genial, em péssimo estado como Noelque por sua vez desabafa: “... tenho passado tão mal/a minha cama éuma folha de jornal...”). Gênios ceifados na flor da idade não fazemsenão rejeitar: “I don’t live today/maybe tomorrow”. “Até amanhã, seDeus quiser”. “I will return”. Rejeição deste mundo, mente e sociedadedo medo, não fazem senão recusar tudo que deve ser recusado – emnome do novo homem, nova sociedade e tudo que é de Deus.

Desvendo o véu de Isis: tenho para mim que antes de mais nada énecessário pensar em Hendrix como uma divindade. Não uma “divindadedo som”, se assim posso exprimir, mas divindade do homem. Total mentegênio total – pois ele próprio é uma divindade que se alimenta de suaprópria aura; um gênio encarnado suntuosamente num negro-índio; gênioda América e americano por dentro número um.

Hendrix já é século 21 e 23 – além de 20. Três séculos atravessame informam com sua maneira típica de tomar com a mão esquerda, cordas(12 na stringuitar) na posição invertida por exemplo.

Suas letras devem ser ouvidas como um ideograma, com grandeelegância e concisão de forma – referindo-se ao essencial– se fala do poder (e formas subalternas de usar o poder –dinheiro medo moeda repressão chicletes e metralhadora,por aí afora): “Sweet talks in vain”.

Já a música é uma explosão de luz (e cor; como a língua-raiz sânscrito e o tupi – or not to be)22 , onde o som representa

um valor tonal e é escrito sob uma pauta musical, novamente Hendrixreina sob nossa mente. Não divaga sobre anedota ou deslumbramentomenor: ele diz o essencial, isto é, o supérfluo: vinho, o uno, poder, tudo22 Rogério alcança, genialmente, um upgrade do genial aforismo oswaldiano “Tupi, ornot tupi that’s the question”.

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é possível. Fala sobre quetzal, o poder de transformar tudo e amente à medida positiva de desmedido negar. Sobretudo diztudo sobre tudo com pouco ou quase nada: três homens –guitarra, baixo, bateria – soam como multidão em músicasescritas, cantadas e freqüentemente mixadas por ele em seu

estúdio Electric Ladyland. Mal admitido, claro, pelos que tolhem opensamento com medo, quem necessita e tal artigo (seu empresário fezquestão de “apagá-lo” e só relançá-lo em sucessivas gravações dispersas,voluntariamente mal escolhidas entre as duas mil horas gravadas emdezesseis canais...).

Tocando Red House ou Voodoo Chile simplesmente varre do planetatoda perda de tempo, levando-nos até altura inalcançada por qualqueroutro ingênuo ou gênio terrestre. Para todos e para ninguém: mentelivre, homem superior, relação com divindade – eis o abc hendrixianoonde como em qualquer revolução tudo começa e termina na mentelivre (sem esforço partido medo ou classe).

Jimi era um rei e ele sabia. O rei nasceu, em Seattle filho de índia enegro. Gostava de passar as férias em companhia da mãe alcoó-latra (perdeu-a aos dez anos) em tendas de antepassadoscherokees na reserva de Vancouver, Canadá. Segundo o pai,um jardineiro austero, “Jimi era um verdadeiro sagitário, obcecado coma justiça, com a idéia de fazer as coisas certo. Uma personalidade muitoforte, difícil de curvar e individualista. Vivia interessado em coisas nãocomuns nos garotos; uma delas era a música. Em sua casa não faltavamdiscos de Robert Johnson, Muddy Water e B.B. King, todo domingo osamigos paternos após o serviço religioso iam tocar blues e beber cerveja.Aos quatro anos irrompeu sala adentro soprando uma gaita “como ummaluco mas dentro do ritmo”, aos sete recebeu de uma tia um violino(“e eu cheguei a tocar mesmo, sempre curti os instrumentos de corda,foi aí que descobri que era canhoto para tocar também. Eu só dedilhavaa vassoura com a mão esquerda! – tocava-a com a mão esquerda”. Ganhouum violão e uma guitarra usada (“ele ouvia um disco uma vez, e minutosdepois, já tocava igualzinho”). Alistou-se no Exército como paraquedista.Desmobilizado vinte e seis saltos depois, com fraturas nacostela e tornozelo - rolou dez anos pelas estradas no circuitode música negra americana, aprendendo ou ensinando (tocoucom Litle Richard, B.B. King, Sam Cooke, Salomon Burke e o

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grupo de twist Joey Dee e The Starlights e o Isley Brothers até chegar sóe desconhecido em Nova York em 1965).

Mudou o nome para Jimmy James com um grupo próprio o BlueFlames – fracasso completo – teve que empenhar e vender guitarrapara continuar num hotel miserável no Greenwich Village. Aceitou gravarcom Curtis Knight e salvou sua situação financeira. “Eu acho que nuncacheguei a conhecer Jimi”, declara Curtis Knight. “Acho que nuncaninguém o conheceu. Ele não se deu a conhecer a ninguém. Era fechado,se guardava como quem guarda um segredo. Mas nesses tempos emNova York nós conversávamos muito. Jimi estava sempre intrigado,preocupado com coisas como a origem da vida, o problema da morte.Nunca curtiu uma de orgulho racial ou preconceito. Estava mais pre-ocupado com a noção de humanidade e conceito de fraternidade. Liamuito, nunca soube o quê. Não conseguia acompanhar suas conversas.Certa vez me disse acreditar que os seres humanos devem passar porvárias encarnações em nove diferentes planetas cada um mais evoluídoque o outro até chegar à eternidade, à perfeição (Nirvana? Em sânscritosignifica extinção). Ele dizia também que esse mundo em que vivemosé apenas um imagem distorcida de um outro mundo, espiritual e perfeito”.

Em 1969, apara o cabelo, reduz a quantidade de anéis e colares.Com a palavra, o rei:

“Isso já foi importante para mim, agora não é mais. O que é impor-tante? Minha música e minha mente é o que conta. Quanto a elas, mesinto ilimitado. Tentei sempre fazer minha música honestamente e se aspessoas não me entendem, é porque não ouviram direito. Até ElectricLadyland eu queria basicamente pintar paisagens do céu e da terra coma guitarra para as pessoas se soltarem dentro delas. Sofri muitasmudanças, descobri muitas coisas que ainda não contei. Gostaria agorade pintar a realidade de uma forma simbólica capaz de levar as pessoasa pensar. Eu sou tantas raças... como poderia tocar uma música... comopoderia trair uma dessas raças, se eu sou todas elas ao mesmo tempo?Tenho pensado muito sobre o futuro, sobre essa era em declínio. Masnão quero acabar, quero continuar, vá para onde for o futuro.

“Talvez escrevendo mais para os outros, fazendo arranjos. Talvezcom uma orquestra... não uma dúzia de harpas e violinos mas uma bandade verdade para que eu possa reger músicos competentes... e talvezalgo visual como filme ou slides que alarguem aquilo que a música quer

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dizer. Assim tudo poderia ser novo, excitante. Acho que é isso que virá.Música é tão importante agora. Política já teve sua importância e é amúsica e as artes que vão mudar o mundo. Aprecio Strauss e Wagner –eles são muito bons. Acho que servirão de base dessa minha nova música.

“Mas acima de tudo, quero blues e um pouco de western tudo mistu-rado. Estamos tentando fazer um terceiro mundo acontecer mas aindahá tanta coisa para aprender, tanta coisa nova para fazer.

“Como o mundo, a música está ficando pesada demais... quando,como o mundo, a música fica assim pesada eu simplesmente quero mechamar hélio, o gás mais leve que o homem conhece”.

Foi sua última entrevista. Como uma fera do astral parece ter vindoao mundo para sacudir-nos de nosso terrestre e passageiro sono – gran-deza, consciência e humildade – saber-se bom é para o bom demais umlimite ou uma tentação – como ele prematuramente falecido ou desfa-lecido.

Não existe maldição mas há sortilégios, sinas e sinais.

RRRRRetiro espiritualetiro espiritualetiro espiritualetiro espiritualetiro espiritual 23

Minha teoria será de que gênio existe - basta consultar a históriaanônima de crianças-prodígio e de outros, menos freqüente, de adultos-prodígio, sabendo-se que a grande maioria desses casos não chega aoconhecimento público quando não são promovidos pela publicidadeinternacional. Necessário pesquisar casos da história anônima dos povose suas criaturas “diferentes” ou excepcionais, principalmente aquelesque ninguém considerou grandes por serem eles mesmos. É preciso vere rever exemplos de genialidade congênita de nascidos e mortos sob osigno do esquecimento, verdadeiro tesouro natural que o povo concedemas não define à humanidade, tão necessitada de tipos extra-sensoriaisque, podendo estabelecer uma corrente, bastariam dez ou doze paratransformar um Estado, uma mente ou um continente. Um como JimiHendrix nasce de cem em cem anos, e não é para menos... Minha tese23 Publicado na Folha de São Paulo, segunda-feira, 29 de dezembro de 1980.

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será a de que gênio existe, sim; embora pouco ou quase nada fizessempara demonstrá-lo, ao contrário de Hendrix, cuja genialidade estava nacara: no andar, na maneira dele, canhoto, inverter as cordas de suaguitarra e tirar um som “ao contrário” - no comportamento explosivo enada exibicionista, como quiseram acusar: ao contrário, sabe-se queera tímido e fazia dessa timidez em cantar o reduto maior de sua belezasecreta mas não menos presente por não estar tão aparente.

Para se reconhecer um gênio é preciso instinto e sensibilidade, comoaconteceu comigo quando o vi frente a frente no palco do festival deWight em 1970: enquanto transcorria o espetáculo, certificava-me deque aquele seria e continua sendo sem dúvida a maior experiência quejá me ocorreu em vida. Sabia-o naquele momento, eu, realizador in-crivelmente premiado no primeiro filme cuja imagem inicial (um letreiroluminoso) avisa e indaga: “um gênio ou uma besta”. No fundo nem eu -obcecado com a idéia da existência ou não de gênio - não acreditava emseres aparentemente normais mas extraordinário em todos os sentidos.Até aquele instante; depois tudo mudou para mim.

Entrou no palco, fulgurante, a luz número um do Uno. Ilumina-ocom seu brilho áureo, traduzido numa rapidez anormal de gesto, andar,comportar. Doce, elegante e explosivo como uma fera do astral, por dentrode altas esferas, que tivesse vindo à terra para sacudi-la e despertar aarte contemporânea com seus acordes, dedos, amplificador e alto-falante.Com quê? Até com “porradas” sonoras ou não nessa música do ruído edo silêncio o gênio maior assume e engrandece a força que conduz atéaltíssimas paragens enquanto sua mente me conduz e diz: “vai em frenteque essa é quente e interessa, principalmente no Brasil” redimido pelosofrimento, terra da luz que se aproxima com o terceiro milênio... Vouem frente, adiantando-me aos demais no encontro adiantado e avantajadodo gênio número um e do número um e meio que desafia vida e morte, osuave beijo do preto e do branco que cruzam todas as linhas, ponto deintersecção total de milhões de anos-luz, pediu-me o grande sabedor detudo, o mestre fulgurante me deu a consciência e a clareza exigidospelos que como eu sabem de tudo e escondo (leitor: chegou a hora decontar toda inteira verdade, acredite se quiser).

Iluminou e inundou o palco de luz. Da luz - sua luz. Pela primeiravez, certificava-me de que existia mesmo aquilo que pressentia; gênioexiste, seja Jina (leia Roso de Luna: “O livro que mata a morte”) Dzin,

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jin, chin(ês...) gin, gênio, nuntius (significa emlatim: enviado) ou como quiser nomear aquilo queé inominável.24 Maha Jina - à minha frente movia-se diferente de todos os outros humanos terrestres,rápido e fulgurante, aquele ser movido por umagraça que faz a história vibrar e ameaça o transcorreracadêmico das coisas. Hendrix estava lá e eu vi.Tudo. Vi, então, o número um completar - na suasucessão de números musicais ou não - todos osoutros números e possibilidades seguintes - como se tudo fosse umacoisa só. De fato, tocava todas as suas criações ao mesmpo tempo, desdeas primeiras de Experience 1967 com as últimas misturadas nos acordesmais conhecidos de um ou outro (In from the storm), incluída no finalde meu filme Abismu. Lembro-me de cada detalhe mas não é fácil (d)escrever...

Foram duas horas históricas de uma noite de pânico; e som e fúria,nada significando a não ser que o homem contém divindades dentro desi mesmo e seu trabalho está aí para ser compreendido (respeitado)porque somos próximos (filhos) daquele que é o maior, cujo nome nãopode ser citado em vão... Na minha viagem pude inicialmente constatara briga milenar do artista com o instrumento - da Grécia à Wight.

O milenar mito do artista contra o instrumento, desde as primeirasnotas notei, era uma guitarra nova, vermelha, que coincidia com a ves-timenta de triângulos verdes e vermelhos que usava na ocasião. Tocandosuperbamente, senti que ele não estava satisfeito com o aparelho. Chamoualguém e sem parar de tocar, cochichou no ouvido. Certifiquei-me deque, como intuíra mandou apanhar sua “Fender” branca de 12 cordas.Trouxeram. Sem interromper o número, trocou, tocou o intrumento maisà vontade.

O mito trágico - isso já é tragédia - do artista brigando com oinstrumento e, tendo que brigar, vencendo-o, estava ali, se repetia poruma desnecessidade histórica a luta e condição astral do guerreiro etc -tudo isso circulou pela minha mente, em poucos segundos, enquantoJimi Hendrix fixou o republicano público, eu via corrente de eletricidadesaindo do peito do artista para a platéia e dessa para ele descarga sensíveltransmitindo. Novamente Hendrix reina sob nossa mente.

24 A atriz Djin Sganzerla é filha de Rogério e Helena.

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O PO PO PO PO Poeta da Voeta da Voeta da Voeta da Voeta da Vila: Arila: Arila: Arila: Arila: Argumentogumentogumentogumentogumento 25

Histórico: Eletrificação é Pré-revolução Industrial (1930) :No inicio da terceira década o latifúndio é golpeado no Brasil,

Wahington Luis deposto a 24/10/1930 (mudança de estratégia e padrões,explosão demográfica) . Com a eletrificação – estágio inicial de revoluçãoindustrial – forma-se uma nova linguagem urbana – em arte popular –através do disco (elétrico desde 1928), do rádio (poderoso veículo apartir da liberação da publicidade em 1932), do cinema sonoro (processoótico em A Voz do Carnaval, documentário de 1934, Alô Alô Brasil,1935, e Alô Alô Carnaval, 1936), desenvolvida em função de nossamelhor arte – o samba.

Nos bastidores da luz:Inevitavelmente, O Poeta da Vila será uma incursão (reflexiva) nos

bastidores e primórdios de processos de eletrificação no Brasil – e seusreflexos, decisivos, sobre o comportamento das massas – o intercambiode idéias proporcionado pela difusão da luz elétrica em seu explosivotatear, no Rio (campo de artes industriais como disco, rádio, cinema)praticamente em termos de samba. Tempo de luz e espetáculo – reflexosmodern style da usina de sonho central (Hollywood), vivenciados no

Casino da Urca, Jóquei e Circuito da Gávea,Café Nice, Rádio Nacional e Programa Case– além da fome e prostituição.

Em busca da memória da Memória Na-cional:

Da necessidade de uso do acervo de umaépoca e do documento histórico a serviço dareconstituição cinematográfica – conse-qüentemente do original som do cantor e com-positor Noel de Medeiros Rosa (1910-1937)na busca difusa e imponderável de uma noçãomoderna e atuante de catarse coletiva (me-mória nacional).

Autoretrato de NoelRosa (gouache)

25 Atribui a redação deste argumento ao ano de 1980,quando foi apresentado à Embrafilme.

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Será uma tentativa de decomposiçãode um caso biográfico, ou tragédiacômica, alcançando o coletivo pela jus-taposição da consciência com o dramaindividual, recorrendo a certa amarguraprofissional que em Noel Rosa tão bemse expressa rindo – e dá margem à comé-dia sobre o lado sério da vida – valiosaarte de época de crise, como em trinta,pagando alto preço do progresso mal pla-nejado (desajustes e falta de planifi-cação redundantes no crack de 1929);de uma nítida coletivização da forma,

gerada de um lado pelo complexo industrial e pela simplificação gestualde outro (vale lembrá-lo: “O cinema falado é o grande culpado datransformação...”), em suma, devido à discussão absorvente e inter-nacional da luz elétrica, mesmo na depressão.

Testemunho de um mestre da língua(gem) urbana:Noel Rosa foi vítima – sobretudo testemunha – de novos e difíceis

tempos – testemunha – sua obsessão pelo experimental que o situa àcondição de artista moderno, além de homem de seu tempo, fazendo daobra de arte uma questão em aberto (obra) – sobre ela própria – aomesmo tempo tudo e nada dizendo sobre(tudo) o vazio da criação.

Mestre indiscutível da língua, permanentemente inspirado, formandoe informando uma nova língua urbana, ágil e sintético no uso da metáfora(lancinante...) incorpora o ideograma ao samba, encontrando Noel oponto de acerto – entre a intenção e o recado da grande obra de arte semestilo (que em cinema, impõe a linguagem da profundidade de campo,ação paralela e ritmo rápido, no melodrama poético, relação e não cópiade documentos históricos).

Aparentemente brincando, Noel Rosa enriquece o povo, a memóriacoletiva e o acervo cultural de uma nação – na tradição anônima dosgrandes sambistas, recorrendo à vertente generosa do congo, lundu eembolada, ritmos precursores do samba e de uma nova prosa (prova)nossa – em formação.

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PPPPPonto de partida avançadoonto de partida avançadoonto de partida avançadoonto de partida avançadoonto de partida avançado 26

Quando eu me refiro à necessidade de, por exemplo, o SenhorPresidente da República assistir aos nossos filmes ainda sem acesso aopróprio mercado – não penso somente em Sua Excelência prestigiar aum trabalho de grande diretor como Nelson Pereira dos Santos por ocasiãoda assinatura de contratos de exportação cinematográfica em Brasília.Não, somos boicotados há dez anos e temos que bradar: para achar asua identidade o primeiro passo é conhece-te a ti mesmo, Brasil... Istoé, assistam nossos filmes; sejam mais ativos; eles desenvolvem a noçãopreciosa de formação conseqüente de novo homem/nova humanidade epor aí afora...

Leitor amigo, ponha-se na minha situação: o que fazer diante doarbítrio de incompetência treinada? Eu, que não sou burro, sempre soubeque existe um boicote contra meus filmes. Falei demais? Saibam quepor idealismo nunca calei-me diante do fato de intuir precocemente ascoisas. Serei tão importante e ameaçador assim? Se fui considerado dosmais criativos realizadores do País, por que cuidadosamente não deixamir às telas... ou seja tenho filmes arquivados há dez anos... que tal leitor?Não seria um boicote armado pelos intelectuais de araque?

Abismu, produção minha com Norma Bengell, Jorge Loredo, MojicaMarins, Wilson Grey, está pronto – cartaz, trailer e tudo – há dois anos– e só passa por iniciativa minha... repito: serei tão importante assim?Consegui a duras penas lançá-lo em São Paulo... Para utilizar publicidadegratuita, me dispus a levar a atriz comigo para os programas de rádio etelevisão. Além de não sermos pagos, recebemos um telegrama fonado(“é cômodo, telefone hoje e pague depois” conforme o epigrama) vazadonos seguintes termos: “DPP/96/80 – Comunicamos seu pedido passagense diárias, com fins promocionais, em São Paulo, para o filme O Abismu,em nome de Rogério Sganzerla e Norma Bengell, foi indeferido vistobaixo potencial de rendas circuito exibidor nessa cidade, estaria com-prometido pelo valor total do investimento na viagem. Atenciosamente,Luiz Gonzaga A. de Luca, Chefe Departamento de Promoção de Propa-ganda da Embrafilme.”

Sem comentários... O pior é que o filme já tem certificado de censura26 Publicado na Folha de São Paulo, segunda-feira, 10 de agosto de 1981.

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correndo há quase um ano e nunca foi projetado a não ser por iniciativaminha, isto é, daqui a cinco anos terá um ano menos de vida, sua imagemestá lá embaixo (é isso que queria, Senhor Marcondes? Quem ri porúltimo ri melhor) e nenhum exibidor quer lançá-lo – embora tenha umrolo inteiro de Jimi Hendrix executando In from the Storm em Whight –porque já foi dolorosamente “queimado” pelas nossas queridas incom-petências treinadas na cidade maravilhosa... O pior de tudo é que foifinanciado com recursos próprios (não eram nem meus: o mais grave éque a querida Helena Ignez vendeu seu apartamento próprio – sabendo-se que numa época de inflação não se vende nada... para produzir umaimportante aula, lição, intuição de um novo Brasil que, precisa-seconhecer a si mesmo; isto é, não faltam arqueologia, religião, Hendrixno experimento). Será Abismu tão importante assim para ser tão osten-sivamente retirado de competição?

Pois com Noel e Hendrix ao meu devido lado eu digo: Abismu é otrailer de minha futura obra, sob a égide, invocação, proteção do gênionúmero um das Américas (que são uma só), ou seja, a ele dedico todosmeus planos fixos, travelings e panorâmicas, ao pensador James MarshallHendrix.

Sete anos longe da câmara – um recorde de abstenção – não me fezparar nem um segundo, pelo contrário. Ultimamente, escrevi três ensaiosirresponsáveis, três romances, três roteiros e faço ao mesmo tempo trêsfilmes – são doze, e não um, pontos de partida avançados.

PPPPPernetas querendo andar de patinsernetas querendo andar de patinsernetas querendo andar de patinsernetas querendo andar de patinsernetas querendo andar de patins 27

Nos últimos anos a TV tem sugado à vontade a criatividade dosfilmes brasileiros sem dar nada, absolutamente nada em troca. A novelaé uma extensão do cinema novo e a nova técnica de plano-seqüência(alguns bons câmeras da Globo seguem exaustivamente os atores, comonos nossos filmes que – para benefício deles – não foram sequerprojetados no Brasil – sem que haja o essencial: um diretor por detrás

27 Publicado no Correio Brasiliense, sexta-feira, 31 de julho de 1981.

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das câmeras). Cenas brilhantes de Julinho Bressane, às vezes minhas, edos nossos cineastas são imediatamente copiadas, diluídas, “platinadas”em apresentações novelescas imediatamente levadas ao ar para milhõesde pessoas, tirando o aspecto de novidade de filmes assistidos em sessõesprivadas, moviolas, cineclubes. Claro, como diz Bressane “arte é mul-tipessoal, não tem dono”. Mas acontece que além de não pagar dividendosculturais ou econômicos as “redes” não querem nem saber de exibirfilmes brasileiros (nem de madrugada) como seria sua obrigação dianteda produção nacional, não convidam ninguém realmente bom de nossocinema para produzir uma interação tela grande/pequena e ainda achamque “cinema dá câncer pois é ultrapassado”. Se dá câncer, por que noscopiam tanto assim? Há sempre um espião para roubar idéias (a formade tratar automóveis em movimento, de seguir os atores, compor mar-cações coletivas, a câmera baixa, não são privilégio de ninguém, a nãoser do cinema moderno, mas usados por incultos, revela tão-somentemodismo abastardamento cultural). Além de roubarem, mentem. Vidi-otismo... Se não dão valor ao produto sonegado, vão criar sozinhos umalinguagem! Isso lhes é impossível, pois não conhecem as possibilidadesdo veículo a não ser repetir modismos comprometedores.

