Etnogênese Em Santarém

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Ensaio sobre o movimento de ressurgimento etnico no municipio de santarem

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ETNOGNESE NO OESTE DO PAR: O CASO DOS BORARI-ARAPIUM DO MARGilberto Csar Lopes Rodrigues

Introduo

Recentemente[footnoteRef:1] a Justia Federal de Primeiro Grau no Par, atravs da Subseo de Santarm, emitiu sentena (referente aos processos 2010.39.02.000249-0 e 2091-80.2010.4.01.3902) de impedimento da continuao do processo de delimitao e demarcao da Terra Indgena Mar. A concluso de que o processo de demarcao deve ser extinto se fundamente em vaga considerao de que os indgenas pleiteadores da demarcao representam falsos ndios obtida aps a exposio de superficial concepo de Etnognese e miscigenao e atravs de resgate do paradigma do assimilacionismo e aculturao, h muito abandonado no corpo jurdico nacional. [1: Sentenca expedida em 26 de novembro de 2014.]

Para tanto, utilizado grosseiramente o conceito de Etnognese de Miguel Alberto Bartolom (2006) na tentativa de demonstrar que o caso dos Borari-Arapium do Mar no se coaduna com processos dessa natureza. E mais, estranhamente, possvel interpretar o texto da sentena, sobretudo atravs do uso de fragmentos do texto As etnogneses: velhos atores e novos papis no cenrio cultural e poltico deste importante antroplogo, como se Bartolom concordaria que o caso em tela no representaria um legtimo processo de etnognese. Neste contexto, o objetivo deste texto apresentar uma interpretao para os processos de reconstruo identitria em curso na Terra Indgena Mar a partir do entendimento de Etnognese de Bartolom (2006) tendo em vista a questo de saber se coadunaria com um processo dessa natureza. Defenderemos que o caso dos Borari-Arapium do Mar representa um legtimo processo de Etnognese, se empregado o entendimento desse conceito ao modo de Bartolom (2006), ao contrrio do que afirmado na sentena (SENTENA DOS PROCESSOS 2010.39.02.000249-0 e 2091-80.2010.4.01.3902, 2014).Estruturamos este trabalho iniciando por apresentar brevemente a Terra Indgena Mar em aspectos geogrficos e sociais. Na sequncia, examinamos o conceito de Etnognese utilizado na sentena e comparamos o modo pelo qual Bartolom (2006) o expe. Finalmente, aps apresentarmos os elementos internos e externos que julgamos estarem presentes no processo de etnognese dos Borari-Arapium, defendemos nossa hiptese, exposta acima, tendo em vista o entendimento de que o emprego do modo pelo qual Bartolom (2006) compreende o conceito de Etnognese, considerando os ingredientes presentes no caso em apreo, uma forte chave interpretativa dos processos em curso na regio.

Terra Indgena Mar, os Borari e os ArapiumA Terra Indgena Mar[footnoteRef:2] (TI Mar) pertence Amaznia brasileira. Situa-se, precisamente, no oeste do estado do Par, no interior dos limites geogrficos do municpio de Santarm margem esquerda do rio Mar, afluente do rio Arapiuns, cujas guas pertencem bacia do rio Tapajs. Precisamente situa-se no baixo Tapajs. A denominao Mar para a TI decorre da importncia que o maior rio da regio possui para seus moradores indgenas, a margem do qual se situam suas trs aldeias componentes. A rea da TI de 42.373 hectares e o permetro de 131 km[footnoteRef:3]. O acesso a TI, a partir da cidade de Santarm, se d por meio fluvial, sendo que, em barco de linha[footnoteRef:4], a viagem demora em torno de12h, apesar de estar situada a 145 km desta cidade. A imagem abaixo resume a posio geogrfica da TI Mar no contexto brasileiro. [2: Segundo o resumo do relatrio circunstanciado de identificao e delimitao da Terra Indgena Mar, processo FUNAI - 294/2010 folha 721, Consta no Sistema de Terras Indgenas da Diretoria de Proteo Territorial/FUNAI o nome Terra Indgena Rio Mar, contudo, a escolha dos Borari e Arapium para referenciarem-se a seu espao de ocupao somente Mar e, assim, definiram coletivamente pelo nome de Terra Indgena Mar.] [3: Dados retirados do resumo do relatrio circunstanciado de identificao e delimitao da Terra Indgena Mar, disponvel em: http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?jornal=1&pagina=36&data=10/10/2011. Acessado em 02 de outubro de 2014.] [4: Barcos de linha so aqueles autorizados pela Capitania dos Portos brasileira transportar passageiros em horrios e preos teoricamente pr-fixados entre o Estado e os empresrios da navegao. No caso da TI Mar, dois barcos de linha atendem seus moradores. Eles descem do Mar para Santarm aos sbados e um retorna nas quartas-feiras enquanto o outro retorna nas quintas-feiras. Com essa dinmica os usurios tem tempo de realizar seus afazeres na cidade e, neste perodo, eles dormem em redes atadas nos prprios barcos de linha.]

Imagem I: localizao geogrfica da Terra Indgena Mar, mais detalhada no quadro inferior esquerdo no interior do retngulo em destaque. No quadro direita destacado a posio das trs aldeias que compem a TI. (Fonte: Processo FUNAI 294/2010, folha 330)Borari e Arapium so as etnias dos indgenas moradores da TI Mar cujos recursos naturais so, teoricamente[footnoteRef:5], para seus uso-frutos exclusivo. Os Borari e os Arapium dessa TI esto distribudos por trs aldeias. Os Arapium habitam as aldeias de So Jos III e Cachoeira do Mar. Os Borari habitam a aldeia de Novo Lugar. A aldeia de So Jos III a primeira a ser avistada por aqueles que sobem pelos rios a partir de Santarm. Uma hora depois, em barco de linha, avista-se a aldeia da Cachoeira do Mar. E por fim, e mais distante da foz do Mar, situa-se a aldeia do Novo Lugar[footnoteRef:6]. [5: Conforme resguardado pela Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988, captulo VIII, art. 231. Porm, o que presenciamos em nossas visitas de campo foi um ataque, em grande parte chancelado pelo Estado, aos recursos naturais dessa TI atravs da retirada de madeira do interior dos limites da TI Mar, contraditoriamente, legalizado por meio da emisso da aprovao de planos de manejo emitidos pela Secretaria do Meio Ambiente do estado do Par SEMA-PA.] [6: Em tempos de seca o barco de linha no sobe a cachoeira (na verdade uma corredeira) e os passageiros e seus pertences que no chegaram ao destino mudam-se para outro barco (da mesma empresa) que fica acima da cachoeira para a continuao da viagem.]

Os indgenas da TI Mar, tanto Borari, como Arapium, so falantes, atualmente, apenas do portugus. Porm, como destacado por da Silva (2011, p. 20), os Arapium e os Borari guardam, na memria dos mais velhos, o tempo da gria, forma como denominam o nheengatu. E, apesar do histrico de discriminao, guardado em suas memrias, que sofriam os falantes dessa lngua e a negao de sua transmisso pelos pais, essa antroploga (da SILVA, 2011, p.21) revela ter encontrado em suas pesquisas de campo na TI Mar uma nica falante de algumas palavras em nheengatu[footnoteRef:7] e a utilizao de palavras nessa lngua durante rituais. [7: Onheengatu, tambm conhecido comonhengatu,nhangatu,inhangatu,lngua geral amaznica,lngua braslica,tupi, lngua geral,nenhengatuetupi moderno, umalnguaderivada dotronco tupi. Pertence famlia lingusticatupi-guarani. At osculo XIX, foi veculo dacatequesee da ao social e poltica luso-brasileira naAmaznia, sendo mais falada que o portugus noAmazonase noParat 1877 (Cf. http://pt.wikipedia.org/wiki/Nheengatu)]

Um fator importante de haver vestgios da lngua nheengatu dentre o vocabulrio dos Borari e Arapium da TI Mar foi permitir vislumbrar o tronco lingustico Tupi como o originrio desses povos[footnoteRef:8], uma vez que, O nheengatu uma lngua criada a partir do Tupi, principal tronco lingustico dos grupos tnicos da regio do baixo Amazonas, de acordo com estudos histricos sobre migrao Tupi nos sculos XV e XVI (da SILVA, 2011, p. 21). Ademais, a facilidade de introduo, expanso e consolidao da lngua [nheengatu] na regio do baixo Amazonas reflexo do grande nmero de grupos Tupi na rea (Idem, p. 21). Pertencimento tambm reafirmado pelo Diretor de Proteo Territorial da FUNAI atravs do ofcio 154 de 02 de maro de 2011, ao retratar esse pertencimento no mbito dos possveis motivos de sua subtrao. [8: De acordo com o mapa etno-histrico do IBGE, baseado no mapa de Curt Nimuendaju, a regio aparece como habitada pelos Tupinambarana. Conferir em http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv14278_mapa.pdf.]

