Ética Pelo STJ

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Palestra proferida no Seminário Ética e Cidadania – o olhar do observatório, em Fortaleza, em 18/06/2001. A ÉTICA NA MAGISTRATURA FÁTIMA NANCY ANDRIGHI Ministra do Superior Tribunal de Justiça Insigne presidente desta solenidade. A douta organização deste importantíssimo evento reservou para mim a ética na magistratura, e a escolha, não tenho dúvidas, se deveu aos meus vinte e cinco anos de magistratura de carreira desempenhados na justiça comum. Os ilustres palestrantes que me antecederam representam dentro da nação brasileira verdadeiras catedrais éticas no desempenho de suas funções. Colocar-me ao lado destes respeitáveis profissionais majora sobremaneira a minha honra de ter sido escolhida dentre um contingente de 12.000 Juízes para lhes falar acerta da ética na minha profissão e, ao tempo que se multiplica a minha responsabilidade. Pela honra, pela alegria da oportunidade e pela responsabilidade que colocam sobre meus ombros, meu princípio de fala é para lhes dizer: obrigada de coração. O juiz é um espelho social onde o jurisdicionado se mira e encontra justificativas para agir de tal e qual forma, isto porque, no seu modo de ver crítico é permitido concluir que “se o juiz assim age, mais do que nunca eu, que sou um simples cidadão, posso fazê-lo”. Esse é o primeiro passo na conscientização de que o juiz ao ser investido nas funções jurisdicionais agrega ao seu ser, a responsabilidade da imagem da instituição que representa. É no ser, no estar e no participar, sempre e concomitantemente estará de forma indissolúvel e permanente associada às imagens do homem-juiz, a do Poder Judiciário que representa.

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  • Palestra proferida no Seminrio tica e Cidadania o olhar do observatrio, em Fortaleza, em 18/06/2001.

    A TICA NA MAGISTRATURA

    FTIMA NANCY ANDRIGHI Ministra do Superior Tribunal de Justia

    Insigne presidente desta solenidade.

    A douta organizao deste importantssimo evento reservou

    para mim a tica na magistratura, e a escolha, no tenho dvidas, se

    deveu aos meus vinte e cinco anos de magistratura de carreira

    desempenhados na justia comum.

    Os ilustres palestrantes que me antecederam representam

    dentro da nao brasileira verdadeiras catedrais ticas no desempenho de

    suas funes. Colocar-me ao lado destes respeitveis profissionais majora

    sobremaneira a minha honra de ter sido escolhida dentre um contingente

    de 12.000 Juzes para lhes falar acerta da tica na minha profisso e, ao

    tempo que se multiplica a minha responsabilidade.

    Pela honra, pela alegria da oportunidade e pela

    responsabilidade que colocam sobre meus ombros, meu princpio de fala

    para lhes dizer: obrigada de corao.

    O juiz um espelho social onde o jurisdicionado se mira e

    encontra justificativas para agir de tal e qual forma, isto porque, no seu

    modo de ver crtico permitido concluir que se o juiz assim age, mais do

    que nunca eu, que sou um simples cidado, posso faz-lo.

    Esse o primeiro passo na conscientizao de que o juiz ao

    ser investido nas funes jurisdicionais agrega ao seu ser, a

    responsabilidade da imagem da instituio que representa. no ser, no

    estar e no participar, sempre e concomitantemente estar de forma

    indissolvel e permanente associada s imagens do homem-juiz, a do

    Poder Judicirio que representa.

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    Abordar o tema tica na magistratura tarefa difcil, primeiro

    pela relevncia e depois porque vrios prismas podem ser explorados.

    Procurarei nesta exposio pinar de um contexto muito abrangente

    alguns pontos que me parecem fundamentais e esto atrelados ao lado

    pragmtico, deixando de lado, a tica sob o prisma poltico que foi to

    magnificamente abordada pelo ilustre Senador da Repblica Eduardo

    Suplicy.

    A busca da presena da tica na magistratura comea pela

    reflexo do esfacelamento do ensino jurdico no pas. No podemos deixar

    de reconhecer que aps o advento da Lei de Diretrizes e Bases na

    Educao Nacional a formao jurdica no pas ficou bastante prejudicada

    em face do cunho mercantilista, o qual permitiu que as portas das

    Universidades fossem abertas sem o necessrio preparo, principalmente

    dos professores, cujo recrutamento, com oferta de salrios pouco

    convidativos, no atraiu para dentro das faculdades de direito os mestres

    vocacionados, comprometidos em formar as futuras geraes os mais

    preparados quer sob a tica da formao cientfica, quer da formao

    tica, que necessariamente deve ser iniciada nos bancos escolares.