Os enlatados estrangeiros são sempre exclusivos e as novelas, desa-guadouro de nossas experiências, pecam pelo primarismo e pieguiceque são a única “contribuição” deles. Apesar de tudo, descobriram amontar em movimento, como sempre fez o cinema americano, russo oude atualidades (devido as facilidades do corte eletrônico que dispensacoladeira e “durex” e mais facilmente “acha” o momento do corte deimagem/som dinâmicos). Chegaram a fazer capítulos melhores do quebaboseiras tipo Bye-Bye Brasil (deveria se chamar: “I’m Sorry, Brasil”,expressão de má consciência), mas não saem de tiques, inflexões, closessistemáticos de pessoas comendo e falando (como se com isso pu-déssemos formar uma civilização), apresentam manequins sofríveis“crentes que estão abafando”, bonecos sem alma (e os jovens copiamem todo território aquela forma antiga e nada moderna de ser frio masmeloso, falso e convencido, metido a conformista) em um modelo decomportamento despejado sobre nossas casas sem um recuo crítico ou amais leve insinuação do mal que os acomete: standartização da almabrasileira, evasão de energia mental, mediocrização de um país que,assim, nunca chegará a ser nação. Um ou outro enlatado é bom (destacoao acaso: Assassinato de um Presidente, Executive-Action, com roteiro

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de Dalton Trumbo; Família Rico, com Ben Gazarra e outras rarassurpresas). O resto é creche contaminada pela violência pornográfica.Filmes nacionais de envergadura, jamais. Cinema americano do bom,impossível (onde anda a cópia de Soberba que a “Vênus” desbotada es-conde?). Comédias e/ou documentários como há em emissoras e não“redes” de fora (aliás essa palavra “rede” pega mal e mostra o quantobrasileiro é presa fácil de alguns oportunistas), nunca. E as músicasdas novelas (para as quais elas são feitas) cada vez piores. Como con-seguem “selecionar à unha” lixo tão deprimente? Justamente nós quetemos o maior ritmo do mundo – o samba – nos dobramos aos interessespredatórios de alguns acionistas, que importam a peso de ouro-dólarcançonetas de quinto time? E o que dizer dos “diretores” de especiais?Os atores, recrutados ao rádio, teatro, cinema, são bons, mas a novageração de manequins embonecados é uma lástima, refletindo o baixonível de subpadrões exclusivamente quantitativos. Todos satélites são“estrelas” nos corredores de uma rede de abastardamento cultural. Outrodia aconteceu-me o pior: além de sugarem cenas de vários filmes meus(Abismo, Sem essa Aranha, Bandido) chegou a desaparecer uma cópiade um Jimi Hendrix emprestado a um amigo da sucursal em São Paulo,que a rede mais organizada do País não consegue localizar. Expropriamnão só idéias mas ideais e até um rolo de mil desaparece sem que hajanenhuma responsabilidade. Além de tudo, fazem-nos esperar por umacoisa que é nossa. Até quando continuará a exploração? ANOTE: Nãosomos pagos para ser explorados, física e mentalmente.

“Pernetas querendo andar de patins”, como bem definiu o JulinhoBressane os maus exemplos nacionais, é o mais recente “resultado” daseleições representativas da classe no Rio e seu órgão sombrio. Umminúsculo personagem, sob o título “Cinema novo-rico” assina “teoriasdiscricionárias” (não se trata de constatação mas apologia da usurpaçãoindébita, inaceitável no campo da cultura): “Não é difícil achar afi-nidades cada dia maiores entre a produção de um filme (ou fita?) e umaincorporação imobiliária. Mercado imobiliário, prod. cin. e status sãotrês elementos reunidos como um jogo de bilhar francês, onde a ca-rambola é fator indispensável. O status decorre desse dado e variadiretamente com o aumento do preço da ‘incorporação’”. O que confirmana página 11: “Modelo ultrapassado”: – “Mário Falaschi acha que todomundo é burro, ladrão e safado”. Nas possibilidades de um (necessário)Renascimento Cultural (possível com a convocação de jovens mar-

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ginalizados), nem tanto. O que confirma o comentário de Bressane: “Onosso cinema, clandestino, que não passou, foi um fato estimulante (parausurpação indébita). Eu não estou falando só dos meus filmes – con-tinua Bressane –, mas também de outros que não foram vistos. Unsquarenta... Alguém disse que esse cinema era a necrose da juventude.O fato é que esses filmes deram um susto, mas todo mundo caiu deboca. O último filme do Glauber é uma paródia desse cinema, feita nascoxas. Sabemos que arte é multipessoal, não tem dono. Então é naturalque outros tenham bebido dessa água. Como os filmes não passaram, foimais fácil. Mas esses filmes dos anos 70, de que vocês estão falando, sóforam possíveis por causa dos clandestinos”. Três páginas antes umsubtubarão: “Amadorismo, irresponsabilidade e atitude beletrista nãodeveriam passar na porta da Embrafilme e nem das salas de projeção”.Incompetentes são os exemplos de concentração de verbas que não dãodinheiro nem prestígio; não é arte nem aqui nem em Lourenço Marques.Disseram que nossos filmes não têm “referência”. O que me leva a res-ponder: “Sem referência é a mãe daqueles pernetas querendo andar depatins”.

Quanto ao diálogo cinema-TV é preciso dose de paciência para exigirna marra nosso lugar ao sol, nem que seja de madrugada. Público há.Aguardem a definição governamental sobre as “novas” redes...

MINAS - CINEMA - GERALMINAS - CINEMA - GERALMINAS - CINEMA - GERALMINAS - CINEMA - GERALMINAS - CINEMA - GERAL 28

Violência da luz sobre seres e objetos animadospor uma respiração intensamente poética que é o

gravador Oswaldo Goeldi a merecer instantes de reflexão libertária porparte da nova geração convocada e confiscada por uma experiênciaexpressiva como a filmagem de um clima e uma atmosfera em um certo28 (Arquivo) Publicado no Correio Brasiliense, sexta-feira, 20 de novembro de 1981;pág. 20, editada por mim. Devemos ao jornalista oswaldiano Oliveira Bastos (que a ra-paziada apelidava “Oliveira Barthes”), o espaço cedido no jornal do qual era o editor-chefe. O título de Rogério inspirou o nome do Minas-Geral, jornal aperiódico livre, doqual fizemos, depois, várias edições na Ofina Goeldi. (Ilustr. - Detalhe de Um Sorrisopor Favor , desenho de Oswaldo Goeldi)

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momento especial como sempre ocorresob o esforço e o croquis de uma alma,separada em instante transitório erelacional, como soe acontecer com otraço altamente brasileiro universal epor dentro de um imigrante ocasi-onando arte da melhor qualidade empleno território brasileiro sob a ditaduraVargas. Críticos bisonhos ou recalcadosbalançavam a cabeça, relata o ator-crítico-assistente de direção RonaldoBrandão (que sabe caminhar cine-matograficamente perfeito o que é raronesse quintal da América ou semi-colonia cultural). A partir de umdepoimento do próprio Goeldi que con-serva até hoje a justeza e a precisão deJosé Sette com a Oficina em Belo Ho-rizonte a revelar e fixar uma jogada oportuna em todo sentido para a ex-pressão brasileira. Maior. Na discussão cinematográfica que se incorporaao discurso às vezes ágil ou aos trancos e barrancos de um encanto quese extasia de sua própria fluência expressiva e expressional, diante doreal, nota-se o empenho (e não o esforço, que não é o melhor de umrevolucionário ponto de vista) em arte - por acaso ou não, alguns jovensno mínimo sem pensar em outro resultado que a oportuníssima presençade Goeldi no fotograma animado pela informação do cinema modernode George Melies à Mario Peixoto passando por todos nós que con-tribuímos mais ou menos a um novo desnudamento do novo homem poracaso triste que é o Goeldi sem nada mais ou a menos a preservar senãoa constante presença da imobilidade que é a dança, código morse comovocê me diz: no que interessa, você e o leitor, todos nós sabemos que aHistória está a nosso favor.

Com Goeldi. Por Goeldi. Sobre Goeldi. Minas - Cinema - Geral.29

29 Rogério assina a montagem de Um Sorriso Por Favor - O Mundo Gráfico de Goeldi,curta-metragem (20 min.) rodado em 35mm, dirigido por José Sette e produzido pormim, numa realização da Oficina Goeldi, que o diretor dedicou a Julio Bressane. Ofilme ganhou os prêmios de “Melhor Filme” e “Melhor Montagem” do Festival de Brasíliade 1981 e foi escolhido entre os dez melhores curtas de todo o mundo para participar da

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Alô alô Rogério Sganzerla!

A Embrafilme e seus descalabrosA Embrafilme e seus descalabrosA Embrafilme e seus descalabrosA Embrafilme e seus descalabrosA Embrafilme e seus descalabros 30

A Empresa Brasileira de Filmes - Embrafilme, que prende muitafita à brasileira nos seus depósitos, gavetas e geladeiras, por definiçãopertence ao povo e ao governo que, por incrível que pareça, não sabemo que acontece dentro da autarquia. Não podendo cruzar os braços,comprometendo-se com a omissão pela omissão diante de graves ir-regularidades administrativas e culturais, resolvemos a partir de agorainiciar uma ampla campanha de esclarecimento público sobre os motivosque transformaram essa autarquia em um dos agentes de destruiçãosistemática do cinema brasileiro como um todo criativo e importante.

A Embra é um fracasso da distribuição à produção de energia, ex-cetuando o trabalho de recuperação e editoração de nossa memórianacional, que pode ser elogiado, mas não justifica o boicote sistemáticocontra os mais representativos autores de filmes de cinema brasileiros.Verbas vultosas, como as recentemente obtidas pela ação desinteressadade Lygia Fagundes Telles, à frente da Fundação Cinemateca Brasileira,são exclusivamente canalizadas para inexperientes apaniguados dosenhor Kalil, (ou Joseph K.), em detrimento de profissionais formados einformados sobre a prática direcional, neste País, sem respeito com seuscriadores.

PAULO EMÍLIOO fato de ter sido aluno de Paulo Emílio, nosso maior crítico, o

responsabiliza pelo que não tem feito por nosso Welles no Rio. Esse

30 (Arquivo) Publicado na Folha de São Paulo, sexta-feira, 19 de novembro de 1982.Os títulos deste texto e do próximo devem ter sido postos pela editoria do jornal e nãopelo autor.

mostra competitiva do Festival de Obenhausen, na Alemanha,em 1983, além de outrosprêmios nacionais importantes. Teve enorme repercussão, não só nos meios cinema-tográficos, mas também nos meios artísticos e no público em geral, tendo recebido inú-meros elogios da melhor crítica então atuante em níveis nacionais e internacionais.Essa bem sucedida produção nos aproximou de Rogério Sganzerla e Elyseu ViscontiCavalleiro, que assina a música do filme. O cineasta Sylvio Lanna assina a montagemde som. Os artistas plásticos Fernando Tavares e Oswaldo Medeiros assinam, respec-tivamente, o argumento e os cenários. Por causa do sucesso dessa produção ficamostodos proibidos de filmar, e eu só pude produzir outro filme quase vinte anos depois.

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elemento, que ocupa lugar preferivelmente destinado aos brasileiros,faz suas pequenas aventuras com a câmara, é candidato a diretor mastem boicotado os pólos de produção regional independente. Tambémnos tem dificultado em toda pesquisa sobre Welles no Brasil, não per-mitindo-nos a devida conclusão de uma pesquisa de meia década, emborasaiba (e exatamente por isso) que o cinema novo é fascinado pelo cine-ma de Welles. Compreendeu a importância do resgate cultural em tornodo cineasta no Brasil, mas está a fim de se apoderar do material rodadopor Welles, já “localizado” por ele...

Por que a Embra deve participar de Welles no Rio? Não existe noBrasil nenhuma outra entidade com tanta obrigação de formar e informarprofissionalmente a nova geração quanto a estatal, que desperdiça mi-lhões em futilidades sem nenhum retorno, abdicando de uma realizaçãojá em acetato com evasivas indecisas.

“EM REUNIÃO”Creiam-me, ontem à tarde Kalil continuava “em reunião”, sem que

ninguém respondesse a respeito: ele não diz nem sim nem não, muitopelo contrário; o que é muito pior e comprometedor do que uma afirmativaou negativa concreta. O que ele quer é ganhar tempo para embarcarpara Moçambique e Canadá, onde apresentará uma mostra incompletae facciosa de nosso cinema, com a devida presença de meia dúzia degatos pingados, pagos pelo Estado para viajar na primeira classe, onderiem da nossa cara (da tua também, eleitor) dizendo que o problema es-tético do País é que “quase ninguém viaja”. Nenhum filme independentede valor cultural, meu e de meus companheiros, foi incluído. Kalil nãoquer saber das lições de uma cultura de humanidade ensinadas pelomestre Paulo. Como Khoury ou Maluf, o que ele quer é mordomia, posarde “artista” e evidentemente puxar a brasa para a sua sardinha. Isso éprojeto cultural?

PELA TANGENTEComo superintendente, deveria se dignar a receber ou atender os

reclamos básicos da classe mas, muito mal cercado, sempre sai pelatangente. Por enquanto a omissão é a única “atividade” real dentro daautarquia. Lá todos ganham bem e se gabam de que “felizmente o Brasil

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não pode ser levado a sério, ainda bem que vivemos numa desorganizaçãosocial (palavras textuais de um assessor da direção geral) enquanto opovo sofrido, o contribuinte sacrificado e o espectador ultrajado pelacruel marcha dos acontecimentos (ou da mediocridade da desprogra-mação) não podem seguir enganados por alguns elitistas - carentes dehonestidade intelectual.

Daí o cinema velho, formolizado (de formol , mesmo), agravado comverbas milionárias desviadas por subtubarões que puseram de quatro onosso cinema, sem um controle efetivo por parte das autoridades res-ponsáveis. Todos nós temos a ver com essa malversação do erário público.Cada cinéfilo deve assumir uma posição positiva ou negativa a respeito,sem a omissão doentia de cinéfilos, destituídos de uma cultura de huma-nidade...

Enquanto Kalil fecha as gavetas, omite-se e parte para o Canadá,sem o mínimo sentido de justiça, participação e igualdade de opor-tunidade para todos, o cinema nacional vira uma indústria de débilmental (se não é, o cara fica), sem falar nos milhares de desempregadospassando fome com seus dependentes. Quem ri por último ri melhor,mas eu pergunto: até quando continuarão enganando o grande público,o contribuinte e os responsáveis do Ministério de Educação e Cultura?

-o-o-o-o-o-o-o-

Fazemos aqui um outro “intervalo” para uma digressão a respeitodeste texto e o que se segue a fim de melhor fixar a importância delesnos contexto histórico da nossa luta de resistência, e nela o papel pontade lança de Rogério Sganzerla, não só pela lucidez, inteligência e visão,mas também pela predisposição ao combate diante de uma realidadenegativa que já se vislumbrava ali, e não só no plano cultural. GilbertoVasconcellos, em seu recém lançado Brazil no Prego (Revan, 2004),identifica e recorta muito bem o fenômeno histórico a que me refiro.

Mas naquela briga, Rogério só tinha apoio nosso, os independentes,os que não tinham (e ainda não têm) voz. Só o que podíamos era torcerpara que se aliassem a ele alguns dos que lideraram movimentos em68, e ainda tinham força na mídia. Mas ninguém abriu o bico o que querdizer que... consentiam com o deplorável estado de coisas que as de-

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núncias de Rogério, todas gravíssimas, expunham com absoluta clareza.Ele tocou no ponto crucial do momento: a burocracia sempre teve

muita força na política cultural no Brasil (e como o próprio Rogérioassinalou em texto de 1970, desde “o liberal-reformismo institu-cionalizado a partir de 1922 por Mário de Andrade”), mas nunca foraexatamente o poder. Por cima dos burocratas sempre passaram presi-dentes e ministros de cultura e luz próprias, que não precisavam inter-mediários para lidar com artistas, como foram os casos de WashingtonLuis, Vargas, Juscelino, Jango e até mesmo de Jânio Quadros. Com aditadura militar, o poder seguiu a tendência castrense pós-2ª Guerra denão se importar com a cultura, mas deixaram-na permanecer numMinistério forte como o da Educação e Cultura (MEC) para o qual no-meavam ministros mais ou menos cultos, que nomeavam cabeças real-mente cultas como a de Aluísio Magalhães para a Secretaria de Culturado MEC, o qual, por sua vez, realizou obras tão importantíssimas quantoduradouras e que ainda não foram completamente destruídas, apesarde todo o esforço que se fez e ainda se faz para isso.

Essa briga de Rogério coincide com a época dos falecimentos deAluísio e Glauber, portanto, com a queda das últimas barreiras que aindase colocavam entre os burocratas e o poder. E tal ocupação ilegítima dopoder na política cultural consolidar-se-ia em 1985, com a criação doMinistério da Cultura, agora prestes a fazer 20 anos de trabalhos dedestruição dos instrumentos públicos de fomento e ação cultural autênticae de interesse nacional. Em 1994, Itamar Franco tentou reverter asituação nomeando Ministro da Cultura um dos maiores intelectuais daresistência e um dos mais importantes estudiosos do planeta, AntonioHouaiss, mas a poderosa burocracia que ali se con-solidara não precisoumais que oito meses para derrubá-lo, sabotando todos os projetos quetentou levar a cabo.

No momento em que Rogério expôs seu pensamento propondo “ini-ciar uma ampla campanha de esclarecimento público”, usando a Embra-filme e uma produção dele como mote, já não contava com a voz deGlauber mas com certeza esperava apoio de algumas vozes fortes parauma ação efetiva de resistência. Sem dúvida passaram-lhe na cabeçanomes como os de Júlio Bressane, Caetano Veloso e Gilberto Gil, entreos ex-companheiros sobreviventes das lidas de 68 que mais teriam forçapara o embate.

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Como nada disso aconteceu, Carlos Augusto Kalil, eleito pelamaestria do cineasta o personagem-símbolo da burocracia reinante (jáo embrião de “Amnésio” de O Signo do Caos), achou-se livre para cairem cima. Cinco dias depois, em 24/11/82, Kalil publicou sua respostana Folha de São Paulo... e acabou entregando muito mais do que foradenunciado por Rogério. Não vamos publicar a íntegra de textos deburocratas, é claro. São sempre feitos “em conjunto”, com a participaçãoagitada das bem pagas “assessorias”, sendo, portanto, destituídos deautoria, autoridade e autenticidade. Como não poderia deixar de ser, aresposta de Kalil e “equipe” é um texto eivado de argumentos buro-cráticos e, talvez por se verem sem antagonistas de peso a enfrentar,excederam-se nas doses. Começam por taxar a obra de Rogério de“veneração esotérica dos ídolos que cultua”, depois comentam a vindade Welles ao Brasil como “uma sequência inexplicável de incidentes eacidentes que culminaram na suspensão das filmagens” (inexplicável...!?é demais...), seguem dizendo que “tudo o que é associado a Orson Wellestem a marca da fantasia romântica, mãe da mitomania” e que “o episódiodeixou lembranças obscuras em nossa cinematografia que estão a merecerestudo desapaixonado à luz dos fatos” (ah! ah! ah!, estudo desapaixonadoà luz dos fatos ... vai ser bacharel assim lá na USP ou em Lourenço Mar-ques!). Mas ainda não chegamos no principal. O leitor tenha paciênciacom a extensão deste “intervalo”, porque é um momento importante dabiografia de Rogério e garante a ele, com a brilhante e bem calculadaprovocação, a glória de ter sido o primeiro a trazer à luz fatos até entãocuidadosamente escondidos desde o fim da 2ª Guerra por serem parteda estratégia desenvolvida por um “Pentágono” poderosíssimo e seustentáculos, do tipo Fundação Ford , etc, com o objetivo de nos tornarcolônia cultural em definitivo, e anexar o Brasil como slave de reservapara os interesses futuros da matriz. Como toda boa estratégia, guardadasob pesado sigilo e nunca antes revelada.31

31 Em 1974, estando no Peru, vi um documento de alto nível de sigilo que foi descobertoe capturado pelos sandinistas, na Nicarágua, quando invadiram a Embaixada dos EUAde lá. Era um longo e detalhado estudo feito pela Fundação Ford de avaliação e localizaçãodos focos de cultura popular e erudita da América Latina que precisavam ser destruídos,incluindo sugestões de como fazê-lo. Mais da metade do “trabalho” era dedicado aoBrasil e o que ocorreu com Rogério e veio à luz pela polêmica que levantou, estava ládescrito linha por linha sob um título que minha memória guardou mais ou menos comessa redação: “nomeação e colocação em postos chaves de agentes nacionais capazesde destruir instituições eficientes de preservação e fomento de valores culturais”.

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Com o subtítulo de “Descalabros”, a corja da Embrafilme acreditavaestar imputando a Rogério má versação de dinheiro público, por tercomprado aparelhos de televisão, geladeira, e feito consertos no seucarro com dinheiro da produção de um filme. Como bons burocratasapaixonados por “estudos desapaixonados à luz do fatos”, dão os númerosdos comprovantes das tais aquisições e compras de serviços que a audi-toria da Embrafilme “glosou” (não pude evitar este termo de burocratês).Mas é aí, leitor, que está o truque. De quem é a responsabilidade pelaadministração do dinheiro? De Rogério? Ora, Rogério era diretor decinema independente, nunca foi produtor comercial e nunca teve car-gos públicos comissionados. Por sua vez, a Embrafilme era a empresaestatal encarregada de produzir filmes de interesse nacional, antes dosinteresses comerciais. Sua função era a de produtora de cinema. Ondejá se viu uma produtora do porte da Embrafilme, que tinha poder defogo financeiro até para competir com a Warner ou a Paramount, entregara grana toda do filme para o diretor, impondo-lhe contratos leoninos emque nenhuma clásula pode ser discutida (“-senão o dinheiro não sai!”)e depois querer cercar o uso do dinheiro na prestação de contas? AWarner faz isto? A Paramount faz? A Globo entrega a grana para o diretorda novela e depois faz auditoria nas contas dele? Ora...

