Eu não trabalho com símbolos.

14
168

Transcript of Eu não trabalho com símbolos.

168

169

Banheira para umaheroína, 1950-1984,bronzeem cima : 31x7x7,5cm;embaixo: 9,5x13x28cmFonte das imagens: Les Cahiersdu Musée National d’artmoderne, n.58, Paris: CentreGeorges Pompidou, 1996

T E M Á T I C A S • J E A N - P H I L I P P E A N T O I N E

Pourquoi tout événement est-il du typela peste, la guerre, la blessure, la mort?Gilles Deleuze**

Os trabalhos de Joseph Beuys definem umcorpus cuja apreensão abandona o especta-dor inadvertido no desamparo, sem recursoimediato: objetos residuais, detritos usadosde um cotidiano essencialmente biográfico,pesados pedaços disjuntos de maquinário ousuas reproduções fragmentares, blocos degordura, pedaços de feltro, salsichasressecadas, lascas de unhas, nada disso rei-vindica pertencimento à arte. A apresenta-ção em vitrinas de museu de certo númerodesses objetos, longe de redimi-los, acen-tua, ao contrário, a impressão de paródicaagressão às instituições que os abrigam.Quanto ao especialista blasé das nomencla-turas da arte contemporânea, que conside-ra placidamente essas acumulações de de-tritos, ele se encontra possivelmente emposição ainda pior, por ter antecipadamen-te desistido de sua capacidade de experi-mentar o que lhe é apresentado.

Jean-Philippe AntoineQuestiona a lógica de construção da imagem no vasto projeto social e político dotrabalho de Beuys. Analisa a relação entre recusa à interpretação e à representaçãoindicada pelos procedimentos envolvidos nos modos de recepção, instalação eação dos objetos do artista e sua reivindicação da questão da língua e da racionalidadecomo motor primeiro de sua produção. Examina essa outra lógica de construçãoda imagem e os processos de rememoração, que atuam nos trabalhos do artista,referindo-se à tríade de categorias do signo, inventadas por Pierce, e ao que quali-fica de estratégia do índice.

Índice, imagem, experiência, acontecimento-chave, Beuys.

“Eu não trabalho com símbolos.”Joseph Beuys, a experiência e a construção da lembrança*

A atitude do artista parece reconduzir esseparadoxo. Beuys, sempre disposto a escla-recer o por que de seu trabalho,1 não dei-xou de falar a respeito, com uma generosi-dade quase suspeita. Porém, por outro lado,parece relegar ao vazio qualquer comentá-rio, através de repetidas declarações indican-do que a interpretação de suas obras é se-cundária: “Uma interpretação prematuradestrói o impacto de uma imagem. Devemosantes de mais nada vivê-la, uma primeira, umasegunda, uma terceira vez. Só depois a inter-pretação se tornará interessante.”2Beuys afirma ainda, na discussão sobre osfilmes Mesa e O bastão da Eurásia, que do-cumentam as ações homônimas:

Se eu pudesse, por assim dizer, tudoverbalizar e tudo traduzir em concei-tos, não vejo por que eu teria feito taisfilmes: eu poderia me contentar emescrever tais conceitos. Do modo comotais filmes são feitos, há toda uma sériede coisas que intervêm que não se podeinterpretar imediatamente (...) Como já

170

o disse, gostaria que se renunciasse àsinterpretações (...) Prefiro falar sobre opensamento que se descobre por ca-minhos paralelos. Caso contrário seriapreciso dizer novamente o que isto ouaquilo, quer dizer, precisaria forneceruma síntese de ideias.3

O fio infrafino sobre o qual tais proposiçõesde Beuys instalam a discussão de seu em-preendimento possui, no entanto, uma rea-lidade: a dos procedimentos, que, antes dequalquer vontade de interpretação, arcamcom a produção, como também com osmodos de recepção de seus objetos, açõese instalações.I Acessórios para a lembrançaEsse fio condutor encontra sua expressãono papel de “muleta” ou de “acessório paraa lembrança” [Erinnerungstütze] destinadoà produção beuysiana, no âmbito de um vas-to projeto social e político: superar o trau-ma causado pela Segunda Guerra Mundial epelo nazismo na Alemanha, mas também, demodo amplo na Europa, e, por meio do“duro labor da rememoração”,4 exibir os sin-tomas da doença da cultura que tornou pos-sível tal catástrofe, a fim de, uma vez identi-ficados, curar o corpo social. Exibir os sinto-mas do mal, dando-os a experimentar, é efe-tivamente tornar possível uma tomada deconsciência que orienta o retorno à saúde,ou seja, ao equilíbrio dinâmico de forças.Assim como Freud podia escrever comBreuer, no princípio de seus Estudos sobrea histeria, que “é de reminiscências princi-palmente que sofre o histérico”,5 tambémpara Beuys é de reminiscências que sofre ocorpo social alemão e europeu. Uma lem-brança negada pela consciência continua aafetá-la, sem que ela a reconheça, e produzsintomas traumáticos de uma “doença porrepresentação”, para retomar a caracteriza-ção da histeria proposta por Paul Janet.

As fabricações beuysianas visam trazer à luzdo dia os “símbolos mnésicos” (Freud) quetrabalham silenciosamente essa doença so-cial e levar o espectador ao reconhecimen-to dos afetos que eles comportam. Assimtestemunham as palavras do artista a respei-to de seus múltiplos:

Tudo isso é um jogo que, auxiliado poressa informação, pretende lançar âncorade um veículo em algum lugar ao re-dor, de sorte que mais tarde as pessoaspossam repensar a respeito. E uma es-pécie de muleta para a lembrança.