Devido a especificidade da colonizao na regio os habitantes nativos tiveram receio de assumir a identidade indgena ao longo de todo o sculo XX, uma vez que os esteretipos negativos associados aos indgena se convertiam, na prtica, em todo tipo de discriminao, cerceamento, usurpao e violncia. Esta situao comeou a se alterar aps a promulgao da constituio de 1988, quando o Estado brasileiro passou a reconhecer o valor positivo da diversidade cultural, bem como direitos e garantias aos povos originrios. Como se conclui, o movimento de reafirmao tnica nasceu da articulao poltica dos habitantes nativos para a defesa de um territrio que comeava a ser apropriado e organizado sob uma lgica totalmente distinta daquela at ento vigente. Os povos indgenas que ocupam tradicionalmente o baixo Tapajs constituem, portanto, o fruto de vrias geraes de pessoas que nasceram e viveram na regio, mantendo uma relao singular com o territrio, desenvolvida no interior de um universo cosmolgico Tupi (FUNAI, 2010-14, folha 282)No o objetivo desse artigo discutir o pertencimento mais provvel dos Borari e dos Arapium em relao aos grandes grupos tnicos do passado que marcam a historiografia indgena brasileira[footnoteRef:9]. Mas, interessante destacar que a denominao Arapium e Borari para o referenciamento tnico dessa populao se coaduna com o relato do padre Jose de Morais que, ao descrever para a coroa portuguesa as aes da companhia de Jesus na bacia do Amazonas, testemunha que, partindo da aldeia dos Tapajs, atual Santarm: [9: Sobre essa discusso interessante reproduzir os argumentos da antroploga responsvel por elaborar o relatrio antropolgico da TI Mar. Escreve a relatora: salutar a considerao de Menndez (1981) sobre a predominncia de grupos Tupi na regio do Tapajs desde o sculo XVII. Rodrigues (1985), a partir de critrios fonolgicos, prope a distino de oito subconjuntos de lnguas da famlia Tupi e Tupinanb, no mais faladas, mas intensamente documentadas nos sculos XVI e XVII, com abrangncia desde a costa de So Paulo at o litoral nordestino e da costa do Maranho e do Par foz do Tocantins. O autor insere o nheengatu no mesmo subconjunto e indica que sua criao fruto do contato entre falantes tupinamb e falantes do portugus. A presena e o contexto de migrao Tupi no Baixo Amazonas tem norteado pesquisas do ponto de vista geogrfico, antropolgico e lingustico. Wright (2005) defende que, no sculo XVII, os Tupinamb da regio do rio Tapajs realizaram um processo de tupinizao incorporao do sistema de referenciao de base Tupi entre os grupos Munduruku e Maus (segundo Coudreau em sua Viagem pelo Tapajs (1977), os Maus habitavam o rio Arapiuns no sculo XIX) que, por extenso, repercutiu na dominao dos Tupinamb e Tapaj na regio, relatada por cronistas. Pode-se deduzir que esse processo tenha ocorrido tambm entre outros grupos no-tupi. A tupinizao estaria associada relao de vassalagem/escravido entre os grupos do tronco Tupi e a poltica homogeneizadora adotada pelas misses. Assim, a tupinizao seria possvel entre grupos que compartilhassem de estruturas gramaticais semelhantes, no necessariamente participes da mesma famlia lingustica, confirmando a perspectiva da predominncia Tupi na regio. Possivelmente, o nheengatu e as lnguas indgenas foram utilizadas concomitantemente e, num determinado n crtico da histria, algumas populaes passaram a utilizar somente a lngua franca. Dcadas depois, o nheengatu foi colocado em desuso pelas polticas educacionais de implantao do portugus, que imputaram caractersticas de inferioridade e ignorncia lngua franca (da Silva, 2001, p. 21-22).]

Subindo o rio Tapajs acima mo esquerda, em distncia de sete lguasest a aldeia de Borari, tambm da administrao dos religiosos da Companhia. Esta aldeia estava unida com a dos Tapajs at o ano de 1738, em que o Padre Manuel Ferreira a separou para Borari, por causa de ser muito grande a aldeia de Tapajs, e no ter terras bastantes para cultura de tantos ndios. Defronte deBorari mo direita do rio est a aldeia de Cumaru ou Arapiuns(Pe. Jos de Morais, 1759)Considerando que uma lgua nutica converte-se aproximadamente entre cinco e sete quilmetros, a descrio acima para a localizao da aldeia de Borari coincide com a atual Alter-do-Cho, localizada a 35km de Santarm medidos pelo rio Tapajs. Essa localidade reivindica junto ao Ministrio da Justia a demarcao de seu territrio como Terra Indgena Borari de Alter do Cho[footnoteRef:10]. interessante destacar que de acordo com os relatos dos indgenas Borari mais antigos da aldeia de Novo Lugar convergente o relato de que seus antepassados vieram de Alter-do-Cho[footnoteRef:11]. Esse o mais provvel motivo para a definio tnica Borari dos indgenas da aldeia de Novo Lugar. Ou seja, a auto denominao Borari para a ascendncia tnica dos indgenas do Novo Lugar decorreria do vnculo que seus antepassados possuam com o aldeamento Borari de Alter-do-Cho, ainda presente em suas memrias histricas. Hiptese que tambm pode ser estendida aos Arapium, tendo em vista que, no povoado situado em frente Alter-do-Cho, do outro lado da margem do Tapajs, e defronte a ela, havia o aldeamento denominado de Arapium, como relatado no fragmento acima. [10: Conforme: www.funai.gov.br/index.php/terras-indigenas-tapajos. Acessado em 24 de novembro de 2014.] [11: O que no fica muito claro nos depoimentos so os motivos dessa subida. Alguns depoimentos afirmam ter sido causado pela necessidade de escapar dos horrores da Cabanagem (1835-1840). Porm, a partir da leitura de da Silva (2011, p. 43) possvel extrair a hiptese de escapar do surto de febre amarela (1850) e de clera (1855-56) que assolou o Gro-Par nessas pocas como a causadora dessa subida. Sobre a primeira hiptese encontramos relatos de indgenas Arapium que afirmaram ser sido comum no passado encontrar balas de canhes ao fazerem suas roas na atual TI Mar. Sobre a segunda hiptese no encontramos nenhum relato que se refere a ela de qualquer forma que seja. ]

Voltando ao tema da relao entre os indgenas dessa regio e os Tupi, interessante apontar que a migrao por rios com a utilizao de canoas para o deslocamento e a ocupao preferencial das florestas tropicais e subtropicais uma caracterstica dos grupos Tupi (da Silva, 2011, p. 47). Da, novamente, o registro de palavras em nheengatu nos rituais desses indgenas.Vale ressaltar que a fora que o nheengatu possui na memria de alguns membros dessa TI reflete-se na presena da disciplina de Lngua Nheengatu no currculo das trs escolas da TI como parte de um processo de resgate da identidade. Em paralelo, os professores Borari e Arapium que atuam nas escolas esto num processo de reaprendizado do nheengatu, atravs da formao de professores indgenas ofertado pela Universidade Estadual do Par, campus de Santarm, de modo a instrumentalizar e satisfazer sua demanda por educao escolar bilngue, em portugus e nheengatu. O nheengatu, nessa perspectiva deixa de ser a lngua da dominao dos sculos passados, para se transformar num smbolo de identidade (da Silva, 2011, p. 22).Do ponto de vista da distribuio demogrfica temos o seguinte quadro[footnoteRef:12]: Aldeia Cachoeira do Mar com 88 habitantes distribudos por 15 famlias, Novo Lugar com 67 habitantes distribudos por 12 famlias[footnoteRef:13] e So Jos III com 84 habitantes distribudos em 16 famlias. Portanto, so, ao todo, 239 habitantes distribudos em 43 famlias, o que gera uma famlia mdia composta por cinco ou seis pessoas. [12: Fonte: Agente Comunitrio de Sade, 2012.] [13: Na aldeia do Novo Lugar constata-se a relao de parentesco familiar predominando os sobrenomes Alves de Sousa e iiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii enfraquecendo a tese da miscigenao presente na sentena.]