Nós não estamos falando de má versação de verbas públicas, nemde produção de cinema. Nós estamos falando de uma estratégia paraimpedir a produção de um determinado cinema, o cinema brasileiroautêntico, o verdadeiro. E tal estratégia passa pela entrega do poder edos meios de produção cultural a Amnésios incapazes de realizar umfotograma sequer a fim de que eles, ao invés de produzirem realmenteos filmes que teriam de ser produzidos, “repassem” verbas irrisórias àsvítimas escolhidas, sabidamente despreparadas e desequipadas para oexercício de tarefas administrativas, empresariais, contábeis, financeirase burocráticas. Estas jamais seriam as praias dos verdadeiros artistas ediretores de obras cinematográficas importantes, exigentes de profundae integral dedicação ao labor estudioso e criativo, e que tomam delesmuito mais tempo que qualquer regime de trabalho burocrático em“tempo integral” - além de não dar direito a férias, 13º salário, apo-sentadorias, planos de saúde e outras garantias trabalhistas que foramcriadas para beneficiar verdadeiros trabalhadores e hoje são usurpadaspelos burocratas - e burocratas “bacharéis” como bem dizia Oswald de

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Andrade - e só para eles.Qualquer produtor de cinema sabe como um filme pode não dar

certo: pouco dinheiro e má administração. A resposta de Kalil demonstracom clareza que eram as duas coisas que Embrafilme e seu burocratasimpunham aos bons cineastas quando se tratava de realizar filmes paraos quais foi criada para produzir, como era o caso dos de Rogério. Ouseja, em flagrante e confessada incúria, lesaram o país, a arte, o cinemae o artista, e ainda pretendiam inculpar o artista pelos crimes e fracassosque cometiam a serviço de interesses imperialistas e anti-nacionais.

Pessoas como Kalil, cujo perfil se associa aos de Gustavo Dahl,José Carlos Avellar, Luis Carlos Barreto, Marco Aurélio Marcondes, en-tre outros que pululam nos órgãos públicos, são demonstrações incon-testes desta estratégia. Os tempos revelaram que o objetivo dela é: tudopode mudar, desde que nada mude. Esses burocratas-bacharéis, colhidosnas fileiras de 68 entre os piores caractéres - já então liderados peloagente nacional Fernando Henrique Cardoso a serviço da Fundação Ford(ou Ford Foundation, como ele gosta de dizer), e sob o comando e a astu-ta vigilância ideológica da eminência pardacenta da USP, o professorsãoAntônio Cândido de Melo e Silva - foram rapidamente guindados aospostos-chaves que até hoje ocupam, desde os inícios dos anos 70.

Juntos destruíram e fizeram fracassar todas as iniciativas públicasde apoio à cultura e ao cinema, desde as que herdaram dos governosanteriores a 64 até as que foram criadas depois dele e até hoje. INC,CONCINE, Embrafilme e tudo o mais que se investiu dinheiro públicoestiveram nas mãos deles e fracassaram solenemente, sem retornarabsolutamente nada do que foi investido com pomposas inaugurações e“festas” de dotação de verbas, fartamente divulgadas pela mídia, parapseudo-benefício da cultura e do cinema nacionais. Nada vezes nada.Pois só este fora o propósito deles quando assumiram as direções destesórgãos: destruí-los. E sempre que se criam novos é para eles mesmosque se entregam os postos-chaves. Precisamente agora, foi para elesque criamos a recente Ancine, o CSC - Conselho Superior de Cinema(instituição que restaura os monárquicos “conselheiros”e seus dolcefar niente), e estamos a criar a Ancinav!!! Só o que permanece são suasempresas particulares, muito bem, obrigado, e o saldo cada vez maiselevado em suas contas bancárias particulares, todas muito bem,obrigadíssimo...

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Agem como se imunes a qualquer perigo. Depois que viram Rogériosozinho na resistência que tinha voz e influía, aí perderam todas as cau-telas, não precisavam delas - eram “os intocáveis”. São intocáveis. Kalil,por exemplo, assinou, na maior sem-cerimônia, contrato com um produtorseu apaniguado, conhecido nos meios por “Tatá”, para vender cópiasdo meu bem sucedido filme Um Sorriso Por Favor no exterior. Só fiqueisabendo dez anos depois, quando por acaso descobri no CTAV o contratoda extinta Embrafilme, assinado por Kalil e o picareta, vendendo, “porfora”(através da firma do capanga, mas com o aval da Embra), 14 cópiasdo meu filme (que foi feito com o meu dinheiro e nem um centavo sequerde ajuda do governo) para cinematecas européias. Tirei cópias destedocumento de estelionato, um crime contra meu patrimônio previsto emlei, e guardo-as. Posso botá-lo no xadrez, junto com o picareta, mas nãosou tão bobo assim, sou brasileiro. Sempre que posso, falo ou publico, eeles que me processem, afinal têm advogados e dinheiro para custas.Imaginem o que fizeram com Rogério, um talento delicado e sensívelcomo o dele é vítima fácil para trampeiros cobras criadas como aquelas.

Mas o texto de tréplica de Rogério, como sempre genial e conclusivo,não deixa margem para dúvidas e discussões, já resolvidas pela História,e vale mais do que toda a Embrafilme e o lixo que lá foi produzido naorgia permanente do burocratismo bacharelesco com o dinheiro públi-co. Vamos a ele. O “intervalo” acabou.

-o-o-o-o-o-o-o-

O cão ladra e a caravana da EmbrafilmeO cão ladra e a caravana da EmbrafilmeO cão ladra e a caravana da EmbrafilmeO cão ladra e a caravana da EmbrafilmeO cão ladra e a caravana da Embrafilmecontinuacontinuacontinuacontinuacontinua 32

Exatamente há um ano, vangloriava-se em seu sisudo gabinete odiretor de operações não-comerciais da Embra, Carlos Augusto Calil:“Podem morrer quantos Glauber houver que não recuaremos àsreivindicações!” Tal frase sintomática e inaceitável era o argumento de

32 Como já disse o título não deve ser de Rogério, mas da editoria do jornal. Infelizmentenosso recorte de jornal contendo este texto perdeu a data do cabeçalho. Foi publicadona Folha de São Paulo, na sequência da polêmica.

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um burocrata contra o carisma dos nossos autores de cinema. Enquantoos cães ladram e a caravana passa eu indago: quem é o autor desselatido? Fez alguma coisa pelo cinema? Fez filme? (Não me refiro a fita).

Agora, sua total baixeza e incompetência para o cargo que ocupaexpressam-se em acusações públicas contra a credibilidade moral eprofissional de quem contribuiu eficazmente para a realização de ummoderno cinema brasileiro de valor. Prêmios, pesquisas, críticas nãovalem nada? Quando um arrivista acusa um realizador está recriminandotoda a explorada classe cinematográfica, sobretudo o produtor inde-pendente, quem fez e resistiu em nosso cinema, dos ciclos regionais àatualidade.

Nós, autores audiovisuais, não queremos ser medidos por padrõesarbitrários de má distribuição de verba. Tal funcionário deveria ser punidopor leviandades cometidas contra profissionais que não são virtuosistasnem masoquistas, ao contrário dos que vêm sendo acumulativamentecumulados de verbas indecentes.

O padrão justo do cinema brasileiro é o orçamento médio, sem de-sequilíbrios. Fora disso é crime cultural que a prática vem confirmandocomo repetição de erros “ad nauseum”. Seu desserviço à causa do cine-ma deverá, a partir de agora, se revestir da dignidade de demitir-se oquanto antes de cargos que não merece por méritos próprios ou serviçosprestados. Milhões dispendidos em experimentos dispensáveis, da produ-ção à exibição e exportação sem retorno, devem servir como esclare-cimento público da injustiça reinante naquela autarquia. Quando umburocrata nos acusa, está desfazendo de profissionais que não têm acessoà grande imprensa. Por enquanto, está lá (ainda) porque existiu um tra-balho (em todo sentido anterior) dos produtores independentes, que coma sua dedicação e coragem construíram nosso cinema brasileiro de valor.

Não tenho nada a esconder de um canil de cobras mandadas, muitomenos da hierarquia vertical descendente, centralizada no Planalto, quedeve continuar desconhecendo tais injustiças típicas de uma lei do cão.Inúmeros rombos e roubos - ao invés de frestas - também deveriam ficarao alcance do conhecimento público para se promover, finalmente, umalimpeza moral na área. Apontando frestas e fiscalizando unilateralmentedetalhes, sem um exame imparcial da pesquisa producional, insiste nojogo duplo e na intimidação moral de quem nada tem a ver com os jogosbaixos daqueles gabinetes insustentáveis. Chega de malufismo fílmico

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(mediocridade).A Embrafilme deve ser defendida como conquista do povo e do

governo brasileiros, mas isso não significa apoiar os crimes culturaisperpetrados por uma meia dúzia de incompetentes. Quem não temcredibilidade alguma é a mediocridade dominante.

Minha luta há quatro anos na Folha tem sido a de revalorizar o pro-dutor independente e seus criadores mais impressionantes, como Glau-ber, Cavalcanti e Lima Barreto. Meu maior “pecado” é o de querertrabalhar para o nosso cinema; virtude essa que deveria ser exercida naprática como direito e obrigação “garantida pela Constituição Brasileira”.

Cara & AlmaCara & AlmaCara & AlmaCara & AlmaCara & Alma 33

Manifesto de Rogério Sganzerla

De A a Ua) Vejo O ABISMO como uma possibilidade de avançar terreno

inexplorado desenvolvendo, sobretudo, a linguagem de um cinema urba-no. É um trailer sobre uma futura obra não só no cinema mas, princi-palmente, na música. Com música temos um processo sintético muitomais eficaz, mais rápido e evoluído do que a veiculação conceitual daspalavras. Uma música pode ajudar a resolver os problemas do povobrasileiro muito mais do que 10 livros.

b) Ele é conseqüência da visão de tudo como um todo; da constataçãode que todas as coisas são uma coisa só, sob diversos estágios e aparentesdiferenças. Tem um sentido cósmico. É também a valorização da pai-sagem; uma tentativa de filmar com ritmo nosso, tentar captar umatopografia, como filmar uma praia brasileira, dar um tratamento à pai-sagem. O Brasil tem uma vastidão topográfica encontrada também namúsica de Villa-Lobos e João Gilberto. Politicamente, é importante queo Brasil conheça a si mesmo. O ABISMO é uma oportunidade de auto-conhecimento não só do cinema mas do país.

c) Jimi Hendrix é o grande sinal do filme. Até então o cinema

33 Escrito em 1984.

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brasileiro tinha se voltado para sua realidade imediata. O ABISMO éuma interiorização; um mergulho no inconsciente e uma valorizaçãoastral. A verdade do filme é que uma pessoa assim não aparece poracaso. Hendrix não é só um genial técnico, arranjador, guitarrista, can-tor e compositor. É um grande pensador. Ele consegue que esta formaesteja a serviço de uma idéia. A obra de arte é sempre regional, nacional,internacional, universal. O problema do homem não está nas estrelas.Está no próprio homem, sua terra, sua posse, na sua mente e liberdade.E não chegaremos a essa liberdade – que é o tema fundamental aqualquer tipo de experimentação de obra de arte – sem passarmos pelopensamento de Jimi Hendrix. Por que? Porque ele fala sobre o espelhoda mente como espelho de uma realidade. Uma transformação interiordeve preceder essa transformação inevitável e necessária. Você tem quepassar pelo desconhecido. Hendrix é um pensador tão importante quantoGuevara.

d) O ABISMO tem vários níveis de leitura: é uma estória banal, umclichê. É também um ensaio, uma reflexão sobre a relação da poesiacom certas ciências e a música. Possui também um nível esotérico quea literatura usa e abusa e achei que o cinema também poderia. Achoque ele é mais do que atual. É extremamente cinematográfico e precoce.Não é culturalista nem analítico. Talvez nesse ponto ele se ressinta deser mais explicativo e mais acessível ao grande público como era minhaintenção inicial nas primeiras variantes do roteiro. É uma sugestão decomo também transformar o cinema brasileiro para melhor.

e) O fato dele estar entrando agora em 84 na Cândido Mendes meparece um ótimo convite à reflexão e ao mesmo tempo não tentar impornada. Todas essas teses que em 78 eram fecundantes e oportunas, hoje,são prementes. A idéia do filme é que se precisa fazer uma melhordistribuição de justiça, de riqueza, de bens e todo tipo de benfeitorias.E para isso é preciso relacionar a arte moderna com a arte primitiva. Emais: Para as transformações de ordem coletiva é preciso também haverum grande mergulho no inconsciente coletivo. Resolver o problema in-dividual para se chegar ao coletivo e conciliar o eu e o nós, a revolta e arevolução. Nesse sentido o filme contém, de uma forma ainda sintética,um ideário.

f) É um filme que levanta o astral. Não tem a concessão fácil davulgaridade, de apelação, do diálogo rasteiro ou efeito pelo efeito. Sem

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nenhuma voracidade. É um filme que procura generosamente umproposta de unificação de todos os mundos possíveis. Tudo está emmovimento. Ele se propõe a ser movimento e ascendente.

g) Alguns rolos acho extremamente bem sucedidos em densidade eluminosidade. Gosto sobretudo da cinegrafia do filme, da grafia, do traço,da respiração. Além disso tem um rolo inteiro com o último concerto deJimi Hendrix que me parece um material altamente relevante de grandeimpacto histórico.

h) o fato de não ser entendido não significa que não seja bom. Éuma questão de entendimento. Existe muito material que a gente ouve enão gosta. E depois de duas, três vezes acaba se apaixonando. Isso de-pende de cada espectador. É um filme feito para não encher as pessoas,não incomodar. Mas também não é um filme explicitado.

i) O ABISMO pode ser compreensível para uns e para outros ninguémentende nada. É que o filme não é analítico, está ligado à tentativa deser sintético. Foi uma escolha. A escolha da síntese. Mas dizem que ocinema deve ser sintético, simples. Gostaria que fosse mais simples,mais forte. É bom lembrar que o cinema é também um ponto de partida,não é só de chegada. Não se deve somente endeusá-lo mas tambémcriticá-lo. Quem gosta de cinema vai se interessar pela maneira comose apresenta esta noção do que é cinema.

j) O tema permanente em meu trabalho? A dificuldade da gente sairdo individual ao coletivo e uma tentativa de promover um modernismoestético, uma coisa bárbara e nossa, seguir a fórmula oswaldiana e noelinadas coisas nossas e ao mesmo tempo assimilar uma cultura cinema-tográfica do cinema do mundo inteiro, para tentar descobrir o coração ea alma das ruas na cidade.

l) Quero fazer também filmes populares. Todo tipo de trabalho. Filmespra ganhar dinheiro, prêmios, criar condições pra fazer outros filmes.Filmes pra público e também filmes que consigam influenciar a produção,que criem uma proposta, uma estética, uma hipótese diferente. Se todasas produções feitas no país tivessem também uma informação de comotratar qualquer tipo de gênero, o cinema brasileiro poderia ser atualizado.Todos os gêneros poderiam ser viáveis se houver no cinema brasileiroessa coisa fundamental que é o cinema. Por isso eu me sinto satisfeitocom O ABISMO.

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Alô alô Rogério Sganzerla!

m) O problema do cinema continua sendo a distribuição. Se, porlei, os exibidores, entidades privadas, são obrigados a veicular produtosbrasileiros, muito mais a televisão que é propriedade do Governo asse-gurada a alguns concessionários. É preciso uma reserva de mercado,como existe na informática. Ou pelo menos a existência de co-produçãode cinema e tv. A televisão vive do cinema. A não ser nas novelas quandoela copia mesmo o cinema nacional. Fora isso são enlatados estrangeiros.A reserva é necessária até mesmo por uma questão de evasão de divisas.Se eles exibem tantos abacaxis, nós também sabemos fazer abacaxis!

n) É claro que os problemas de classe e veiculação são prementes.Mas porque não se falar também de cinema? Pelo menos pra gente nãoincorrer nos mesmos erros. Por que não se discutir a formação de umaestética? O Nelson, na França, disse que precisamos salvar o Cinema.O Glauber já falava em levantar esse barco, reunificar a tribo, criarcondições pra levantar o astral do cinema brasileiro. É preciso muitaágua e sabão e esfregação. Pelo menos uma discussão interna para depoischegar a um debate público. Não precisamos repetir os erros de Holly-wood há 40 anos, ou da Itália, no cinema fascista, ou outros equívocosde distorção e gigantismo históricos.

o) A vitória em Cannes confirma essa possibilidade tão desejada defazermos um cinema criativo. É muito bom torcer pelos outros. Comisso você faz bem pra você e também pros outros. Fazer desse inferno,um paraíso. Tentar realizar uma democracia multipartidária no cinema.Tem lugar pra todo mundo; pro abacaxi e pra obra-prima. Porque só umou outro?

p) Vanguarda, centro e retaguarda são uma coisa só. É preciso umafrente ampla contra a ignorância, o obscurantismo, a prepotência e opreconceito. Não podemos ter intolerância no vídeo, nos palcos, nastelas e nas redações contra o filme brasileiro de valor histórico, culturalou mesmo de interesse comercial.

q) O pessoal de cinema está dormindo com a questão dos inde-pendentes. No vídeo e no curta-metragem já está funcionando com grandeeficácia. Existem condições objetivas para valorização do independentena medida em que estamos vivendo o fim de uma tecnocracia. O auto-ritarismo quer que as pessoas fiquem dispersas. É preciso uma uni-ficação.

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r) Os filmes mais sérios e importantes da década de 70 são aquelestotalmente desacreditados na época em que foram rodados. São os que,hoje, dão show não só de pensamento político e estético, procurandovalorizar o que é nosso, mas também de estrutura de linguagem. Sãofilmes realizados ao nível do provável não das certezas. De repente umfilme desses tem o poder de reciclar novos estímulos de informaçãomais que um computador. O computador é programado, esses filmesprogramam a si mesmos; se fazem por si e se transformam. Vão do bomao ruim como a arte brasileira em geral, vai de uma extrema timidez auma pretensão revolucionária; vai do péssimo ao ótimo com a maiortranqüilidade. Essa é nossa originalidade. Acho que esses filmes teriamrespostas em festivais internacionais porque há elaboração e pesquisa.

s) Como diz o Nelson, a gente tem que salvar o Cinema brasileiro etambém essas dissidências estéticas somando todos os erros e acertos.Se em 60 havia idéias, em 70 encontramos o centralismo. De 80 paracá, o bom mesmo, a coisa mais moderna, são os filmes antigos. Os mo-dernos são extremamente velhos com exceções honrosas como o filmedo Nelson.

t) O grande mestre será sempre João Gilberto. De instigante hojeacho o Arrigo Barnabé porque leu, estudou, é uma pessoa séria. Ah,mas no palco ele berra, grita, faz o diabo, toda uma encenação comolocutores esportivos ou narradores policialescos. Mas aquilo é uma críticaa uma realidade; não é uma sujeição a fórmulas e modismos. Como elemesmo diz, a gente tem muito a aprender. Uma análise mais profundada cultura brasileira tem que passar primeiro pela análise estética docinema brasileiro.

u) Eu faço filmes pra poder cumprir uma trajetória, uma missão;uma prioridade fundamental e uma questão de oxigênio. Não me diriaum religioso mas também não um ateu convencional. Não sou tão negativoa ponto de duvidar das aparências porque não vejo. Eu desconfio. IssoO ABISMO dá: a possibilidade de que se você não entender o filme,pelo menos desconfia de que lá tem uma grande informação de que avida é um negócio maravilhoso que vale a pena ser vivido e temos quecultivá-la, valorizá-la sobretudo com as artes; porque elas são o extremorequinte da vida e podem também dar uma noção de justiça tão impor-tante nos dias de hoje.

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Uma videologia da novela, a doença daUma videologia da novela, a doença daUma videologia da novela, a doença daUma videologia da novela, a doença daUma videologia da novela, a doença danaçãonaçãonaçãonaçãonação 34

Não quero convencer ninguém mas, se me perguntarem porque nãohá eleições diretas para Presidência há mais de um quarto de século euresponderei (acreditem se quiser) que há pouco menos do que isso oimaginário nacional foi ocupado por uma manipulação de naturezaescatológica, muito mais do que escapismo ou válvula de escape, éalienação 100% embrutecedora, chamada novela. Não é arte, diga-sede passagem, aqui não vai nenhum preconceito contra uma fórmula(não há forma) de dominação mental de 120 milhões de humilhadospela gratuidade descartável do universo baixo entretenimento; a fórmuladeriva do folhetim, um gênero igualmente periódico, alimentador desonhos e pesadelos descartáveis, mas com uma incomparável qualidadeartística e estilística que a telenovela, infelizmente, não tem... Se tivessealguma qualidade de informação artística ou cultural, com seu quartode século de insistência redundante, já teria apresentado. Afora o com-portamento (freqüentemente falso, deformado e classista) a novela nadatem a ver com arte ou cultura. Já o folhetim, seu antecessor em letra deforma, ao contrário, muito tem a ver com a melhor literatura em certoscasos especiais (Machado de Assis escreveu Helena e Yayá Garciainicialmente para jornal, tendo sido tipógrafo; igualmente Lima Barretopublicou folhetins etc., entre nós).

No exterior, o teledrama da televisão novayorquina dos anos cin-qüenta influenciou todo o melhor cinema polêmico da época: The LeftHand, estréia de Arthur Penn na direção, proveio de um sucesso ele-trônico, pontualmente dividido em capítulos que por sua vez deter-minariam a fórmula fragmentária de um novo tipo de cinema; DozeHomens e Uma Sentença também proveio de um texto escrito espe-cialmente para a televisão, revelador de inúmeros talentos como PaddyChaiefsky de Despedida de Solteiro etc.

Claro, lá fora é diferente. Mas, aqui o que surgiu, além de ibope eexploração sentimental de uma platéia inculta e analfabeta?

De minha parte, lembro bem das vexaminosas correrias em torno deAlbertinho Limonta e sua troupe por ocasião da vidiotização lacrimejante34 Publicado na Revista Cine Imaginário, de maio de 1988.

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da colônia via O Direito de Nascer. Foi o início da “nossa” revoluçãocubana: a cretinização de um veículo e de uma sociedade em nome daexploração comercial. Pouco tempo depois surgia também outro vexamehistórico: a passeata das mal-amadas, manipuladas para derrubar umregime democrático, com a desculpa de conter dois itens em que o re-gime implantado iria bater todos os recordes de agressão à opiniãopública: a corrupção e a inflação.

A televisão espontânea morreu quando conheceu o videotape,perdendo o sabor inventivo de espontânea inquietação – passou a ser“cozinhada” nas mesas de edição. Com o predomínio da novela, aindapopularesca, virou um prato feito para débeis mentais, devido à pretensãoprovinciana de seus detentores. No início da década de setenta, salva-vam-se os programas de humor e os instantes de liberdade de informação,devido a competência de seus apresentadores. No entanto, as novelasnão eram boas, mas pelo menos não eram tão assépticas, modernosas emedíocres como hoje em dia.

Não há forma mas fórmulas: ti-ti-ti, fuchico, alcoviteiros. E só...jogam conversa fora.