    Evidentemente que, de professores com duvidosa capacidade tcnica,

    dotados de pouco idealismo e pouco preocupados com os princpios ticos

    e morais foram lanados no mercado da atividade jurdica um sem

    nmero de profissionais do direito com acentuadas deficincias tcnicas e

    com limites muito tnues de moral e de tica.

    Decorrente do enfraquecimento do ensino jurdico exsurgem

    vrias conseqncias graves, gizo, neste momento, a que efetivamente

    nos interessa que o recrutamento dentre este manancial de profissionais

    do direito para serem juizes.

    A seleo mediante concurso pblico a forma mais eficiente

    e justa para recrutar juizes. Endossamos a opinio de Zaffaroni ao

    enfatizar que o concurso o nico mtodo que confere dignidade ao juiz,

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    pois lhe permite considerar a funo como um direito adquirido

    legitimamente e no como uma merc do poder. Induvidosamente o

    acesso carreira da magistratura a todos os operadores do direito

    mediante seleo pblica, bastando preencher o requisito de formao

    jurdica, institui uma magistratura democrtica, contudo a excelncia do

    recrutamento democrtico no suficiente. Urge que no se olvide que o

    exerccio desta importantssima funo poltica e social no depende e

    nem se encerra com a habilitao, mas principalmente pela formao

    contnua a que deve ser submetido o magistrado.

    A dedicao ao estudo para lograr xito na aprovao nas

    provas de acesso magistratura apenas o primeiro passo, porque o juiz

    dever ser submetido cursos de iniciao funcional, formao

    permanente e aperfeioamento, papel que as Escolas de Magistratura,

    aps ao concurso pblico, vem desempenhando no Brasil com muita

    habilidade, eficincia e presteza por quase todos os Tribunais estaduais.

    No exerccio da funo judicante o juiz se depara com um

    manancial de legislao envelhecida e ultrapassada que o empurra para

    conduzir o processo distanciado da realidade nacional e da prpria vida,

    mantendo-o desatualizado, acabando por desestimul-lo ao estudo e

    pesquisa, dando-se por satisfeito com o seu trabalho, sem atentar que as

    solues ou decises que profere estejam dando prioridade ao formalismo

    e ao tecnicismo, mas completamente despojadas da preocupao de

    verdadeiramente solucionar o conflito vivido pelas partes no processo,

    proporcionando equilbrio de sentimentos das partes contendoras.

    A par do volume significativo de leis ultrapassadas, se instala

    uma verdadeira incompatibilidade do regramento com a realidade social, e

    este fato propicia a aplicao do chamado direito alternativo. Juizes no

    eleitos para legislar e ou revisar as leis desatendem os limites da sua

    funo de aplicador da lei, passam com o seu conceito prprio e individual

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    do justo decidir com fundamento em lei ditada pela sua prpria

    conscincia como se fosse o nico titular da verdade.

    No h espao para invocaes contra legem em face dos

    predicados da legislao. A lei a condensao de experincias que

    permite incorporar meios para verificar com qual dos litigantes est a

    razo, para tornar efetivo o direito que for reconhecido a qualquer das

    partes. Segundo Tornaghi o legislador abstrai das circunstncia de cada

    caso e aponta a norma que deve ser observada. Por esta razo no pode

    o juiz praticar atos de caridade com o direito em discusso, nem se

    deixar influenciar com situao social crtica. Cumpre ao juiz subordinar o

    seu juzo pessoal ou subjetivo de valor ao que foi declarado pelo

    legislador. No aplicar a lei instaurar o imprio da desordem.

    comprometer todo o ordenamento jurdico, retirar toda a segurana do

    cidado, , enfim, impor a pior das ditaduras: a ditadura do Judicirio.

    tica na magistratura compreende, tambm, o dever de

    garantir o acesso Justia, que deve ser compreendida como o direito de

    todo o cidado a um processo justo que se faz com a obedincia aos

    princpios processuais constitucionais. Oportuno gizar que acesso justia

    no sinnimo de acesso ao Poder Judicirio. O acesso ao Poder Judicirio

    compreende a reunio das condies para ajuizar uma ao (custas

    processuais, contratao de advogado, etc.), contudo, acesso justia a

    certeza do processo justo que passa necessariamente pelo juiz

    independente, imparcial e que no subverte a ordem legal. Se as leis so

    injustas, mudem-se as leis. Se as leis so inconstitucionais que sejam

    assim declaradas. No cabe ao juiz deixar de aplic-las de acordo com a

    sua ideologia, conscincia e critrio, apoiado em uma suposta justia

    social.