Para mim, cada edição tem o caráter de umnúcleo de condensação, em torno do qualmuitas coisas podem acumular-se.Vejam, todas essas pessoas que possuem umobjeto desse gênero continuarão a se inte-ressar pelo modo como o que está no pon-to de partida desses veículos se desenvolve(...) Há uma real afinidade entre as pessoasque possuem tais objetos, tais veículos. Écomo uma antena fixada em algum lugar,com a qual permanecemos em contato.6A essas observações fazem eco alguns anosmais tarde as que concernem à Vitrina deAuschwitz Demonstração. Recusando qual-quer projeto de representação do horror Parada de bonde

em Cleves, 1950

171T E M Á T I C A S • J E A N - P H I L I P P E A N T O I N E

dos campos da morte, Beuys declara a pro-pósito dessa obra:

Não passa de uma tentativa para en-contrar um remédio de rememoração.E isso em função de ações que vão maislonge (...) Tais ações permitem afinal decontas preparar alguma coisa, algumacoisa que não pode ser representadapor essa imagem de horror. Ela nãopode ser representada por uma ima-gem. Esse horror só foi representáveldurante seu próprio processo, no mo-mento em que aconteceu. Portanto, éimpossível traduzi-lo por uma imagem.Esses acontecimentos só podem sermemorizados a partir de umacontraimagem positiva, posto que tudoisso foi verdadeiramente eliminado domundo e do homem a fim de que oresto desta inumanidade seja superado.7

A conjunção dos termos muleta e remédio,empregados para caracterizar a eficiência dosmúltiplos, destaca seu caráter flutuante. Ain-da que incessantemente pensados no âmbi-to de uma relação com o corpo vivo, suadefinição oscila entre a ação mecânica daprótese e aquela químico-orgânica, do medi-camento. A sobredeterminação metafóricanão para aí. Uma vez que caracteriza seusobjetos como veículos que lançam âncora oucomo estações e antenas emissoras, Beuys,cuja primeira formação militar foi a de opera-dor de rádio, articula um terceiro domínio demodelização: aquele das ondas e da eletrici-dade, cuja ação e transporte, imperceptíveisa olho nu, adquirem visibilidade através dedispositivos inventados para os isolar, mas tam-bém e principalmente os explorar.Transformadores, bombas e outros monu-mentos materiais presentes em certas insta-lações terão assim por função apresentarmodelos de condução, de conversão ou dedisposição da energia para um trabalho pro-

dutor de forma. Eles fornecem ao mesmotempo um elo metafórico suplementar aosprocessos mecânicos e químicos.Não se trata, no entanto, mesmo perseguin-do-se até seu termo as causas e asconsequências desses diversos registros pa-ralelos, de fazer destes últimos os modelosfinais de eficácia das obras. Tal manobrainterpretativa resultaria na melhor das hipó-teses na constatação de suas incompatibili-dades recíprocas como “síntese de ideias”, eno diagnóstico de incoerência, ao passo que,para o próprio Beuys, o uso de máquinas,por exemplo, pertence primordialmente auma lógica de construção da imagem,8 e issoqualquer que seja o material empregado:objetos, palavras, esculturas, desenhos, am-bientes, ações. É essa lógica que importaagora interrogar e analisar.Um meio primitivo: o índiceEntre os meios empregados para colocá-laem prática, o primeiro lugar cabe ao quequalificaremos de estratégia indicial da ima-gem, fazendo referência à tríade de catego-rias inventadas por Charles S. Pierce paradistinguir diferentes modos no processo designificação: o ícone, o índice, e o símbolo.Peirce define o ícone como um signo querepresenta seu objeto por sua similaridadecom ele, “qualquer que seja seu modo deser (...) Uma coisa qualquer, qualidade, indi-víduo existente ou lei, é ícone de algumacoisa, desde que se pareça com ela e sejautilizado como seu signo”.9 Quanto ao índi-ce, ele é “um signo que remete ao objetoque denota porque é realmente afetado poresse objeto”, ou ainda “realmente modifica-do” por ele. Forma com ele “um par orgâni-co”.10 Por fim o símbolo é “um signo queremete ao objeto que ele denota em virtu-de de uma lei, normalmente uma associa-ção de ideias gerais, que determina a inter-

172

pretação do símbolo por referência a esseobjeto”.11Deve-se a Rosalind Krauss a popularizaçãoda eficácia da categoria índice para analisarcertas práticas da arte do século 20.12 Antes,porém, de desenvolver os diferentes aspec-tos dessa noção e a fim de evitar qualqueruso fetichista, convém observar com Pierceque, “num sistema perfeito de notação lógi-ca, é necessário empregar os signos de cadaum desses gêneros”.13 Por consequência,qualquer fixação exclusiva ou quase exclusi-va sobre a dimensão indicial dos signos14 pri-va-se das possibilidades de compreensão li-gadas à dimensão icônica e simbólica dosigno ou pelo menos as rejeita para seuexterior. Isso é importante para a análise dasestratégias beuysianas. Quando ele declararenunciar à interpretação e à “síntese deideias”, quando ele recusa, com algumasexceções, o termo símbolo, muito frequen-temente aplicado a suas obras,15 Beuysexplicita de fato uma estratégia que seus tra-balhos de modo sistemático colocam emprática: a recusa do símbolo, quer dizer deum signo convencional – eficaz em funçãode leis e de hábitos regrados –, e do íconeenquanto parte integrante dos símbolos16 emproveito quase exclusivo deste “meioprimitivo”que é o índice.“Meio primitivo”, o índice o é a diversos tí-tulos. O primeiro é o caráter físico da cone-xão que ele mantém com seu objeto, que odistingue radicalmente dos outros dois mo-dos de significação. Onde o estabelecimen-to de semelhança icônica ou do estatuto sim-bólico de um objeto é a marca de atividadeprévia do espírito, a ligação física entre o ín-dice e seu objeto precede necessariamenteesta última: “Eles formam um par orgânico,mas o espírito que interpreta nada tem afazer com esse vínculo, salvo constatá-lodepois que ele estiver estabelecido.”17 A di-mensão indicial produz portanto o aparente

