Introdução à Filosofia Aula 8 Ética ou filosofia Moral: Natureza, dever, desejo e vontade.
Ética Do Desejo
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A TICA DO DESEJO E A PSICANLISE NAS
INSTITUIES
Elizabeth Cristina Landi de Lima Souza
Hlio Henrique Quinan Neiva
Marcela Toledo Frana de Almeida
Epicuro (341 a. C.-270 a.C.) usou o termo thrapeuein para designar o que na
antiguidade era compreendido como cuidado de si por meio do tratamento pelo
esprito (Sauret, 2006). Do sculo II at o final do sculo XIX, a palavra psicoterapia
foi afastada do uso comum. Em seu retorno histrico, esse termo passou a conter em
seu sentido o cuidado do ser entre os espaos ntimo e social e trouxe uma concepo
que englobava o funcionamento psicolgico de uma poca e a relao entre os
indivduos inseridos nessa particularidade histrica. Segundo Marie-Jean Sauret
(2006), a psicoterapia surge no contexto das ontologias, com suas explicaes
variadas acerca do ser, como os mitos e as religies. A ontologia est fundamentada
no ser de linguagem, que busca no outro uma referncia histrica, e suas indagaes
sobre o ser se apresentam porque no h de sada para o homem uma nica referncia
que o oriente a uma nica verdade sobre si.
Esse primeiro tempo histrico da noo de psicoterapia com fundamento na
ontologia converte-se, num segundo momento, em outra ordem de referncia, no
mais a do esprito, mas a do emprico, a da certeza das cincias do mundo moderno.
Do cuidado de si certeza emprica, foi dada a nfase no sujeito orgnico. Como
resultado desse contexto, no sculo XVI, alguns mtodos de cura foram recusados
como cincia pelo fato de no poderem ser comprovados. Aquilo que no podia ser
visto no podia ser reconhecido como objeto da certeza emprica (Sauret, 2006). Foi
o caso do trabalho de Franz Anton Mesmer (1734-1815), investigado por meio de
comisses devido ao suspeito teor de sua terapia do magnetismo animal. Por
consequncia das investigaes, descobriram que no havia nesse processo de cura
nenhum fluido que promovesse o tal magnetismo, o que levou concluso de que as
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curas no passavam de charlatanice. Por essa mesma razo, o uso da hipnose por
Charcot (1825-1893), acompanhada de suas sugestes, tambm foi desqualificado.
A questo que aqui se apresenta no se encontra na necessidade de fazer ver,
de demonstrar empiricamente, e sim no fato de que as cincias que trabalham com o
sofrimento humano no esto necessariamente sustentadas pelo sujeito orgnico, mas
tambm pelo sujeito da fala. H, por conseguinte, dois caminhos epistemolgicos
opostos rumo ao encontro do sujeito que sofre: partir do orgnico como referncia
verdade sobre a realidade, ou partir do sujeito da fala, que tambm porta, alm de um
corpo, a falta de um saber fazer com ele desde o nascimento, sendo necessrio,
portanto, faz-lo surgir pela fala.
Sem uma resposta luz dos olhos da razo, a hipnose cai em desuso, e restam
do trabalho com ela a persuaso e a sugesto, tcnicas que instrumentalizam o sujeito
numa tentativa de lev-lo a superar medos e toda a ordem de sofrimento. No
obstante, a psicanlise, com sua origem na hipnose e, de certa forma, com sua origem
mais remota no mesmerismo, carrega elementos dessas tcnicas. Contudo, o que
delas permanece, aos poucos, abandona a sugesto e se aproxima, cada vez mais, da
transferncia, como o magnetismo de Mesmer, que possibilitar um envolvimento do
analisando com o analista e, consequentemente, com o processo de sua anlise.
Sustentado pela transferncia, tal como foi nomeado esse envolvimento, Freud
encontra na associao livre (em que o analisando fala sem se prender a detalhes, sem
se fixar em contedos coerentes) a nica possibilidade para a aproximao dos
contedos inconscientes.