Os Borari e os Arapium do Mar iniciaram o movimento de reivindicao territorial em 2000[footnoteRef:14], atravs de uma Ao Civil Pblica junto ao Ministrio Pblico Federal de Santarm-PA. Porm, em um movimento lento do Estado nacional, somente em 2008 a FUNAI emite portaria constituindo grupo de trabalho para realizar os estudos necessrios Identificao e Delimitao da TI Mar (FUNAI, 2008). Em 2010 iniciado o processo FUNAI 08620.0294/2010 que rene toda a documentao necessria para os procedimentos de identificao e delimitao da TI Mar. Porm, com a demora da FUNAI em publicar no Dirio Oficial da Unio (DOU) os resumos dos laudos antropolgico, ambiental e fundirio, necessrios para o prosseguimento desse processo, os indgenas acionam o Ministrio Pblico Federal (MPF) para exigir essa publicao. Em resposta a Ao Civil Pblica 2010.39.02.000249-0 ajuizada pelo MPF contra a FUNAI para que esta promova a publicao dos laudos, em novembro de 2011[footnoteRef:15] eles so, finalmente, publicados. A fase seguinte, de contestao, que judicialmente deveria se estender por 90 dias contados a partir da publicao no DOU (11/2011), ainda encontra-se inconclusa, sem sequer ter sido apreciada as contestaes. [14: interessante entender esse processo de reivindicao territorial inserido no contexto da dinmica de reconstruo identitria ocorrida no Brasil de modo geral (OLIVEIRA, 1999) e no Oeste do Par, em particular (IORIS, 2013) como decorrncia necessria da ] [15: Disponvel em: http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?jornal=1&pagina=36&data=10/10/2011]

Paralelamente luta pela garantia do territrio e a definitiva demarcao da Terra Indgena Mar[footnoteRef:16], os Borari e os Arapium iniciaram um movimento pela transformao legal de suas trs escolas em escolas indgenas. deste movimento e da organizao escolar da TI Mar que passamos a tratar na prxima seo. [16: Uma boa descrio dessa luta pode ser encontrada em Assis (2012) e em www.ucs.br/etc/revistas/index.php/antares/article/download/.../1489]

NOTA TCNICA

ACERCA DA SENTENA EXPEDIDA NO DIA 26 DE NOVEMBRO DE 2014 POR JUSTIA FEDERAL DE PRIMEIRO GRAU NO PAR ATRAVS DA 2 VARA DA SUBSEO DE SANTARM REFERENTE AOS PROCESSOS 2010.39.02.000249-0 e 2091-80.2010.4.01.3902

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Gilberto Csar Lopes Rodrigues

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Santarm, 02 de fevereiro de 2015

NOTA TCNICA ACERCA DA SENTENA EXPEDIDA NO DIA 26 DE NOVEMBRO DE 2014 POR JUSTIA FEDERAL DE PRIMEIRO GRAU NO PAR ATRAVS DA 2 VARA DA SUBSEO DE SANTARM REFERENTE AOS PROCESSOS 2010.39.02.000249-0 e 2091-80.2010.4.01.3902

Autor: Gilberto Csar Lopes Rodrigues[footnoteRef:17] [17: Professor Assistente II do Programa de Educao da Universidade Federal do Oeste do Par, doutorando do PPG da Faculdade de Educao da Unicamp, pesquisador do Grupo de Pesquisa e Estudos Histria, Sociedade e Educao no Brasil HISTEDBR. Mestre em Filosofia pelo PPG em Filosofia da Universidade Estadual Paulista. (lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4137469E9) ]

1. Introduo:O objetivo desta nota o de mostrar que o conceito de etnognese utilizado no mrito da sentena em apreo apresenta um equvoco de apreenso conceitual no que diz respeito s justificativas bibliogrficas relacionadas ao antroplogo Miguel Alberto Bartolom. Procuramos mostrar que tal antroplogo no pode ser utilizado como referencial terico de uma leitura que atribui etnognese o sentido de processo de construo identitria exgena, como indiretamente sugerido na sentena, acerca deste conceito, e que, de modo oposto, os processos de reconstruo identitria dos indgenas Borari e Arapyuns do Mar renem elementos suficientes para afirmarmos que se trata de processo de etnognese, caso seja utilizado o referencial terico deste importante antroplogo.Entendemos que este esclarecimento deve ser feito tendo em vista importncia que o conceito de etnognese representa nas premissas que conduzem sentena e a, de nosso ponto de vista, necessria preservao identitria, territorial e cultural envolvendo as etnias envolvidas no caso em tela.2. Anlise tericaNo mrito da sentena em apreo utilizado trechos do texto do antroplogo Miguel Alberto Bartolom intitulado As etnogneses: velhos atores e novos papis no cenrio cultural e poltico[footnoteRef:18] para justificar a deciso final, mas, que, de nosso ponto de vista, como adiantamos, precisam ser devidamente esclarecidos. Ademais, considerando que nas premissas constantes no mrito da sentena tal conceito toma centralidade, sobretudo na tentativa de mostrar que este antroplogo comungaria da concepo de que etnognese seria um tipo de construo identitria exgena e, no caso em tela, impulsionado por ambientalistas, clrigos ou antroplogos, de modo que, os indgenas seriam ribeirinhos justificando a deciso publicada, reforamos a importncia desse esclarecimento. [18: Disponvel em http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-93132006000100002&script=sci_arttext]

Passemos, pois, a expor o contexto e o modo pelo utilizado o conceito de etnognese no corpo do texto da sentena. A primeira vez que esse conceito aparece na sentena demonstra sua centralidade para a construo das premissas que conduzem sentena e o germe do seu uso inapropriado anunciando certa (con)fuso entre os conceitos de etnognese e de ressurgimento tnico[footnoteRef:19]. Vejamos o fragmento: [19: No vamos explorar aqui a distino entre etnognese e ressurgimento tendo em vista que tal distino parece no compor as premissas do texto. Mas preciso apontar que esses conceitos no so idnticos, havendo farta literatura acerca desta distino,.]