paradoxo de um signo nascido diretamentedo e dentro do objeto, e esse signo resiste àinterpretação, como o indicam claramentetrês “traços característicos” corolários – a)Os índices não possuem “nenhuma seme-lhança significante com seus objetos”: a fu-maça não se parece mais com o fogo queela denota do que uma batida na porta separece com a visita que ela sinaliza. b) “Elesremetem a indivíduos, unidades singulares,coleções singulares de unidades ou de con-tínuos singulares”: é impossível abstrair umíndice das circunstâncias que o rodeiam elevá-lo a significar ou a parecer em geral,como o faz o símbolo. c) “Eles dirigem a aten-ção sobre seus objetos por impulsão cega”:discute-se a existência de alguma semelhan-ça ou o valor de um símbolo, mas o índiceimpõe-se em bloco, sem necessitar – muitomenos instaurar – o ponto de vista que im-plica uma atividade mental.Este último traço destaca seu caráterprescritivo: ele se impõe – e impõe – a aten-ção. É ele que intima ao espírito uma direção,mas também, e simultaneamente, uma dire-ção desarrazoada: “Tudo que chama a aten-ção é um índice. Tudo aquilo que nos surpre-ende é um índice, posto que ele marca a jun-ção entre duas posições da experiência.”18“Marcar a junção entre duas posições daexperiência” não implica que o índice cons-titua síntese das posições que ele reúne. Elemarca sua contiguidade, ou seja, a formamínima de associação entre objetos: ela dei-xa de fato inteiramente aberta a possibilida-de de que essa ligação signifique, no sentido,dessa vez, icônico ou simbólico da detecçãode semelhanças e de interpretação: “[O ín-dice] remete a seu objeto (...) porque eleestá em conexão dinâmica (até espacial) tan-to com o objeto individual de um lado quan-to, por outro, com o sentido ou a memóriada pessoa para a qual ele serve de signo.”19

173

Telefone de terra,1968materiais diversos, 20x 76 x 49cm

T E M Á T I C A S • J E A N - P H I L I P P E A N T O I N E

O caráter de conexão dinâmica atribuído àrelação do índice com o objeto individualsignifica que a junção entre duas posiçõesda experiência tem por vetor uma força, daqual o índice é o registro: a fumaça denota ofogo não pelas qualidades que possuem emcomum, mas por ser rastro do trabalho deforças que produziu o incêndio. O índicetambém é aquilo que conserva a dinâmicado acontecimento ao dirigir seu jogo de for-ças ao espírito, sob a forma de uma resis-tência a ele que define o real,20 cujo primei-ro efeito é a surpresa, o espanto ou mesmoo choque, ou o trauma.A prova da dimensão indicial é, portanto, ada resistência do objeto-índice, de um ladoa significar segundo convier à pessoa cujaatenção ele despertou, de outro lado a abo-lir-se inteiramente no presente imediato desua qualidade: o índice existe em oposiçãoou até mesmo em reação a seu objeto, aoqual ele remete como aquilo que ele não éou não é mais. Surpresa ou choque possuementão dupla direção. São a constatação deque uma força outra se exerce sobre o es-pírito – força contra a qual lhe cabe, porsua vez, exercer-se. O índice é, nesse senti-do, aquilo através do que a força advém aopensamento. Por seu intermédio, a forçapenetra a dimensão do pensar, vinda doexterior e como sua alteridade. E igualmen-te o caráter forçado dessa prova institui aexperiência enquanto tal.21 O pensar desco-

bre-se aí como uma força (re)agindo no real,como uma existência,22 dessa vez pela ativa-ção da vontade.23O índice é assim primordialmente aquilo querequer o esforço de uma reação, antes quequalquer significação se estabeleça. Sua pro-va sendo primeiro aquela de umainadequação em face da irrupção de circuns-tâncias e a força do real que elas manifes-tam, qualquer mobilização de energia paravencer tal resistência ou equilibrá-la é daordem de uma reação posterior. Ela émarcada por um atraso que define sua con-figuração temporal específica. Lugar singularonde continua insistindo um passado, eletambém singular. O índice não religa as di-mensões homogêneas de uma síntese tem-poral. Ele indica um acontecimento: a arestaformada pelos lados assimétricos que são oantes e o depois, aresta que não apreendediretamente nenhum ponto de vista atual.24A tensão dinâmica entre estas posições he-terogêneas tem por resultado o choque, asurpresa. Essa parada induz uma mobilizaçãoimpaciente, que mantém como fundo afissura em face da imposição do real que estáem sua origem. O acontecimento surge doesquecimento, pelo viés de vestígios queimpõem pensá-lo e que instauram uma es-pécie de obrigação de lembrar-se.II Ironia e contraimagem: operação mágicaPôr em ação lógicas indiciais, cuja eficácia eembates acabamos de precisar rapidamen-te, está no cerne do empreendimentobeuysiano. Tal manobra fornece ancoragemdinâmica à soma heteróclita de suas ativida-des e às formas que elas suscitam. Dos de-senhos às ações, das esculturas às instala-ções e até em certo número de discursosapresentados in situ, circula, de fato, ummesmo fio vermelho: permitir provar emdetalhes o trabalho da reminiscência ou, mais

174

precisamente, tornar o espectador apto aefetuar esse trabalho, provocando nele, bomou mau grado, o choque da confrontaçãocom o índice, para induzir suas consequênciasde mobilização para a vontade.Assim, tanto as obras quanto as atividadesdo artista são máquinas análogas aos pro-cessos de reminiscência, construções/reconstituições cujo teor, inseparável de seudetalhe, interdita toda “síntese de ideias” ougeneralização, mas vale como construçãoexperimental de valor exemplar. Num tra-balho além disso tão rebelde com respeitoàs categorias clássicas e modernas da imita-ção, a única mas prolífera forma de mimésisé aquela de um processo: o de construção,a cada vez singular, da lembrança.Tal estratégia explica o papel atribuído porBeuys, na discussão de suas obras, à noçãode contraimagem (Gegenbild), que ele opõea uma imagem pensada, esta inteiramentedo lado da representação mimética. Sobvários aspectos a noção de contraimagemrecobre o conceito retórico de ironia, ouseja, a atividade de linguagem (e de pensa-mento) pela qual, enunciando-se uma pro-posição, é outra, contrária, que é evocada esignificada. O discurso de Beuys não é des-provido de instâncias irônicas no sentidoestrito, como mostra sua sugestão já citadade “elevar o muro de Berlim em 5cm (me-lhor proporção!)”, proposição cujo aspec-to provocador não escapou à atenção dosfuncionários do Ministério do Interior doEstado da Renânia.25 Insistindo sobre ainadequação da construção do muro sob oplano unicamente formal e estético, Beuysevidentemente enfatizava sua significaçãopolítica. Quanto ao convite a elevá-lo, aindapor cima altura sem dúvida imperceptível aolho nu, ressoava como clara chamada a suadestruição.A noção de contraimagem, no entanto, pesamais do que o conceito retórico de ironia.

