Etnoecologia Ou Etnoecologias (Alves e Souto 2010)

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1 Etnoecologia ou Etnoecologias? Encarando a diversidade conceitual Ângelo Giuseppe Chaves Alves 1 , Francisco José Bezerra Souto 2 1 Universidade Federal Rural de Pernambuco. Departamento de Biologia. Rua Manoel de Medeiros, s/n, Dois Irmãos. 52171- 900 Recife, Pernambuco, Brasil. 2 Universidade Estadual de Feira de Santana. Departamento de Ciências Biológicas. Av. Transnordestina, s/n, Novo Horizonte. 44036-900 Feira de Santana, Bahia, Brasil. Apresentação A etnoecologia é um campo de conhecimentos que foi designado formalmente no meio acadêmico há pouco mais de meio século e tem gerado muitas discussões, inclusive em seus aspectos teóricos e conceituais. Ainda que a quantidade de publicações e de autores tenha aumentando nos últimos anos, são muitas ainda as dúvidas e imprecisões encontradas. Muitas destas, certamente, têm sua gênese no fato de a etnoecologia estar situada nas interfaces entre conhecimentos distintos (porém relacionáveis) como as ciências naturais, sociais e humanas, em um sistema que inclui inter, multi e transdisciplinaridades. Este capítulo, longe de pretender resolver definitivamente essas questões, retoma-as para lançar algumas luzes sobre a diversidade conceitual existente no campo da etnoecologia, visando contribuir para uma melhor compreensão e valorização dos saberes locais relacionados aos recursos naturais e seu manejo. Publicado originalmente em: ALVES, A. G. C. ; SOUTO, F. J. B.; PERONI, N. (Org). Etnoecologia em perspectiva: natureza, cultura e conservação. Recife: Nupeea, 2010. p. 17-39. ISBN: 978-85-63756-05-3

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Reference:ALVES, A. G. C.; SOUTO, F. J. B. Etnoecologia ou etnoecologias? Encarando a diversidade conceitual. In: Ângelo Giuseppe Chaves Alves; Francisco José Bezerra Souto; Nivaldo Peroni (Orgs.). Etnoecologia em perspectiva: natureza, cultura e conservação. Recife: Nupeea, 2010, p. 17-39. ISBN: 978-85-63756-05-3---------------------------------------This is the first chapter of a book.Want to buy the book?Please visit www.nupeea.comOr send an email to [email protected]

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1 Etnoecologia ou Etnoecologias? Encarando a diversidade conceitual

Ângelo Giuseppe Chaves Alves1, Francisco José Bezerra Souto2 1 Universidade Federal Rural de Pernambuco. Departamento de Biologia. Rua Manoel de Medeiros, s/n, Dois Irmãos. 52171-900 Recife, Pernambuco, Brasil. 2 Universidade Estadual de Feira de Santana. Departamento de Ciências Biológicas. Av. Transnordestina, s/n, Novo Horizonte. 44036-900 Feira de Santana, Bahia, Brasil.

Apresentação A etnoecologia é um campo de conhecimentos que foi designado formalmente no meio acadêmico há pouco mais de meio século e tem gerado muitas discussões, inclusive em seus aspectos teóricos e conceituais. Ainda que a quantidade de publicações e de autores tenha aumentando nos últimos anos, são muitas ainda as dúvidas e imprecisões encontradas. Muitas destas, certamente, têm sua gênese no fato de a etnoecologia estar situada nas interfaces entre conhecimentos distintos (porém relacionáveis) como as ciências naturais, sociais e humanas, em um sistema que inclui inter, multi e transdisciplinaridades. Este capítulo, longe de pretender resolver definitivamente essas questões, retoma-as para lançar algumas luzes sobre a diversidade conceitual existente no campo da etnoecologia, visando contribuir para uma melhor compreensão e valorização dos saberes locais relacionados aos recursos naturais e seu manejo.

Publicado originalmente em: ALVES, A. G. C. ; SOUTO, F. J. B.; PERONI, N. (Org). Etnoecologia em perspectiva: natureza, cultura e conservação. Recife: Nupeea, 2010. p. 17-39. ISBN: 978-85-63756-05-3

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Introdução

E é possível fazer pontes que atravessem os rios sem colunas ou qualquer outro meio de sustentação (...). Mas não precisas ficar preocupado se não existem ainda, porque não quer dizer que não existirão. (ECO 1986)

O termo Etnoecologia foi apresentado pela primeira vez por Conklin

(1954 a;b) em seu clássico estudo dos Hanunoo, nas Filipinas e desde então diversos significados têm sido dados ao termo. Ao invés de etnoecologia, Frake (1962), que foi também um pioneiro deste enfoque, preferia o termo ecologia etnográfica.

O fato de Conklin (1954 a;b) ter sido um dos pioneiros da etnoecologia e da própria etnociência clássica1, mostra que ambas têm aproximadamente a mesma “idade” e compartilham, historicamente, métodos, objetivos e pesquisadores (Fowler 1977), numa espécie de sobreposição epistemológica. Se, em algumas etnotaxonomias, um organismo pode pertencer simultaneamente a mais de um táxon, algo semelhante ocorre com o recorte disciplinar no campo etnocientífico, pois as diversas abordagens como etnobotânica, etnozoologia, etnoecologia e etnopedologia, entre outras, não são necessariamente excludentes entre si.