Atualmente, além de só jogar conversa fora não há conflito na novela.O apelo ao plot tenta justificar o ti-ti-ti permanente. Na verdade, ospersonagens (às vezes delineados por autores sensíveis e atores talen-tosos) não lutam ou discutem entre si; freqüentemente falam mal de umoutro personagem fora de cena (geralmente acabou de sair). Ora, falarmal da vida alheia com desculpa da ausência não sustenta dramaturgiae não há ninguém inteligente que agüente essa apelação, além do maisum péssimo exemplo para a fragilidade mimética das crianças (eistambém uma das razões da apoplexia, afonia e inexpressiva vacilaçãode milhões de débeis mentais, vítimas inconscientes da lavagem cere-bral eletrônica, um veículo novo mas totalmente dominado e falido emsua vocação de educação ou informação progressiva, um crônico mauexemplo para as novas gerações e aqueles que ainda não nasceram masjá estão sendo roubados pelo sistema de babilônia35 ). Desse jeito o veí-culo mais novo tornou-se o mais velho: uma torneira aberta, inferior aorádio (que exigia certa concentração)... Não sou contra as pessoas quefazem a televisão ser tão mesquinha e devagar mas contra os preconceitos

35 Do poema O Escaravelho de Ouro, de Oswald de Andrade, escrito em 1947: “Venceuo Sistema de Babilônia / E o garção de costeleta”.

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impostos por uma minoria que não soube compreender o veículo. Imitardemais a televisão americana só poderia dar em cópia subserviente,colonialismo provinciano ou macaquismo de auditório e, sobretudo, emanacoluto e deformação pleonástica. Quanto ao ganha-pão de atores etécnicos, tudo bem. Se bem que a deformação aí seja igualmente into-lerável, considerando-se que por ano despejam setecentos enlatadosestrangeiros e uma dezena de nacionais (os piores nacionais, típicosdesse modelo de ocupação da moda pelo medo ou vice-versa, sempreexcluindo a inventiva criatividade de nosso cinema do presente ou dopassado, do curta e do longa, do bom e não só do ruim teor transmitidoeletronicamente). Não falemos dessa área mas poderíamos falar. Adeformação formulizadora é a mesma: novela, cinemão, enlatado, tudo“telefone-branco”... E o que tem a ver isso com o fracasso das diretasou a grande ausência de uma verdadeira democracia representativa entrenós?

Tem tudo a ver. Só um burro, ou um vidiota não percebe. Por quê?A cada dia e noite milhões de brasileiros são ludibriados pela gra-

tuidade ostensiva de cenários alheios à encenação, em que a desejávelação interior é substituída pela multiplicação de coadjuvantes que sóservem para encher lingüiça ou – suprema descoberta da “modernidade”mais irritante... – o império pouco criativo e previsível do merchandis-ing abusivo. Da arte moderna, os clichês; dos efeitos cinematográficos,os defeitos televisivos; da liberação de costumes, a coisificação mer-cadológica. A fórmula antimágica da novela brasileira só retira eexpropria, confisca o público, oprimido pelo custo de vida, sem pãonem circo (mal servido pelo cinema, traído pelo futebol, bombardeadopelo rádio) não tem muitas opções senão suportar o discurso, resistindoà saturação pelo esquecimento de sua criatividade, negada há decadasnas urnas, câmeras e microfones.

O povo brasileiro, tradicionalmente espontâneo e inventivo, seesquece de sua famosa intuição, bossa, sexto sentido através do quê? Anovela é um dos mais destacados capítulos da história do desesperoalienado de um povo humilhado pela infeliz marcha dos acontecimentos...

Bate-bocas e têtes a tete (reuniões) que só levam à galinhagem purae simples.

Resultado: a classe média sobrevive sob a síndrome da passarela.

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A população não quer ver, nem ouvir com olhos e ouvidos livres36 ,mas tão somente ser vista, aparecer, fazer fama para deitar na cama dosubsucesso fácil, talvez virar sub-super-star de uma hora para outra,trair sua condição colonial, enganando aos outros e, pior de tudo, a simesmo. O brasileiro não quer ver mas ser visto. Nem escolher mas serescolhido pelo sistema babilônico...

Macaquear é preciso... Estão aí os videotismos, cacoetes emaneirismos.

Passar a perna, levar vantagem, tirar proveito próprio explicam maisa nação ocupada pela má-consciência do que o complexo de culpa e aculpabilidade colonial de autores (às vezes competentes, em luta contrao aparelho repressivo no interior da produção/distribuição do sub-produtopasteurizado, censura igualmente primária).

O videotismo é total. Isso sem falar no provincianismo, redundância,ausência de expressão e dicção, mediocrização do ser humano, creti-nização da opinião pública, desacerto dos cortes entre uma seqüência eoutra, imposição de bandas sonoras importadas de péssima qualidade,mitificação da mediocridade, abuso de autoridade e desrespeito aopróximo, nível ginasiano da representação...

Não falaremos dos comerciais porque aí o panorama é ainda maisdesolador.

A novela só não é pior que o enlatado, igualmente gratuito e agressivoem suas tomadas externas. Pelo menos, um atributo: ensinou o públicobrasileiro a ouvir a ação, devido às qualidades do som de freqüênciamodulada que o cinema não apresentou. Afora isso suas qualidadesprovêm exclusivamente do cinema. Mas e o nosso mal-tratado cinemanacional – do qual o veículo seguiu o exemplo, sem apresentar a espon-tânea inquietação, sobretudo dos anos sessenta – onde fica? Se vocêpensar que um clássico como O Pagador de Promessas, Palma de Ouroem Cannes, premiado em S. Francisco, só foi projetado na televisãobrasileira com uma década e meia de atraso, dá vontade de esquecer oassunto que deveria estar na pauta da, mísera ou não, necessáriaConstituição feita para salvaguardar direitos e obrigações, sobretudonas questões de trabalho e destinação da informação nacional. Ora,tudo isso é ficção; o máximo que fazem é uma novela sobre o assunto e36 “Ver com olhos livres”, aforismo do Manifesto da Poesia Pau-Brasil, de Oswald deAndrade, escrito em 1924.

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durma-se com um barulho destes.E no entanto o cinema brasileiro faz noventa anos em 1988.Não se esqueçam que o velho e bom Irineu Marinho, além de corredor

de automóveis, foi cineasta: o que acontecerá com documentos da vidamoderna como Limite, O Canto da Saudade, O Canto do Mar, Agulha noPalheiro, O Grande Momento, Absolutamente Certo, O Rei do Samba,O Bandido da Luz Vermelha, Blá-Blá-Blá e muitos outros (existem cópiase o público está cada vez mais carente de verdadeira informação filmo-lógica)?

Que tal Viagem ao Fim do Mundo, magnífico trabalho de 1967assinado por Fernando Campos? Deveria estar incluído entre os filmesque precederam e assumiram o movimento de 1968.

O Anjo Nasceu é de 1969 mas representa um tipo de revelação quetodos poderiam, pelo menos, tomar conhecimento e vibrar com suatextura...

Biscoito fino37 na prateleira é uma raridade generalizada no desertode idéias chamado mercado.

Da produção à veiculação, talvez a única possibilidade de afirmaçãoda nacionalidade, permitida pelo atual sistema babilônico, seja a novelaque, assim, apesar de feita por pessoal competente, com autores ágeis eatrizes de expressão não é, nunca será arte. O folhetim jornalísticoaproximava-se do romance e tinha uma vida própria. A novela só copia,dilui, deforma e dificulta a relação do homem brasileiro com seu cons-ciente e inconsciente. A perda de tempo é imensa, se contarmos osperíodos de tempo em que a idiotia se transforma em convencionalidade.Ela existe para fazer boi dormir, enganar os otários e desviar a atençãodo assunto principal: acesso ao próprio mercado por parte de outrasartes industriais.

Em nenhum país do mundo a televisão é tão centralizadora e renitenteem relação ao veículo cinematográfico.

As televisões oficiais são menos cumpridoras do seu dever e direitode veicular o filme brasileiro de livre exportação poética.

Enlatado por enlatado, projetem-se as antigas chanchadas, porexemplo, aliás muito mais modernas do que os pretensos modernosos.37 “A massa há de provar o biscoito fino que eu fabrico”, frase famosa de Oswald deAndrade.

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Bossa nossaBossa nossaBossa nossaBossa nossaBossa nossa 38

Assim como o cinematógrafo fora no início doséculo do progresso, aconteceu o automóvel na pri-meira década, o avião na seguinte, o rádio na terceira– e a guerra na quarta . De lá pra cá assistimos aobanquete funesto deste século: satélite artificial eguerra fria na quinta, viagem à lua e guerra química na sexta, buro-cratização do ser humano na sexta e provável liberação do ego no presentedecênio para quem sabe ver e tem olhos livres.

Noel Rosa como Villa-Lobos compôs especialmente para a tela denosso primitivo cinema falado sob direção de Humberto Mauro – res-pectivamente Cidade Mulher e Descobrimento do Brasil. E a bem dizerNoel começou no cinema falado, grande culpado da transformação (nãotem tradução) pois posou nele pela primeira vez diante de uma câmerasincronizada em 1929, já sonorizada quando o precursor e laboratoristaPaulo Benedetti registrou quatro números do “bando de Tangarás”,vestidos de sertanejos em seu estúdio, à rua Tavares Bastos, 117, Catete.Inclusive a embolada Minha Viola, uma de suas primeiras composições,registra Almirante – que participou da experiência – na sua excelentebiografia (No tempo de Noel Rosa) sobre quem, “em sua modéstia,falando a linguagem sincera dos sambas, fez com que o bairro de VilaIsabel se agigantasse sobre os demais do Rio de Janeiro como a pedramais preciosa de uma jóia rara”.

Almirante conta também que o conheceu naquele bairro em 1923,vestido com uniforme do Ginásio de São Bento, tentando vender por 80mil réis um projetor infantil de vistas animadas do bicho-da seda. Onegócio não se realizou mas serviu como apresentação de um meninotímido, com defeito no maxilar, que sofria com o apelido odioso de“Queixinho”... Outro integrante do “bando de Tangarás”, João de Barros– filho do dono da fabrica Confiança Industrial de Vila Isabel – escreveucom Alberto Ribeiro o argumento de nossos primeiros longa-metragenssonoros – Alô Alô Brasil e Alô Alô Carnaval – e muitos filmusicaiscarnavalescos. Palpite Infeliz, a famosa réplica ao sambista WilsonBatista – foi composto especialmente para Araci de Almeida em Alô

38 Publicado na Folha de São Paulo, quinta-feira, 2 de junho de 1988

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Alô Carnaval; Noel chegou a propor um cenário pré-neo-realista: Aracideveria cantar lavando a roupa e estendendo-a num varal. FranciscoAlves interveio e após longa discussão retirou-se com Araci do palco defilmagem da Cinédia, em são Cristóvão, que Noel, por sinal, freqüentava.Desanimado, chamou uma das irmãs pagãs, que não conseguiu cantarcomo ele desejava. E assim, apesar de anunciado, Palpite Infeliz jamaisfoi filmado, talvez porque Noel estivesse adiantado uma década emrelação ao mundanismo dos anos trinta, como sempre acertando namosca, antecedendo-se à generosa vertente popular de Favela dos MeusAmores, João Ninguém, Moleque Tião e It’s all True de Orson Wellescom argumento de Herivelto Martins, que também extraía a poesia docotidiano: a cena do varal incluía a afinação de cento e vinte tamborinsde pele de gato no final da tarde de um exterior em contra-luz naMangueira com Ave Maria no Morro e Batuque no Morro...) De Alô, AlôCarnaval constam Joel e Gaúcho em Pierrot Apaixonado (parceria comHeitor dos Prazeres) e Não Resta a Menor Duvida com o Bando da Lua.No ano seguinte Noel compõe a canção-título do filme Cidade Mulherque lançou diante das câmeras o “cantor das multidões”, gogó de ouroe excepcional intérprete Orlando Silva, e mais cinco números musicaiscuja filmagem fez questão de supervisionar (Dama do Cabaré, MorenaSereia, Na Bahia, Uma Noite à Beira-Mar, Tarzan, o Filho do Alfaiate;este último, samba em parceria com Vadico, foi interpretado porAlmirante). Noel fazia questão de estar presente às filmagens no Cas-sino Beira-Mar, situado no passeio público, onde esperava até altas horasda noite pela bailarina Ceci – Juraci Correia de Moraes –, seu grande ederradeiro amor, que trabalhava num show da boite “Caverna”, no sótãodo mesmo edifício, e que serviu-lhe de inspiração para o samba A Damado Cabaré. Hoje professora particular em Vila Kennedy, Ceci confessaque Noel sofria por ser ciumento, era bom de cama e uma vez, juntos,destruíram um bar inteiro. Por sua causa compôs uma serie de ideo-gramas: “O maior castigo que eu te dou / é não te bater / pois sei quegostas de apanhar”, além de Pra Que Mentir?, Só Pode Ser Você, AMelhor do Planeta, Último Desejo, seu maior sucesso. Ceci lembra queNoel Rosa definia suas musicas como “bossa nova” (coisas nossas, nossasbases) confirmando, como sempre, estar nitidamente adiantado emrelação à época . Incompreendido, mal aproveitado pela inteligêncialocal, no final de sua vida recusava-se terminantemente a posar parauma câmera cinematográfica. Seis meses antes de morrer, procurou Ceci

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para comemorar seu último aniversário, dizendo que não sabia se aocasião iria se repetir. Depois de uma ceia regada a champagne, forama um hotel, mas Noel absteve-se do sexo por estar tuberculoso. Demadrugada, surpreende-o sentado à beira da cama, desconsolado e aflitocomo ninguém o vira – sabia sofrer –, possivelmente refletindo sobreseus dias contados na terra. Foi uma visão aterradora do sofrimentocontido á base de estoicismo grego. Dias depois um primo do composi-tor jogou-lhe um copo de cerveja no rosto, culpando-a pela desgraçasem remédio. Quando Noel soube, veio com febre pedir-lhe desculpapelo gesto impensado de um parente. Foi a última vez que o viu comvida. O enterro apoteótico foi acompanhado à distância, escondida damultidão por um xale escuro a dama do cabaré que o fez sofrer em vidae gozar na arte o reconhecimento da imortalidade.

Verso final de Seu riso de criança, gravado em 1935 por sua intér-prete predileta, Aracy de Almeida: “Eu nascendo pobre e feio / ia sertriste o meu fim / Mas crescendo a bossa, veio / Deus ter pena de mim”.

A luz do bandidoA luz do bandidoA luz do bandidoA luz do bandidoA luz do bandido 39

Que tipo de intervenção estética você tinha em mira quando fez OBandido da Luz Vermelha na virada dos anos 60?

- Não se trata de intervenção. Medicina homeopática não supõe aexistência do bisturi. Não se trata de medicina alopática. Trata-se deuma operação radical. O que estava em jogo era uma concepção radicalde cinema.

Em que sentido?- Eu queria um filme que não tivesse nada a ver com sociologia,

psicologia e outras convenções da época. Eu queria um personagemque unisse as cenas. Na época, São Paulo não tinha a violência que temhoje. São Paulo pode ostentar, hoje, o título de cidade mais violenta daAmérica do Sul. Em média, dez pessoas são assassinadas por dia em

39 Entrevista ao jornalista Severino Francisco publicada no Jornal de Brasília, quarta-feira, 1º de agosto de 1990

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Alô alô Rogério Sganzerla!

São Paulo, quatrocentos carros são roubados e nem se fala no númerode assaltos com a cumplicidade ou a omissão da polícia. A morte podeestar em cada esquina. O meu trabalho se propunha a ser uma comédiacriminal. Era o primeiro esforço para se fazer um retrato falado da grandemetrópole. É quase trágico este faroeste do Terceiro Mundo. Depoispensamos em fazer o filme através de um narrador esportivo. O críticoFrancisco de Almeida Salles chamou O Bandido da Luz Vermelha deópera-bufa sobre a cidade de São Paulo.

Existe uma história ou uma lenda de que o cinema produzido porRogério Sganzerla e por Júlio Bressane sempre resultou em fracasso depúblico. Em que medida a história comercial do Bandido desmente essamitologia?

- O Bandido da Luz Vermelha foi lançado em 42 salas de cinemaem São Paulo. É um filme que se pagou em uma semana. Esta lenda foiespalhada pelo pessoal do cinemão. A Mulher de Todos deu o dobro darenda de O Bandido da Luz Vermelha. Copacabana Mon Amour e SemEssa Aranha não conseguiram certificado de boa qualidade. Uma burrice.Eram filmes feitos com a câmera na mão. Mas quando estes filmes foramexibidos em Londres e Nova York despertaram grande interesse. Ouseja: não fizeram sucesso porque não foram lançados. Ou faz a coisadireito ou não faz. Chegaram a esconder seis mil cartazes do filme. Masmesmo assim o Bandido se pagou. Só os filmes do Mazzaropi conseguirammais público do que O Bandido da Luz Vermelha. O meu cinema épopular. Não é elitista, decadente ou pedante. Tem apelo popular e temalgo fundamental que é o ritmo. Nossa aristocracia cabocla não aprendeua rimar. Cinema não se aprende na escola.

Como o bandido da luz vermelha entrou no filme?- Eu tinha acabado de ler um livro sobre filmes que trabalham com

personagens reais. Cinema não é arte individual. É algo que tem defuncionar entre as massas. Nesta época, o bandido da luz vermelhaestava em plena ação. Os jornais diziam que ele entrava nas casas as-sobiando músicas do Roberto Carlos. Mas evidentemente o personagemera um mero pretexto para mostrar a realidade. O bandido da luz ver-melha, o personagem real, está preso ilegalmente. Ele tratava bem asvítimas. Sua ação ainda era romântica. Ele distribuía o que arrecadavanos assaltos com os mais necessitados. Hoje o crime é diferente. Existemquadrilhas frias e implacáveis. Isto foi se implantando a partir de 64. O

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bandido era uma espécie de Zorro dos pobres. Ele tem relação com todaa cordialidade de uma época. Ele devia ser indultado e solto. Assaltava.Matou uma pessoa, já cumpriu a sua pena. Este seria o tema de umsegundo filme sobre o bandido. Eu cheguei a fazer um projeto, mas nãofoi possível realizá-lo.

Existe uma cobrança de que, depois da explosão de O Bandido daLuz Vermelha, você não teria realizado nada mais à altura. Em quemedida concorda com esta observação?

- Orson Welles fez nada mais do que 39 filmes. Eu não fiz mais doque oito. Então eu acho que tem que perguntar isso ao pessoal quecome macarão e arrota peru. Acho que quem fala isto são as mesmaspessoas que me impediram o acesso aos meios de produção. É tudo umaaberração tropical de um bando de parasitas e invejosos. É como o sambana década de 30: a burocracia sufocou o cinema.

Em que medida toda uma abertura prospectiva projetada peloBandido da Luz Vermelha foi explorada pelo cinema brasileiro naperspectiva de um cinema urbano?

- Estes espetáculos de violência gratuita que se fazem fundindouma coisa e outra de uma forma modernosa não passam de tentativasfrustradas de refletir a nossa realidade. E principalmente as cenas deviolência e as cenas de amor que são uma gaiatice de fazer dó. Nossocinema involuiu. Temos bons fotógrafos. Mas em nível de roteiro e decomposição de personagens estamos num estágio pré-crítico. Era precisoque se voltasse a Lumière e Méliès. E mesmo Griffith ainda não foialcançado. O problema é que não se conhece a história do cinema enem a história das artes. Quando passa um filme do Stroheim não temninguém pra assistir. Estão todos em seus videocassetes vendo filmesmodernosos. É como nas novelas da Manchete: a mulher diz “me larga”e não tem ninguém segurando.

(O Bandido da Luz Vermelha: em cartaz na sessão Classe A, daRede Globo, hoje, às 00h45.)

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Alô alô Rogério Sganzerla!

A BelairA BelairA BelairA BelairA Belair, 20 anos depois, 20 anos depois, 20 anos depois, 20 anos depois, 20 anos depois 40

Em 17 de setembro de 1990, por ocasião da retrospectiva das obrasde Julio Bressane e Rogério Sganzerla, durante a II Mostra BancoNacional de Cinema (RJ), Susana Schild publicou no Jornal do Brasiluma dupla entrevista com os diretores. As perguntas, no entanto, foramrespondidas em separado. A seguir, a transcrição do depoimento dadopor Sganzerla.41

Vinte anos depois, como você vê a Belair no panorama brasileiro?– Curiosamente, a Belair nunca chegou a ser registrada. Foi uma

produtora imaginária, mas com registro histórico. Mesmo assim, em suaproposta de demolição do discurso acadêmico e convencional, teve umaatuação muito benéfica dentro do princípio de produzir filmes bons,bonitos e baratos. Entre março e setembro de 1970 produziu sete longas-metragens. Infelizmente, o sistema se voltou contra esse tipo de operação.

Com as mudanças do mercado, seria possível repetir a experiência?– Acho que não. As pessoas são muito escravas de si mesmas. O

cineasta brasileiro não lê romances, não conhece dramaturgia, acreditamais nos seus próprios limites do que em qualquer janela para o mundo.É uma figura sisuda e melancólica. A Belair, ao contrário, era extre-mamente audaciosa, apesar das condições políticas do país. O fato defilmar já implicava uma resistência, empunhar uma câmera era um gestoheróico. Fomos muito censurados nesses 20 anos. Primeiro, pela censurapolicial truculenta, que se transformou na vaidade da censura econômicae depois na crueldade da sabotagem burocrática.

Quais os avanços do cinema brasileiro nesses 20 anos?– Houve um enorme retrocesso, uma marcha-a-ré histórica brutal.

Devemos tirar o chapéu para os técnicos, os fotógrafos, os atores. Masnão temos argumentistas e muito menos dialoguistas. O cinema regrediua uma forma quase ginasiana de rendimento, enquanto as produções40 Entrevista de Susana Schild com Rogério Sganzerla e Júlio Bressane publicada como título “Esta dupla vale uma mostra”, no Jornal do Brasil, segunda-feira, 17 de setembrode 1990.41 “Nariz-de-cera” da Contracampo - Revista de Cinema, nº 58. Infelizmente só publi-caram a transcrição da parte de Rogério. Na edição definitiva deve ser restaurada aintegridade da matéria, pois a parte de Júlio é muito importante.

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são cada vez mais custosas. Não houve rendimento da forma artística.Tudo bem que numa crise as pessoas tenham que pisar forte, mas noBrasil, as super-produções têm uma tradição de fracasso. O potencialbrasileiro é enorme, mas exige atenção para os detalhes humanos quesão menosprezados nas super-produções. Fora isso, o cinema brasileirofoi atropelado pelo desastre da Embrafilme, uma penitenciária de acetatoque tinha que acabar. Começou como órgão de fomento e acabou comoórgão de liqüidação do cinema.

No cinema brasileiro sempre se discutiu muito a dicotomia cinemacomercial x cinema de arte. Como você encara essa questão?

– Essa dicotomia faz parte do atraso das elites brasileiras que sãoas mais avarentas e despreparadas do mundo. Na época da Belair só ofilme colorido era comercial, e filmes em preto e branco sofriam todotipo de boicote. Esta dicotomia é uma ficção, existe porque o país éatrasado, por causa de sua formação histórica e pelo despreparo de todauma nova geração, sem falar que os realizadores do Cinema Novo tambémcruzaram os braços.