Ela se aproxima de processos identificadose descritos por Freud, e por ele nomeadostrabalho do sonho, ou ainda em suas análi-ses do Witz ou jogo de palavras. Uma peçamuito simples, da qual existem ao menosduas versões – uma de 1959, intitulada Ope-ração mágica (Magische Handlung), hoje par-te das coleções do Block Beuys no Museudo Estado de Hesse a Darmstadt,26 outra,sem título, de 1962 (coleção Reiner Speck)–, fornece um tipo dessa “ironia material”: tra-ta-se de uma faca de cozinha com a pontaaguda da lâmina protegida por esparadrapo.Seria cômodo fazer dessa assemblage a ilus-tração de um provérbio ou jogo de palavrasque Beuys enunciou sob forma de proposi-ção verbal: “Se nos cortamos com uma faca,é a faca que se deve tratar.”27 Seria como

Sem título, 1962faca e esparadrapo,Colonia, Coleção Speck

175

esquecer que a presença material do objetoé aqui o fato primeiro: a aparição de umafaca que um pedaço de esparadrapo enco-brindo a ponta da lâmina impede o corte,ou seja, o cumprimento da função que lhecabe normalmente, ao mesmo tempo emque remete ao corte/ferida ausente que eleteria em princípio a função de cobrir e pro-teger – ferida cujo agente potencial é a pró-pria faca. O deslocamento surpreendente doesparadrapo, da ferida da qual é o índice paraa lâmina da faca que ele “trata”, induz umaaproximação potencial entre o agente daviolência e o da cura, do mesmo tipo que oWitz beuysiano citado.28 Essa “proposição depensamento”, porém, não leva o objeto anenhuma determinação verbal. Ela está pre-sente unicamente sob a forma de uma tare-fa sugerida ao espectador da obra: realizarum enunciado cuja origem é a construçãomaterial apresentada.Portanto o que revela o modo de funciona-mento de um objeto como Operação má-gica não é a possibilidade de os objetosmateriais ilustrarem ou mesmo encarnaremuma proposição determinada. É sobretudoa existência de uma linguagem de relaçõesmateriais – Freud falaria de representaçõesde coisas –, que se impõe como tal à aten-ção, antes de qualquer recuperação ou tra-dução na língua falada ou escrita, e constituinome material de uma ideia.A identificação dessa eficácia reflui sobre oconceito que se pode ter de ironia no senti-do retórico: que aparece agora como umaforma indicial de produção de ideia. A apre-sentação material efetuada no enunciado épor ela apreendida como impressão de umsegundo enunciado, cujo negativo ela for-ma. A ironia é nesse sentido o melhor exem-plo, visto que o mais econômico, de um pro-cesso mais amplo – aquele do Witz – que re-pousa sobre a consideração da materialidadeprópria à língua e às relações atuais que ela

instaura. Estas últimas se revelam, novamen-te, a partir da experiência do choque e dasurpresa: descobre-se que uma oportunida-de de pensamento esteve ali, dissimulada nosobjetos, parecendo preexistir a seu desco-brimento por um espírito estruturalmenteatrasado em relação a ela.Nesse sentido, a faca/esparadrapo não é maisou menos witzig do que a frase citada. Ouseja: ela não deixa de o ser tanto quanto,pois igualmente exibe um trabalho irônicotão real quanto aquele exigido pela expres-são verbal. E ela o é no mais alto grau, vistoque o interesse pela apresentação materialque requer todo traço espirituoso toma aquiuma forma impossível de esquivar, ao con-trário da linguagem escrita ou falada, cujouso ordinário, porque privilegia a dimensãosimbólica, leva a escamotear a materialidadeprópria.Um concerto de objetosO contexto que acabamos de descreverreconcilia duas atitudes, a priori contraditó-rias, de Beuys: uma desconfiança extrema emrelação ao comentário, à racionalidade e aosímbolo, todos situados no mesmo plano,aquele das representações previamente sub-metidas a uma lei de interpretação, mas tam-bém a reivindicação da língua como motorprimeiro de seu projeto, contra todo “domplástico”,29 quer dizer, da capacidade de efe-tuar imitações de objetos que releva, no fimdas contas, também do símbolo e daracionalidade.A língua em questão é primeiramente aque-la das relações entre os objetos. Fazendoeco às palavras citadas, Beuys assim declara,de modo exemplar, a propósito da instala-ção Mostre suas feridas: “Não sou eu que falonesse concerto de objetos; são antes as coi-sas que falam sua própria língua. [O] trabalhode compreensão, cabe a cada um fazê-lo.”30

T E M Á T I C A S • J E A N - P H I L I P P E A N T O I N E

176

Para que tal discurso possa ser percebido, nãoé necessário um trabalho prévio de interpre-tação ou de compreensão. Esse trabalho, an-tes, toma corpo em reação ao discurso dosobjetos, discurso primitivo no sentido de umaanterioridade da ordem do acontecimento,bem como de um não acabamento simbóli-co: os “embriões de pensamento” liberadosna linguagem dos objetos são nomes, querequerem ser utilizados e explicados para seformar como afirmações e julgamentos. É nis-so que consiste o “trabalho de compreen-são” destinado ao espectador.O par simétrico desta lógica: a obstinaçãode Beuys, quando fala do discurso humano,em analisá-lo como um processo real, sem-pre ligado a circunstâncias, e em particularsua obstinação em pensar o ato da fala comoa produção de um acontecimento a partirdo agenciamento de processos físicos, ouseja, no fim das contas como ato de escultu-ra: “Para mim, a formação do pensamento jáé escultura. E, bem entendido, a linguagem éescultura. Eu mexo minha laringe, eu façomexer minha boca, e o som é uma formaelementar de escultura.”31Modelagem plástica do ar pela boca e a la-ringe, a palavra fabrica uma “impressão namatéria” sem a qual o acontecimento dosentido não ocorreria:

Não há outra possibilidade de media-ção que não seja através do caráter deimpressão em um material dado (...)Mas, no fundo, é a mesma coisa, quereu fale ou agrupe peças de ferro paraproduzir um objeto. A informação pas-sa sempre finalmente pela apreensãode relações materiais. Portanto, a infor-mação sem a matéria não é pensávelentre os homens.32

É a partir desse “caráter de impressão”, ouseja, da dimensão indicial, em que a língua e

a escultura constituem na prática equivalen-tes, que se torna pensável o papel do dese-nho, “conceito alargado” da língua em senti-do próximo do “conceito alargado da arte”em outra ocasião elucidado por Beuys:

Quando entramos na complexidadedas coisas, nos conteúdos do mundo,gostaríamos certamente de formulá-los,ou ao menos formular essa própriaconfrontação (...) Trata-se sem dúvidade uma pulsão geral dos homens, queos impele a deixar depositado um tra-ço das coisas, tal qual um produto. Noque concerne a essa produção, eu ima-gino que muitos se contentem em uti-lizar o médium da língua e se limitemao ato da palavra. Outros materiali-zariam talvez esse ato da palavra, con-cretizariam-no pela escrita, aproximan-do-o assim do objeto. E eis que nosvemos exatamente no ponto em que,anotando por escrito, utilizando a for-ma de letras, conceitos, frases, apreen-demos outro domínio ainda mais vas-to. É precisamente aí onde se efetuaesse alargamento do domínio da línguaque se deve buscar minha impulsão fun-damental para o ato do desenho (...)Eu procuro conservar essa “linguagei-dade” na mais ampla fluidez e mobili-dade possíveis, a fim de superar ausurpação da língua devida ao desen-volvimento cultural e à racionalidade.33

A reivindicação da eficácia irracional da “pró-pria coisa”, contra o uso racional dos símbo-los, está na origem de um dos mal-entendi-dos mais tenazes com respeito às realiza-ções de Beuys, acusado de veicular sob abruma valhaliana34 uma ideologia suspeita deter outrora favorecido a ascensão do nazis-mo e de tentar hoje favorecer seu esqueci-mento. Ora a escolha do irracional que seexprime aqui, se confunde, nem mais nemmenos, com o emprego do “meio primiti-

177

vo” que é o índice. A irracionalidade emquestão não é, portanto, aquela de símbo-los pretensamente inefáveis ou esotéricos.Nem mesmo, por outro lado, uma visada,mas precisamente o medium que requeremos modos de apreensão do real considera-do enquanto tal. Esse meio permite às ações,instalações e desenhos constituírem-se comoinstrumentos potenciais de explicação de umpropósito: convidam a formular pensamen-tos que serão necessariamente articulados,refletidos, objetos de discussão.Acontecimentos-chave e construção dalembrançaEm entrevista realizada em 1976 com GeorgJappe, reportando-se a diversos episódiosde sua biografia, Beuys ressalta o comple-xo de materiais ligados à concepção de suaobra, bem como e sobretudo o processopelo qual esse complexo se elabora, e issograças à noção de acontecimento-chave(Schlusserlebnis):

Os acontecimentos-chave podem servariados; por exemplo, acontecimentosexteriores, experiências práticas da vida– feitas no contato com coisas diversas– que se tornam acontecimento-chave;naturalmente há, entretanto, tambémacontecimentos... como dizer... quepossuem quase caráter de visão; porexemplo, imagens da infância... oueidéticas ou... mesmo em sonhos po-demos viver acontecimentos-chave e...sim, é verdade, eu conheci, creio, ummonte de acontecimentos desse gêne-ro (...) Outra coisa é que... digamos as-sim: os verdadeiros acontecimentos--chave têm sempre por natureza algu-ma coisa de... sim, de uma experiênciaíntima, de um Erlebnis no sentido maisamplo e que não podemos integrarpuramente num sistema de conheci-mento racional. Frequentemente, em

todo caso, eles se apresentam à cons-ciência de um homem que tem cons-ciência efetivamente racional em faceda vida como alguma coisa mítica, oumesmo, sim, figurada, mitológica sim-plesmente.35

São conhecidos o papel que desempenhana elaboração da obra beuysiana o estabe-lecimento de uma dimensão mítica da exis-tência e a crítica que lhe foi dirigida, de bus-car constituir em torno de sua pessoa umaverdadeira mitologia, composta de um bric-à-brac cultural heteróclito e mal digerido.Assim é tanto mais importante constatar queo caráter mítico aqui reivindicado, longe dese ligar às circunstâncias biográficas específi-cas da vida do artista, se apresenta comoforma de experiência, provada por todos.O que a distingue de acontecimentos ordi-nários – mas são esses propriamente falan-do acontecimentos? – e lhe confere o nomede Erlebnis, ou experiência íntima e funda-dora, consiste simultaneamente em seu eloprivilegiado com a infância, vista a partir daidade adulta, ou seja, de novo na ordem dareação posterior, e sua capacidade imagina-tiva, no sentido próprio de geradora de ima-gens, enfim, seu caráter de narrativa, paraalém das categorias do verdadeiro e do fal-so. Essa dimensão “mitológica”, ainda queevidentemente individual, não é, portanto,específica do indivíduo Beuys. Ela é própria(pelo menos) dos seres humanos. Enquantotal ela é completamente comunicável,contanto que se respeitem as estruturas desua apresentação, que devem fazer parteintegrante de sua restituição.Em vez de ao famoso e muito frequente-mente invocado – por seus comentadores,bajuladores e adversários ainda mais do quepelo próprio Beuys – acidente de avião ocor-rido em 1943, quando o artista pilotava umbombardeiro da Wehrmacht sobre o frontrusso, nos ateremos agora a outro dos ra-