A chamada “etnociência”, “nova etnografia”, “etnossemântica” ou ainda “etnografia semântica” surgiu a partir de meados do século XX, propondo uma nova abordagem antropológica, através da qual as culturas deixassem de ser vistas como conjuntos de artefatos e comportamentos e passassem a ser consideradas como sistemas de conhecimentos ou de aptidões mentais, tais como revelados pelas estruturas lingüísticas. Os etnocientistas consideravam o saber como um conjunto de aptidões possíveis de ser transmitidas entre pessoas e pretendiam descobrir os princípios que organizavam as culturas e determinar até que ponto eles seriam universais. Entre seus principais expoentes destacam-se Conklin (1954 a;b), Frake (1962) e Sturtevant (1964).

Por ser um campo de conhecimento recente e híbrido, não há uma definição unificada e consensual sobre o que é etnoecologia e talvez esse consenso não seja ainda necessário. Ao invés de representar um problema, esta falta de consenso pode ser também um desafio instigante. Pode-se considerar a

1 Usa-se “etnociência clássica”, neste contexto, para referir-se à etnociência praticada nos EUA, a partir da segunda metade do século XX, diferenciando-a de outras abordagens semelhantes (e aproximadamente simultâneas) desenvolvidas por europeus como Claude Lévi-Strauss e André-Georges Haudricourt (Marques 2002; Campos 2002)

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própria diversidade de concepções como um aspecto positivo. Tendo em vista que um dos pressupostos da etnoecologia é a valorização da diversidade cultural que se manifesta dentro de cada sociedade, isto talvez deva ser aplicado também no interior do próprio meio acadêmico, através de uma maior tolerância e da tentativa de estabelecer conexões entre concepções teóricas e metodológicas aparentemente divergentes. Isto coincide, em parte, com a sugestão de expandir a “porosidade” (Serres 1999) das fronteiras discursivas entre as disciplinas acadêmicas (e delas com os saberes não-acadêmicos). Por outro lado, o crescente interesse pela etnoecologia faz com que seja necessário e útil sistematizar informações para compreender melhor a grande diversidade de teorias, métodos e técnicas utilizáveis neste campo de conhecimento.

O objetivo deste capítulo é caracterizar a diversidade conceitual existente no campo da etnoecologia, visando contribuir para uma melhor compreensão e valorização dos saberes locais relacionados aos recursos naturais e seu manejo. Será dada ênfase às possibilidades de estabelecer pontes, conexões ou cruzamentos entre culturas e destas com a(s) natureza(s). Neste sentido, as palavras destacadas na epígrafe deste capítulo retratam a importância das pontes já construídas e das que estão ainda por construir. Foram extraídas de um diálogo entre o personagem Guilherme de Baskerville e o seu aprendiz Adso de Melk, no livro “O Nome da Rosa” (Eco 1986). 1. A diversidade de definições e abordagens na etnoecologia

Algumas definições de etnoecologia propostas por diferentes autores foram anteriormente compiladas por Toledo (2000), conforme se vê na Tabela 1. Adicionalmente, a Tabela 2 traz outras definições e comentários sobre etnoecologia e etnobiologia, sem a pretensão de esgotar o tema.

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Tabela 1. Etnoecologia definida por diversos autores (adaptado a partir de uma compilação originalmente organizada por Toledo 1992). AUTORES DEFINIÇÕES DE

ETNOECOLOGIA Johnson (1974) “Um enfoque característico da

ecologia humana, que define seus objetivos e métodos a partir da etnociência”.

Hunn (1982) “Um novo campo que integra teorias etnocientíficas e ecológicas”.

Brosius et al. (1986) “Estudo de como os grupos tradicionais organizam e classificam seu conhecimento do ambiente e dos processos ambientais”.

Posey et al. (1986) “Percepção nativa das divisões do universo biológico e das relações planta-homem-animal em cada divisão”.

Bellon (1990) “tentativas de entender as ligações entre conhecimento e comportamento, e a pertinência dessas ligações para com as relações homem-ambiente”.

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Tabela 2. Definições e comentários de diversos autores sobre etnoecologia e etnobiologia. AUTORES E TEMAS

DEFINIÇÕES E COMENTÁRIOS

Etnoecologia (Toledo 2000)

“Um enfoque interdisciplinar que estuda as formas pelas quais os grupos humanos vêem a natureza, através de um conjunto de conhecimentos e crenças; e como os humanos, a partir de seu imaginário, usam e/ou manejam os recursos naturais”.

Etnoecologia (Toledo 1991).

“disciplina encarregada de estudar as sabedorias camponesas e seus significados práticos”.

Etnobiologia (Posey 1986).

“É essencialmente o estudo do conhecimento e das conceituações desenvolvidas por qualquer sociedade a respeito da biologia. Em outras palavras, é o estudo do papel da natureza no sistema de crenças e de adaptação do homem a determinados ambientes. Neste sentido, a etnobiologia relaciona-se com a ecologia humana, mas enfatiza as categorias e conceitos cognitivos utilizados pelos povos em estudo. [...] Uma vez descobertas as categorias indígenas definidoras dos fenômenos naturais, os especialistas nos diversos campos científicos podem dar início à coleta de dados referentes às suas especialidades, tais como: à etnoentomologia, etnobotânica, etnofarmacologia, etnopedologia, etnogeologia, etnoapicultura, etc.”