Em contestao ao pedido das comunidades ribeirinhas, a FUNAI defendeu a regularidade do processo e a possibilidade de reconhecimento da terra indgena com base em uma tese de ressurgimento (etnognese) das etnias h muito extintas (PORTELA, 2014, p. 4, grifos nossos).Negligenciando a diferena conceitual entre etnognese e ressurgimento tnico, o modo pelo qual o conceito de ressurgimento tnico (ou etnognese) anunciado, como uma tese e no como um processo emprico vivenciado por atores sociais concretos, obviamente fortalecidos e impulsionados pelas garantias constitucionais ps 1988, conduz o leitor a entender que a FUNAI utilizou a noo de etnognese para referendar a continuao do processo de modo generalista e superficial. Mas, no contexto do documento[footnoteRef:20] que foi utilizado para sustentar o contedo do fragmento acima, em sua alnea 15, o representante da FUNAI que escreve o texto do documento toma os devidos cuidados para significar o uso desse conceito. Cuidado que, talvez por descuido, no foi apresentado na sentena. Porm, o principal aqui que o autor do documento da FUNAI em tela utiliza Bartolom (2006, p. 58) como referencial terico para a definio do conceito de etnognese. Referencial terico que tambm utilizado no mrito da sentena, como adiantamos, porm de modo diferente. [20: Ofcio no 154/Diretoria de Proteo Territorial/FUNAI folhas 280-288 do processo no 294/10]

Aps a sentena[footnoteRef:21] sugerir que os supostos indgenas Borari-Arapium da pretena Terra Indgena Mar no satisfazem trs elementos indispensveis[footnoteRef:22] para o reconhecimento e demarcao de terras indgenas (SENTENA dos PROCESSOS 2010.39.02.000249-0 e 2091-80.2010.4.01.3902, 2014, p. 7), a saber, a tradicionalidade, a permanncia e a originariedade, e que um ou outro elemento de cultura indgena, identificados pelo laudo antropolgico da FUNAI, ou foram introduzidos artificialmente por ao ativista-ideolgica exgena, ou decorrem da prpria influncia indgena na cultura nacional (Idem, p. 8), anunciada a concluso provisria de que o caso no envolveria demandas sociais indgenas. Mesmo porque, at o ano de 1999 as trs comunidades [So Jos III, Novo Lugar e Cachoeira do Mar] no cogitavam de se autorreconhecerem como indgenas (idem). Da sentena seria possvel entender que o caso seria uma espcie de construo identitria tnica exgena. Entendimento que, indiretamente, o atribudo etnognese pela sentena. Entendimento que, de nosso ponto de vista, anuncia o entendimento generalista desse conceito pelo juiz. Entendimento que o leva a concluso apressada segundo a qual: [21: Utilizaremos sentena para nos referir a todo o corpo do texto que conduz a sentena em si.] [22: Observemos que a constituio de 1988 no faz uso de elementos indispensveis para o reconhecimento tnico indgena, nem mesmo a Resoluo 169/OIT do qual o Brasil signatrio.]

Extrai-se dos autos que o processo de identificao, delimitao e reconhecimento dos supostos indgenas da regio do Rio Arapiuns e Mar surgiu por ao ideolgico-antropolgica exterior, engenho e indstria voltada para a insero de cultura indgena postia e induzimento de convices de autorreconhecimentos (Idem, p. 10).De posse do entendimento genrico de que etnognese uma espcie de construo exgena de identidades tnicas com o intuito diverso de se aproveitar das bencies constitucionais, ou mesmo de ambientalistas fundamentalistas procurando preservar a Amaznia, o texto da sentena elenca fatos que comprovariam esse entendimento.O primeiro aparece na pgina 10 onde atribui a um frade franciscano o papel de principal representante desse processo de etnognese (SENTENA dos PROCESSOS 2010.39.02.000249-0 e 2091-80.2010.4.01.3902, 2014, p. 10) e infere que a marcha dos 500 anos, teria impulsionado o processo resultante do contato dos ribeirinhos do vale do Tapajs com os indgenas do restante do pas. Desse contato Os lderes das onze comunidades[footnoteRef:23] trouxeram novidades. Aprenderam l com os outros povos, que os ndios esto em geral organizados na forma de conselhos e, criaram o CITA, com seus lderes eleitos em assembleia, que passaram a coordenar o movimento das comunidades indgenas. Trouxeram tambm o uso do termo parente (que j era usado antes, mas por poucas pessoas e de forma muito tmida), a tcnica de produzir a tinta de jenipapo e passaram a divulgar o costume da pintura corporal. O movimento ganhou novo impulso com a ida a Porto Seguro. As lideranas ficaram mais politizadas e articuladas no discurso. Resultado disso foi o crescimento contnuo do nmero de comunidades que passam a se assumir como indgenas (Idem). [23: Acrescente-se, de passagem, que nenhum indivduo habitante do rio Mar participou da ida a Porto Seguro.]

Ou seja, a sentena sugere que muitas novidades foram incorporadas exogenamente e que tal incorporao indicaria a construo identitria externa, inclusive a introduo do uso do termo parente[footnoteRef:24] e da pintura corporal por lquido extrado do jenipapo. Mas, principalmente, segundo o ponto de vista apresentado no fragmento supracitado, essas introdues apontariam uma espcie de farsa tnica. No entanto, diversos estudos no campo da Antropologia demonstram que em processos de etnogneses novos elementos so incorporados aos sujeitos como elementos de resgate tnico, lembrando que identidades tnicas (culturas) so sistemas abertos que esto incessante e ininterruptamente se modificando, como qualquer cultura conhecida no mundo. [24: A respeito da indicao de que esse termo teria sido introduzido devido a marcha dos 500 anos, acrescentamos que nas margens do rio Aru, que forma o rio Arapiuns juntamente com o Mar, existe um povoado que, segundo seus moradores bastante antigo, denominado de Comunidade dos Parentes]

Um segundo elemento utilizado na sentena para fortalecer o entendimento de que o caso envolveria processo de construo identitria exgeno extrado do Relatrio Antropolgico encomendado pela FUNAI como parte do processo de identificao e demarcao da TI Mar. A construo identitria exgena se evidenciaria no relatrio ao reconhecer que:Na segunda metade do sculo XIX, levas de migrantes nordestinos arregimentados para o negcio da borracha estabeleceram-se em todo o vale do Tapajs; no alto curso do rio foram explorados os seringais nativos e no baixo curso, as seringueiras cultivadas. Nesse perodo, os povos nativos experimentaram mudanas sociais profundas e se reorganizaram a partir de casamentos intertribais ou intertnicos[footnoteRef:25], alm de fuses e fisses de grupos locais (SENTENA dos PROCESSOS 2010.39.02.000249-0 e 2091-80.2010.4.01.3902, 2014, p. 10). [25: A aldeia do Novo Lugar, uma das trs aglomeraes populacionais que pleiteiam a demarcao da Terra Indgena em tela formada por cerca de 230 habitantes com laos sanguneos familiares em uma formao social que poderia ser chamada de cl. Fato que contesta pelo menos a verso de que tais passaram por casamentos com migrantes nordestinos.]