Foi possível viver apenas de cinema nesses 20 anos?– Vivi de cinema e ainda escrevendo, fazendo vídeo, montando alguns

curtas-metragens. Também sou administrador de negócios.O nome de vocês [Sganzerla e Bressane] sempre foi vinculado à

vanguarda cinematográfica. Vocês eram e ainda são vanguarda?– Me considero um bom cineasta e informado sobre a história do

cinema, que lê peças de teatro desde criança, que escreve para jornaisdesde a adolescência. A descoberta de uma nova linguagem é comouma piada contada muitas vezes e que perdeu a graça. A vanguarda, ameu ver, seria uma tradição revolucionária e não somente o modismo demeta-linguagem e sem cair no ridículo do pré e pós-moderno, que achouma aberração. Se isso é vanguarda, quero outra coisa.

E, hoje, alguém faz cinema de vanguarda no país?– Não sei se alguém está fazendo cinema de vanguarda, no sentido

de ruptura de códigos. Um ou outro cineasta sabe filmar, e embora osbrasileiros gostem muito de cinema, o cinema não gosta muito de bra-sileiros. O cineasta brasileiro pode ser hoje comparado a uma toupeiradesumana, insistindo em não ser solidário às grandes causas do cine-ma, que é o próprio cinema. O homem brasileiro, quando pretende ser

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altivo, faz questão de ser pedante, e uma coisa não tem a ver com outra.Quais os melhores filmes da história do cinema brasileiro?– Limite, O Cangaceiro, Ganga Bruta, O Canto da Saudade, O

Descobrimento do Brasil, O Anjo Nasceu, Deus e o Diabo na Terra doSol, O Pagador de Promessas e os filmes de Watson Macedo. Ulti-mamente, fora os filmes do Bressane, gostei de A Faca de Dois Gumes,de Murilo Salles.

Qual a importância que o governo Collor está dando à cultura?– Não sei. Eu continuo filmando. Acho que antes do governo Collor

era pior, era a época do nem sim, nem não e da perda de tempo. Odistanciamento do Estado do cinema pode ser um mal que venha parabem.

O que você está fazendo no momento?– Estou para terminar um longa em homenagem a Noel Rosa, que

este ano faria 80 anos – uma data que considero importantíssima, e queparece não sensibilizar ninguém. Já tenho duas horas filmadas, JoãoGilberto fez uma gravação exclusiva de Feitiço da Vila para o filme, eagora dependo da TV Manchete me emprestar os cenários da novelaKananga do Japão para filmar o prólogo.

Do FDo FDo FDo FDo Festival de Testival de Testival de Testival de Testival de Taorminaaorminaaorminaaorminaaormina (fax ao Jornal da Tarde)42

Sentado na varanda beira mar de um hotel-vila na belíssima paisagemmeridional, invadida por turistas e adolescentes em férias, penso nofuturo do cinema mundial assim como de festivais internacionais. Esteano o festival de teatro, música e cinema de Taormina completa sua 25ªedição e também está sendo invadido pelo culto da violência mais oumenos explícita.

42 (Arquivo) Este texto ficou nos meus arquivos porque Rogério o transmitiu para omeu fax no Rio de Janeiro, depois que me ligou de Taormina, e pediu-me que oretransmitisse ao Jornal da Tarde. Consta no original transmitido (que está entre ostextos que selecionamos) o número do fax do jornal (0055 21 265 2297) e os nomes deJosé Marcio Mendonça, Kiko ou Tereza. Não fiquei sabendo se chegou a ser publicadoe a cópia que recebi em papel de fax desbotou em parte até a ilegibilidade antes de que

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Explico-me: na ensolarada Sicilia as prefeituras preparam mostrascinematográficas sem comparação com o espetáculo de festivais bra-sileiros mas também aqui o nível vem caindo. O jeito italiano faz comque apelassem para seções históricas, onde entra de tudo, sobretudo osupérfluo, mas há lugar para os verdadeiros mitos culturais.

Kubrick, por exemplo, mereceu exposição de sua fase adolescentecomo fotógrafo de Look (uma bela revista desaparecida há muito tempo)entre 1945/47. O jovem Kubrick revela um olho selvagem para umatemática desportiva - a luta de box - e de quebra a violência implícita;vista como causa a violência não se torna gratuita e seus efeitos emfotografias e um média metragem em preto e branco não nos deixa mentir.

Noutros filmes, genericamente estilizados em “cinema de autor”convencional, o espectador chega a ser tratado como um débil mental.Também não se pode desprezar a intuição do público, muito menos apaciência. Às vezes, diante de experimentos locais somos obrigados asair para atender um telefonema ou tomar o capucino mais próximo. Háuma letargia generalizada e isso o festival não deve discutir mas apontaa falência expressiva de produções oficiais, destituídas de talento e jeitopara os temas abordados. Dentre eles a violência sistematizada porpontapés e tiroteios permanentes chega a quase ser um dogma. Mesmoassim as condições de projeção chegam a ser ideais. Nunca houve umasala de espetáculos audiovisuais como o teatro grego, montado sobreuma ruína de 25 séculos, um amplo anfiteatro dotado de som digital.

Pois ali se insinua a ferocidade praticadas a ferro e fogo e muitosrevólveres pelo ator Brandon Lee - recentemente falecido durante asfilmagens deste inusitado O Corvo. (Dizem a boca pequena que foramos culpados os próprios produtores mas o montador fez o diabo parasalvar a produção e levantar o bólido. Não só a montagem, mas adevastadora cenografia e alguns diálogos engraçados... (textointerrompido pelo desbotamento do fax)

eu submetesse meus arquivos a um processo de digitalização, perdendo assim o final dotexto e a data em que fora escrito. Estimo-o como de 1994, mas só os arquivos deRogério poderão certificar a data precisa em que se deu a redação. Nosso projeto ina-cabado termina aqui, com um texto inacabado, ambos pelas vicissitudes dos tempos.Mas o original completo está nos arquivos de Rogério e o texto deverá ser recuperadona íntegra para a edição definitiva.

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Fragmentosde

RogérioSganzerla

Seção 2:textos de 1996 a 2003

capturados

na Internet

por Mario Drumond

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Esta foto (apesar da péssima qualidade de reprodução) representa bem a últimaimagem de Rogério que me ficou gravada (bem nítida na memória, mais que na reti-na). Era a figura desengonçada, curtidora, um filósofo gozado e gozador com quemandei pelas quebradas Rio afora, dias, noites, madrugadas e malandragens numaépoca de dureza, ostracismo, marginalidade, muito trabalho e criação. Chopps naUrca, ao lado do cassino fantasma dos tempos de glória e Orson Welles. Baseadosem Matta Atlântica e Silva. E frases-biscoito-fino-(co)mentários-montagens de tudoque passava pelos olhos e pela mente. Recordar é viver: filmes que não foram fil-mados, projetos boicotados, injustiças e descasos. Reflexões rogerianas sobre ahumanidade: “Bem-aventurados os caolhos, porque só vêem a metade da realidade”.

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No rastro de Orson WNo rastro de Orson WNo rastro de Orson WNo rastro de Orson WNo rastro de Orson Welleselleselleselleselles 43

Combativo, polêmico e imbatível nos anos do Cine-ma Novo. Ainda hoje quando fala, não nega o cineastaque foi. “Eu não acredito em renascimento de filme

brasileiro. Nós não temos roteiristas e não temos nem dialoguistas”.Rogério Sganzerla, o famoso realizador de O Bandido da Luz Vermelha(1968) e Nem Tudo É Verdade (1986) falou ao Diário, por ocasião doVIII Festival de Cinema de Natal.

Sganzerla, em que filme você está trabalhando no momento?- Chama-se Tudo é Brasil. É uma coletânea de assuntos fechando a

trilogia sobre Orson Welles no Brasil. Onde ele mesmo diz: “Tudo éBrasil”. Ele fala em português e até canta em português. É uma pequenatentativa de voltar às nossas raízes, coisa que eu acho tão importantecomo o nosso cinema. A presença de Welles repete o que aconteceucom Eisenstein, no México. Embora o Eisenstein não seja mexicano, esim, um grande cineasta russo, deu uma contribuição fabulosa comaquele filme inacabado. Foi o mesmo caso do Welles, embora não sejatão transparente. Porque ele criou um estilo de filmagens exteriores, asgrandes seqüências de multidões, de enterro, de jangadas, de númerosmusicais e até um sentido patriótico ele trouxe, por ocasião da II GuerraMundial. Que incutiu, mesmo, em Grande Otelo e em Linda Batistauma noção de nacionalismo, de luta pelos poderes da democracia econtra o Eixo. De certa forma, Welles foi vítima também dessa atuação,porque naquele momento desvendara uma rede de espionagem em todoo Brasil, inclusive no Recife, no Ceará, no Rio de Janeiro. E há muitassuspeitas sobre o que de fato ocorreu com relação ao jangadeiro Jacaré,que era norte-riograndense. Welles acreditava seriamente nisso. Sócontaria o segredo quando estivesse pronto o filme. Talvez por isso ofilme não tivesse sido concluído, embora já totalmente rodado. Eu tenhoumas duas horas de material das cenas do Nordeste de Welles. É im-pressionante. Parece Flaherty, Murnau, um pouco Eisenstein. Sugeremuito do cinema que veio nascer depois. Lembra Barravento, de Glau-ber, Rio Zona Norte, de Nelson Pereira dos Santos, e o cinema brasileiro

43 Entrevista a Fernando Spencer publicada no Diário de Pernambuco, sábado, 7 dedezembro de 1996.

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que se fez nos anos 40.Além do longa Nem Tudo é Verdade, que

você realizou entre 1980 e 1986, trabalhoarqueológico de acompanhar os passos de OrsonWelles quando esteve no Brasil nos anos 40 para

rodar It’s All True, você fez ainda um curta. Conte como foi isso.- Fiz um curta sobre a linguagem, mostrando só o poder da linguagem,

os planos-seqüências e usando também aquele sistema referencial desom que tem Os Cafajestes, de Ruy Guerra, a voz em off, um programade rádio entrecortado com uma cena sobre a construção da Base Aéreade Natal e alguns esforços significativos do ponto de vista de linguagem.Mas esse não. É uma revista, um magazine mostrando todas as fotos,todo o material, os programas de rádio brasileiros, todos os aspectos,algumas cenas dos filmes, os desenhos que Welles fez no Brasil, enfim,uma série de surpresas que vai agradar a todos, como você, que conhecea real importância de Orson Welles integrado na nossa tradição.

Como foi o apoio oficial para Tudo é Brasil?- É um filme maduro, adulto, que já mostra um domínio e ao mesmo

tempo objetividade com a informação, sobretudo a trilha sonora que euacho o ponto alto do filme. É maravilhosa. Nem americano, nem francês,jamais conseguiria captar aquele clima de orquestra, os solos que essematerial propicia. Porque foi feito lentamente com grande sacrifício erealmente nunca recebemos recursos, mas acreditamos no projeto aoponto de gastar aquele pouco que a gente ainda tinha. O caso da RioFilme era garantir um contrato de distribuição e também de home video,mas ela se encarrega dos custos operacionais (laboratório, som). É fun-damental que as pessoas sejam pagas (os recursos humanos), mas comoé uma repartição, uma autarquia, a gente às vezes é obrigado a sesubmeter aos critérios dela. Mas como se vê tanto filme que não tem aqualidade desse trabalho, dá uma certa decepção com relação à políticageral da Rio Filme. Não no meu caso. Acho que está aí um dos des-perdícios. Quer dizer, para quem faz filmes tão primários, tem ummontador pago, assistente e tal. Esse, que é um filme internacional ebem brasileiro, não tem. Há um clima de suspeição. Até o montadorfalou: “Somos tratados aqui como uns bandidos, como marginais”. Nãoé um filme de livre exportação, é uma revelação para o Brasil.

Concluído este trabalho, que nos parece tão sofrido do jeito como

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vem caminhando, quando vai sair o filme sobre Noel Rosa?- Agora mesmo fui vítima da incompreensão. Porque tenho alguma

coisa filmada. Desde 1976/77, na mesma época em que comecei a meinteressar por Orson Welles no Brasil, passei a estudar as músicas, adiscografia de Noel, promover um levantamento. Entrei em contato comAlmirante, com o biógrafo Jaci Pacheco, primo do Noel, e então fuiregistrando e acabei ao longo dos tempos conseguindo fazer um curta eum média metragens, ambos realizados em condições bem profissionais.Os filmes me agradam bastante, porém jamais aquele projeto que eutinha desde o início, que ia contar uma história, um melodrama poético.

A tal comédia dramática?- É. Eu tinha inventado uma expressão na época que hoje não é

mais novidade: uma comédia dramática. Noel, além de ser um grandepensador, um filósofo do samba, basicamente foi um humorista, umapessoa cheia de graça constante, gozador, brincalhão e vivendo inten-samente a cada segundo. Isso o roteiro refletia, com fontes fidedignas,baseado em fatos reais. Vou montar uma história que mostra a relaçãodele com a música, com as namoradas. Namorava uma de manhã, outraà tarde e outra à noite. Ele acordava às cinco da tarde e ia dormir aoraiar do dia. Passava o dia sem comer, com aquele problema de masti-gação que veio agravar sua saúde. Ao mesmo tempo, ele tinha um grandesentido da compaixão pelo ser humano. E até com os animais. Porexemplo: ofereciam a ele alguns pastéis, mas não os comia em público,a não ser diante de alguns amigos. Quando assim não agia, ia botandoos pastéis no bolso e de madrugada, quando chegava em casa, primeiroolhava se os cachorros já estavam esperando, para ele passar com ospastéis. Além dos cachorros, os gatos também.

Fale de seus novos projetos.- Para o ano de 97 tenho outro filme, em produção, certamente. É

Sob o Signo do Caos. O fundamental é ter o roteiro registrado, os direitosautorais assegurados, enfim, essa formalização e análise da produção.Vamos ver se novos ventos melhoram. Precisamos de sorte, não é? Agente tem que torcer para que tudo dê certo. Agora é fundamental oapoio do poder público como em qualquer país é decisivo e também dosempresários. Que a iniciativa privada acredite no cineasta brasileiro.Todo comerciante tem que partir desta confiança, já que o burocrataparte da desconfiança.

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TTTTTudo é Brasil udo é Brasil udo é Brasil udo é Brasil udo é Brasil – Justificativa 44

TUDO É BRASIL é um caso mítico como filme de cinema. Aindaenvolto em incertezas e circunstâncias aparentemente inverossímeisreveladas em respeito a verdade e ao fascínio de uma personalidade –essencialmente contraditória – que criou seu próprio tempo e assustouo Brasil, agindo como um indivíduo que carregava uma multidão.

Memória histórica e visual da cidade do Rio de Janeiro, TUDO ÉBRASIL é mais que um filme, é feito de pedaços de tudo que se passou,encontrando um caminho que permite seguir adiante – trata-se de umcaleidoscópio sonoro – sobre a transformação dos anos quarenta.Seqüências rigorosamente inesquecíveis – até então dadas como perdidas– fazem parte do repertório audiovisual.

A meta é reconstruir o passado à luz das inquietações atuais, re-construindo um momento importante, período ou processo da nossahistória recente – mas já distanciado pela ação do tempo – tendo como44 Do projeto do filme Tudo é Brasil, 1997. O termo “justificativa”, de uma flagranteidiotice, não é de Rogério, claro, mas uma imposição da Lei Ruanê e seus Amnésioosformulários.

O grande Grande Otelo em Tudo é Brasil

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inspiração um fato real cheio de significação.Afinal, apresentamos audiovisual histórico – sons e imagens da época

– sobre um mito do cinema, um dos ícones de nosso tempo, preocupadoem refletir e valorizar as origens da nossa cultura tropical. Orson Wellesalém de tudo despertou o nacionalismo. Filmou nossa realidade escon-dida, tirando-a de debaixo do tapete, encantado com a espontânea cria-tividade do povo brasileiro.

Nesse filme, de caráter internacional, o Brasil é visto como um la-boratório de idéias e a força motriz é o Rio, o espelho do país, a capitalcultural. O longa metragem, nada mais é que um caso de amor nãocorrespondido entre o nosso país e o maior cineasta do mundo.

Essa é uma das mais desconhecidas e polêmicas histórias sobre umdos mitos essenciais de nosso tempo. Para o Brasil, é a causa. Todo oresto que lhe advém e todos os cineastas brasileiros de todas as épocaspraticamente lhe devem tudo.

O filme é um espetáculo de brasilidade. Uma lição para nunca maisser esquecida, uma produção de uma hora de eternidade e meia deinstantâneos. Além de imagens de época – inéditas e rigorosamente –TUDO É BRASIL mostra um jeito de ser bem brasileiro, filmando-ocriativamente. Além, é claro, da trajetória desse grande cineasta.

Um bateUm bateUm bateUm bateUm bate-papo entre Sylvio R-papo entre Sylvio R-papo entre Sylvio R-papo entre Sylvio R-papo entre Sylvio Renoldi eenoldi eenoldi eenoldi eenoldi eRRRRRogério Sganzerlaogério Sganzerlaogério Sganzerlaogério Sganzerlaogério Sganzerla 45

Quando a gente começou, a gente já começou rindo, não é, Sylvio?

45 Segundo o site onde colhi este material, participaram do encontro Alessandro Gamo,Luís Alberto Rocha Melo e André Francioli. A conversa foi registrada em imagem e sompara o documentário O Galante Rei da Boca, rodado em julho de 2001, São Paulo. Osite só “apresenta os trechos em que Sganzerla e Renoldi falam sobre aspectos geraisdo cinema, bem como sobre as respectivas carreiras e os trabalhos realizados emparceria”. Como a qualidade da transcrição ficou péssima, preferi omitir o nome do res-ponsável. Na minha opinião, a fita deve ser retranscrita para a edição final. A partir domaterial capturado no site fiz o que pude, mas o resultado ainda não é satisfatório.

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Rogério Sganzerla - Uma vez o Alberto Cavalcanti falou assim pramim: “Vou te falar uma coisa”. Eu digo: “não, eu já sei”. “Mas o que éque você já sabe?” “Você vai dizer três coisas: que aqui o pessoal em-purra um carrinho e já quer ser diretor, ninguém quer ser produtor, todomundo quer dirigir; que as máquinas são as mais mal-tratadas do mundo,e que com isso não se tem o respeito pela técnica”. Aí ele disse: “É,exatamente isso, como é que você sabe que eu ia dizer isso?” É porqueeu li o livro dele, Filme e Realidade, que nasceu do curso que veio darno Brasil. E dali veio a Vera Cruz, a Maristela, a Multifilmes... Sylvio,conte um pouco da Maristela, você era vizinho, quer dizer, aquilo nacabeça da criança, você vendo aquele mundo, os estúdios...

Sylvio Renoldi - A Maristela era vizinha do terreno da minha avó,era uma fábrica de ácidos. Essa fábrica fechou e aí começou a reformapra fazer um estúdio de cinema. E eles fizeram uma grade que dividia aMaristela do meu terreno... Eu era moleque, tinha nove, dez anos, eficava enchendo o saco, conhecia as pessoas que trabalhavam lá, que jáeram conhecidas minhas do bairro e que foram trabalhar lá. Eu ficavaali, às vezes tinha uma coisa assim: “ah, vamos fazer a voz de umacriança, um filme, não-sei-o-quê”, eu ia lá no estúdio. Daí fui pegandoamizade, eu vivia dentro do estúdio, entendeu? Estava sempre numlugar, no outro, até que um dia, em 1951, um cara falou “por que é quevocê não vem trabalhar aqui em vez de ficar enchendo o saco aí noestúdio?” Foi quando comecei a trabalhar na sala de montagem lá daMaristela. Nessa época conheci o Cavalcanti, que estava terminandoMulher de Verdade.

Sganzerla - O Mário Civelli era uma grande figura. Os jornais cri-ticavam, mas era uma figura fabulosa... Depois ele virou distribuidor eganhou uma fortuna com aqueles filmes tchecos, filmes italianos, defaroeste, quer dizer... ele tinha visão. Agora, nos livros, o que se falasobre ele é que era só um assistente do Roberto Rossellini e que quandopassou o Roma Cidade Aberta não tinha o nome dele... mas isso não é oimportante... ali na Itália, imagina, ainda é mais confuso que o Brasil,então... o próprio Rossellini era um fake, não é? E o Civelli gostava decinema, ele entendia de distribuição, ajudava as pessoas... Assim comoo Marinho Audrá. Eu me lembro que ele dizia: “Você vai fazer seuprimeiro filme, você faz aqui na Gravasom de graça.” “Mas por quê, umcurta, de graça...?” “Não, você pode sonorizar, porque nós sabemos que

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você depois vai voltar aqui...” Eisso realmente acontecia, e nosestúdios da Odil Fono Brasil tam-bém. Todos os filmes pagavam omesmo valor, parece que dezmilhões. Você pagava depois dofilme pronto. Você podia traba-lhar o que quisesse, tinham duasmoviolas pra atender a oito, dezproduções. E nunca houve problema, porque se precisasse, se aparecessefilme de publicidade, por exemplo, aí se parava, cedia-se os espaços,havia um intercâmbio, era esse o espírito das produtoras da década de50...

Renoldi - Era uma grande família, todo mundo ajudando um aooutro, não tinha essa picuinha aí...

Sganzerla - Havia amizade. Não havia a desconfiança, o desrespeito...Alessandro Gamo - E o trabalho na Boca do Lixo?Sganzerla - O Sylvio nunca aparecia lá, aparecia raramente...Renoldi - ... só quando eu montava os filmes... Eu ia lá montar os

filmes da Servicine [produtora de Antonio Polo Galante e AlfredoPalácios]. Montava na moviola da Servicine. Mas muitos filmes daServicine eu montei na Odil, porque ficava mais perto do estúdio, vocêgravava e ao mesmo tempo montava a cena, entendeu?, o som...

Sganzerla - O que o Sylvio fazia na moviola era impressionante. Eleera capaz de fazer você dizer a mesma coisa, e inverter, cortando osmagnéticos, ele tinha um domínio... e também com a moviola, seprecisasse extrair um som ótico, ele criava uma instalação e fazia, eleera muito amigo do técnico...

Renoldi - E o dia-a-dia na Boca era normal. Puta misturado comator, ator misturado com puto, era o Massaini que ficava lá de cima, erao outro cara que ficava lá embaixo... Tinham as produtoras mixurucas,tinha o Tony Vieira, tinha um monte de produtoras ali, tinha o RenatoGrecchi... então, quer dizer, eram pessoas que arranjavam um dinheirinhoe faziam filme, entendeu? Me lembro que o Renato Grecchi fez umfilme com o Carlão Reichenbach chamado Corrida Em Busca do Amore, porra, os caras não tinham motor! Então tinha que ficar cinco neguinhos

Sylvio Renoldi

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Alô alô Rogério Sganzerla!

na esquina empurrando o carro porque não tinha motor! E daí o carropassava, terminava a cena, puxavam o carro de novo... um filme decorrida com carro sem motor! Então, quer dizer, uma loucura... Mas opessoal fazia cinema. Filmavam com filme velho, com filme novo...