Etnobiologia (Toledo 1992)

“Um campo interdisciplinar dedicado à interação entre os seres humanos e seu ambiente vegetal, animal e fúngico. Embora os estudos etnobiológicos sejam supostamente restritos ao conhecimento, classificação, uso e manejo dos seres vivos (plantas, animais e fungos), isto não tem impedido que muitos etnobiólogos transgridam seus próprios limites, realizando pesquisas para além da biologia. São notáveis, nesse aspecto, as mudanças de enfoque de alguns etnobiólogos, que têm praticado uma espécie de etnoecologia disfarçada ou secreta, dentro do âmbito da etnobiologia, e a publicação de artigos no ‘Journal of Ethnobiology’ que não se limitam precisamente ao universo biótico. Esse é o caso da etnobotânica J. Alcorn e do etnozoólogo D. Posey.”

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Tabela 2. (Continuação) AUTORES E TEMAS

DEFINIÇÕES E COMENTÁRIOS

Etnoecologia (Frecchione et al. 1989)

“Percepções indígenas das divisões ‘naturais’ no mundo biológico e das relações solo-planta-animal-homem dentro de cada divisão. Essas categorias ecológicas, cognitivamente definidas, não existem isoladamente; portanto a etnoecologia deve também lidar com as percepções das inter-relações entre as divisões naturais”.

Etnoecologia (Nazarea 1999)

“Um modo de abordagem da relação entre os seres humanos e o ambiente natural, enfatizando o papel da cognição na organização do comportamento”.

Etnoecologia (Marques 1995).

“... o estudo das interações entre a humanidade e o resto da ecosfera, através da busca da compreensão dos sentimentos, comportamentos, conhecimentos e crenças a respeito da natureza, característicos de uma espécie biológica (Homo sapiens) altamente polimórfica, fenotipicamente plástica e ontogeneticamente dinâmica, cujas novas propriedades emergentes geram-lhe múltiplas descontinuidades com o resto da natureza. Sua ênfase, pois, deve ser na diversidade biocultural e o seu objetivo principal, a integração entre o conhecimento ecológico tradicional e o conhecimento ecológico científico ”

Etnoecologia (Marques 2001).

“...o campo de pesquisa (científica) transdisciplinar que estuda os pensamentos (conhecimentos e crenças), sentimentos e comportamentos que intermediam as interações entre as populações humanas que os possuem e os demais elementos dos ecossistemas que as incluem, bem como os impactos ambientais daí decorrentes”

Em seu conjunto, as definições e comentários das tabelas 1 e 2 revelam a importância das inter-relações ou interfaces no campo da etnoecologia: entre natureza(s) e cultura(s); entre os saberes formais (acadêmicos) e os não-formais; entre as ciências naturais, as ciências sociais e as “humanidades”; entre conhecimento, comportamento e crenças. Muitas pesquisas etnoecológicas (mas não todas) dedicam-se ao estudo dos povos chamados “tradicionais”. Nota-se assim a influência de antropólogos pioneiros, como Malinowski (1997), que costumavam trabalhar longe das metrópoles européias, pesquisando povos que eram considerados “primitivos”. Alguns estudos realizados em ambientes urbanos sobre

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sociedades ditas “complexas” mostram que a etnoecologia não se restringe a pesquisar os povos ditos “tradicionais” (Whiteford 1997; Alves et al. 2002). Também é muito comum (mas não obrigatório) que os etnoecólogos enfatizem em seus trabalhos a dimensão cognitiva das relações entre as sociedades e o ambiente que se considera “natural”. Isto parece estar relacionado aos primórdios do desenvolvimento histórico da etnociência, quando se valorizava o conhecimento como aspecto fundamental das culturas (McCurdy et al. 2005).

Tomando como base as duas primeiras definições da tabela 1, conclui-se que uma boa compreensão da Etnoecologia depende também de um conhecimento de alguns aspectos conceituais e históricos da ecologia e da etnociência. Recentemente, a ecologia tornou-se um campo difuso em que se mesclam estudos acadêmicos, movimentos sociais conservacionistas e ações políticas que visam a adoção de estilos de vida menos agressivos e mais integrados com a ordem da natureza (Lago & Pádua 1991). Isto traz dificuldades para que se tenha uma definição uniforme e consensual para a palavra “ecologia”, já que esta representa questões e interesses que ultrapassam as próprias fronteiras da biologia. Este pode também ser um dos motivos para que não se possa ainda definir com precisão o significado do termo “etnoecologia”. Sobre esta expansão do âmbito da ecologia, Odum (1988) ressaltou que “antes dos anos setenta, a ecologia era vista, em grande parte, como uma subdivisão da biologia; e que “embora a ecologia permaneça firmemente radicada na biologia, ela já ganhou a maioridade como uma disciplina integradora essencialmente nova, que une os processos físicos e biológicos e serve de ponte entre as ciências naturais e as ciências sociais”. Vista deste modo, a ecologia não é apenas biológica e abre-se para conexões interdisciplinares, como a etnoecologia, a ecologia cultural, a ecologia humana, a antropologia ecológica e o ecofeminismo, entre outras. 2. Diferentes sentidos para o prefixo “etno” no âmbito das etnociências Conforme resumiu Sturtevant (1964), o prefixo “etno” adquiriu, com a etnociência, um sentido diferente do que era anteriormente empregado pelos cientistas sociais. Para demonstrar o modo com este prefixo era usado por etnólogos antes da emergência da etnociência clássica, pode-se tomar como exemplo o estudo publicado em 1897 pelo pesquisador vitoriano Walter E. Roth, que deu o título de “etno-pornografia” ao último capítulo de sua monografia sobre a cultura aborígine de Queensland (Roth & Etheridge 2010). Conforme ressaltado