Ou seja, o texto sugere que os Borari-Arapyuns poderiam ter perdido a identidade indgena decorrente de processo de miscigenao. Embora no tenha sido considerado que a relao de parentesco dos indgenas da Aldeia do Novo Lugar seja formada 90% por relaes sanguneas familiares, como demonstrou o laudo antropolgico constante no processo FUNAI 08620.000294/2010, referente delimitao e demarcao da TI Mar, (Da SILVA, 2011, folhas. 317-518), o texto da sentena no considera a probabilidade do contrrio (tomada ao extremo), ou seja, de que os exgenos possam ter sido assimilados pela cultura indgena. Ademais, acrescente-se, o paradigma da aculturao e miscigenao, h muito abandonado pelos estudos antropolgicos contemporneos, parecem compor as premissas da sentena.Um terceiro elemento que o sentenciador utiliza para consolidar sua tese de que o caso evidentemente de construo identitria exgena a de que grupos ambientalistas fundamentalistas seriam os impulsionadores do falso processo de etnognese em tela. Esses ambientalistas estariam interessados na preservao ambiental, tendo em vista que as terras indgenas demarcadas, alm de servirem como locais de preservao da cultura, modo de vida e reproduo dos povos indgenas, ficam formalmente salvaguardadas da devastao ambiental que, invariavelmente, acontece diante da omisso e fraqueza do poder pblico (Idem, p. 12, grifos nossos). Como elemento justificador dessa construo a sentena apresenta que [...] grupos situados nos rios Tapajs e Arapiuns, bem como as trs aldeias do rio Mar, foram includos na programao do Projeto Integrado de Proteo s Populaes e Terras Indgenas da Amaznia (PPTAL) (SENTENA dos PROCESSOS 2010.39.02.000249-0 e 2091-80.2010.4.01.3902, 2014, p. 10).Impulsionados por tais interesses, esses ambientalistas com recursos financeiros abundantes, fez-se conforme a vontade do fregus, ou seja, se o propsito era identificar terras indgenas, mas no havia ndios na regio, aproveitou-se o processo de converso de ribeirinhos em ndios, h alguns anos, j iniciado por ONGs ambientais e pelo antroplogo, religioso e ativista scio-ambiental Florncio Vaz (Idem, p. 13). Ou seja, ambientalistas, antroplogos ou clrigos seriam os construtures exgenos do falso processo de etnognese em tela.O ltimo elemento utilizado na sentena para confirmar indiretamente a tese de que o caso de construo identitria exgena retirado dos estudos dos pesquisadores Peixoto, Arenz e Figueiredo, atravs dos quais teriam constatado que at 14 anos antes do impulso dado pelo projeto do PPTAL, povos indgenas, na regio do Baixo Tapajs, eram tidos como extintos (idem). Porm, o prprio fragmento utilizado na sentena revela uma ponta de contradio entre o texto dos pesquisadores e o da sentena. Vejamos o fragmento:Os povos indgenas do Baixo Tapajs, que 14 anos atrs eram tidos como extintos, saram da invisibilidade e se insurgem contra os amorfos rtulos de caboclos ou populaes tradicionais. E assim passam a ser vistos pelos vrios interesses estabelecidos na regio como inconvenientes, impertinentes caboclos dizendo-se ndios. Anuncia-se o agravamento dos conflitos e o poder do Estado mostra-se presente, relativizando direitos e contestando a institucionalizao de novas terras indgenas (PEIXOTO, 2011, apud SENTENA dos PROCESSOS 2010.39.02.000249-0 e 2091-80.2010.4.01.3902, 2014, p. 13-14).

De um lado, em nosso entendimento, a contradio se revela se considerarmos que o no uso da identificao social de ndio em favor, por exemplo, do uso da denominao ribeirinho faz parte de uma dinmica social de preservao fsica tendo em vista o preconceito e extermnio que os indgenas brasileiros em geral, e amaznicos em especial, recorreram como estratgia simblica de resistncia e preservao[footnoteRef:26]. Tendo esse entendimento no horizonte, e considerando que a Constituio de 1988 trouxe ao cenrio jurdico nacional um captulo inteiro dedicado aos direitos indgenas era de se esperar que muitos indivduos ou grupos que se escondiam sob a identificao de ribeirinhos ou caboclos para a preservao fsica, tomassem coragem de reassumir a identidade histrica de indgena. Por outro lado, possvel considerar que os indgenas construram essa identidade somente aps a oposio com outra cultura que a demandou. Ou seja, nenhum habitante do que hoje chamamos Brasil identificava-se ndio em 1500. Essa identificao decorreu de um processo histrico de longa durao cuja resistncia, objetao e frico com a cultura europeia, ou qualquer outra exgena, possibilitarem a construo da categoria tnica de ndio. neste contexto que deve ser entendido o processo histrico de invisibilizao dos ndios tapajnicos. [26: Maiores detalhes desse processo de escondimento identitrio dos indgenas como estratgia de preservao pode ser encontrado em Ioris (2009) disponvel em https://periodicos.ufsc.br/index.php/ilha/article/view/2175-8034.2009v11n1-2p219]

Voltando tentativa de expor a contradio, preciso aceitar que invisibilizao no o mesmo que extino. por reconhecer essa condio, que os autores do fragmento acima no podem ser colocados ao lado daqueles que estariam explicando a extino dos indgenas do Baixo Tapajs. Porm, contraditoriamente, o texto da sentena procura apontar que esses pesquisadores afirmam o contrrio. Afirmariam a extino desses indgenas.Acrescente-se que reverter a invibilizao, entendido como uma estratgia de sobrevivncia, exemplar dentre os processos de etnogneses ocorridos desde as dcada de 1970 (PACHECO DE OLIVEIRA, 1999; ARRUTI, 2006), sobretudo na regio Nordeste, onde o censo comum reforava a teoria da extino total das populaes indgenas. Invisibilizao que no pode ser confundida com extino, mas como estratgia legtima de sobrevivncia, sobretudo se considerarmos para o caso em tela a virulncia com que as foras oficiais atuaram contra os indgenas durante e aps o episdio histrico da Cabanagem nessa regio do pas.Relatados todos os quatro elementos que segundo a sentena comprovariam que estamos diante de um processo de construo identitria exgena, o texto recorre literatura especializada que trata do tema da etnognese para fortalecer seu equivocado entendimento acerca deste conceito. Para tanto utilizado texto do j citado antroplogo Miguel Bartolom (2006) na tentativa de sugerir que o sentido dado ao conceito de etnognese indiretamente utilizado na sentena o mesmo de Bartolom. Passemos a esta anlise.Num primeiro movimento o texto da sentena se refere indiretamente Bartolom[footnoteRef:27] como um dos [27: Lembremos que o prprio Bartolom o primeiro nome que aparece na assinatura da chamada Carta de Barbados, disponvel em: http://www.missiologia.org.br/cms/UserFiles/cms_documentos_pdf_28.pdf]

adeptos das orientaes do chamado Grupo de Barbados[footnoteRef:28] linha radical da antropologia que defende a idia de que sua atuao pode ser comprometida e enganjada mesmo quando trabalham em pesquisas para a criao de terras indgenas , no caso ora debatido, como adiante se amide, bateram-se fortemente para que as populaes ribeirinhas do Baixo Tapajs passassem a reconhecer-se como diferentes das demais populaes ribeirinhas (SENTENA dos PROCESSOS 2010.39.02.000249-0 e 2091-80.2010.4.01.3902, 2014, p. 14). [28: Durante os dias 25-30 de janeiro de 1971 antroplogos reuniram-se em um simpsio na cidade de Barbados e divulgaram no final do evento documento sobre suas posies em relao situao social dos indgenas e o modo pelo qual os antroplogos poderiam contribuir para a luta pela libertao dos indgenas. Este documento ficou conhecido como Declarao de Barbados e o conjunto dos que assinaram o documento ficaram estigmatizados como Grupo de Barbados. (A declarao est disponvel em: http://www.missiologia.org.br/cms/UserFiles/cms_documentos_pdf_28.pdf).]