T E M Á T I C A S • J E A N - P H I L I P P E A N T O I N E

178

ros acontecimentos-chave especificados naentrevista. Ele foi diretamente relacionadopelo artista à apreensão de sua vocação deescultor, como também à realização da ins-talação Parada de bonde, no pavilhão ale-mão da Bienal de Veneza de 1976. Essa ins-talação pretende ser de fato a “realizaçãode uma experiência vivida na infância”, sema qual o artista jamais se teria tornado “artis-ta plástico”:

Porque, é verdade, eu jamais teria metornado escultor. Criança, nesse lugar,eu fiz a experiência de que se podiaexprimir com um material alguma coi-sa prodigiosa, de importância decisivapara o mundo; foi assim que eu o res-senti. Ou digamos que o mundo intei-ro dependia da constelação do “ondese encontra uma coisa”, do lugar geo-gráfico, e do “como as coisas são pos-tas umas em relação às outras”, sim-plesmente, sem que nenhum conteú-do seja tangível.36

O lugar a que se refere Beuys é a parada dobonde que ele tomava quando era criançapara voltar da escola, com o monumentopróximo que lhe dava seu nome de Homemde ferro. Erigido em 1652 por Maurício deNassau, o regente de Cleves, esse “monu-mento à paz” consistia numa longa colunade canhão elevada na vertical. Sua cavidadeornada com uma cabeça de dragão era ori-ginariamente sobreposta por uma estátua deCupido, o deus do Amor, colocado sobreuma bola de pedra. No pé dessa coluna ha-via quatro barris de pólvora que serviam deassento. O conjunto ocupava uma pequenaelevação ortogonal, no centro de alamedasdispostas radialmente num parque da cida-de. Deslocada após a abertura de uma novaartéria, o monumento, reduzido à coluna eaos barris, ocupava durante os anos 50 umpequeno terreno situado entre a rua e a viaférrea do bonde: “Regularmente, saindo da

escola (...) eu me sentava lá e me deixava,para falar a linguagem atual, completamen-te apagado neste estado: ser visto pelas coi-sas. Fiquei provavelmente horas sentado ali,mergulhado nessa coisa, eu simplesmenteentrei dentro dessa coisa.”37A experiência aqui descrita se caracterizacomo experiência do lugar e de sua dinâmi-ca significante. Ela é constituída de duas par-tes. Seu primeiro momento consiste numaimpregnação passiva, uma experiência deperda da diferenciação38 ou de in-diferencia-ção absoluta,39 que marca a equivalência servisto pelas coisas/entrar dentro de uma coi-sa. A repetição dessa experiência leva, numsegundo tempo, à tomada de consciência dacategoria de lugar, apreendida sob o duploaspecto de lugar geográfico, ou seja, de cir-cunstâncias encontradas e passivamente pro-vadas, como também de lugar compreendi-do como efeito de um trabalho de disposi-ção, já expressivo “sem que nenhum con-teúdo seja perceptível”.Reconheceremos neste último aspecto ummomento característico da prova do índice:aquele em que um amontoado de circuns-tâncias – no sentido literal do que está aoredor – passa a designar alguma coisa, semque essa alguma coisa seja conhecida deoutro modo. Essa experiência do lugar assi-nala o que ela evoca como acontecimento,ou ainda o fabrica como tal.40 A emergênciade um acontecimento-chave é, portanto,função da constituição de uma série de cir-cunstâncias/índices que lhe dão lugar. E seuvalor é mesmo mítico: a construção pos-terior de uma origem que, jamais explicada,ou sempre “tarde demais”, dá sentido à ex-periência com base na própria experiência;dito de outro modo, seu molde local efactual, que condensa sob forma nova seuteor e duração. Podemos assim caracterizarem geral as realizações de Beuys como se-melhantes tentativas de construir esse lugar

179

imaginante da lembrança. Essa caracteriza-ção sozinha, entretanto, não dá conta daespecificidade da démarche, a saber, a recu-sa constante em constituir o depósito de cir-cunstâncias como cena mimética: a recusado quadro e da reconstituição. A análise dastécnicas beuysianas pode mostrar que tinhampor objetivo manter-se o mais próximo pos-sível dos processos de gênese da experiên-cia. Essas técnicas visam também impedir alembrança de alcançar um efeito de presen-ça alucinatória. Sua pretensão em produzirum termo poria fim ao trabalho de reminis-cência. Esse é o papel essencial que desem-penha a insistência do índice nas obras deBeuys, insistência que, de todo modo, tam-bém produz suas dificuldades de apreensão.Tradução Inês de AraujoRevisão técnica Ana CavalcantiJean-Philippe Antoine é filósofo, artista, professor de es-tética em Paris VIII – Saint Denis, e autor de diversoslivros e ensaios, entre os quais Six rhapisodies froides(2002) e Marcel Broodthaers-Moule, Muse, Méduse(2006).