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por Sturtevant (1964), Roth chegou a inserir no texto um aviso de que o referido capítulo “não é digno de escrutínio ou leitura cuidadosa por parte do leitor não especializado”, e descreveu sob esse rótulo (“etnopornografia”) alguns itens como casamento, gravidez, parto, menstruação, “linguagem obscena” e, especialmente, mutilações genitais e seu significado cerimonial. Naquela situação, o prefixo “etno” indicava que o tema estudado (a pornografia, no caso) estava sendo relatado com base na visão que um observador externo (o pesquisador) tinha daquele tema. Por sua vez, Sturtevant (1964), que pode ser considerado um “etnocientista clássico” considerava mais correto adotar uma postura diametralmente oposta: “etnopornografia” dos aborígines de Queensland deveria ser o que eles mesmos considerassem pornografia – se de fato eles admitissem tal categoria – em vez do que fosse considerado pornografia pelo etnólogo ocidental. Assim, o prefixo “etno” passava a indicar (pouco depois da metade do século XX) que o tema estudado (quer fosse a pornografia, a ecologia, a botânica ou história) seria relatado com base na visão compartilhada pelos membros de uma determinada cultura (os informantes). O discurso de Sturtevant (1964) surgiu, portanto, como uma proposta explícita de mudança, quando afirma, por exemplo, que “etno-história é a concepção compartilhada por membros de uma dada cultura sobre eventos passados”. Neste caso, etno-história aparece como “história do outro”, porém agora contada segundo a visão de mundo vigente no interior da própria cultura pesquisada. O próprio Sturtevant (1964) mostrou ter consciência da ruptura que propunha, nos seguintes termos:

“É importante enfatizar que o enfoque [da etnociência] é etnográfico, em termos gerais e de nenhum modo limita-se àquelas ramificações da etnografia que são comumente designadas pelos nomes de determinadas áreas do conhecimento [‘arts and sciences’] reconhecidas no meio acadêmico, precedidas do prefixo ‘etno-’. Este prefixo deve ser entendido aqui num sentido especial: ele se refere ao sistema de conhecimento e cognição típico de uma dada cultura. […] Dito de outra forma, uma cultura em si abrange a soma das classificações vernáculas ou locais [‘folk classifications’] de uma determinada sociedade, toda a etnociência daquela sociedade, seus modos particulares de classificar seu universo material e social”.

Exemplificando a visão dos etnocientistas do terceiro quartel do

século XX, em contraste com a de seus antecessores, Sturtevant (1964) considerou também que

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“etno-história é a concepção compartilhada por membros de uma dada cultura sobre eventos passados, ao invés (como seria mais comum) de ser a historia (em nossos termos) de ‘grupos étnicos’; etnobotânica é uma concepção cultural específica sobre o mundo vegetal, ao invés (como também seria mais comum) de ser uma descrição e usos das plantas organizada com base na nossa própria taxonomia binominal”.

Assim, quando se adota a visão defendida por Sturtevant (1964) e pela maioria dos “etnocientistas clássicos”, a etnozoologia passa a ser o próprio conhecimento local a respeito da categoria “animais”, em vez de representar a visão dos pesquisadores (sejam eles antropólogos, sociólogos, biólogos, agrônomos, geógrafos ou outros) que atuam neste campo e que geralmente não pertencem à sociedade estudada. Caberia discutir, talvez, se esse “outro saber sobre os animais” é ou não é científico, e quais as implicações de ser ou não ser científico, em cada caso. Outra pergunta pertinente é: se a categoria “animais” (ou equivalente) não for aceita na cultura estudada, mesmo assim o estudo resultante deverá ser designado como “etnozoológico”?

Após passar por um declínio (Murray 1982), a etnociência tomou novo impulso a partir dos anos 1980, com vários autores propondo adaptações, aplicações e implicações, tais como Williams & Ortiz-Solorio (1981), Ribeiro (1986), Posey & Overall (1990), Toledo (1991; 1992), Warren et al. (1995), Marques (1995; 2001), Nazarea (1999) e Berkes (1999), entre outros. Embora a etnociência tenha perdido apoio enquanto teoria da cultura e/ou do conhecimento, seus métodos clássicos (ou adaptações deles) continuam fornecendo modelos e representações formalmente testáveis de alguns domínios do conhecimento e do comportamento humano. Assim, o arcabouço metodológico etnocientífico continua inspirando pesquisas e intervenções relacionadas às interfaces da antropologia com as ciências da natureza, bem como às ligações entre biodiversidade e sociodiversidade. O sentido do prefixo “etno” vem sendo retomado por autores como Williams & Ortiz-Solorio (1981) pioneiros na publicação termo “etnopedologia”. Esta tem para eles a seguinte abrangência: “Percepção ‘folk’ de propriedades e processos do solo; classificação e taxonomia ‘folk’ de solos; teorias e explicações ‘folk’ sobre propriedades e dinâmica de solos; manejo ‘folk’ de solos; percepção ‘folk’ das relações solo-planta; comparações entre os conhecimentos ‘folk’ e técnicos sobre solos; e avaliação do papel da percepção ‘folk’ dos solos nas práticas agrícolas e em outros campos do comportamento, tudo isso pode ser contemplado sob a denominação ‘etnopedologia’. O termo é usado aqui

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num sentido mais amplo do que usualmente se aplica em etnociência, ou nas denominações etno + disciplina acadêmica (por exemplo: etnoictiologia, etnoornitologia, etnobotânica)” (Grifo nosso).