E que, devido ao engajamento radical para a criao de terras indgenas, as ideias provindas do Grupo de Barbados teria posto em curso processos de construo identitria exgena de indgena ao promover a defesa de um projeto contemporneo de globalizao e de preservao da biodiversidade ecolgica como forma de combater a ganncia promovida pela suposta necessidade de crescimento econmico ilimitado , casaram perfeitamente com o projeto ambiental do PPG7 Programa Piloto para Proteo das Florestas Tropicais do Brasil, por meio PPTAL (programa de regularizar fundiariamente as terras dos povos indgenas) (idem).Consequentemente, com a caractersticas muito mais de ativistas que propriamente de cientistas, os antroplogos que adotaram a referida linha de pensamento idealizaram ou desenvolveram a chamada etnognese, construo terica que passou a explicar e incentivar o ressurgimento de grupos tnicos considerados extintos, totalmente miscigenados ou definitivamente aculturados e que, de repente, reaparecem no cenrio social, demandando seu reconhecimento e lutando pela obteno de direitos ou recursos (Idem, p. 14-15, grifos nossos).Ou seja, o a sentena alcana o entendimento de que a etnognese uma construo terica, mas pontua que ela desenvolve e incentiva o ressurgimento tnico. Ao interpretar dessa forma ele deixa de lado o fato de que as construes tericas de qualquer cincia uma tentativa de interpretar, no nvel do pensamento, o movimento concreto objetivo do real. No a construo terica que gera o movimento real, tanto da natureza, como da sociedade, mas o contrrio. A partir do movimento concreto do real que o homem constri suas teorias explicativas com a inteno de compreender e interpretar os fenmenos naturais e sociais.E continua: Tal movimento de ressurgimento tem a miscigenao no Brasil e na Amrica Latina como mal a ser combatido (classificando-a como mito) e disso tem se servido muitos ativistas ambientais, que vislumbram na figura do indgena ressurgido uma funo ambiental protetiva mais eficaz que aquela desempenhada pelas chamadas populaes tradicionais, e assim, no por outra razo, passaram a incentivar o repdio designaes que julgam pouco resistentes tais como caboclos, ribeirinhos, mestios, entre outras que rotulam como autoritrias e instrumentos de dominao oficial (Idem).Ou seja, a miscigenao aparece na sentena como algo combatido por antroplogos, sobretudo do Grupo de Barbados, como se esse combate fosse possvel, tendo em vista que a miscigenao enfraqueceria os movimentos de etnognese, dificultando a construo identitria exgena. Para substanciar essa argumentao, utilizado o prprio Bartolom, antroplogo e pesquisador do Instituto Nacional de Antropologia e Histria do Mxico, INAH Oaxaca, e que tm exercido forte influencia sobre os antroplogos brasileiros que seguem a referida corrente radical (Idem, p. 15, grifos nossos), na tentativa de apontar que o entendimento de etnognese desse mesmo influente pesquisador pode ser usado para fortalecer o entendimento de que etnognese o mesmo que construo identitria exgena e que esse antroplogo se pe ao lado dos que entendem a miscigenao como mal a ser combatido (p.15). Para isso o texto da sentena apresenta um recorte do artigo em apreo de Bartolom e o descontextualiza dando a impresso de que Bartolom compartilha do combate miscigenao (SENTENA dos PROCESSOS 2010.39.02.000249-0 e 2091-80.2010.4.01.3902, 2014p. 15). Eis o fragmento no contexto da sentena:Nas palavras de Miguel Alberto Bartolom antroplogo e pesquisador do Instituto Nacional de Antropologia e Histria do Mxico, INAH Oaxaca, e que tm exercido forte influncia sobre os antroplogos brasileiros que seguem a referida corrente radical , o mito da miscigenao, entendido como a realizao generalizada de uma sntese racial e cultural em toda a Amrica Latina, alimentou tambm a ideologia conforme a qual os ndios tinham desaparecido e agora todos os habitantes de cada Estado eram homogneos graas a esse processo (SENTENA dos PROCESSOS 2010.39.02.000249-0 e 2091-80.2010.4.01.3902, 2014, 2014, p.15)

Mas vejamos o fragmento de Bartolom em seu contexto original, embora seja um tanto longo, mas necessrio para entendermos o que esse autor entende por etnognese e fazermos jus a sua importncia acadmica:H alguns anos, antroplogos, parcela da opinio pblica e classes polticas envolvidas na questo vm reagindo com certa surpresa em face dos atuais processos de etnognese, como se esses fossem um elemento indito ou mais um produto da globalizao, qual se atribuem at as mudanas climticas, ou ainda um evento derivado da ps-modernidade, que confunde filosofia com etnografia. A nova visibilidade poltica obtida pelos povos indgenas nas ltimas dcadas faz com que os processos pelos quais eles passam sejam objeto da reflexo, algo desconcertada, dos responsveis ao decretarem que a modernidade era o fim da etnicidade, ou que esta era uma contradio secundria das sociedades de classes. No entanto, os povos nativos sempre estiveram ali, no como fsseis viventes do passado, mas sim como sujeitos e participantes da histria, como sociedades dotadas de dinmicas prprias que transcendem as percepes estticas. Para os etngrafos de campo e para as populaes regionais, essa presena tnica nunca esteve realmente oculta, a no ser por sua ausncia no discurso acadmico e poltico que at recentemente no havia reparado nela. que subjacente a este desconcerto diante da etnicidade est a reificao do Estado-nao, ao qual se atribua a capacidade de produzir uma desejada homogeneizao cultural e para o qual as lealdades tnicas so percebidas quase como uma traio ptria (BARTOLOM, 2006, p. 44, grifos nossos) Ou seja, em momento algum Bartolom combate a miscigenao. De modo oposto, entendemos que ele apenas constata miscigenaes nos grupos que pesquisou, mas que tal de modo algum elimina a condio de indgena nos envolvidos. No caso em apreo estes teriam reelaborado elementos afros, mas mantendo elementos indgenas histricos. Na sequencia do texto de Bartolom (2006), apontado que os povos nativos no so construo idealista de antroplogos, ambientalistas ou clrigos, mas que, pelo contrrio, sempre estiveram ali de modo dinmico, participando ativamente da construo de sua histria em sua dinmica prpria, resistindo, aceitando, reelaborando seus sistemas simblicos e esquemas cosmoslgicos. Deste modo,O mito da miscigenao, entendido como a realizao generalizada de uma sntese racial e cultural em toda a Amrica Latina, alimentou tambm a ideologia conforme a qual os ndios tinham desaparecido e agora todos os habitantes de cada Estado eram homogneos graas a esse processo. Um dos Estados que mais nutriram tal fantasia em seu imaginrio social foi o Mxico, cujos intelectuais e polticos elevaram a miscigenao em nvel de raa csmica. No entanto, quase todos os demais pases, com a provvel exceo dos detentores de reas amaznicas cujos habitantes nativos no so facilmente traduzveis ao ns nacional, fizeram da imagem de uma sntese conquistada parte do imaginrio poltico nacional. [...] Sem pretender multiplicar os exemplos, pode-se presumir que a atual visibilidade tnica provm tambm de uma mudana ideolgica por parte das populaes indgenas e cuja conseqncia foi a reformulao da cegueira ontolgica construda pelas ideologias nacionalistas estatais (2006, p. 44-45, grifos nossos)Ou seja, como foi adiantado, as populaes indgenas sempre estiveram ali, mas recentemente, principalmente depois da promulgao da atual constituio nacional, alguns grupos se fortaleceram e conseguiram transpor a barreira da invisibilidade (at ento utilizada como estratgia de sobrevivncia) e reconstruir sua identidade histrica apesar da insistente tentativa dos instrumentos estatais em evitar e enfraquecer esse resgate. E, neste sentido,

a etnognese pode ser o resultado indireto e no planejado de polticas pblicas especficas. [...]Trata-se da dinamizao e da atualizao de antigas filiaes tnicas s quais seus portadores tinham sido induzidos ou obrigados a renunciar, mas que se recuperam, combatentes, porque delas se podem esperar potenciais benefcios coletivos. Em certas oportunidades isso se deve desestigmatizao da filiao nativa, mas frequentemente tambm s novas legislaes que conferem direitos antes negados, como o acesso terra ou a programas de apoio social ou econmico (Idem, p. 45, grifos nossos)Ou seja, Bartolom no se refere etnognese como uma espcie de farsa tnica. Mas, como processo legtimo que ocorre internamente em grupos que procuram se livrar da invisibilidade impulsionados por elementos externos que lhes favorecem. No se trata de utilitarismo stricto sensu, mas de uma nova estratgia de sobrevivncia permitida agora, no caso brasileiro, pelo novo contexto posto em curso pela constituio de 1988. Neste sentido, o conceito de etnognese, para ser aplicvel tal qual entende este antroplogo enquanto instrumento terico de compreenso do real, teria que abarcar elementos internos e externos aos sistemas sociais sobre os quais so possveis de atribuir esse conceito. neste contexto que devemos examinar a sequencia do texto da sentena no que diz respeito ao uso do exemplo do processo de etnognese dos Tuxa e Quiriri que, de nosso ponto de vista, se mostra infiel ao texto original. Sobretudo sugerindo que o espanto do antroplogo ao encontrar-se diante de indivduos que se diziam ndios, mas que fenotipicamente no pareciam, indicaria que este sugeria estar diante de uma farsa tnica. Examinemos essa situao no (con)texto de Bartolom:Os Tux so descendentes de vrios grupos aldeados pelos jesutas no sculo XVII provavelmente, grupos de idiomas distintos, motivo pelo qual recorreram ao portugus como lngua geral. Posteriormente, passaram a abrigar muitos negros fugidos das fazendas. No sculo XX, a discriminao da qual eram objeto levou-os a solicitar a proteo da FUNAI para, assim, garantir certa estabilidade territorial. Com isso, alguns camponeses sem terra buscaram mulheres entre eles para terem acesso a um quinho dessas terras (Nsser e Cabral 1988). Apesar do deslocamento lingstico e da transfigurao cultural, os Tux continuavam a se perceberem e a serem percebidos pela populao local em termos tnicos ou seja, as fronteiras tnicas se haviam mantido e tinham desenvolvido processualmente as identidades contrastantes. Alguns colegas pensavam que a manuteno da identidade estava relacionada aos direitos territoriais que lhes outorgava a FUNAI, muito embora tenham sido eles, como comunidade preexistente e com capacidade de ao coletiva, a solicitar a proteo das autoridades indigenistas. Apesar de quase completamente esquecidos do mapa tnico da Bahia, os Tux estavam presentes como tal e reivindicavam seus direitos centenrios (BARTOLOM 2006, p. 51, grifos nossos).