Sganzerla - Tem uma história interessantíssima do Bandido... naocasião eu falava: “não interessa o cinema, mas a profecia”. Eu escrevio filme antes de haver a história do João Acácio [o verdadeiro Bandidoda Luz Vermelha]. Eu estava na Europa, quando cheguei eu disse: “pô,mas está acontecendo, o roteiro que eu estou escrevendo está acon-tecendo!”. Mas aconteceram muitas outras coisas assim: nós estávamosquase no rolo seis ou sete, pra mixar, e eu cheguei de manhã no estúdio,eu me lembro que era um sábado, de manhã, e de repente eu ouvi umametralhadora - tararararararara - eu digo “pô, tá lá o Sylvio de novorevendo os ruídos”, porque ele é um montador interessado, é como sefosse um trabalho dele. E eu falei: “mas não precisa, tá tudo certo, vaicomeçar a mixagem agora...” Mas só que a metralhadora não era dofilme, que dizia assim : “Militares estrangeiros são metralhados na portadas suas residências...” Eu digo: “porra, mas isso aí... Por que é que oSylvio tá revendo...” Não era do filme, não. Era na frente da Odil FonoBrasil, estacionaram um carro...

Renoldi - ... estavam metralhando...Sganzerla - ... pegaram um cara que era aquele capitão Chandler...Renoldi - ... que morava na casa da Hebe... Os caras metralharam

ele ali na porta, duas casas depois da Odil. Nós estávamos preparandojustamente o rolo que íamos fazer, o que dizia “metralhados na porta desua residência, não-sei-o-quê...” Porra, e lá fora pá-pá-pá, comendofogo... É coincidência, né?, mas...

Sganzerla - Nós chegamos lá, ele estava ainda vivo, era até umacena, a mulher, com a criança, o livro que ele tava lendo e ele agonizante...e você foi o único que viu o atentado, Sylvio, foi um fusca que trancou,na saída da garagem... e aí apareceu um repórter, veio a polícia...

Alessandro - Sylvio, você chegou a dar alguma dica na montagemdo A Mulher de Todos?

Renoldi - Não, não... não participei, não...Sganzerla – O Sylvio não pôde, eu pedi muito que o Sylvio montasse,

mas ele estava assoberbado de trabalho, então sem que eu soubesse, ele

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disse: “sim, mas isso é uma mina, e tal”... talvez pela ousadia do tema...Naquela época, um filme paulista sobre o final de semana, como eranas praias, um filme domingueiro, um “melodrama-de-beira-de-praia”,como eu chamo.

Renoldi - O Rogério estava com dificuldade pra fazer o A Mulher deTodos, dificuldade pra continuar. Então eu convenci o Galante a entrarem contato com o Rogério pra ver se dava pra dar um toque, já que eletinha vários projetos, e foi quando eles se acertaram e fizeram o filme.Mas eu nem participei desse filme, eu estava muito ocupado. O Rogériomontou o filme com outra pessoa...

Luís Alberto - Quem foi o montador?Sganzerla - O Franklin Pereira... Ele deixou o filme curto demais.

Quando chegou a versão final, o filme estava com menos do que aminutagem necessária. Aí eu digo: “não, eu vou dar um jeito, pegartodas as sobras e dar um jeito aqui, fazer mais um rolo...” Talvez pelaescola de comercial do Franklin, ele foi cortando, cortando... Mas aífizemos um rolo, que é exatamente o rolo que as pessoas mais elogiaram,que é aquele negócio do “paga uma cuba, bem”... O próprio Paulo Emílioconfessava que viu várias vezes o filme pra ver aquela cena, que naprimeira versão não estava. Eu tive que dublar, o estúdio tinha sofridouma reforma, estava com outra qualidade sonora. O filme é audível,você entende todas as piadas, tem umas dez, quinze piadas ótimas. OJô, que está muito bem, o Jô Soares... O Franklin copiava um pouco oestilo do Sylvio. Eu acho que o Sylvio, na montagem do Bandido, criouum código de montagem que imediatamente todos os outros se colocaramnessa expectativa de dar um novo tratamento, também quanto ao som -não precisar de tanto ruído de sala, valorizar a música com o diálogo,ter várias músicas ao mesmo tempo... E também o bom humor que agente tinha na sala de montagem acho que passou pro filme, que semantém atual até hoje porque foi bem editado, que é um aspecto crucialdo nosso cinema...

Renoldi - Bem anárquico, né?Sganzerla - O Sylvio participava das gravações, dos textos do

Bandido. Quando chegavam aqueles locutores - uma delas era umavelhinha, lá no estúdio, que ninguém queria trabalhar com ela. “Mas éessa!” Aí você disse: “Você vai estragar o filme...” “Não, eu preciso deuma voz assim...” E quando ela começava a ler aquilo eu tinha que sair

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da sala, que eu começava a dar risada - era uma sátira anárquica, comovocê disse...

Renoldi - Se você não chamasse ela de senhorita ela não gravava...(risos) “A senhorita pode começar a gravar?”

Sganzerla - Eu acho que todos nós devíamos ter feito mais filmes,devia ter mais produção, cinema é uma atividade cara, enfim, eu achoque depende muito das relações... Com relação ao Sylvio, nós temosque agradecer, os filmes que a gente conseguiu fazer foi através daamizade, da consideração, do respeito. E a gente fez um também sobreo Noel Rosa que era fantástico, eram os 80 anos de nascimento, com oJoão Gilberto cantando Noel Rosa, e o Noel aprendia a fazer a famosabatida com o irmão do Noel Rosa, o Hélio Rosa. Então era um material- a Gal Costa, todo mundo fez - e foi um lançamento bom, lá no Bancodo Brasil, mas o filme... O Sylvio gastou uma pequena fortuna, o filmefoi dublado, traduzido, e tudo... E aí no Festival resolveram passar dentrodo hotel, e não na sala, porque esse filme era média-metragem... querdizer, eles nem passaram o filme... Isso só podia ser uma represália,uma represália pelo fato de eu ser crítico... Você falou muito bem, Sylvio,o Massaini ficava lá em cima, vendo todas as pessoas filmando... Nósestávamos filmando o Bandido, chegou esse repórter, que estava nahistória do Chandler, aí eu disse: “ó, você vai ver agora, o que estáacontecendo aqui na rua, lá dentro do estúdio, isso nós temos e está hámeses pronto.” Aí ele ficou espantado. E esse mesmo repórter fez umaentrevista com o Massaini e disse: “está vendo aquela filmagem láembaixo?” Era eu, mais uma pequena equipe filmando um caracarregando um carrinho de latas de filmes... O Massaini diz: “Esse filmenão vai passar nunca!” E o repórter imediatamente veio me dizer: “olha,eu estive com esse grande produtor, ele disse que esse seu filme não vaipassar em lugar nenhum”. Aí eu pensei: “O Massaini vai ser talvez oprimeiro a ir no coquetel de lançamento”. E aconteceu exatamente isso.Quando o filme ganhou oito, dez prêmios em Brasília, fizemos no OthonPalace um coquetel, ele foi lá me abraçar, e tal. Depois eu conhecimelhor o velho Massaini, era uma figura muito legal, entendeu?, era umprofissional, enfim...

Sganzerla – Eu me lembro quando a gente se encontrou, o Sylvioestava fazendo os ruídos do Grande Sertão, Veredas. O pessoal jovem, oSylvio acolhia muito bem, na Odil Fono Brasil, que tinha uma excelente

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equipe. E ali também se fazia rádio, gravava-se programa de rádio... oBenedito Ruy Barbosa escrevia novelas pra rádio e o Sylvio já produziae montava esse filmes. O filme importante foi o Bebel, Garota Propa-ganda [Maurice Capovilla, 1967] porque era um filme paulista voltadopro pessoal que veio da imprensa. O Roberto Santos, que é praticamenteirmão da gente, grande figura do cinema paulista... o Bebel foi dirigidopelo Capovilla, que era meu companheiro no Jornal da Tarde, a genteescrevia lá na segunda-feira, sobre todos os filmes que tinham entradoem cartaz, então tínhamos que ver um monte de filmes na segunda, e naterça enchíamos umas páginas inteiras, e o Bebel foi um filme que tinhaum elenco muito bom, a montagem, e uma produção, que, enfim... e opasso seguinte foi o Bandido. Eu acho que o Roberto Santos empurroubastante o projeto, e tudo... quando a gente começou, a gente já começourindo, não é, Sylvio? As primeiras piadas... uma quantidade enorme dematerial rodado...

Renoldi – O Rogério sempre faz a mesma coisa, ele chega semprecom o filme numa mala. (risos) Traz o filme todo despedaçado numamala pra... então... O Bandido da Luz Vermelha era um filme interessante,que, aliás - devemos falar -, tinham umas pessoas que não queriam...

Sganzerla - ... nem que fosse feito, quanto mais exibido...Renoldi – É... quanto mais montado! Então picharam: “como é que

você vai montar um filme de um louco”, não-sei-o-quê... E eu falei, “éum filme de louco e nós vamos montar como ele foi feito”. E foi o que foifeito, o filme era louco e a montagem foi feita loucamente, tanto é queaté hoje é um filme moderno. Na época era uma loucura, ninguémadmitia. Pelo ranço que se tinha, do modo como todo mundo fazia cine-ma: Khoury fazendo cinema estrangeiro no Brasil, o Biáfora tentandofazer um cinema estrangeiro também no Brasil, não-sei-quem fazendo,pichando... então, quando mudava a coisa, era muito difícil você semanter. Essa que foi a vantagem, se conseguiu, com o Bandido, fazerum cinema brasileiro. Aquela porcaria era brasileira, não era imitação,tentar imitar o cinema estrangeiro, Bergman e outros bichos aí que elesqueriam. Então foi uma época que deixa saudade, que não vai voltarmais mesmo... E se o Brasil não mudar a postura de leis como tinha nosanos 70 e 80 e se fazer cumprir, não vai existir mais cinema brasileiro,vão existir esses negócios: dando um tiro no escuro aqui, outro lá,desafiando os caras na sombra... mas abertamente não vai existir. Ou

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então, algum milionário aí que dá uma grana pro filho fazer um filme.Faz um filme só, nunca mais faz nada, e aí fica nessa ilusão: “ah, ocinema nacional agora vai”. Vai nada! Se não houver um apoio do governopra valer, não existe cinema. E não existe cinema em nenhum lugar domundo, se não tiver uma proteção do governo. Taí o Rogério: o Rogérioé um diretor que teve êxito, não é dos diretores que não faz nada. Fezfilmes bons e não tem chance. Está aí, gramando pra fazer uma porcariade um filme, não tem chance, ninguém ajuda...

Sganzerla – Você ajudou muito... Enquanto não houver a reva-lorização do elemento profissional... quem faz o cinema são os técnicos,os profissionais, os diretores, os montadores, e não os burocratas. Temalguns servidores, funcionários, que são prestativos, e tal, mas temosexemplos de burocratas que substituíram a censura oficial, aquela cen-sura do momento mais difícil, que substituem desestimulando o trabalho,aí eu acho que realmente... enquanto não houver essa revalorização...como o Sylvio diz, em qualquer país do mundo, o governo deve daralguma parte de apoio. Nós não estamos aqui pedindo dinheiro, estamospedindo mais justiça, porque não há o elemento intérprete disso...

Renoldi – Pelo menos uma exibição garantida, né? Isso é o mínimo.Sganzerla – Por exemplo, o Sylvio tem grandes idéias... Além de ser

um amigo, um profissional, um produtor associado, é um roteirista, umargumentista, ele bola grandes piadas, idéias, gags... Isso não tem preço.Agora, vai-se filmar, tem aí parque de luz, material... Mas o que é queadianta filmar, fazer o quê com o filme? A funcionalidade, o uso desseproduto...

Renoldi – Exibir aonde? Você faz um filme e não tem lugar praexibir. Não tem um cinema, não tem nada. Tem cinema de shopping, umcamarada faz dez cinemas aqui, vinte lá, mas você não passa, o filmenão passa em nenhum lugar. Pode desistir. Quem tiver idéia de fazer umfilme, enquanto não tiver uma proteção grande pro cinema, não vai fazerfilme. A única coisa hoje em dia que um produtor faz - que é a malan-dragem - é ganhar na produção. Faz um orçamento de cinco paus, gastadois, pega três e bota no bolso, e fica morrendo de rir dos otários queajudaram a fazer e pastaram. Essa é que é a realidade.

Sganzerla – E esse é um dos prêmios que a burocracia oficial nosimpôs, que é criar pequenos agregados... são filmes de colegas, de

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amigos, de companheiros de classe - de classe nos dois sentidos, eacredito que não há muita classe cinematográfica nisso, porque o rouboé sempre negativo.

Alessandro – Sylvio, você poderia falar das produções que vocêparticipou com o Galante, que você montou?

Renoldi – Ah, eu montei uma série de filmes... O Cangaceiro SemDeus [Osvaldo de Oliveira, 1969], O Cangaceiro Sanguinário [Osvaldode Oliveira, 1969], As Deusas [Walter Hugo Khoury, 1972], Sertão emFesta [Osvaldo de Oliveira, 1970], Rancho Fundo [Osvaldo de Oliveira,1970]... aliás o Sertão em Festa foi o filme que deu mais dinheiro proGalante, um filme sem muita pretensão mas que entrou na linha doMazzaroppi. E depois, também... é, eu fiz uns dez filmes com o Galante,fiz uma co-produção que foi O Pornógrafo, com o João Callegaro e oOsvaldo de Oliveira.

Sganzerla – O Pornógrafo, como é que nasceu O Pornógrafo, Sylvio?Renoldi – Isso foi idéia do João Callegaro, fazer a história de um

imigrante que pastava na cidade paulista, mas isso... era uma coisabem do João. E depois... Nós fizemos um filme de gozação que era oRogo a Deus e Mando Bala [Osvaldo de Oliveira, 1970], que era umbang-bang. A gente estava com saco cheio de western-spaghetti, entãonós fizemos esse filme... a gente se dava ao luxo de fazer uma besteiradessas... Mas na realidade o que nós vamos dizer é o seguinte: nunca,nunca, o dinheiro que entrou no cinema ficou no cinema.

Sganzerla - Não foi reinvestido...Renoldi - Não foi reinvestido. Primeiro que eu acho que era pouco,

entende? E mais se perdia pelo caminho.Sganzerla - Na sonegação...Renoldi - Na sonegação, na exibição...Sganzerla - É a falta de uma fiscalização como o Mazzaroppi tinha.

Quando os filmes viajavam, ele mandava um fiscal, uma pequena despesapara... aí vinham os caminhões, enchia de gente... os filmes se pagavamamortizando na cidade de São Paulo, que tinha um mercado maior doque a França inteira...

Renoldi - Eu calculo que naquela época o desvio era entre 80% e90% da bilheteria. Só quando o filme dava muita grana mesmo é que

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aparecia algum dinheiro, mas quando era produção média, assim, nãoaparecia nunca.

André Francioli - E você, Rogério, como é que você vê essa de-cadência do cinema que vocês apontaram aqui?

Sganzerla - Vejo uma decadência provocada pelo intelectualismode alguns “responsáveis” - entre aspas - que foram convocados paraincentivar o cinema nacional e, na verdade, substituíram a censura.Substituíram através do princípio da exclusão: “Não, você não pode,você pode, aquele pode”... Geralmente o que podia era o coleguinha daclasse... Então se tornou o cinema familiar, uma coisa mafiosa, que nuncaé positiva...

Renoldi - E existe o problema internacional, também. Se o Brasilfaz uma lei, os caras dizem: “ah, nós vamos proibir o café, vamos proibirisso, proibir aquilo” - então o cinema nacional sempre foi um mercadoque eles quiseram ter na mão, como têm hoje, entendeu? Então elesfazem qualquer coisa, porque eles se protegem muito. Agora nós, aqui,é chumbo grosso em todo o cinema, não tem proteção, não tem nada,porque existe uma pressão. Quantas vezes os caras chegaram e disseram:“Não é possível que um filme brasileiro dê mais que um filme quegastou cinqüenta milhões de dólares”. Os caras não se conformavam.Hoje eles estão como querem: todos os cinemas estão com contrato,eles vêm de lá já com a exibição garantida e o cinema nacional taí: nãotem lugar. Não tem mesmo. Rogério tá querendo fazer um filme? Euquero ver - vai exibir aonde esse filme?

Sganzerla - É mais fácil no exterior, tem que fazer os filmes deprestígio...

Renoldi - O negócio agora é: se tiver que fazer um filme tem quefazer em inglês, em espanhol, em qualquer língua, menos em português...

Sganzerla - Agora, o sucesso dos filmes brasileiros estava semprebaseado no custo do ingresso baixo, o que favorece a fita brasileira.Quanto mais alto o ingresso, menos público. A quantidade é que vaigerar a qualidade - e o ingresso baixo.

Renoldi - Naquela época também tinha o incentivo do ingresso.Então, quando você fazia um “x” de renda, você recebia uma granalimpa do...

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Sganzerla - ... do serviço de arrecadação. É uma coisa que a prefeiturade São Paulo fez nos anos 50, em 1955, a Lei do Adicional. Mas nãoassim: “ah, vamos dar pra um, pra outro”, não: conforme a bilheteriavocê ganhava 10% a mais do governo, quer dizer, um incentivo depen-dendo do resultado dessa venda de ingresso. E quando o filme tinhauma categoria melhor, quando era um diretor bom, etc., aí às vezesdava, por exemplo, 25%, e se tornava um grande negócio, mas era emfunção do trabalho, do resultado, da performance, e não de premiaçõesexclusivistas... Hoje em dia o cara ganha pra trabalhar e já fatura antesde trabalhar, porque não há um critério de avaliação dos filmes, não temninguém que saiba nem avaliar os roteiros. Às vezes grandes projetossão jogados no lixo, e continua se fazendo sempre aquele modelo erradode filme, filme muito caro, pra ingresso caro - não é nem pão, nemcirco, não é nada, nem uma coisa nem outra. E quando isso ocorre éruim pra todo mundo. Eu acho que o cinema é uma atividade produtiva:manter a língua, a imagem do nosso país, e ocupar uma parte dessemercado. Já ocupou nas décadas de 1970 e 80, de trinta a quarenta porcento... É porque lá fora o exibidor fica com 10%; 90% vai pra produtora.Aqui é o contrário, é 90% pro dono da sala e 10% pro produtor... Naverdade 25%, 30% do bruto - quer dizer, você descontando cartazes,cópias, serviço de lançamento, anúncios, você fica sempre com pouco...

Alessandro - E essas mudanças de ritmo, de linguagem, que vocêsestão vendo, em relação ao cinema, de uma época para cá?

Renoldi - Não, linguagem não mudou nenhuma. Eu acho que osfilmes ficaram é muito ruins, entendeu...? Acho que não mudou nada.Os filmes é que são muito ruins, é uma TV de baixa qualidade que estãofazendo, esse é que é o problema...

Sganzerla - Exatamente...Renoldi - Alguns filmes são bons, mas... um ou outro, o resto é tudo

piada.Francioli - Como é que você vê o alcance estético dessa produção

atual, Rogério?Sganzerla - Eu penso como o Sylvio acabou de dizer, eu acho que é

uma piada onerosa, pra todo mundo... Por exemplo, acham que um filmepra ser bom tem que ser chato. Não necessariamente... Então, às vezesos filmes pra serem sérios tem que ser aquela coisa cansativa. Eu vejo o

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contrário, eu acho que falta ritmo, faltam gêneros, criar modelos,standarts, qualquer tipo de filme pode ser bom, desde que se faça como cuidado que a coisa necessita: uma boa planificação, objetividade,trabalho de equipe, um produtor que dê condições de você trabalharlivremente... O que tá faltando, também, é que as histórias são malescritas. Você pega um livro deste tamanho e faz, mas aí não houve atransposição. E faltam dialoguistas, quais são os dialoguistas que têmaqui no Brasil? Tem alguns que estão lá no rádio, na televisão, não sei,nós não temos nem isso - dialoguistas - temos dois, três. Devia se gastarmais papel e menos película. Agora, eu acho que os filmes são muitochatos porque tentar copiar a televisão é errado. A televisão é que deveriacopiar o cinema, porque a televisão não tem nem o traquejo, mesmocom os recursos técnicos e com as equipes você vai estar sempre sendosub-produto, não é por aí... Não vamos copiar os defeitos, vamos copiaras qualidades. E depois tem esse princípio da exclusão... Tem quevalorizar o profissional... quem fez o cinema foram os profissionais, ostécnicos, os fotógrafos, os montadores... A montagem é o grande aspecto,não é um aspecto, é o aspecto do filme - não sou eu quem digo -, maspra conseguir isso é preciso ter um assistente, precisa ter uma preser-vação, precisa ter um certo - não digo conforto, mas um mínimo... Eesse mínimo sempre foi negado pelas figuras que comandam aqui essa“indústria”, entre aspas, que não é nem arte nem indústria - não é nada.Agora a televisão quer entrar no mercado com os incentivos fiscais. Euacho isso um absurdo, porque a televisão são as maiores fortunas dopaís, eles têm minas de ouro na Amazônia... Se eles quiserem entrar efazer cinema com o dinheiro deles, correto, perfeito, agora - não com odinheiro que deveria ser dos independentes, não com incentivos fiscais...Quer dizer, criou-se um impasse: se eu quiser trabalhar na televisãonão me aceitam. Mas o que é que esse pessoal tá fazendo agora? Elesestão se dirigindo a esse mercado, multiplex, e criando toda umaimposição. E eu acho que vai continuar um cinema capenga, um cine-ma que não é o verdadeiro... não é cinema, isso, também... Não é nemcomércio nem arte...

Renoldi - Hoje a produção que existe é a produção de comercial: sefaz com o cheque na mão, entendeu? O camarada diz: “preciso daquelamala lá”. O camarada vai lá, faz um cheque e traz a mala. Quer dizer,você vai fazer um longa-metragem desse jeito, pô? É pra ir pro buraco...!

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Antigamente você ia lá, convencia o camarada, o camarada ainda traziapra você o negócio, depois vinha buscar e te agradecia, e dizia: “sóquero uma foto da cena”. Hoje em dia não, hoje em dia é tudo comcheque na mão, pô! Qualquer coisa que você vai fazer é com cheque namão, isso é fazer produção? Isso qualquer idiota faz! “Preciso filmar láno museu” - chega lá no museu e diz: “olha, eu tenho aqui cinco milpra...” “ah, tudo bem.” Pronto. Quer dizer, pô... “Ah, mas pra pegaraquele baú lá vai custar mais mil”. Então quer dizer: qual produçãoque vai agüentar isso?

Sganzerla - É verdade. E comercial demora dez dias, cinco dias...Renoldi - Não, um dia!Sganzerla - ...um dia... Agora um longa-metragem são meses...Renoldi - ...não, e o comercial é financiado! Então você tem um

orçamento pra gastar no comercial, agora - produção de comercial emlonga não funciona. E nós estamos reduzidos a isso. Se você quiserfazer a produção de um longa, você vai ter produtor de comercial. Então...