Nota-se que estes autores também tinham consciência da mudança que propunham, pois afirmaram que estavam usando o termo etnopedologia “num sentido mais amplo”. Assim, para eles, “etnopedologia” não era apenas a “pedologia do outro”, uma vez que se propunham “comparações entre os saberes ‘folk’ e técnicos sobre solos”. Seguindo este raciocínio, a etnobotânica não seria apenas “o saber do outro sobre plantas”, pois englobaria também as comparações entre os conhecimentos formais possuídos pelos pesquisadores e os conhecimentos (geralmente informais) possuídos pelos informantes a respeito das plantas.

Enquanto Williams & Ortiz-Solorio (1981) citaram a possibilidade de “comparações”, Barrera-Bassols (1988) considerou que um etnocientista (etnoedafólogo, no caso) deveria analisar a percepção camponesa das propriedades e processos no solo e “também a sua correspondência com entre o com aquilo que se considera ‘verdadeiramente científico’ no mundo ocidental”. Já Marques (1995), em sua “etnoecologia abrangente” (Tabela 2), defendeu a “integração entre o conhecimento ecológico tradicional e o conhecimento ecológico científico” (grifos nossos). Winkler-Prins (1999), por sua vez, sugeriu “combinar” as “diferentes formas de conhecimento” (do solo, no caso), de modo a permitir uma “integração” e fazer surgir “uma terceira forma de conhecimento”. Assim, “etno” não indica somente “do outro”, de modo que “etnobiologia” não deveria ser vista apenas como “biologia do outro” e sim “interface ou cruzamento entre saberes sobre os seres vivos”, permitindo valorizar articulações (Alves et al. 2007), comparações (Verlinden & Dayot 2005), pontes (Posey 2001), integrações (Naidoo & Hill 2006) e diálogos (Vale Júnior et al. 2007; Baptista & El-Hani 2009). Neste sentido, Marques (2002) manifestou a necessidade de “reconhecimento da etnoecologia como um “campo de cruzamento de saberes”. Posey (2001) chegou a considerar que “os diálogos travados entre pesquisadores e informantes frequentemente obscurecem” a distinção entre interpretações êmicas e éticas e adicionou: “para que interpretações mútuas aconteçam, realidades precisam ser compartilhadas”. Por conseqüência, o prefixo “etno”, quando associado ao nome de alguma disciplina acadêmica pode indicar, quando se adota uma visão semelhante à de Williams & Ortiz-Solorio (1981), algo como tentativas de comunicar-se com e sobre o

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outro em relação a algum tema – geralmente trata-se de algum tema anteriormente discutido no meio acadêmico2. Apesar da visão de Williams & Ortiz-Solorio (1981) parecer tentadora (por ser abrangente), há que ser cauteloso, levando em conta também os perigos que envolvem as tentativas de comparação, articulação e conexão, pois diferentes relações de poder se estabelecem nessas interfaces, e o etnocentrismo às vezes se manifesta na forma de cientificismo, mesmo entre pesquisadores “bem-intencionados”. Em outras palavras: vai-se comparar, articular, conectar o quê? Com quê? E em que termos? Se as chamadas “ciências naturais” forem mantidas sempre como padrão para avaliação do saber local referente ao ambiente natural, então pouco terá sido feito para chegar de fato ao “outro” antropológico. Em todo caso, nesse contexto de mudanças frequentes e opiniões divergentes, sugere-se que o uso de termos do tipo “etno + disciplina acadêmica” (e outros como etnoespécie, etnogênero, etnohábitat, etnocalendário, por exemplo) venha acompanhado de um posicionamento crítico e reflexão explícita dos respectivos autores (Alves & Albuquerque 2010). 3. Denominações para o conhecimento sobre o ambiente natural Sendo a etnoecologia um campo epistemológico “híbrido”, é previsível que haja dificuldades na definição e na comunicação de seus conceitos e métodos. Assim usam-se diversas expressões do tipo etno+ciência para denominar estudos que abordam, com maior ou menor profundidade e abrangência, as relações da espécie humana com os recursos naturais. As expressões do tipo etno+ciência são às vezes substituídas ou acompanhadas, na literatura, por expressões que qualificam os conhecimentos (entre outros aspectos) característicos das populações pesquisadas, tais como: local, indígena3, tribal, popular, do povo, “folk” (que também se usa sem tradução no Brasil), autóctone, tradicional, vernáculo, prático, coletivo, situado, camponês, informal, nativo, rural,

2 Nos casos em que o saber local fornecer informações novas e inesperadas sobre algo que ainda não tenha sido publicado formalmente no meio acadêmico a respeito de algum organismo vivo ou de suas relações ecológicas, pode surgir a oportunidade de gerar novas hipóteses a serem testadas formalmente, de modo a estabelecer uma “ponte metodológica e teórica para interligar a pesquisa científica com o conhecimento tradicional” (Posey 2001). 3 A expressão inglesa “indigenous” (e.g. “indigenous knowledge”, “indigenous soil knowledge”, “indigenous knowledge about soils”) é freqüente na literatura etnocientífica, significando aproximadamente “autóctone”, não somente em referência a populações “tribais”.

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cotidiano, culturalmente específico, étnico, oral, comunitário, endógeno, sustentável, comum, saber-fazer, entre outros.