Nos relatos de um de seus analisandos, Smiley Blanton, Freud nos
apresentado como em suas recomendaes tcnicas, a saber, como um profissional
preocupado com o tornar possvel o acesso ao inconsciente, orientado por um rigor
terico e dirigido apenas pela regra fundamental da associao livre. Smiley Blanton
(1975) era um curioso psicanalista americano em formao que deu incio sua
anlise com Freud no ano de 1929. No intuito de compreender o trabalho de anlise,
Blanton manteve anotaes dirias do processo iniciado com Dr. Freud. Aps sua
morte, Margaret Gray Blanton, sua esposa, organizou seus escritos e os publicou,
como era de interesse do autor, sob o ttulo Dirio de minha anlise com Sigmund
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Freud. Logo no incio das descries de suas sesses, na narrao datada de 1 de
setembro de 1929, Blanton (1975, p. 3) nos apresenta a diferena entre o terico em
seu rigor e o analista em sua flexibilidade:
Em todos os momentos [Freud] parecia estar prximo do que eu
estava dizendo. Eu sentia que ele estava interessado, que estava recebendo o que eu lhe dava. No havia esse distanciamento frio
que, segundo eu imaginava, era a atitude que um analista deveria
ter. medida que eu avanava, a maneira simples de Freud fazia
com que eu me sentisse seguro e vontade. Ao mesmo tempo, havia um distanciamento que no era aversivo, mas agradvel.
O que Freud tentava manter era uma acessibilidade ao inconsciente, um
distanciamento amistoso que permitisse ao analisando sentir-se suficientemente
vontade para que a associao livre acontecesse. O que o orientava era o acesso ao
sujeito da fala, como aponta Sauret (2006, p. 20) ao retomar a significao do
conceito para ele, sujeito designa o que fala no humano.
Essas passagens introduzem a inteno do presente captulo, que a de
explicar a importncia de se estabelecer as distines entre os limites da psicoterapia
e da psicanlise, alcanando a essncia do teor dos escritos de Freud sobre a tcnica
de seu trabalho prtico. O delineamento desses limites poder apontar possibilidades
que no constituem desqualificaes, mas delimitaes das formas de trabalho,
fundamentalmente, na clnica que promove a submisso da teoria realidade. Nesse
sentido, discute-se ainda a presena da psicanlise nas instituies, sem perder de
vista a tica prpria ao campo psicanaltico.
A psicanlise e o rompimento com a psicoterapia
A radicalidade do trabalho de Freud se apresenta desde o momento em que,
ainda sustentado por um vocabulrio mdico, ele prope uma psicologia para
neurologistas no seu Projeto para uma psicologia cientfica, de 1895. Nesse livro,
Freud anuncia o embrio de seu mtodo em desenvolvimento e o diferencia das
prticas psiquitrica e psicoteraputica, apontando outra forma de escutar o sujeito: a
escuta do inconsciente em seus traos e pistas inicialmente advindos de um territrio
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completamente estranho, por ser antiteticamente ntimo, profundo e, portanto,
familiar.
A descoberta freudiana inaugura um conceito radicalmente inovador e assume
um aspecto de denncia daquilo que nos constitui fundamentalmente. O inconsciente
uma determinao da qual nenhum falante escapa e que impeliu Freud a
estabelecer, j no final do sculo XIX, especificidades do seu fazer clnico. Alis, se a
psicanlise uma prtica teorizada, o caminho percorrido por ele foi justo esse: da
escuta do sofrimento psquico, ele chegou formulao de um saber que explicitou a
lgica do nonsense dos sintomas. O inconsciente , ento, a coisa com que Freud se
encontra quando se dispe a levar a srio o que parecia farsa nas histricas do seu
tempo. Produzindo um saber concebido na intimidade da escuta dos segredos
revelados pelas histricas, o criador da psicanlise constri uma teraputica que se faz
na contraposio do mtodo sugestivo (hipntico), utilizado pelos mdicos que
ousavam tratar os doentes dos nervos.