Sganzerla - É porque não se valorizou a figura do produtor. O Galante,por exemplo, era um excelente produtor. Embora ele não fosse culto,nem erudito, não tivesse uma biblioteca em casa, era um cara muitointeligente, e hábil nas relações, até fascinava as pessoas - “vamostrabalhar, vamos fazer”... Ele é quem deveria ter ocupado lá um cargo,como foi, numa época, o Roberto Farias: um cara profissional, emergentedo meio, não um intelectual. Um crítico vai escrever sobre a ponte, elenão vai ser igual ao engenheiro que fez a ponte... Tinha que se valorizara figura do produtor. Às vezes - isso acontece no mundo inteiro - ummau filme resulta num intervalo, mas... deve-se ter a chance de se podervoltar. Eu acho que o Galante está com bons projetos agora, com o GalileuGarcia, com o Ícaro Martins, o Inácio Araújo, que é um cara que semprebatalha no jornal pelo nosso cinema...

Alessandro - O Inácio Araújo começou com você, não é, Sylvio?Renoldi - Era meu assistente...Sganzerla - Tinha um cabelo desse tamanho...!Renoldi - O Inácio, eu tinha que ligar pra ele e mandar vir trabalhar

senão ele estava na rua, porque ele tinha a mania de dormir de manhã.Sganzerla - Ele tem cara de dorminhoco... (risos) Você tinha que

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chamar o assistente... quer dizer, você estava ensinando - talvez porisso que ele consiga escrever tão bem, porque a montagem é um princípiode organização das idéias, de identificação dos contrários...

Renoldi - O Inácio é um cara talentoso...Sganzerla - Agora, devia se fazer, talvez, um trabalho que mostrasse

como era naquela época e hoje, Sylvio, estabelecer as relações... Aspessoas emprestavam latas de filme, eu me lembro... e sempre devolviam,todo mundo se entendia ali... Eu acho que o Bar Soberano foi importanteali, você armava produções...

Renoldi - Todo mundo se encontrava ali. Às vezes tinha quatro,cinco mesas ocupadas, mas cada uma estava fazendo um filme...

Sganzerla - E havia a amizade, também... O João Callegaro era omais talentoso, das Libertinas [João Callegaro, Carlos Reichenbach,Antônio Lima, 1968]. E O Pornógrafo, que foi idéia dele... E aí criou-seaquela coisa de que filme preto-e-branco não podia ser lançado - issoera um absurdo, pô, preto-e-branco... não se pode jogar fora as coisas,assim, é preciso abrir o leque, mesmo. Eu vejo o pessoal premiado, oscineastas oficiais, sempre dizendo “não, está totalmente aberto o cine-ma...” Mas não é, é sempre a mesma coisa, uma panelinha, você vê atépelas designações das comissões...

Renoldi - Esse filme, O Pornógrafo, o Florentino Llorente chegounum dia, estavam reunidos todos os exibidores do Brasil, ele era presi-dente... Ele sentou e falou assim: “Eu assisti um filme hoje que eu nãovou exibir e acho que ninguém deve exibir, chama-se O Pornógrafo”.Nós ficamos dois anos pra exibir o filme...

Sganzerla - Eu nunca vi, eu sou amigo de infância do João Callegarodesde os sete, oito anos de idade, nós já éramos amigos... Quer dizer,você não poder ver o filme do amigo, de uma pessoa que você... Assimtambém como o filme do Tonacci, eu fui ver na Itália - lá passa, comouma obra-prima e tal... agora, aqui... Então tem alguma coisa errada,teria-se que colocar isso em termos institucionais de se criar uma lei ede se ter algum apoio indireto... E por que é que o Florentino não gostoudo Pornógrafo?

Renoldi - Sei lá, pô... Devia estar de mau-humor...Sganzerla - Quer dizer, ele quis ser mais censor que a própria censura,

né?

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Renoldi - Quem exibia os filmes no circuito Serrador era a mulherdo Florentino. Se ela não gostasse do filme, ninguém exibia o filme lá.Aquela velha...

Sganzerla - Eu acho que quem sai perdendo é o país, as novasgerações, as pessoas que gostam de cinema... Eu ando me dedicandomais, não sei, à literatura... também eu acho que é tanta luta, que aspessoas não merecem, você fica sofrendo, sofrendo, pra depois fazeruma coisa que... eu acho que o que está sendo prejudicado é a própriacultura, não há uma cultura cinematográfica orgânica no país, umprocesso-cinema democrático. Eu acho que quem está prejudicandosão exatamente esses censores, que são os aparentes fomentadores eque na verdade substituem a censura, eles fazem tudo pra derrubar umprojeto como, por exemplo, esse do Noel Rosa, que é um projeto inte-ressante, porque está lá na epígrafe do livro do Alex Viany [Introduçãoao Cinema Brasileiro, 1959] - “o samba, a prontidão”, ou seja, a fórmula.E por que não usar isso? Nós queremos fazer um filme mais narrativo,comercial, agradável, mas... O apoio que a gente tem encontrado éjustamente dos técnicos, dos artífices, dos artesãos... Os burocratas têmimpedido, num certo sentido... Então não adianta os professores criaremmais diretores no mercado, se os veteranos não são respeitados. Euacho que o fundamental é que quem veio antes tem uma certa primazia,tem que se tirar o chapéu, pra quem fez... O Sylvio é um caso exemplar,ele montou - quantos filmes? - mais de 80 filmes de longa-metragem,sem contar...

Renoldi - Setenta e seis...Sganzerla - Setenta e seis longas-metragens... É um número, quer

dizer, então não se pode perder o resultado dessa experiência, o valor daexperiência... Já ganhou vários prêmios, e tudo, mas o importante não éo elogio, o importante é o trabalho! E no cinema brasileiro não hácontinuidade, que é a base de qualquer cinematografia, o princípio dacontinuidade...

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Alô alô Rogério Sganzerla!

TTTTTodos os maus filmes já foram feitosodos os maus filmes já foram feitosodos os maus filmes já foram feitosodos os maus filmes já foram feitosodos os maus filmes já foram feitos 46

ESPECIAL PARA A FOLHA

Só o cinema pode ser uma janela enriquecedora sob o mundo,sobretudo se tiver uma função científica, criativa e útil sem ser puramentedidática. Todos os maus filmes já foram feitos (faltam os inacabados) enão existe história que já não tenha sido contada sobre a questão cul-tural.

Um grande artista é convidado pelo presidente e agora mesmo oque acontece? Comparece imediatamente a birra de certa burocraciaacadêmica que diminui a questão (aparentemente insolúvel entre nós;sem continuidade) que vai do lírico ao cômico, do didático ao satírico,atingindo parâmetros pessoais, claro.

Quanto aos artistas, sofrem todo tipo de dificuldades. Apenas umaminoria deita e rola; e sobre aqueles recai sempre a exigência burocráticae a intermediação, acabando por constituir o apoio oficial em disfunção.Ao contrário dos que se sentem melindrados por aquele abraço.

Espero de Gil uma planificação efetiva da questão criativa feita porolhos e ouvidos livres, assegurando ao cinema a garantia de sua ver-dadeira natureza musical; cinema é ciência, técnica: ritmo e movimento,gesto e continuidade. No caso, a tela diz tudo-cinema, pois é um ofícioquase artesanal que permite realizar tudo.

Mesmo o que parece impossível: projetos à altura da nossa realidadesocial, realizando verdadeiras comédias sobre a fome, sem dever nada aninguém e conferindo aparência aos mais quiméricos sonhos. Para tanto,planeja a produção... Não só melodrama e novelão. Isso não sou euquem diz, mas George Méliès, há um século, quando faziam tudo comnada, usando imaginação a serviço da criatividade.

E hoje? Todos os maus filmes já foram feitos. Há enorme desperdícioe déficit cultural no modus operandi de certas comissões, por exemplo,que não valorizam projetos, mas legislam em causa própria.

46 O site que publica este texto o dá como “texto inédito” de Rogério Sganzerla escritopara a Folha de São Paulo, em 2002, após a indicação de Gilberto Gil ao Ministério daCultura. A data de publicação no site é 10/1/2004.

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Seção 2 Fragmentos (de 1996 a 2003)

Ao contrário dos modelos da moda, é preciso valorizar a figura dorealizador independente sobretudo do diretor capazes de auferir divisasculturais e econômicas. Poucos saberão oxigenar a geléia irreal tão bemcomo Gil com a eficiência de seu canto. Tarefa espinhosa, mas necessária:voltar às raízes sem provincianismos, máfias e exclusões. Necessárioreeducar nossas panelas globais (nosso cinema é quase uma ode aoesquecimento, é preciso mudar muito) todos seremos testemunhas.

Sganzerla ironiza o balcão de favores doSganzerla ironiza o balcão de favores doSganzerla ironiza o balcão de favores doSganzerla ironiza o balcão de favores doSganzerla ironiza o balcão de favores docinemacinemacinemacinemacinema 47

“Os burocratas vêm liquidando com o cinema”, diz o diretor.Enquanto aguarda o lançamento em DVD de O Bandido da Luz

Vermelha, o cineasta conclui O Signo do Caos, em que ataca a burocraciacinematográfica.

São PSão PSão PSão PSão Pauloauloauloauloaulo - O ano promete ser marcante para o cineasta RogérioSganzerla - enquanto aguarda o lançamento em DVD, previsto paraagosto, de sua obra mais significativa, O Bandido da Luz Vermelha, quecompleta 35 anos de realização, o diretor de 56 anos pretende lançar o16.º título de sua carreira: O Signo do Caos. E, como se trata de Sganzerla,a contundência é visceral. “Meu filme é uma defesa do cinema”, diz.

Trata-se de um projeto de sete anos, que não foi inscrito nas leis derenúncia fiscal e contou com o apoio da distribuidora carioca Riofilme,que investiu R$ 280 mil na produção. A história se passa em uma espéciede alfândega, em que funcionários ineptos, com o Dr. Amnésio à frente,controlam a entrada e saída de todo material. Tudo não passa de umaalegoria pela forma como é gerenciada a atual política do audiovisualno Brasil em que, segundo ele, “as piores pessoas são responsáveispelo julgamento”.

Com isso, nomes importantes do cinema foram relegados a um plano

47 Reportagem de Ubiratan Brasil publicada em O Estado de São Paulo, sexta-feira, 6de junho de 2003.

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Alô alô Rogério Sganzerla!

secundário ao longo da história, impossibilitados de exercitar plenamenteseu talento. Sganzerla cita Anselmo Duarte, Alberto Cavalcanti, WatsonMacedo, Zé do Caixão como cineastas incompreendidos tanto pelacensura como pela burocracia cinematográfica. A inspiração começa,na verdade, com seu ídolo, Orson Welles, que também não pôde controlara edição de It´s All True, rodado no Brasil nos anos 40 e deixado ina-cabado. “Desde aquela época, os burocratas vêm liquidando com o cine-ma”, critica o cineasta.

UrUrUrUrUrgênciagênciagênciagênciagência - Sganzerla foi obrigado a montar sua própria sala de ediçãoa fim de realizar o trabalho nos detalhes previstos. Ele assumiu o projetoem caráter de urgência, pois pretende exibir o filme nos festivais deGramado (julho) e Locarno (agosto), na Suíça. Para isso, precisa depatrocínio para conseguir as duas cópias, uma das quais tem de serlegendada. “Quero exibir meu protesto contra a forma com que é geridoo cinema”, explica. “Meu filme é uma propaganda da alma e do corpobrasileiro.”

Sua defesa do cinema coincide com o lançamento em DVD de OBandido da Luz Vermelha, cujos originais estavam se perdendo. “Graçasao trabalho de um grupo de admiradores da minha obra, foi possívelconseguir a versão em DVD”, explica o diretor. O DVD deverá ser lançadoaté o próximo mês.

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Fragmentosde

RogérioSganzerla

Seção 3: Epílogo

sobre

O Signo do Caos

e últimos textos

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Alô alô Rogério Sganzerla!

A PA PA PA PA Propósito de ropósito de ropósito de ropósito de ropósito de O SIGNO DO CAO SIGNO DO CAO SIGNO DO CAO SIGNO DO CAO SIGNO DO CAOSOSOSOSOS 48

O Signo do Caos trata da eterna batalha contra o esquecimentoprofissional de nossa semi-colônia. Eterna luta da beleza versus in-tolerância abusiva e a ignorância cega.

Como na vida real, há o delito e a ação judicial. O que, convenhamos,é apenas o prolongamento de uma tradição de defesa de causas grotescase que não altera, nem um pouco, a verdadeira situação colonial do cine-ma brasileiro aqui ou no mundo. Amnésio faz pressão contra um filmeque caiu no desagrado da censura. Morel, um jornalista – imbuído desua função social –, insiste em viver em sociedade anônima de basepriápica e assim busca recuperar um conhecimento original sobre fatosignorados de nossa história recente.

Fala da aversão que lhe inspira uma mistura chocante de tipos malencarados, negados e negadores com seus capatazes e capangas,interessados em cometer crimes perfeitos contra a liberdade de expressãofilmada em nosso país e o terror que lhe inspiram as ameaças ao seucomportamento irreverente.

Para Morel, “a genuína investigação sobre a verdade deve tambémser verdadeira”. Revoltando-se contra uma tramóia injusta e cruel, Morelencontra oposição de doutor Amnésio, cujo modus operandi é o espíritode transação. Afinal tramam contra a liberdade aqueles agentes do caosque substituem a censura e são taxativos.

– Aquele é o louco maior!– Quem? Tu, ele ou o mundo?Esperam a resposta até hoje, dando tempo à ampliação de imagens

inéditas com meio século de prateleira ou talvez para sempre inéditas.Mais do que nunca é preciso entender o seguinte. Existem inúmeras

maneiras de se ver e viver o cinema para encontrar uma incógnita edesvendar assim o enigma de sua sobrevivência.

Um filme deve se relacionar com o outro e ao tentar ser íntimo como real, deixa de ser objeto descartável para se reassumir como pro-tagonista de si mesmo.48 Escrito em 2003.Na página dupla anterior, o ator Otávio III em O Signo do Caos.

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E pode (ou deve) ser sempre acompanhado de uma certa distânciairônica ou proximidade com o surreal. Amnésio substitui a censura etenta interditar liminarmente em todo o território nacional devido aofato de jamais ter sido apresentada ao nosso público. Um grande filmebrasileiro caiu no desagrado do serviço de censura de diversões públicasno Rio de Janeiro, com seus agentes negados e negadores, capatazes ecapangas, mistura chocante de tipos mal encarados somente interessadosem cometer crimes perfeitos contra a liberdade de expressão em nossopaís. Afinal esses agentes do caos tramam contra a liberdade. Complica-se o enigma surreal. Trata-se de uma sátira com finalidade crítica. Eisum assunto para se pensar: a tela deve falar a sua própria línguaconcebida no momento de criação e não pode fazer isso sem enfrentartodos os censores, curadores e feitores que estrangulam a atividadecrítica. Cabe ao espectador atento ter e exercer o direito de ver ou nãover um verdadeiro filme de cinema.

Ninguém pode negar o direito de existir de um trabalho assim

Um dos mais belos fotogramas do cinema brasileiro, desde Limite, e que ainda nãopude conhecer animado. Reconheço, daqui, as expressões cênicas de Otávio III,Guará (?) e Helena Ignez.O Signo do Caos será talvez o filme mais divulgado danossa cinematografia que não foi exibido em cinema algum do grande circuito.

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significativo. O cinema não pode sofrer infinito boicote ou pressãocometidas por comissões do próprio país ou do exterior. Há o delito e aação judicial (como na vida real) mas há também a análise político-social da situação que não alterou, nem um pouco, a verdadeira situaçãodo nosso cinema.

O que, convenhamos, é apenas o prolongamento de uma tradiçãoimposta através da defesa de causas grotescas e que não altera nem umpouco a verdadeira condição colonial do cinema brasileiro aqui ou nomundo.

Finalmente Morel conclui: somos o que vemos, eis um assunto parase pensar.

Última entrevista de Sganzerla foi emÚltima entrevista de Sganzerla foi emÚltima entrevista de Sganzerla foi emÚltima entrevista de Sganzerla foi emÚltima entrevista de Sganzerla foi emoutubro de 2003outubro de 2003outubro de 2003outubro de 2003outubro de 2003 49

Brasília - Brasília - Brasília - Brasília - Brasília - O primeiro filme foi um curta-metragem e levou apenas onome Documentário (1967). Pelo título, já era possível avaliar o queseria a carreira do cineasta Rogério Sganzerla.

Com Documentário, Sganzerla ganhou como prêmio uma viagem aCannes. Fora do Brasil, ele imaginava um bandido mascarado, que dariamuito trabalho à polícia e alimentaria o imaginário popular. Rogérioentão escreveu o roteiro do que seria seu primeiro longa-metragem e odestino se encarregou do restante. No navio que o trouxe de volta aopaís, o cineasta leu as manchetes dos jornais brasileiros sobre o “Bandidoda Luz Vermelha”, que deixou São Paulo inteira em pânico. A imaginaçãovirara realidade, que virara filme, com o mesmo título, O Bandido daLuz Vermelha (1968), que projetaria Rogério nacionalmente e se tornariaa sua obra mais conhecida.

49 Concedida a Alessandra Bastos, repórter da Agência Brasil, em outubro de 2003. Osite a publicou em janeiro de 2004 e não informa se foi publicada em algum veículo damídia impressa. Participaram da conversa com Rogério Sganzerla: Roberto Ronchezel,Helena Ignez, Guilherme Marback e Djin Sganzerla.

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Trinta e seis anos se passaram desde que seu primeiro filme foirodado. Um hospital, em São Paulo, onde Sganzerla foi operado do tumorno cérebro, foi cenário de uma longa conversa, em outubro de 2003. Apedido da imprensa e por intermédio de seu assessor e amigo RobertoRonchezel, Sganzerla se abriu em um extenso depoimento sobre suavida e obra. Debilitado pelo câncer, Rogério estava com dificuldadespara falar e sua mulher, a atriz Helena Ignez, e Ronchezel tambémparticiparam do bate-papo. O texto, aqui publicado, é a íntegra destaconversa.

- Como você escolhe os elencos de seus filmes? Quem são seusatores?

RRRRRogério - ogério - ogério - ogério - ogério - Nos meus filmes os atores contribuem com novo estilo deinterpretação, de desincorporação, uma nova técnica de reinvenção.Temos que evitar essa “capa de França” de criar ou não criar modelosde comportamento e de formas advindas de outros países. Temos quecriar o que é nosso mesmo. No Bandido havia uma diversidade deexpressão e mostrava as coisas por dentro e por fora. Dirijo os atores emmovimento e eles exercem total liberdade de estilo, para poderem sermais sinceros. Os atores são pessoas amigas que me protegem nosmomentos difíceis da filmagem e me capitalizam em busca de um sistemaverdadeiro capaz de apreender todas as mutações, que são registros doprocesso histórico que estamos vivendo agora e depois...

Helena Ignez - Helena Ignez - Helena Ignez - Helena Ignez - Helena Ignez - Conversamos muito sobre o antifilme e Rogériosempre fala nessa época dos superfilmes, das superproduções. Nessecontexto ele decide chamar O Signo de o antifilme, que é o contrário dosuperfilme, do grande filme. É um filme para descosturar, como ele diz.Interessante também que houve um crítico que disse que O Signo é ofilme mais parecido com o Bandido... Acho bonito esse jeito que eletrabalha e isso que ele disse, que os atores o protegiam no momento dafilmagem. Os atores não eram dominados pelo diretor. Eram professores,amigos e que desvendavam as mutações históricas... Isso foi definitivona minha vida. Sou uma atriz do movimento. Hoje isso corresponde a50 por cento da minha expressão total. O movimento, tanto quanto oclose, se completam. Para mim Rogério é um dos maiores mestres deatores do cinema. O resultado que eles conseguem, às vezes nem sãoatores especificamente, ou são atores bissextos, como Otávio Terceiro,que tem realmente uma atuação fenomenal – ele conseguiu isso através

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de uma simbiose, de uma relação muito profunda com o diretor, umacolaboração – como o Rogério diz, de proteção, mesmo. Protetor daobra que está realizando. Isso, nós atores que trabalhamos com ele, nósconseguimos por que ele nos dá essa oportunidade de liberdade e issose torna inesquecível. Mesmo a Camila Pitanga, depois de ter visto ofilme, agradeceu a Rogério a oportunidade de ter trabalhado com ele.Ela, como um ser humano sensível percebeu a raridade que é para umator trabalhar com um diretor desse nível. Acredito que o Kubrick, pelosresultados que a gente vê nos filmes dele, também deve ter essa magia,esse conhecimento profundo do que é e um respeito profundíssimo pelotrabalho do ator. Então o ator se torna extremamente autoral.

RRRRRogério -ogério -ogério -ogério -ogério - seria uma coisa horrível se fossem padrões de com-portamento separados, níveis de interpretação. Na época nós tínhamoshorror em colocar as coisas como se fossem diferentes camadas darealidade. Acho que não tinha sentido captar tudo como se fossemcamadas separadas. Acho que Helena falou muito bem sobre simbiosee o Kubrick, do bom com o falso, que nem aquele manifesto meu “oarquifalso é tão falso quanto o falso”. Tem que criar um suprasumo deorientação visível, por exemplo, aquele filme The Killing, um trhiller,um filme bem cafona do Stanley Kubrick com Sterling Hayden... oKubrick é um dos mais perfeitos diretores – recomendo sempre aosnovos cineastas. Não incorreu nunca em um grande erro. O Kubrick é apedra de toque do cinema. Você vê aquelas coisas falsas, voluntariamentefalsas, como um cara de espingarda andando pela rua, fazendo os maioresabsurdos, dando tiros... acho que isso é o século XX. Sem dúvida é omaior cineasta americano e autoral.

- Seu cinema sempre foi de ruptura, mas seus personagens, mesmocom os comportamentos mais estranhos sempre mantiveram um certorecato e pudor. Como é que você vê o erotismo do cinema comercial,próximo da pornografia?

RRRRRogério - ogério - ogério - ogério - ogério - Meu cinema sempre foi de ruptura – inclusive com meuspróprios modelos. Tive que buscar essas rupturas. Esse é mais umrecurso, como esses outros recursos. Utilizar recursos no cinema é sempreproveitoso, desde que consiga infundir um certo balanço ao filme. Porexemplo, um arco que libere uma flecha, não pode ser aquela coisaóbvia de filme de mocinho e bandido. Não podemos ser óbvios na tela.

- Outro dia você disse uma frase sobre o sentido de fazer cinema

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que acabamos colocando no texto de abertura de Gramado. Achei afrase muito bonita. A Silvana, da Folha, que pediu para passar essasperguntas para você também ouviu e eu queria que você comentasse oque disse naquele dia: “Fazer cinema é como descrever um movimentoimpetuoso numa folha em branco pegando fogo”.