Notas* In Six rhapsodies froides sur le lieu – l’image et le souvenir.Paris: Desclée de Brouwer, 2002.** In Logique du sens. Paris: Minuit, 1969.1 Por exemplo: “Honestamente devo dizer que eu me consi-deraria muito estúpido se eu fabricasse objetos comoTelefone de terra (Erdtelefon, 1968) sem designar suasconsequências, sem dizer como pensei esse objeto; comoo enigma da obra leva a um enigma ainda maior – sabero que coloca em movimento, de uma maneira geral, osseres humanos.” (Joseph Beuys, Enzo Cucchi, AnselmKiefer, Janis Kounellis, Bâtissons une cathédrale. Trad. O.Mannoni, Paris: L’Arche, 1986: 239.)2 Citado por Klaus Galliwitz em “Stationen der Erinnerung.Joseph Beuys und seine “Strassenbahnhaltstelle””,Festschrift für Eduard Trier zum 60. Geburtstag, JustusMüller Hofstede et Werner Spies (dir.), Berlin: Mann,1981: 314 (grifo do autor). Ainda mais radical é o co-

meço da resposta ao questionário dirigido pelo Ministé-rio do Interior do Estado de Renânia do Norte/

Westphalie à Academia de Belas Artes de Düsselrdorfpor ocasião do escândalo provocado em 20 de julho de1964 no Festival da nova arte em Aix-la-Chapelle, emque o artista apresentou várias ações. O Curriculum vitaeCurriculum operis apresentado por Beuys na brochurado festival, em 1964, continha a seguinte informação:

“Beuys recomenda subir o muro de Berlim 5cm (melhor pro-porção).” Havendo o ministério pedido explicações,Beuys registra este memorando: “Essa é uma imagem edeve ser considerada imagem. Recorreremos à inter-pretação só em caso de urgência ou por razões didáti-cas. Não posso compreender por que vocês não enten-dem o sentido evidente sem interpretação.” (JosephBeuys, Par la presente je n’appartiens plus à l’art, Paris,L’Arche, 1988:84-85.

3 Beuys, Joseph. La mort me tient en éveil, entrevista comAchille Bonito Oliva, Beuys, Cucchi, Kiefer, Kounellis, op.cit.: 65-66. Igualmente, a propósito de seus múltiplos:“Porque tal produto existe, o trabalho político que efe-tuo tem sobre as pessoas efeito diferente do que teriase o meio de expressão fosse a palavra escrita.” (JorgSchellmann et Bernd Klüser. Questions to Joseph Beuys.In Beuys, Joseph. Multiples. New York: Schellmann &Klüser, 1980).

4 Beuys utiliza a expressão a propósito da instalação Arrêt detramway realizada para a Bienal de Veneza em 1976.

5 Freud, Sigmund et Breuer, Joseph. Études sur l’histérie. Trad.A. Berman, Paris: PUF, 1956: 5.

6 Beuys, Multiples, op. cit.7 Beuys, Joseph. Dernier espace avec introspecteur. Entrevis-

ta com Gya Goldcimer et Max Reithmann. In Par laprésente, op. cit.: 122.

8 Axel Hinrich Murken destaca o caráter de “dispositivopseudofísico” (dínamos, transformadores, pilhas elétri-cas) que recobre parte das construções dos objetos deBeuys. Em geral eles “não produzem nenhuma eletrici-dade no sentido físico”; servem como sinais materiaispara situações ou modelos plásticos (Murken, AxelHinrich. Joseph Beuys und die Medizin. Munich: F.Coppenrath, 1979: 119). O próprio Beuys indica, a pro-pósito de la Pompe à miel sur lieu de travail, realizadapara a 6a Documenta em 1977: “Disse claramente quese trata de uma máquina e que não poderia defenderesse projeto se não houvesse a atividade das pessoaspara afirmar: não é nada mais do que um signo, combase em uma máquina, pode-se mesmo dizer, repre-sentado sob uma forma que não convém (...). Disse queera uma máquina cuja existência não poderia justificar-se senão por integrar as pessoas com sua energia, que éoutra. Tratava-se, no fundo, do símbolo de alguma coi-sa.” ( Joseph Beuys – Volker Harlan, Qu’est-ce que l’art?Trad. L. Cassagnou, Paris: L’Arche, 1992: 98-101. Grifo

T E M Á T I C A S • J E A N - P H I L I P P E A N T O I N E

180

do autor.). O emprego da palavra símbolo pode pare-cer ir contra a declaração de Beuys citada no início des-te texto e com a lógica que ela estabelece. Mas a rari-dade estatística dessa definição de símbolo (como sig-no que representa “sob uma forma que não convém”)e seu emprego a propósito de um dispositivo (a bom-ba) que não tem por função representar não anulam arecusa expressa em outra ocasião, que coloca em jogo,como logo veremos, outra acepção inteiramente di-versa do termo.

9 Peirce, Charles S. Écrits sur le signe. Trad. Gérard Deledalle,Paris: Seuil, 1978: 149 et 140.

10 Id., ibid.: 140 et 165.11 Id., ibid.: 140-141 (grifo do autor).12 Ver Krauss, Rosalind. Notes on the Index (1977). In The

Originality of the avant-garde and other modernist myths.Cambrigde: The MIT Press, 1986: 196-219.

13 Id., ibid.: 145.14 Falaremos sobretudo em dimensão indicial, e não em ín-

dice, para ecoar a advertência de Peirce quanto a nãoobjetivar este último: “Seria difícil, senão impossível, ci-tar um caso de índice absolutamente puro ou encontrarum signo absolutamente privado de qualidade indicial”,id., ibid.: 160.

15 “A arte não está aí para oferecer conhecimento direto,mas para que um conhecimento aprofundado tome for-ma a propósito de uma vivência. Dou muita importân-cia ao fato de que alguma coisa física, um produto sejacriado (...). Não apenas para pensar, mas para prolongaro pensamento com o braço. Esses meios primitivos per-mitiram até o presente tocar as pessoas em centros que,através das mais dolorosas representações do sofrimentohumano – a doença, a guerra, os campos, etc. – haviampermanecido mais ou menos intactos. Uma iconografiamuito clara. Eu não trabalho com símbolos.” (comentá-rios citados por Georg Jappe, L’art [d’]après Beuys,Artstudio, 4, printemps 1987: 8; grifo do autor.)Paradefinição alternativa – e desta vez aceitável por Beuys –do símbolo, ver nota 8.

16 Ver aqui ainda Peirce, op. cit.: 165-166: “Os símbolos sedesenvolvem. Eles nascem por desenvolvimento a par-tir de outros signos, em particular dos ícones ou de sig-nos mistos que provêm de ícones e de símbolos.”