A psicanlise no se utiliza da transferncia de amor entre o mdico e a
histrica de modo a sugerir um padro de cura dos sofrimentos desta ltima; o que a
singulariza o fato de ela constituir um marco histrico em que, pela primeira vez,
escutam-se os contedos daquele que sofre e fala. Para romper com as tradies
psicoteraputicas, Freud no s renuncia hipnose, a ponto de subtrair o olhar do
psicanalista ao psicanalisante, como tambm sugesto, a ponto de submeter o
analisante livre associao (Sauret, 2006, p. 37).
no mbito dos princpios sobre os quais se debruam os fazeres clnicos que
se faz necessrio discutir as diferenas entre psicanlise e psicoterapia, porquanto
esses modos de operar apresentam nuanas especficas e so demarcados por
questes cruciais que os definem em sua distino. O ponto de partida fundamental
o objeto para o qual se voltam as prticas clnicas, uma vez que as epistemologias, as
teorias e os saberes que produzimos implicam metodologias, prticas e fazeres
distintos. Portanto, uma posio ecltica pode configurar um engodo, um erro, uma
disperso que implicaria a indefinio do que se espera alcanar dessa relao saber-
fazer.
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A inaugurao da tcnica psicanaltica a associao livre se faz justo
quando Freud estabelece a oposio tica sugesto. a que se encontra a primeira
distino entre psicanlise e psicoterapia. Uma psicoterapia, assim como um
tratamento qualquer, ou at mesmo um processo de aprendizagem, possibilita certa
sujeio ao poder de influncia do outro e s se desenrola porque idias libidinais
antecipadas se lanam frente do sujeito, enlaando o terapeuta, mdico, professor,
padre, pastor etc. (Freud, 1969a, p. 134). A sugesto e as psicoterapias, bem como a
psicanlise, tornam-se possibilidades mediante a transferncia como um efeito da
existncia do inconsciente.
No texto de 1904, curiosamente intitulado Sobre a psicoterapia, Freud
apresenta seu fazer utilizando uma comparao feita por Leonardo da Vinci entre
duas artes: a pintura e a escultura. Da Vinci (apud Freud,1989, p. 244) diz que
a pintura [...] trabalha per via de porre, pois deposita sobre a tela incolor partculas coloridas que antes no estavam ali, j a
escultura, ao contrrio, funciona per via di levare, pois retira da
pedra tudo o que encobre a superfcie da esttua nela contida. .
A sugesto seria, ento, como a pintura, porque nela o trabalho do
psicoterapeuta comparece e, por meio do seu poder de influncia, preenche de sentido
e promove a eliminao de sintomas. J a psicanlise poderia ser comparada
escultura, que busca trazer algo para fora; ela quer saber do que est na gnese dos
sintomas, da verdade constitutiva do sujeito.
Em sentido amplo, podemos entrever a sugesto no campo das psicoterapias,
uma vez que elas se baseiam no poder de influncia do terapeuta sobre o cliente, ou
paciente. Pressupem uma relao dual, que implica uma direo da conscincia ou
do comportamento, visando a promoo da sade psquica, do bem-estar, do Bem
(Brazil, 2004).
Por sua vez, a psicanlise, tendo em vista esse objeto nada passivo sobre o
qual se debrua o inconsciente , faz-se na perspectiva de uma relao ternria, em
que h um terceiro intervindo no par analista-analisando, tal como ocorre no
complexo de dipo. Sendo assim, a anlise um processo em que o inconsciente,
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incognoscvel e indestrutvel, levado em conta por ser determinante do modo
sintomtico de gozo do sujeito em questo.
Ancorados nas formulaes de Freud e na releitura de sua obra feita por
Jacques Lacan, podemos considerar que o sintoma se apresenta para manter dividido
o sujeito que deseja, mas sequer pode saber do seu desejo, e se estabelece numa
tentativa de conciliar o inconcilivel. Assim, o conflito fundante do homem e
permanente, provocando nele o mal-estar de ser humano, algo impossvel de se
dissolver com qualquer teraputica. Ao defender que esta tenso entre pulso e
recalque se mantm como propriedade do humano, Freud inaugura outro olhar para o
conceito de sade psquica. Para o autor, no se pode escapar da constatao de que
todos somos neurticos e de que justamente certa matemtica implicada na
economia psquica o que nos diferencia uns dos outros em relao gradao do
sofrimento e das doenas psquicas (Freud, 1969d).