Os termos “ciência” e “científico” podem não ser completamente adequados para caracterizar o saber acadêmico e diferenciá-lo de outros saberes. Diversos autores consideram que populações iletradas também usam procedimentos científicos em sua experiência cotidiana com o meio natural: Williams (1975) escreveu artigo intitulado “Ciência Asteca do Solo” e explicou que “as populações pré-hispânicas no Vale do México desenvolveram uma sofisticada tecnologia para explorar o seu ambiente físico. As suas obras de engenharia e seus sistemas agrícolas sugerem uma compreensão sistemática do ambiente natural, e as coleções de plantas e animais que mantinham indicam uma curiosidade intelectual básica, que é o fundamento da investigação científica”. Por sua vez, Baraona (1987) considerou que “sem ciência, não é possível fazer a natureza produzir, seja com a ciência dos camponeses ou a ciência que ensinam nas universidades, ou ainda formas que mesclam ambas” e resumiu “as características mais salientes da ciência camponesa: seu sistema mnemônico de registro, sua dinâmica e seu caráter de aparato cognitivo voltado à sobrevivência”. Ainda Hecht & Posey (1989) informaram: “pesquisas na última década têm demonstrado a extraordinária complexidade da ciência Kayapó [...]. Essa complexidade se reflete nas suas detalhadas taxonomias de insetos, peixes e plantas, e na sua bem desenvolvida base agrícola”. Mais recentemente, Winkler-Prins & Sandor (2003) consideram que “o saber pedológico local é complexo, multifacetado e, freqüentemente, muito sutil em sua expressão. Envolve muitas experiências de tentativa-e-erro, mas também inclui processos científicos”. O próprio Lévi-Strauss (1989) referiu-se ao saber ameríndio sobre a natureza como uma “ciência do concreto”.

Numa crítica severa, Agrawal (1995) afirmou que é difícil (e talvez inútil) tentar estabelecer uma diferenciação nítida entre o conhecimento “indígena ou tradicional” e o “científico ou ocidental”, alegando que ambos os tipos compartilham características comuns, ao mesmo tempo em que apresentam muitas diferenças internas. Adicionou que faz mais sentido referir-se a múltiplos domínios e tipos de conhecimento, com diferentes lógicas e epistemologias. Numa linha de pensamento oposta, outros autores como Zimmerer (1994) preferem enfatizar as diferenças entre o saber de pesquisadores e pesquisados. Este é também o caso de Winkler-Prins (1999), para quem “o conhecimento local se baseia e se reproduz pela experiência, diferentemente do científico, que se desenvolve por experimentação controlada e se reproduz dentro de instituições formais”.

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Souto (2007), em trabalho realizado com pescadores em uma área de manguezal da Bahia, registrou esta interessante frase de um pescador que remete a esta interseção de saberes e entendimentos sobre pesquisa:

“Nós pescador também a gente tem que reparar as coisas. Tem que pesquisar também porque a gente tem que saber como trabalha o marisco. A gente tem que ter a curiosidade de procurar saber como tá trabalhando o marisco. Eu não pesco à toa não! Porque a pesca é uma pesquisa na natureza. Você tem que procurar pesquisar ela. Você tem que saber como o marisco anda, como dorme, aonde ele vai dar. Você tem que pesquisar isso tudo, tá entendendo?”

Neste capítulo, usa-se preferencialmente o termo “local”4, em referência às populações pesquisadas em estudos etnoecológicos, e “formal” e “acadêmico” para referir-se aos pesquisadores treinados em instituições formais de ensino e pesquisa, por considerar-se estes mais adequados que outros como “indígena”, “tradicional”, “científico” e “técnico”. Neste sentido, o termo “ecológico” (eg. “saber ecológico local”) aplica-se aqui como “referente a ecologia” (e não apenas à ciência ecológica acadêmica), pois o sufixo “-logo” vem do grego “lógos” (“que trata”) 5. 4. Conhecimentos, crenças e práticas Os aspectos enfatizados nos estudos etnoecológicos variam consideravelmente, dependendo dos objetivos e da filiação epistemológica dos autores. Comumente, tem-se dado mais ênfase às dimensões comportamental (prática) e cognitiva (intelectual) do uso dos recursos naturais, mas alguns autores têm sugerido possíveis variações em torno desse binômio, com a exploração de aspectos cosmológicos (Berkes 1999; Toledo 2000), emocionais (Marques 1995; 2001) e socioeconômicos (Winkler-Prins 1999; 2001). O primeiro obstáculo a ser ultrapassado na pesquisa etnoecológica é a tendência de separar os fenômenos cognitivos e ideológicos dos seus

4 Considera-se aqui o termo “local” na mesma acepção sugerida por Winkler-Prins (1999) para “local soil knowledge” (saber pedológico local): conhecimento de propriedades e manejo do solo por pessoas vivendo num determinado ambiente por um determinado período de tempo”. 5 No dicionário “Aurélio” (http://www1.uol.com.br/bibliot/), “-logo” consta como elemento de composição que significa ‘palavra’, ‘tratado’, ‘estudo’, ‘ciência’; ‘que estuda’, ‘que trata’. Capturado em junho de 2004.