17 Peirce, op. cit.: 165 (grifo do autor).18 Por exemplo: Um ruidoso trovão indica que alguma coisa

considerável se produziu, ainda que não se possa saberprecisamente qual foi o acontecimento. Mas pode-sepresumir que ele esteja ligado a outra experiência qual-quer” (id., ibid.: 154, grifo do autor).

19 Id., ibid.: 158 (grifo do autor).

20 “A realidade [actuality] possui alguma coisa da fera. Nelanão há razão. Tomo como exemplo o fato de colocar oombro contra uma porta e tentar abri-la à força empur-rando-a contra uma resistência invisível, silenciosa e des-conhecida. Temos a dupla consciência de esforço e re-sistência, que me parece bastante próxima do sentimentode realidade” (id., ibid.: 70, tradução modificada peloautor). Ver também: “(...) uma ocorrência é alguma coi-sa cuja existência consiste no fato de que nos chocamoscontra ela. Um fato bruto é do mesmo gênero, dito deoutro modo; trata-se de algo que está aí e que meupensamento não pode eliminar e que sou forçado a re-conhecer como um objeto, ou segundo, fora de mim, osujeito ou número um, e que forma matéria de exercí-cio para minha vontade” (id., ibid.: 73, grifo do autor).

21 “É a pressão, a obrigação absoluta que nos faz pensar demodo diferente do que havíamos pensado até entãoque constitui a experiência” (id., ibid.: 94).

22 “A existência (…) é o modo de ser do que reage comoutras coisas” (id. ibid.: 25).

23 Ver: “Os elementos de qualquer conceito entram nopensamento lógico pela porta da percepção, e saempela porta da ação intencional” (citado por JosephChenu na introdução aos Textes anticartésiens. Trad.J. Chenu, Paris: Aubier, 1984: 166). Peirce ainda afirmasobre o choque que ele é “um fenômeno relativo àvontade” (Écrits, op. cit.: 94).

24 Apontamos aqui para a análise das categorias estóicas detempo e de acontecimento efetuada por Gilles Deleuzeem Logique du Sens, op. cit., ou as considerações dePierre Fédida sobre a temporalidade aorística em Le sitede l’étranger (Paris: PUF, 1995).

25 Ver nota 2.26 Ver nota 21.27 Citado por Fabrice Hergott, L’art est un couteau aiguisé,

catálogo Joseph Beuys, Paris: Centre Georges-Pompidou,1994: 73.

28 A lâmina, uma vez colocada em contato com o espara-drapo, assume o estatuto de “impressão negativa” daferida, da qual forma, por antecipação, uma espécie demolde.

29 “Por mais estranho que possa parecer, meu caminho pro-grediu através da língua; ele não parte dos por assimdizer dons plásticos” (Beuys, Discurs sur mon pays. InPar la présente, op. cit.: 20).

30 Entrevista com Jost Herbig, Süddeutsche Zeitung, 26-27de janeiro de 1980, reproduzido em Joseph Beuys:Zeige deine Wunde/Reaktionen, Munich: Schellmann& Klüser, 1980.

181

31 Entrevista com Willoughby Sharp, Artforum, dezembrode 1969: 47 (reproduzido em Energy Plan for theWestewrn Man. Joseph Beuys in America, New York:Four walls eight windows, 1990: 91).

32 Citado por Volker Harlan, Was ist Kunst? Werkstatt-gespräch mit Joseph Beuys. Stuttgart: Urachhaus JohannesM. Mayer Gmbh: 66; trad. Max Reithmann, “Du plastique.Topos de la langue et de l’image: Montre ta blessure”, inM. Reithmann, Joseph Beuys: la mort me tient en éveil.Toulouse: Arpap: 301-302.

33 Ver o diálogo com Hans van der Grinten em M. Reithmann,op. cit.: 19-20 (tradução ligeiramente modificada). Beuysoferece aí uma definição do desenho que entra em res-sonância com suas proposições já citadas a respeito dosmúltiplos: “Um dos aspectos do desenho é o de serauxiliar para um tipo de produção ulterior, por exem-plo, uma ação, um ato, um movimento realizado pormim ou pelos leitores para quem esse desenho foi fei-to” (20-21). O desenho, ele também, é instrumento paraativar a vontade, a partir do “núcleo de condensação”que ele estabelece.

34 Termo relativo a poderes de uma comunidade mítica.35 Citado em M. Reithmann, op. cit.: 27-28 (grifo do autor).

Na continuação da entrevista, Beuys insiste sobre aimportância estatística, entre os acontecimentos-cha-ve, das experiências da infância. Ele faz assim do acon-

tecimento-chave uma categoria que se comunica com o“souvenir-écran” e o sonho, tais como teorizados porFreud. Ver Freud, Sigmund. Sur les souvenirs-écrans (1899).In Névrose, psychose et perversion. Trad. D. Berger, P.Bruno, D. Guérineau, F. Oppenot, Paris: PUF, 1973.

36 Id., ibid.: 35-36.37 Id., ibid.: 37.38 No texto original o termo empregado é dédifférenciation.

(N.T.)39 Anton Ehrenzweig dá o nome de in-diferenciação a uma

percepção que negligencia as hierarquias entre elemen-tos significantes e insignificantes do campo observado, paravarrer imparcialmente e de maneira global esse mesmocampo, agora percebido como complexidade caótica. Eleelogia a eficácia desse modo da visão (ou da audição)para apreender estruturas complexas. Ver Ehrenzweig, A.L’ordre caché de l’art. Paris: Gallimard, 1974.

40 Nesse sentido é significativo que o exercício de impreg-nação pelas coisas que inaugura a descrição de Beuys seapresente como experiência que se repetiu com regula-ridade, sem de saída ter sido constituída como aconte-cimento. São sua apreensão pela lembrança e a produ-ção de um lugar doravante pensada como disposiçãode coisas umas em relação às outras que criam as con-dições de aparição do acontecimento.

T E M Á T I C A S • J E A N - P H I L I P P E A N T O I N E