Sendo assim, a boa sade o que seria? partindo da norma, do que se institui
de maneira generalizada, que o saber cientfico, aquele que guia as psicoterapias,
insere o sujeito na esfera dos ideais comuns. Esses ideais se erigem historicamente
em uma moralidade acerca do bem comum, a qual permite apontar o sintoma como
aquilo que mostra a inadaptao, a inadequao do sujeito, e promove uma
teraputica de harmonizao daquilo que est em desequilbrio.
Com o desvelamento empreendido por Freud, impossvel no levar em conta
a condio pulsional, desejante e dividida do homem. Amor e dio, bem e mal, por
exemplo, so faces da mesma moeda constitutiva da humanidade. Da a questo:
afinal, o que bom para o sujeito que sofre e procura um analista ou um
psicoterapeuta? bom que se livre do que o faz sofrer, do seu sintoma? tambm a
que a psicanlise marca sua diferena radical, uma vez que entende o sintoma como
sada encontrada pelo sujeito para lidar com seu conflito, com sua diviso. o
sintoma uma tentativa de estabelecer o equilbrio, a harmonia, mas inevitavelmente
uma tentativa frustrada, que no recobre o desejo nem faz calar sua fora constante e
determinante. Por isso o sintoma promove ao mesmo tempo satisfao e sofrimento.
O desejo est do lado oposto a qualquer normatizao, est sempre do lado de
fora da norma, e ele que a psicanlise coloca no centro de sua prtica teorizada. O
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psicanalista dirige a anlise para que o sujeito se reconhea no prprio sintoma, se
implique na possibilidade de soluo mal-arranjada que produziu. Isso s possvel
se levarmos em conta a singularidade de cada analisando que demanda cura. A
singularidade justamente o que comparece na anlise medida que o sujeito recorda
suas experincias sexuais, apresenta sua dimenso onrica, faltosa e insistente, o que
escapa de qualquer programao j instituda pela norma social. No possvel
programar o modo de desejar e de sintomatizar de um sujeito, posto que isso
circunscrito a determinaes que escapam da realidade material e incidem na
realidade psquica, na fantasia.
Um saber no sabido
Pensando o sujeito com base na realidade psquica, seria a anlise uma
traduo do que inconsciente para o consciente? Uma decodificao do desejo
recalcado? O que est implicado na ideia de traduo, de decodificao, a passagem
de um cdigo para outro, ambos bem conhecidos do tradutor. E, como o inconsciente
se estrutura em uma linguagem enigmtica, no possvel ao psicanalista conhec-lo;
trata-se de um saber no sabido.
O processo de anlise implica uma decifrao desta linguagem desconhecida,
uma tentativa de conhecer o incognoscvel (Brazil, 2004). E o acesso verdade do
inconsciente feito por meio das produes de fala do sujeito, no entanto a verdade
[este] nunca pode diz-la a no ser pela metade (Lacan, 1992, p. 33), justamente pela
impossibilidade de se saber tudo acerca do que nos determina, acerca do saber
inconsciente. Foi isso que fez Freud sustentar que o desejo inconsciente
indestrutvel e o conflito permanente.
Nas psicoterapias, ao contrrio do que acontece na psicanlise, saber poder,
pois o psicoterapeuta sabe do funcionamento do sujeito e nele pode interferir,
promovendo a melhora da sua sade psquica. A relao psicoteraputica um lao
social produzido no campo da linguagem como relao discursiva (Lacan, 1992). H
um lao social, chamado por Lacan de discurso do mestre, no qual o que est em
operao uma juno entre saber e poder que esconde, escamoteia o sujeito,
tornando assim impossvel a fantasia. Isso se faz presente no discurso da medicina, da
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cincia, incluindo tambm as psicoterapias (Clavreul, 1983). Neste campo discursivo,
do sujeito do inconsciente nada se quer saber.