Imediatamente antes, do fragmento acima, porm, Bartolom se surpreenderia com o encontro com os Tuxa Quiriri, afirmando que:

A situao era algo estranha: encontrvamo-nos em um povoado de mulatos e caboclos que, embora vivessem como todos os demais camponeses e pescadores, no falassem uma lngua nativa e tivessem adotado um cerimonial afro-brasileiro declaravam-se indgenas e tinham autoridades prprias cujos ttulos pareciam no pertencer ao contexto. No entanto, a despeito das aparncias, no se tratava de uma farsa tnica (Idem, p. 50-1, grifos nossos)

Ou seja, embora Bartolom reconhea o fato concreto de que o aspecto fsico desses tux era predominantemente mulato ou caboclo e que ningum falava lngua indgena e que alguns homens e crianas tinham pele e olhos claros (idem, ibidem, p. 50), trechos realados na sentena, o antroplogo conclui que apesar de quase completamente esquecidos do mapa tnico da Bahia, os Tux estavam presentes como tal e reivindicavam seus direitos centenrios (Idem).Consequentemente, deduz-se do exposto que Bartolom no pode ser interpretado como um defensor do entendimento do conceito de etnognese como uma construo identitria que envolve apenas elementos exgenos. Para ele, como adiantamos, assim como para as Cincias Sociais contemporneas, as culturas so dinmicas, so sistemas abertos e se reconstroem ininterruptamente ao longo da histria. O fato de existirem dentre os tux indivduos fenotipicamente diferentes dos tux histricos, plasmados por algum motivo na memria nacional que apressadamente se espanta em no identificar fisicamente algum tux atual com seus antepassados, no elemento suficiente para afirmar peremptoriamente que eles foram assimilados pela cultura nacional. Como pontua Bartolom, sobre as caractersticas diacrticas desses tux: A aldeia estava ameaada por um processo de realocao forada, provocado pela inundao derivada da construo da represa de Itaparica, e todos nos fizeram saber de suas preocupaes nesse sentido. Em especial, estavam angustiados porque a represa submergiria a Ilha da Viva, em cujas terras frteis tinham alguns cultivos e onde, ademais, realizavam a exclusiva cerimnia do tor e a ainda mais secreta cerimnia particular, vedada aos brancos (2006, p. 50).

Ou seja, apesar da forte presso fsica e simblica da sociedade hegemnica nacional, Bartolom elenca algumas caractersticas que, embora no explicite, s podem ser devidamente explicadas recorrendo ancestralidade indgena dos tux. Dentre elas, pelo menos, estaria a cerimnia incontestavelmente indgena do Tor.Para finalizar, elenquemos brevemente alguns entendimentos sobre etnognese que Bartolom extrai da literatura antropolgica para contribuir com nossa inteno de apontar que este autor foi utilizado de forma equivocada no corpo do texto referente ao mrito da sentena. Ademais, reafirmemos, o texto da sentena parece partir de uma concepo exclusivamente culturalista, altamente cultivada pelas constituies brasileiras pretritas atual, e por antroplogos da modernidade, e h muito tempo abandonada pela antropologia contempornea e estudiosos das questes tnicas, tanto no Brasil, como na Europa e EUA, que procuraram compreender a reconstruo identitria contempornea de modo mais isento.A primeira definio que Bartolom examina sobre o conceito de etnognese extrada da obra de Sider (1976) para o qual ela seria o oposto ao etnocdio (BARTOLOM, 2006, p. 52). importante observar que esse entendimento sugere a pr-existncia dos indivduos, tanto para se eliminar etnocdio - como para se reconstruir etnognese -, fato que refora a tese segundo a qual etnognese no a construo de sujeitos histricos de modo exgeno e que no existiam, tanto fisicamente como culturalmente. Os sujeitos j devem preexistir para que a noo de etnognese possa fazer sentido e ser aplicvel.Outra abordagem resgatada por Bartolom (2006, p. 53) sobre o significado de etnognese na literatura antropolgica extrado de Antnio Perez (2001), e ganha importncia porque procura abordar o tema de maneira comparativa.Este autor [Antnio Perez] cunha inclusive uma tipologia inicial, na qual distingue, entre outras, as etnias reconstrudas, ou seja, aquelas que perderam h pouco suas bases culturais identitrias mas que mantm uma continuidade territorial, parental ou histrica, e as etnias ressuscitadas, cuja relao com o passado provm em parte da memria e em parte da literatura existente sobre o grupo. Aqui, sugiro utilizar o conceito de maneira ampliada, para designar tambm os processos de atualizao identitria de grupos tnicos que enfrentaram profundas mudanas de transfigurao tnica, podendo ser considerados praticamente extintos e cuja emergncia contempornea constitui um novo dado para a reflexo antropolgica e para as polticas pblicas em contextos multiculturais (Bartolom, 2006, p. 53).