    Oportuna a lio de Ennecerus que diante da insubordinao

    do direito positivo ao direito ideal ou justia absoluta, deve caber ao

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    legislador a tarefa de corrigir a injustia atravs da derrogao da lei m,

    mas no ao juiz recusar-lhe aplicao em nome de uma justia ideal.

    Promover uma mudana de mentalidade na magistratura e

    nos demais operadores do direito uma proposta tica que o Poder

    Judicirio vem fazendo, por intermdio, principalmente do Presidente do

    Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justia, o que

    demonstra um novo tempo na postura do Poder Judicirio brasileiro.

    A reforma do Judicirio que est sendo elaborada pelo Poder

    Legislativo ir atender parte das mazelas do Judicirio como instituio,

    porm, o cidado que o fim maior dos servios judicirios pouco ou nada

    ir sentir na soluo dos seus processos e dos seus problemas jurdicos.

    tica tambm, ao vislumbrar a futura ineficcia da reforma que est

    proposta e em tramitao no Congresso Nacional, os juizes promoverem

    uma reforma que parta de dentro do Poder Judicirio para fora,

    procurando alterar linhas de conduo procedimental que venham

    simplificar o processo, gerando, em conseqncia, a agilizao das

    decises. O juiz de mesa-limpa como qualquer outro operador do Direito

    o espelho do burocrata e no do julgador.

    Podemos afirmar, com segurana, que de 1600 at 1985 a

    nica e significativa mudana operada no sistema processual brasileiro foi

    o uso na atividade judiciria da mquina de escrever. Em 1985

    vivenciamos a mais significativa mudana no Poder Judicirio que foi a

    instituio de uma nova Justia no pas, que se consubstanciou na criao

    dos Juizados Especiais Cveis e Criminais, no triscando e no alterando a

    justia tradicional. Afora estes dois marcos nada podemos,

    lamentavelmente, acrescer. O nosso sistema processual tem DNA, leia-se,

    data de nascimento avanada. ultrapassado e incompatvel com a vida

    nos tempos da globalizao e a sua morosidade s interessa a poucos.

    Podemos falar em pequenos e pontuais avanos na legislao processual

    civil e penal adotados com a Reforma Processual, mas que

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    lamentavelmente no foram suficientes para efetivamente agilizar e

    modernizar o processo e o procedimento e ouso afirmar: a continuao da

    Reforma Processual que ainda tramita no Congresso Nacional incidir

    outra vez no mesmo equvoco. A mudana necessria dever ser

    ontolgica, caso contrrio, estaremos apenas, com as pequenas reformas

    pontuais, produzindo alteraes na jurisprudncia, e apenas gerando

    movimento nas editoras de livros jurdicos.

    tica na magistratura tambm lutar pela democratizao da

    Justia. tambm no ter receio de diminuir o expectro de abrangncia

    do poder jurisdicional exercido pelos juizes, cabendo prpria

    magistratura incentivar o aproveitamento das formas alternativas de

    soluo de conflito (arbitragem, mediao e negociao), e, mais, difundir

    e admitir a participao do conciliador judicial, conforme disposto no art.

    277, 1, do Procedimento Sumrio do Cdigo de Processo Civil. Urge

    que nos Juizados Especiais Cveis se implante a figura do juiz leigo que

    propiciar que se continue cumprindo os prazos da Lei 9.099/95, sob pena

    de em muito pouco tempo assistirmos a transposio das mazelas da

    Justia tradicional atingindo os Juizados Especiais, como por exemplo, a

    designao de audincia de instruo e julgamento para alguns meses

    aps a tentativa frustrada de conciliao.

    tica na magistratura estar atento imprescindvel

    modernizao do aparato judicial, deixando de utilizar o computador

    apenas como uma mquina de escrever mais sofisticada, implantando a

    estenotipia com decodificao em tempo real, propiciando com isto a

    agilizao na realizao das audincias e a eliminao dos incidentes

    desagradveis que ocorrem entre o juiz e os advogados por causa do

    registro do teor dos depoimentos das testemunhas. Com a estenotipia,

    que trao objetivo, a anotao do contedo do depoimento integral e

    literal no dando margem ao juiz de registrar a sua prpria interpretao

    do relato do depoente.