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objetivos práticos (Toledo 1992; 2000). De fato, os grupos humanos atuam baseados em seus conhecimentos sobre a natureza e suas visões de mundo. Neste sentido, este autor considerou que o ponto de partida de qualquer trabalho etnoecológico deve ser a exploração das conexões entre o “kosmos” (sistema de crenças, visão de mundo, cosmovisão), o “corpus” (sistema cognitivo, repertório de conhecimentos através dos quais a espécie humana apropria-se intelectualmente dos recursos naturais) e a “praxis” (sistema de manejo, conjunto de práticas através das quais a espécie humana apropria-se materialmente dos recursos naturais) no processo concreto de produção. Para esclarecer as relações entre “corpus” e “kosmos”, comentou que esses dois domínios estão intrinsecamente ligados, de tal modo que, em muitos casos, é quase impossível dissecá-los durante a análise de uma ação prática (Figura 1). 5. A etnoecologia e seus objetos de estudo Uma análise geral das publicações em etnoecologia e abordagens correlatas mostra que os estudos etnoecológicos enfocando organismos vivos (principalmente etnobotânica e etnozoologia) são mais numerosos que os que tratam de outros domínios como solos, artefatos, constelações e climas. Porém, as primeiras obras que se referiram explicitamente a ‘etnoecologia’ (Conklin 1954 a;b) já continham também uma discussão sobre animais e solos, embora se detivesse mais no campo da etnobotânica e da agricultura local. Sobre solos, por exemplo, ele comentou: “Um estudo sobre classificação do solo entre os Hanunóo e suas idéias sobre aptidão dos solos para diversos cultivos – outras variáveis permanecendo constantes – produziu boas correlações com os resultados de análises químicas de amostras de solos” (Conklin 1954 a).

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Figura 1. Uma etnoecóloga considera dois modelos diferentes de apropriação humana dos ecossistemas: o seu (à direita) e o de uma informante camponesa (à esquerda). A camponesa realiza suas práticas produtivas (C = praxis) a partir de suas próprias crenças (A = kosmos) e conhecimentos (B = corpus). A etnoecóloga também se apropria simbolicamente (A’), cognitivamente (B’) e materialmente (C’) do ecossistema. Adaptado de Toledo (1992) e Barrera-Bassols & Toledo (2005). Foto: Ângelo G. C. Alves.

6. Etnoecologia no Brasil Entre os primeiros autores que se basearam explicitamente em teorias e métodos da etnociência clássica para estudar práticas e conhecimentos locais de uma população brasileira a respeito do ambiente natural, pode-se destacar Johnson (1971; 1972). A partir de um trabalho de campo realizado em 1966-67 com “moradores” de uma fazenda no sertão do Ceará, este autor detectou oito categorias locais de “terras”: “roçado novo”, “capoeira”, “capoeira velha”, “campestre”, “coroa”, “rio”, “lagoa” e “salgada”. Naquele contexto, dois critérios principais eram usados pelos camponeses para estabelecer distinções: a fertilidade (“terras fracas” e “terras fortes”) e a capacidade de retenção de umidade (“terras quentes” e “terras frias”). Observou ainda uma “considerável” correspondência entre o conhecimento (dados cognitivos) das “terras” e a sua utilização agrícola (dados comportamentais) pelos camponeses. Etnoecologia foi por ele

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definida como “um enfoque diferenciado dentro da ecologia humana, que lida com objetivos e métodos derivados da etnociência” (Tabela 1). O antropólogo e entomólogo Darrell Addison Posey foi um pioneiro da etnobiologia e etnoecologia no Brasil, a partir de suas pesquisas iniciadas em 1977 entre os índios Kayapó da aldeia Gorotire, no sul do Pará. Após ter contribuído em estudos de etnoentomologia (etnobiologia), Posey (1979) passou a atuar como um obstinado promotor do enfoque etnoecológico e dos direitos de propriedade intelectual relacionados ao manejo de recursos por grupos indígenas e outras populações locais (Posey 1999). Sua trajetória foi analisada por Toledo (1992), demonstrando uma mudança de enfoque ao longo do tempo (Tabela 2). Do ponto de vista metodológico, cabe ressaltar a sua “metodologia geradora de dados” (Posey 1986), cujo modelo proposto para o questionamento inicial aos informantes era “fale-me sobre isso”. Para muitos aprendizes brasileiros de etnoecologia, nas décadas de 1980 e 1990, com acesso limitado à bibliografia sobre o tema, e sem educação formal em ciências sociais, essas orientações básicas foram muito úteis. Sua proposta de geração e teste de hipóteses científicas a partir de informações “êmicas” (Posey 1987; 2001) representou uma forma bastante inspiradora de abordar a sabedoria das populações indígenas e camponesas a respeito do ambiente natural.

Do ponto de vista epistemológico, uma das características marcantes de sua obra foi a abordagem integradora: “nenhum etnobiólogo sério sugeriu que se deva abandonar os conceitos científicos ocidentais no estudo de uma ciência não-ocidental. O que se exige é o abandono dos conceitos etnocêntricos de superioridade frente ao saber indígena, a fim de que se possa registrar, com acuidade, os conceitos biológicos de outras culturas, e com isso desenvolver idéias e hipóteses que enriqueçam nosso próprio conhecimento” (Posey 1986). Embora Darrell Posey defendesse, de modo geral, um enfoque integrador, as suas definições para etnoecologia, etnobiologia e campos afins dão ênfase maior ao conhecimento possuído pelas populações locais (indígenas, caboclos, etc.). Isso pode ser exemplificado em outra definição sua para etnopedologia: “conhecimento das populações locais sobre solos e seu manejo” (Posey 2000). Outro autor que realizou estudos de interesse etnoecológico na Amazônia na década de 1970 foi Emilio Moran. Na região de Altamira (Pará), Moran (1977) relatou as diferenças entre os antigos “caboclos” e os novos “colonos” provenientes do sul, no que tange ao conhecimento de solos, durante a implantação de assentamentos agrícolas, entre 1972 e 1974. Baseados no conhecimento da floresta que tinham adquirido em atividades de caça e coleta de látex, os “caboclos” escolheram áreas de onde predominavam árvores de diâmetro relativamente pequeno e áreas de