Do fragmento acima importante considerar que em ambos os casos, sejam etnias reconstrudas ou etnias ressuscitadas, no em momento algum afirmado a extino real dos indivduos que mantinham algum lao com seus ancestrais e, depois, pela ao exgena de antroplogos, ambientalistas ou clrigos, teria ocorrido a reconstruo identitria. Ademais interessante apontar, para compreender a argumentao de Bartolom sobre etnognese que, para este autor, no possvel entender processos de etnognese assentado no paradigma da aculturao (como parece sugerir em alguns momentos o texto da sentena) e partir da percepo do exterior para compreender o interior. Ou seja, processos de etnognese envolveriam duas dimenses inseparveis, chamadas por Bartolom de internas e externas (p.54), de modo que no interior de um sistema intertnico, uma parte no compreensvel sem a outra, e as dinmicas internas no se esgotam nem se reduzem exclusivamente aos determinantes externos Se assim no fosse, certo estmulo exterior produziria sempre a mesma resposta, como se as culturas indgenas fossem idnticas umas as outras (idem, ibidem). Em outras palavras, evidente que os processos chamados de etnogneses ocorrem de modo interno a um grupo social, mas alimentado, movimentado, influenciado, estimulado, por processos externos que o demandam, influenciam, constrange, e participam ativamente de seu movimento. De modo que a dinmica interna incompreensvel (poderamos dizer, inclusive, que no existiria) sem a existncia de fatores externos. Vejamos um exemplo prtico a partir da prpria sentena para elucidar a relao inseparvel entre as dinmicas internas e externas para se compreender os processos de etnogneses. Um dos movimentos de desconstruo da indigeneidade dos Borari-Arapyum aparece na sentena quando sugerido que a aculturao desses indgenas tambm poderia ser notada na mudana de organizao poltica que teria ocorrido aps a marcha dos 500 anos. Eles teriam trazido de l a ideia de se organizarem em conselhos, associaes, etc, como se fosse um indcio do abandono da condio de indgena. Ora, examinando essa sugesto exemplo luz de Bartolom, para o qual preciso entender as etnogneses contemporneas no s em termos da articulao dos grupos tnicos com o Estado nacional, mas tambm em relao com as dinmicas internas das sociedades nativas (p. 54), evidente que esse tipo novo de organizao uma resposta interna aos estmulos externos que o demandam. Ou seja, os indgenas aprenderam que para requisitarem a demarcao de suas terras era necessrio a organizao poltica em conselhos, associaes, realizar assembleias, etc. Isso de modo algum pode sequer ser indcio de abandono da indigeneidade. A menos que o observador esteja assentado em fundamentos culturalistas fundamentalistas impondo suas concepes ao sistema que observa.Ou seja, etnognese, para Bartolom, no tem o mesmo significado e sentido atribudo a ele no corpo do texto da sentena. Para este antroplogo, trata-se de processos legtimos, impossveis de serem entendidos considerando apenas elementos internos ou externos aos grupos sociais. De modo similar, tambm no pode ser entendido considerando apenas os elementos externos que estimulam o processo. Ao contrrio, a fora motriz dos processos de etnogneses estaria na interao entre os elementos internos e os externos ao sistema. Os dois fatores no podem ser separados (embora o possa no campo analtico-epistmico, mas no no campo ontolgico) e isolados atribuindo a um deles o causador da etnognese e, consequentemente, usado como fator de deslegitimaro desses processos, como parece ocorrer na sentena. o que procuramos apontar.3. ConclusoNo mrito da sentena em tela o conceito de etnognese utilizado de modo equivocado e distorcido em relao s referencias bibliogrficas que o sustenta. Tendo em vista a centralidade que este conceito detm para a concluso da sentena julgamos ser importante o devido esclarecimento em relao ao seu significado bem como fazer jus s referncias tericas utilizadas.Neste sentido, esclarecemos que etnognese no pode ser entendido como um processo de construo identitria exgena, como indiretamente sugere o corpo da sentena, nem mesmo endgeno, e muito menos pode ser atribudo tal entendimento ao antroplogo Miguel Alberto Bartolom.De nosso ponto de vista, o processo social em curso nas aldeias da pretena Terra Indgena Mar se coaduna com o entendimento de etnognese defendido por Bartolom, e no com o entendimento sugerido pelo juiz na sentena, tendo em vista a participao de elementos internos e externos envolvidos no processo. Internamente observa-se um grupo de indgenas com origem no aldeamento jesuta dos Borari, localizado no distrito santareno de Alter-do-Cho (cf. Moraes, 1987)[footnoteRef:29] que, embora no se saiba precisamente o motivo, tendo em vista duas possibilidades, a fuga da violncia da cabanagem ou a fuga da epidemia de clera que abateu a regio de Santarm em meados do sculo XIX, se deslocaram para o interior subindo o rio Arapiuns e depois o Rio Mar[footnoteRef:30], alojando-se em seu mdio curso, precisamente na regio onde hoje reivindicam a TI. Considerando que os aldeamentos de Alter-do-Cho e Vila Franca, que fica a frente de Alter-do-Cho, porm do outro lado do rio Tapajs, eram chamados pelos jesutas de Borari e Arapyum no estranha o fato dos membros das trs aldeias da pretena TI Mar se auto-referenciarem como Borari e Arapyum. [29: O padre Jose de Morais, ao descrever para a coroa portuguesa as aes da companhia de Jesus na bacia do Amazonas, testemunha que, partindo da aldeia dos Tapajs, atual Santarm Subindo o rio Tapajs acima mo esquerda, em distncia de sete lguasest a aldeia de Borari, tambm da administrao dos religiosos da Companhia. Esta aldeia estava unida com a dos Tapajs at o ano de 1738, em que o Padre Manuel Ferreira a separou para Borari, por causa de ser muito grande a aldeia de Tapajs, e no ter terras bastantes para cultura de tantos ndios. Defronte deBorari mo direita do rio est a aldeia de Cumaru ou Arapiuns(Pe. Jos de Morais, 1759).Considerando que uma lgua nutica converte-se aproximadamente em cinco ou seis quilmetros, a descrio acima para a localizao da aldeia de Borari coincide com a atual Alter-do-Cho, localizada a 35km de Santarm pelo medidos pelo rio Tapajs.] [30: Embora haja outra teoria, igualmente forte, que afirme a subida pela mata desde a atual Vila Franca (em frente a atual Alter-do-Cho, na outra margem do rio, at o rio Mar, em um local batizado de Bejuau.]

Por outro lado, considerando que durante muitos anos a regio ficou fora da cobia capitalista, tendo em vista seu grau de interiorizao na Amaznia, tais indivduos nunca sentiram a necessidade de mostrarem sua origem indgena. Ademais, preciso considerar que, dado a estigmatizao recebida e cultivada pela cultura nacional dominante contra os ndios, o processo de invisibilizao mencionado antes. Porm, depois da chegada dos madeireiros na regio, sobretudo devido permuta[footnoteRef:31] que o Estado do Par, atravs do ITERPA, faz com os proprietrios de reas no ento Projeto Integrado Trairo, que fora reivindicado para a demarcao das terras indgenas dos Kayap como ressarcimento, planos de manejo so aprovados na Gleba Nova Olinda cuja parte se superpe rea reivindicada pelos Borari-Arapyum, e comea-se a retirada de madeiras no entorno e no interior da rea reivindicada pelos indgenas, os elementos externos comeam a estimular os internos. [31: Maiores detalhes em: http://www.ioepa.com.br/diarios/2010/12/27.12.caderno.00.01.pdf]

Amalgamando o processo acrescenta-se o fato de no ser possvel eliminar do contexto o conhecimento que os indgenas da regio em geral, e do Brasil em particular, passaram a ter da constituio de 1988 bem como da Conveno 169/OIT. Devido o amparo legal que tais legislaes proporcionam e o reconhecimento dos direitos indgenas, iniciou-se o processo de sada da invisibilidade. neste contexto que, segundo nossa compreenso, deve ser entendido o processo de etnognese em curso no caso em tela.De outro ponto de vista, diversos autores que tem se debruado sobre temas envolvendo a questo tnica demonstram alguns aspectos conceitualmente relevantes no tocante aos chamados processos de etnognese ou de etnicidade (BARTH, 1969; COHEN, 1974), dentre os quais destacamos o carter dialgico e transitrio das construes identitrias. Durante muito tempo, na prpria Antropologia, trabalhou-se com esquemas conceituais homogeneizantes e essencializantes das noes de cultura e sociedade. Tais esquemas transpuseram as barreiras cientficas e encontram-se atualmente incutidos no senso comum. Contudo, a Antropologia tem demonstrado que os elementos culturais, a organizao social e a histria vivida no devem ser entendidos como traos essenciais ou inatos aos grupos sociais. So antes de tudo possibilidades que podem ser evocadas diante de situaes sociais especficas em contextos de interao, tendo em vista a defesa da legitimidade do (auto)reconhecimento identitrio e de usufruto de um territrio. Desde os trabalhos de diversos estudiosos das Cincias Sociais[footnoteRef:32], aprendemos que concepes que entendam cultura e sociedade como coisas homogneas e sem transformao, negligenciando sua dinmica e racionalidade, historicamente serviram para legitimar projetos coloniais e de dominao. Discursos que procuram deslegitimizar os pleitos das etnias insurgentes tem baseado seus argumentos em esquemas tericos fechados, baseados num arcabouo terico erigido sobre as noes de aculturao de perdas identitrias, noes estas colorarias de noes estigmatizantes, essencializadoras e generalistas dos conceitos de cultura e sociedade. Traos que parecem estar presentes no texto da sentena. [32: Cf. T. Todorov (1988); E. Said (1990) e T. Asad (1973)]

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