RRRRRogério - ogério - ogério - ogério - ogério - A idéia do movimento, do trabalho...Helena - Helena - Helena - Helena - Helena - É um êxtase. Um êxtase violento, profundo. A mim me

traz imagens também da poesia de Rimbaud, esse êxtase da criação,também destrutivo, o fogo que queima, a presença do mesmo fogo quedestrói a própria arte recriando, que tem no final do Signo... aquelaimagem ocasional e casual e profundamente recorrente, que é a imagemdo Deus Shiva dançando e o próprio fogo. Ele queima o universo atravésde sua dança. Shiva destrói renascendo. Ele é a parte da destruição nouniverso. Na tríade ele é a destruição recriadora através da dança e daarte. Ele é o próprio deus da arte e acabou sendo um dos símbolos doSigno do Caos. Eu sei que foi um signo não procurado, mas encontrado,um signo que foi até o filme. Inicialmente ele não teria essa idéia deprocurar essa imagem. Essa imagem aconteceu em um porão e ele deuaquele movimento. Isso tem um sentido cosmogônico...

RRRRRogério - ogério - ogério - ogério - ogério - Totalmente... O Deus da dança... que Helena muito bemacabou de falar... por que essa (a cosmogonia) é única saída para ocinema moderno e isso tem que ter no final do nosso novo filme (LuzNas Trevas – Revolta de Luz Vermelha).

- Você está falando daquela chegada dele como um anjo?RRRRRogério - ogério - ogério - ogério - ogério - É. O anjo exterminador, o anjo tem que se comportar

assim. Buñuel viu isso. Se não tem isso, então não vale. O que meaborrece é que tudo o que vem por trás se recorre a isso. Estou vendomuita aliteração e pouca incorporação. Não há uma incorporação desseespírito. Nós não temos um cinema à altura de nosso século, por causadessa estruturação do pensamento humano. Ninguém vai se oferecerpara trabalhar nesse ... ninguém vai se propor a compreender o que estáacontecendo neste momento. Luz nas Trevas... esse nome é explícitodemais - as trevas do nosso tempo, as trevas da cultura brasileira, astrevas paulistas. Acho que está todo mundo por fora, as pessoas estãopor fora, não estão entendendo nada. Não sabem o que estão fazendo.Não quero ser profeta em meio ao caos. Quero que os outros tambémentendam isso. Está tão na cara! Temos bons cineastas, eu vejo aí bons

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filmes, algumas surpresas, mas é só diluição. Acho que tudo isso foianunciado por Kubrick e pelos maiores cineastas americanos da décadade 50. Eles ainda não estavam a serviço dessa diluição controlada pelaburocracia sentimental.

- Sempre que a gente conversa sobre cinema você fala sobre a sintaxe.Parece espantosa essa comparação entre o Signo e o Bandido, porque asintaxe já não é mais a mesma. Você também se queixa de sintaxe nocinema atual. Ele não tem linguagem...

RRRRRogério - ogério - ogério - ogério - ogério - Faltou linguagem depois do Bandido. Ninguém está semancando. Naquele momento estávamos sintonizados. Nós éramos muitocultos naquele momento, não é Beto? E por que? Faltaram condiçõeshistóricas para nos deixar acontecer.

- Foi por isso que você foi embora do país naquele momento?RRRRRogério -ogério -ogério -ogério -ogério - Foi. Os produtores se tornaram muito ingênuos, não

entendiam mais nada de cinema. O cinema tem de ter linguagem. Temde ter estrutura. Aqui em São Paulo perdeu-se a sintaxe do cinema eperdeu-se também até a dignidade do cinema. E não se culpem osrealizadores por isso. Os produtores...

Helena - Helena - Helena - Helena - Helena - Os produtores que se tornaram reprodutores...RRRRRogério - ogério - ogério - ogério - ogério - Os cineastas não têm apoio nenhum para a construção de

suas próprias linguagens. Qual é o apoio que os cineastas têm? Nenhum.- A linguagem do cinema está se transformando em corruptela da

televisão?RRRRRogério - ogério - ogério - ogério - ogério - Ah, está. Acho que foi justamente o nosso cinema, que é

o mais criativo do mundo, que foi vítima de uma conspiração ambientalpara liquidar o talento, que é a matéria prima do cinema. Essa gentenão entende nada do que seja essa matéria prima. Na prática é isso.

- Nunca falamos sobre isso, mas tenho a impressão que o Glauber...RRRRRogério - ogério - ogério - ogério - ogério - Também sofreu muito...- Vocês não tinham relação próxima, mas eram interlocutores? A

solidão aumentou depois que Glauber se foi? A combatividade dele tefez falta?

RRRRRogério - ogério - ogério - ogério - ogério - Fez. Glauber era uma figura lancinante. Como ele erabaiano, ele entendia e era um cara bacana também. Entendia que eranecessário isso. Não podia ser feito em paz. Ele achava que o embate

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Seção 3 Fragmentos (epílogo)

era importante entre as pessoas. Ele gostava de se assumir como... Helenasabe mais do que eu sobre isso. Para haver debate tem que haver inter-locução. Tem que ter a estética dele criando polêmica dentro da estética.Vou passar a bola para a Helena.

- Espera um pouco, você não falou dela como atriz. Ela estevepresente em quase todos os seus filmes e virou quase uma atriz símbolo.Além disso, O Signo do Caos foi também o filme de estréia de Djin. Oque você diria das duas como atrizes?

RRRRRogério - ogério - ogério - ogério - ogério - Extraordinárias. Sempre ouvi das duas e dos meus amigosque trabalhavam também nessa área, que nem parecia que estavamsendo filmados, que nem parecia que eu estava dirigindo.

Djin –Djin –Djin –Djin –Djin – Nem parece mesmo que a gente está fazendo um filme.- Existem outros atores, que eram personagens, como o Zé Boni-

tinho...RRRRRogério - ogério - ogério - ogério - ogério - Extraordinário. Ele deu um presente de São Paulo. São

Paulo não me deu dinheiro para filmar. Nem a mim e nem aos outrosque deram muito, como o Roberto Santos, o Person, que eu assisti tra-balhar – filmes com estilo, coisa que os filmes de São Paulo de hoje nãotêm. Esses filmes que a gente conseguiu fazer mostram um outro SãoPaulo. Só os grandes filmes paulistas é que conseguem.

- Queria que você falasse um pouco sobre o Aranha (Sem essa,Aranha).

RRRRRogério -ogério -ogério -ogério -ogério - Esse era o meu projeto inicial. Esse era o filme com oqual iria estrear. O Bandido tinha 500 planos. Esse seria um filme deseis tomadas, seis porradas...

- Mas ele foi uma porrada, não foi?RRRRRogério -ogério -ogério -ogério -ogério - Foi e não conseguiu se juntar com o resto da produção.

Quer dizer, até que conseguiu. Era um longo projeto. Seria um filme de12 planos. 12 takes. Um bloco mais concreto. Uma forma de dissoluçãoe caos.

- O Aranha virou um cult, visto hoje, fora do Brasil, por cineastas...RRRRRogério -ogério -ogério -ogério -ogério - Meia dúzia... os jovens não têm acesso a esse tipo de

cinema porque os professores são umas toupeiras. Quem aprende erradofaz errado. Toda vez que passa, enche. As oportunidades são únicas.Helena é que vai dizer o que deve ser feito agora...

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Helena - Helena - Helena - Helena - Helena - O que queremos neste momento é fazer, com a ajuda doMinistério da Cultura, neste bom momento para o cinema, que tome afrente do projeto de uma grande retrospectiva completa dos filmes deRogério – dos filmes completos e incompletos – todo o trabalho dele,com a produção de novas cópias, para ser mostrado e estudado.

- No dia da apresentação do Signo no Festival do Rio, você utilizouuma metáfora, pedindo para que os jovens concluíssem esse filme. Vocêestava se referindo ao filme O Signo do Caos, ou a um cinema experi-mental, de arte?

RRRRRogério - ogério - ogério - ogério - ogério - Não se fechar. Buscar uma linguagem operante.- Quanto ao Signo do Caos, você acha que é uma linguagem para o

jovem de hoje, com o jovem que está acostumado com a linguagem daTV?

RRRRRogério -ogério -ogério -ogério -ogério - O filme vai deformar as pessoas. O melhor caminho parao cinema moderno é esse: Einsenstein com Orson Welles. Depois dissoo que poderia acontecer? O filme Sem essa, Aranha devia passar nasescolas de comunicação. Não tem nada melhor nos anos 70. A câmeraque vai, vai, opera, opera... isso deveria passar nas escolas de comu-nicação. Infelizmente, no Brasil não temos uma cinemateca à altura dosnossos “cinematequeiros”. Até a música (Qualquer coisa, de CaetanoVeloso) é fantástica. O nome é Sem essa, Aranha. Aranha é o personagemde Zé Bonitinho, quer dizer, corta essa, não dá!

- Quanto ao novo projeto, Luz nas Trevas – Revolta de Luz Vermelha.Qual a gênese que você faz desse personagem? É o mesmo bandido?

RRRRRogério - ogério - ogério - ogério - ogério - Em primeiro lugar, denominamos Luz e não Bandido, aopoderoso experimento de linguagem urbana amortizado no lançamentoem São Paulo, premiado nos festivais nacionais e triturado aqui e láfora, por todo tipo de admiradores – confessos e inconfessáveis, amigose inimigos da continuidade da luminosidade. Eu acredito na continuidadeda luminosidade. No Bandido não houve isso. Vai haver no novo projeto.Vinte anos depois esse filme ainda é um mito para o imaginário urbano.O novo Luz não pode ser uma diminuição.

- Neste momento você está de convalescença lançando O Signo doCaos. Como é que você gostaria que as pessoas saíssem do cinema depoisde assistir ao filme?

RRRRRogério -ogério -ogério -ogério -ogério - Baratinadas!

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O cineasta da transgressãoO cineasta da transgressãoO cineasta da transgressãoO cineasta da transgressãoO cineasta da transgressão 50

“O cinema teria que ser escrito em uma folha em branco pegandofogo para poder registrar esse movimento de captação do pensamentode um filme, durante sua realização”. Com essas palavras, lidas por suaesposa, a atriz e um dia musa do Cinema Novo Helena Ignez, durante oúltimo Festival de Gramado, Sganzerla proclamou sua ressurreição dascinzas do ocaso.

“Meu cinema sempre foi de ruptura – inclusive com meus própriosmodelos. Tive que buscar essas rupturas. Esse é mais um recurso, comotantos outros. Utilizar recursos no cinema é sempre proveitoso, desdeque consiga infundir um certo balanço ao filme. Por exemplo, um arcoque libere uma flecha não pode ser aquela coisa óbvia de filme democinho e bandido. Não podemos ser óbvios na tela”, afirma Rogério,por meio de sua assessoria de imprensa.

“Acho que foi justamente o nosso cinema, que é o mais criativo domundo, que foi vítima de uma conspiração ambiental para liquidar otalento, que é a matéria-prima do cinema. Essa gente não entende nadado que seja essa matéria-prima. Na prática é isso.”

O Antropófago de Cadillac VO Antropófago de Cadillac VO Antropófago de Cadillac VO Antropófago de Cadillac VO Antropófago de Cadillac Verdeerdeerdeerdeerde 51

Encontro com o antropófago do salão: - “Vamos longe dos saudosostempos de ‘nú artístico’! A erótica já foi atingida através do esporte e dapraia. A polierótica que Haverlock Ellis assinala como condição demonogamia exacerbou-se até a compreensão e o aplauso de um conceitomatrimonial da família. Isso, mais que na Rússia, nos Estados Unidos éum fato. As mulheres é que regem as grandes fortunas. Voltamos àsamazonas de tipo bancário...”

50 Trechos de Rogério numa reportagem de Rodrigo Fonseca, publicada na Revista deCinema, quinta-feira, 15 de julho de 2004.51 Artigo publicado na Revista Cult - Ano VI - Janeiro de 2004 - Seção “Radar”.

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Alô alô Rogério Sganzerla!

Numa época de grandes perdas, vale a pena refletir sobre a re-cessividade e estrutura do riso, da piada, do humor - recurso fundamen-tal para tratar da dor, sobretudo no Terceiro Mundo - de um dos nossosmaiores piadistas, o poeta, romancista, teatrólogo e ensaísta Oswald deAndrade (1890 - 1954). Mais do que seus colegas do Modernismo, umhomem de espírito permanentemente inspirado, mestre da renovaçãoliterária e ponta-de-lança na evolução cultural do país na primeira fasedo século passado. Amigo de Cocteau e Picasso, manteve contato com avanguarda com seus “salões” do Modernismo, que aram a nossa poesiae pintura e outras conquistas da sensibilidade intuitiva, que o conduzirama um saudável anarquismo...

Num só dia - quando da débâcle do café, em 1929 - perdeu tudo...(grande parte dos terrenos “desvalorizados” de Cerqueira César, porexemplo), Oswald de Andrade conheceu a pobreza como cotidiano,agravada por prisões e fugas, questões judiciais, escândalos amorosos eoutros excessos precoces, inaceitáveis na então provinciana São Paulo.Conforme ele mesmo confessa, “criou-se, então, a fábula de que eu sófazia piada e irreverência e uma cortina de silêncio tentou encobrir aação pioneira que dera o Pau-Brasil...” Acentuou-se a rejeição e amarginalização de sua obra. Naquela época, dizia-se que só havia umacoisa mais espantosa do que uma primeira edição de Oswald de Andrade:uma segunda edição... Tiragens reduzidas praticamente inéditas,reedições póstumas de uma obra importantíssima em prosa e verso, alémdo teatro profético e de ensaios exuberantes, maravilhosamente bemescritos, confirmam a vocação para o desperdício de toda a literaturaacadêmica brasileira. Na verdade, jamais lhe perdoaram a inesgotávelcapacidade de debochar de tudo e de todos, sobretudo de seus colegase dele próprio. Para os padrões acanhados de uma semi-colônia, oAntropófago de Cadillac Verde só poderia contrair dívidas e cultivarinimizades, pois se definia como um “homem sem profissão”. Mesmoassim, lúcido, “no apogeu histórico da fortuna burguesa Século doSerafim ou da fortuna mal adquirida”... (...) Meu Cadillac Verde é oúnico automóvel em São Paulo, equipado com cinzeiro... (...) Sou maisamigo da verdade do que de Plauto. Principalmente quando Plauto écanalha e a verdade é gozada.” (...) “Literalmente, minha carreira foitumultuosa. Pode-se dizer que iniciou com a Semana de Arte Modernade 1922. Publiquei então Os Condenados e Memórias sentimentais de

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Seção 3 Fragmentos (epílogo)

João Miramar. Descobri o poeta Mario de Andrade,do que muito me honro. Iniciei o movimento Pau-Brasil que trouxe à nossa poesia e à nossa pintura asua latitude exata, Daí passei ao movimentoAntropofágico, que ofereceu ao Brasil dois presen-tes régios: Macunaíma, de Mario de Andrade, eCobra Norato, de Raul Bopp. O divisor das águasde 1930 me jogou para o lado esquerdo, onde tenhome conservado com inteira consciência e inteirarazão...”

Para o criador de Marco Zero, onde tenta (e consegue) captar asoma dos barbarismos e neologismos, oriundos da miscigenação dedialetos imigrantes, imantados na nossa terra, “a verdade é sempreinterpretada, acomodada, em um fim construtivo e pedagógico, é a Ge-stalt que suprime a dispersão do detalhe e a inutilidade do efêmero”. Sóassim, a partir do semáforo modernista, será possível acertar o passocom o mundo ou, pelo menos, tirar o meridiano exato de nossa horahistórica.

“O que faz o Brasil exultar assim é a sua superstição pela lei escrita- um velho complexo de inferioridade, oriundo do caos político socialem que se plasma. Onde soam fundo as obras totêmicas e justificadorasdo seu caminho - Os Sertões, Casa Grande e Senzala. Somos o país doHomem Cordial de Sérgio Buarque e da Cobra Grande de Bopp. Fomosarrastados para o colégio pelo jesuíta. Péssimos alunos, gostando deberimbau e de olhar pela janela o trilo dos pássaros em vez de decoraras declinações. E agora, depois de muita surra, ganhamos um bom ponto,onde está escrito em letras de ouro: Honra.” 52

52 (Referência impressa) Tido como último artigo escrito por Rogério. Tenho minhasdúvidas quanto a ter sido o último que escreveu, com certeza é o último que deu parapublicar em vida, e já sabendo que estava a um passo da porta que dá para eternidade.Lembro-me de um artigo dele sobre Oswald mas não posso afirmar que seja este. Otítulo estou certo de que era outro. A seção “Radar”da Revista Cult, onde foi publicadoé destinada a textos “de gaveta” dos autores que publica. Independente de ser o últimoartigo ou não, para Rogério o que vale é a montagem. E quando ele decidiu publicá-loestava, sem dúvida nenhuma, montando o plano final (que é tão importante como oprimeiro) da sua obra - e como não poderia deixar de ser para um gênio da montagem -retomando-a e avançando-a para além do seu “ponto de partida avançado”, isto é, pore a partir de Oswald de Andrade (a caricatura acima é de Voltolino).

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Retrato de Oswald de Andrade,em desenho de Oswald de Andrade Filho (Nonê)

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VIVVIVVIVVIVVIVA ROGÉRIO !A ROGÉRIO !A ROGÉRIO !A ROGÉRIO !A ROGÉRIO !

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ÍndiceÍndiceÍndiceÍndiceÍndice

Carta a Rogério, na História, vii

O Projeto Editorial, xiii

Critérios do presente ante-projeto, xxi

FFFFFragmentos da obra literária de Rragmentos da obra literária de Rragmentos da obra literária de Rragmentos da obra literária de Rragmentos da obra literária de Rogério Saganzerlaogério Saganzerlaogério Saganzerlaogério Saganzerlaogério Saganzerla

Seção 1: teSeção 1: teSeção 1: teSeção 1: teSeção 1: textos de 1965 a 1995xtos de 1965 a 1995xtos de 1965 a 1995xtos de 1965 a 1995xtos de 1965 a 1995, 23

O legado de Kane (artigo - 1965), 25

Cinema fora-da-lei (Manifesto - 1968), 29

Depoimentos (entrevista - 1968), 30

Sganzerla ataca de Bandido (entrevista - 1968), 32

Notas para O Índio e a Vampira (argumento - 1968), 35

Filme em questão (polêmica - 1969), 36

A Exibicionista (argumento - 1969*), 37

Betty Bomba (argumento - 1969*), 39

Betty Bomba, a Exibicionista (argumento - 1969*), 41

A Pornográfica (argumento - 1969*), 42

A Mulher de Todos (roteiro - 1969), 45

O incômodo Rogério Sganzerla (entrevista - 1970), 50

Helena-a mulher de todos-e seu homem (entrevista - 1970), 52

A questão da cultura (artigo - 1970), 74

Monumental Aprendi (esboço de argumento - 1970), 79

3 resumos de O Capitão do Cangaço (argumentos - 1972*), 80

Abismu (sinopse - 1977*), 84

Jimi, gênio total (artigo - 1980), 89

Retiro Espiritual (artigo - 1980), 93

O Poeta da Vila (argumento - 1980*), 96

Ponto de partida avançado (polêmica - 1981), 98

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Pernetas querendo andar de patins (crítica - 1981), 99

Minas - Cinema - Geral (crítica - 1981), 102

A Embrafilme e seus descalabros (polêmica - 1982), 104

O cão ladra e a caravana da Embrafilme (polêmica - 1982), 111

Cara e Alma (Manifesto - 1984), 113

Uma videologia de novela (crítica - 1988), 118

Bossa Nossa (artigo - 1988), 123

A luz do Bandido (entrevista - 1990), 125

A Belair (entrevista - 1990), 128

Do Festival de Taormina (crítica - 1994*), 130

Seção 2: teSeção 2: teSeção 2: teSeção 2: teSeção 2: textos de 1996 a 2003xtos de 1996 a 2003xtos de 1996 a 2003xtos de 1996 a 2003xtos de 1996 a 2003, 133

No rastro de Orson Welles (entrevista - 1996), 135

Tudo é Brasil (press-release - 1997), 138

Um bate-papo de Sganzerla com Renoldi (vídeo - 2001), 139

Todos os maus filmes já foram feitos (artigo - 2002), 154

Sganzerla ironiza o balcão de favores... (reportagem - 2003), 155

Seção 3: Epílogo: sobre Seção 3: Epílogo: sobre Seção 3: Epílogo: sobre Seção 3: Epílogo: sobre Seção 3: Epílogo: sobre O Signo do CaosO Signo do CaosO Signo do CaosO Signo do CaosO Signo do Caos e últimos te e últimos te e últimos te e últimos te e últimos textosxtosxtosxtosxtos, 157

A propósito de O Signo do Caos (artigo - 2003), 160

Última entrevista (2003), 162

O cineasta da transgressão (trechos de entrevistas - 2004), 169

O Antropófago de Cadillac verde (artigo - 2004), 169

(* - datas estimadas)

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É isso aí, irmão, enfim o fim do nosso “boneco” (chega dechamá-lo de ante-projeto, as gírias de oficina falam melhoraqui). Uma semana de trabalho e curtição! Os bonecos de hojese parecem com os livros, não é? Neste, só não me satisfazemos tratamentos de capa e imagens em geral. Apesar de achá-las boas idéias gráficas o Photoshop não é a minha praia - e eufiz questão de fazer tudo sozinho. O Photoshop é a clicheria e afotomecânica dos recursos totais, o sonho dos velhos gravuristase montadores. Sem os cheiros de ácidos e químicos. Já o Page-Maker, este sim, rodo melhor. Tem tudo aquilo que você conhe-ceu nas oficinas gráficas dos jornais da década de 60: os galés,as ramas, os componedores, os linotipos, as tituleiras, uma tipo-grafia infinita, com fontes desenhadas por todos os type-de-signers de todos os tempos, e todos os corpos de letra dese-jados, não sei se para o bem ou para o mal. E eu neste tecladofui aquele exército de oficiais e peões que inundavam as ofici-nas. Fui carregador de galés, tipógrafo auxiliar, tipógrafo classeA, diagramador, paginador, linotipista, estereotipista, revisor,leiautista, chefe de oficina, projetista-gráfico e editor. Foi ótimotrabalhar com os Bodoni nas massas de texto corrido, coisaque não fazia desde aprendiz da tipografia clássica de mestreIldeu. Juntei-os aos Futura, nas titulagens de diagrama, numacombinação que espero nos dar uma atmosfera da década de40 - a década de ouro da tipografia e do cinema. Tirei provasnum prelo eletrônico caseiro, de minha propriedade. Uma má-quina impressora eletrônica que contratei imprimiu em cader-nos os 21 exemplares, tirados em papéis vergé pérola 80 g/m2(miolo) e 180 g/m2 (capas) fabricados pela Salto. Edson Herna-ni deu acabamento, costurou e brochurou, na velha e artesanalmaneira. Nem precisaria dizer, fui também o produtor gráfico.Acabaram-se os trabalhos no mês de setembro do ano da des-graça de dois mil e quatro (ainda não houve um “ano da graça”neste milênio). E eu, contando com a sua graça e esperandoque nosso empenho não tenha sido de graça, numero e assino,na antiga praxe hors commerce, cada um dos 21 bonecos oraconquistados para o seu futuro livro, a fim de distribui-los comoprometi. E que nos venha logo esse futuro!

Exemplar nº