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“cipoal” (lianas). Já os colonos sulistas, fazendo extrapolações a partir do conhecimento que tinham de sua regiões de origem, preferiram áreas de vegetação mais exuberante (com árvores de diâmetro maior). Análises laboratoriais demonstraram que os solos das áreas escolhidas por “caboclos” tinham maiores níveis de matéria orgânica, potássio e fósforo, baixos níveis de alumínio trocável e maior pH (mais próximo da neutralidade), em comparação às áreas escolhidas por novos “colonos”, indicando assim a maior adequação dos “indicadores agronômicos populares” usados pelos “caboclos”. Essa experiência foi posteriormente discutida por Moran (1981) sob a denominação de “Etnoagronomia: seleção de solos num ambiente florestal”. Ainda comentando a mesma situação, Moran (1990) sugeriu que “para facilitar a ligação entre as relações homem-ambiente, o ideal é testar uma etnoecologia da categoria ‘solos’ por meio de amostras de solos”. Marques (1995; 2001) foi o primeiro autor brasileiro a elaborar um arcabouço teórico geral e original no campo da etnoecologia. Na sua “etnoecologia abrangente”, destaca-se o estudo das “conexões básicas” através das quais se daria a inserção humana nos ecossistemas: Homem-mineral, Homem-vegetal, Homem-animal, Homem-homem e Homem-sobrenatural. A etnoecologia foi por ele definida de diferentes maneiras ao longo do tempo (Tabela 2). É característica da etnoecologia abrangente de Marques (1995; 2001) a busca de uma articulação entre as abordagens êmica e ética6, diferindo assim de outros autores (Posey 1986; Hecht & Posey 1989) em que predomina a visão êmica. 7. Algumas tendências gerais na literatura etnoecológica Os diversos exemplos de estudos etnoecológicos realizados no Brasil e em outros países mostram algumas tendências em comum:

6Comparando as abordagens êmica e ética (também chamadas, respectivamente, “emicista e “eticista”), Harris (2000) salientou que a primeira constitui-se de descrições e interpretações que enfatizam o ponto de vista dos participantes, enquanto nesta última enfatiza-se o ponto de vista dos observadores. Assim, os enunciados êmicos descrevem os sistemas sociais de pensamento e comportamento cujas distinções, entidades ou fatos se constituem de contrastes e discriminações percebidos pelos próprios participantes como similares ou diferentes, reais, representativos, significativos ou apropriados. Os enunciados éticos, por sua parte, dependem de distinções consideradas apropriadas por uma comunidade de observadores com instrução científica formal. Em estudos etnoecológicos, os participantes podem ser camponeses, indígenas, ou mesmo populações urbanas, e os observadores podem ser pessoas com formação acadêmica relacionada ao tema da pesquisa.

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i) Há uma grande escassez de trabalhos etnoecológicos relativos aos recursos do meio físico, comparativamente ao que se tem publicado a respeito dos componentes bióticos dos ecossistemas (principalmente sobre plantas e animais). Resulta que a etnoastronomia e a etnopedologia, por exemplo, ainda são menos desenvolvidas que outros campos associáveis à etnoecologia, tais como etnobotânica e etnozoologia (Pawluk et al, 1992). ii) Tem-se dado maior ênfase nas questões práticas e cognitivas e pouca atenção às dimensões cosmológica (Barrera-Bassols & Zinck 2000), político-social (Winkler-Prins 1999) e emocional (Marques 2001; 2002). iii) Considerando a variedade de abordagens, objetivos e métodos observados nos estudos etnoecológicos, bem como a perspectiva de articulação do conhecimento local com o acadêmico, e ainda das ciências naturais com as ciências sociais e humanidades, parece mais adequado considerar a etnoecologia como “campo de cruzamento de saberes” (Marques 2001) do que como “uma disciplina” (Toledo 1992). Referências 1. Agrawal, A. 1995. Indigenous and scientific knowledge. Indigenous Knowledge and Development Monitor 3(3): 3-38. 2. Alves, A. G. C. & Albuquerque, U. P. 2010. Ethno what? Terminological problems in ethnoscience with a special emphasis on the Brazilian context. pp. 67-79. In: Albuquerque, U. P. & Hanazaki, N. (Orgs.). Recent Developments and Case Studies in Ethnobotany. Recife, Nupeea. 3. Alves, A.G.C.; Silva, I.F.; Queiroz, S.B. & Rosas, M.R. 2007. Sodium-affected Alfisols as known by peasants and agronomists in the Agreste region, State of Paraíba. Scientia Agricola 64(5): 495-505. 4. Alves, A. G. C.; Souto, F.J.B. & Leite, A.M. 2002. Etnoecologia dos cágados-d’água Phrynops spp. (Testudinomorpha: Chelidae) entre pescadores artesanais no açude Bodocongó, Campina Grande, Paraíba, nordeste do Brasil. Sitientibus, Série Ciências Biológicas 2(1/2): 62-68. 5. Baptista, G. C. S. & El-Hani, C.N. 2009. The Contribution of Ethnobiology to the Construction of a Dialogue Between Ways of Knowing: A Case Study in a Brazilian Public High School. Science & Education 18(3-4): 503-520. Disponível em http://www.springerlink.com/content/7404801110107520 6. Baraona, R. 1987. Conocimiento campesino y sujeto social campesino. Revista Mexicana de Sociología 49:167-190.

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