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    tica na magistratura submeter-se, sem preconceitos, aos

    ventos da modernidade, investir sempre na continuidade administrativa

    que a maioria da cpula dos tribunais no tem obedecido, ocasionando

    paralisao de programa bem sucedido da administrao anterior para dar

    fomento vaidade do novo administrador da Corte.

    tica na magistratura principalmente ser um juiz adequado a

    seu tempo, rente aos fatos e principalmente rente vida, nunca olvidando

    que atrs de cada pgina do processo est um cidado aflito aguardando

    a deciso do juiz. lembrar que este mesmo cidado que bateu s portas

    do Poder Judicirio tem o seu direito constitucional de ter dia na Justia,

    isto , de pelo menos uma vez em sua vida se encontrar com aquele que

    detm o poder, por dever de ofcio, de decidir a sua pendenga.

    tica na magistratura nunca olvidar que o dever do juiz

    estar com as partes litigantes no sendo o suficiente receber no seu

    gabinete os advogados.

    tica na magistratura apagar com uma nova postura a

    notcia que transita nos meios forenses, de que mais fcil ser recebido

    por um Ministro de Tribunal Superior, do que ser atendido por um juiz de

    direito. preciso lembrar sempre que as armaduras de inacessibilidade

    que criamos correspondem ao tamanho da nossa insegurana e da nossa

    insensibilidade.

    tica na magistratura ter sempre presente que a volta

    humanizao da Justia to importante quanto a sua modernizao.

    tica na magistratura ter a humildade de no s reconhecer

    os defeitos e as deficincias dos servios judicirios prestados como ,

    principalmente, trabalhar para resgatar a imagem da Justia,

    abandonando o secular silncio para manter o cidado informado do

    trabalho feito pelo juiz dentro dos tribunais, esclarecendo que a atividade

    do juiz artesiana e que cada processo, em face da singularidade e

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    gravidade de cada um precisa receber a ateno individualizada e, por

    isso, demandam maior tempo na busca de sua soluo. H casos cuja

    soluo ideal ou adequada no se encontra nos livros nem nos julgados,

    mas em horas de reflexo, na sensibilidade e na experincia vivenciada

    pelo juiz, o que exige mais dedicao para encontrar o amadurecimento

    necessrio e decidir com justia.

    A compreenso da atividade judicial e a responsabilidade na

    prtica dos atos judiciais tambm uma questo de tica na

    magistratura, pois a sociedade repudia o erro judicirio tanto quanto e

    como a mesma intensidade, como repudia o erro mdico. Lidamos com a

    liberdade, valor mximo do ser humano, lidamos com o patrimnio que na

    maioria das vezes o resumo do trabalho de uma vida toda. Esta uma

    preocupao que deve ser permanentemente reavivada na lembrana dos

    juizes, pois, com a atividade jurisdicional tambm causam ou podem

    causar clamor pblico.

    A essencialidade da atividade jurisdicional se traduz no fato de

    que o juiz agente estatal, mas tambm protagonista social. A funo

    precpua do juiz ser o pacificador social e, para tanto, precisa ser

    respeitado pela coletividade.

    tica na magistratura aceitar o controle externo, contudo,

    lutando com todas as foras para que este instrumento jamais venha

    interferir ou triscar na independncia e imparcialidade da atividade

    jurisdicional. O juiz srio, trabalhador e cioso das suas incumbncias no

    receia e nem se preocupa com a existncia ou no de um rgo

    controlador.

    O juiz vocacionado, idealista atende muito mais ao controle

    interno da sua alma, da sua conscincia, do compromisso com a sua vida

    e a parte da vida do seu semelhante que exerce jurisdio, do que com

    reflexos que possam advir de eventual controle externo.

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    Faz parte do ser humano delirar com o fato de desfrutar muita

    honra e ter nas mos um feixe de poder e, uma das atividades humanas

    que mais propicia a aproximao da honra e do poder, sem dvida, a

    magistratura, por isso, principalmente nas investiduras no cargo de juiz,

    se considera imprescindvel sempre fazer contundente alerta das

    conseqncias a cada grupo de novos juzes ao serem empossados no

    cargo. Por oportuno trago colao um pronunciamento que abalou os

    meios forenses da Frana, e o tenho como uma prece diria. O insigne juiz

    Baudot assim saudou um grupo de novos juizes franceses, nos seguintes

    termos:

    Estais empossados e advertidos. Permiti-me que tambm vos fale, a fim de corrigir algumas coisas que vos foram ditas e de fazer-vos ouvir algumas coisas inditas. Ao entrar na Magistratura vos tornastes funcionrios de um escalo modesto. No vos embriagueis com a honra fingida ou real que vos atribuam. No levanteis muito alto a cabea. No vos deixei enganar por palavras como terceiro poder, poder do povo, guardio das liberdades pblicas. No tendes seno um poder medocre: o de meter as pessoas na cadeia. E s vos do este poder porque ele geralmente inofensivo. Quando condenardes a cinco anos de priso um ladro de bicicletas, no estarei molestando ningum. Evitai de abusar desse poder. No penseis ser mais considerado por ser mais terrveis. No julgueis que ides como So Jorge, vencer o drago da delinqncia por uma represso impiedosa. Se a represso fosse uma coisa eficaz, h muito tempo teria alcanado seus objetivos. Se ela intil como creio, no penseis em fazer carreira a custa da cabea dos outros. No conteis a priso por anos ou meses, mas por minutos e segundos, exatamente como se tivsseis vs mesmos de sofr-la.

    verdade que entrais numa profisso em que vos exige sempre que tenhais carter, mas entendam por isso apenas que sejais inclementes com os subalternos; este , em geral o comportamento dos homens. Tratai de evitar isto. A justia aplicada impunemente. No abuseis da impunidade. Em vossas funes, no deveis dar exagerada importncia lei e de um modo geral desprezai os costumes, as circulares, os decretos e a jurisprudncia. Deveis ser mais do que o Tribunal de Justia, sempre que se apresentar uma ocasio. A justia no uma verdade estagnada em 1810. uma criao perptua. Ela deve ser feita por vs. No espereis o sinal verde de um ministro ou de um legislador ou das

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    reformas sempre em expectativa. Fazei vs mesmos a reforma. Consultai o bom senso, a equidade, o amor ao prximo, antes da autoridade e da tradio. A lei se interpreta. Ela dir o que quiserdes que ela diga. Se mudar um til, pode-se, com os mais slidos considerandos do mundo, dar razo a uma parte ou a outra, absolver ou condenar pena mxima. Desse modo que a lei no vos sirva de libi.

    Verificareis, alis, que revelia dos princpios estabelecidos, a justia aplica extensivamente as leis repressivas e restritamente as leis liberais. Procedei de modo contrrio. Respeitai a regra do jogo quando ela vos freia. Sede bons jogadores, sede generosos. Ser uma novidade. No vos contenteis em cumprir os deveres do ofcio. Vereis desde logo que para serdes um pouco teis, devereis abandonar os caminhos batidos. Tudo o que fizerdes de bom ser um acrscimo. Gosteis ou no, tendes um papel social a desempenhar. Sois assistentes sociais. Vossa deciso no termina numa folha de papel. Corta na carne viva. No fecheis vossos coraes ao sofrimento nem vossos ouvidos ao clamor. No sejais desses juizes menores que s querem tratar de processar. No sejais rbitros, indiferentes acima de tudo e de todos. Tende sempre a porta aberta a todos. H trabalhos mais teis do que caar essa borboleta a verdade ou de cultivar essa orqudea a cincia jurdica.

    No sejais vtimas de vossos preconceitos de classe, religiosos, polticos e morais. No penseis que a sociedade seja intangvel, a desigualdade e a injustia inevitveis e a razo e a vontade humanas incapazes de qualquer mudana. No acrediteis que um homem seja culpado de ser o que nem que ele dependa apenas de si mesmo para ser de outra forma. Em outras palavras no o julgueis. No condeneis o brio. O alcoolismo, que a medicina no sabe curar, no uma escusa legal, mas uma atenuante. Por seres instrudos no desprezeis o iletrado. No apedrejeis a preguia, vs que no trabalhais com as mos. Sedes indulgentes para com os demais seres humanos. No aumenteis suas aflies. No sejais dos que aumentam a aflio do aflito.

    Sedes parciais. Para manter a balana entre o forte e o fraco, rico e o pobre, que no tem o mesmo peso, preciso que calqueis um pouco a mo do lado mais fraco da balana. Esta a tradio capeteana. Examinai sempre onde esto o forte e o fraco que no se confundem necessariamente com o delinqente e sua vtima. Tende um preconceito favorvel pela mulher contra o marido, pelo filho contra o pai, pelo devedor contra o credor, pelo operrio contra o patro, pelo

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    vitimado contra a companhia de seguros, pelo enfermo contra a previdncia social, pelo ladro contra a polcia, pelo pleiteante contra a justia.

    Rogo, aos distintos participantes deste importante evento e

    tenham para comigo o beneplcito para perdoar este sermo da

    montanha de vossa colega.

    Obrigada.