A psicanlise, no entanto, quer saber justamente da fantasia, do sujeito do
inconsciente, e, para isso, o lao social criado numa anlise se faz a partir do
momento em que falha, ou enguia, a equao saber igual a poder, o que se pode
constatar com o ato falho, uma das formaes do inconsciente (Lacan, 1992). Na
produo de um ato falho, mesmo que se saiba o que se quer falar, no se pode falar
como se sabe. O saber da conscincia ento ultrapassado pelo saber do
inconsciente, produzindo um ato acertado, no falho, pois neste o sujeito do
inconsciente se revela. Portanto, o saber do inconsciente, no do analista. Este se
coloca como objeto do analisando, d a ele a palavra e o deixar falar, por via da
transferncia.
A transferncia um conceito que oferece ao analista a possibilidade de
manejar o contedo recalcado que tenta se apresentar. O verbo bertragen, em
alemo, que movimenta o substantivo bertragung, diz de uma plasticidade e uma
reversibilidade entre o ir e o vir no tempo e nas distncias, entre uma pessoa e outra.
Genericamente refere-se idia de aplicar (transpor) de um contexto para outro uma
estrutura, um modo de ser ou de se relacionar (Hanns, 1996, p. 412). Sua traduo
ao p da letra seria pr sobre e carregar. Na traduo para o portugus, o termo
transferncia no mantm o ponto de origem, que ligaria o contedo ao ponto de
destino; ele superado.
Num primeiro momento, o conceito de transferncia esteve ligado s
conexes equivocadas, remetendo ideia de que eram direcionados ao mdico
sentidos resultantes de um mal-entendido. Aos poucos o conceito se amplia e mostra
suas relaes com as tcnicas de manejo e o diagnstico, com a compreenso da
atualizao da cena edpica e, posteriormente, com o papel da repetio nos
mecanismos de resistncia. Ao fim, o conceito de transferncia guarda alguns
elementos pensados em seu princpio e se desdobra em outras possibilidades que,
pelo fato de o analista saber manej-lo, encontram-se em modos permanentes pelos
quais o sujeito constitui seus objetos. Afinal, para Freud, a transferncia um arco,
um retorno ao ponto de origem, pois a fala direcionada pelo empuxo regressivo. E o
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sentido do que dito provm da escuta, quando o analista pontua o que foi trazido
pelo analisante.
Partindo do encontro com o conceito de transferncia e com sua potncia na
clnica, Freud se v impelido a organizar um pensamento sobre o saber fazer da
clnica, no intuito de introduzir os jovens que se interessassem pelo trabalho da
psicanlise.
Tcnicas ou recomendaes?
O conjunto de textos freudianos centrados no objetivo acima e escritos entre
1911 e 1915 foi agrupado pelo editor ingls James Strachey e traduzido para o
portugus, na Edio Standard, sob o ttulo Artigos sobre tcnica. Apesar de Freud
pontuar ao longo desses textos que seu contedo se presta mais a uma orientao
recomendaes sobre uma suposta tcnica , o ttulo pode promover certa deturpao
das intenes freudianas.
O que est posto nesses artigos de Freud segue a radicalidade de seu mtodo e
requer uma compreenso de tcnica que se paute muito mais por uma arte, no no
sentido aleatrio, mas na direo de um saber fazer com o contedo que se apresenta
na realidade. Aliadas a isso, estariam a teoria e a experincia do prprio analista em
sua anlise pessoal. Saber fazer com o qu? Com aquela que ele aponta como sua
nica regra, a fundamental, a que rege todas as outras: a associao livre sustentada
pela ateno flutuante.
A associao livre, a fala sem se prender a detalhes, sem se fixar a contedos
coerentes, permite um deslizamento das ideias e uma facilitao do surgimento do
contedo recalcado. Tal caminho descoberto por Freud acompanha a lgica do
inconsciente, tendo como ponto de partida o funcionamento dos mecanismos
responsveis pela construo dos sonhos. Essa regra, seguida com a finalidade de
acessar contedos inconscientes, sustentada apenas na clnica, sendo que a
compreenso de clnica no se resume ao consultrio. A clnica algo mais amplo,
que tem na realidade do consultrio os fundamentos que impulsionam a construo
de um mtodo e de uma tcnica com base em um pensar sobre a realidade.
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Para sustentar suas descobertas, Freud elabora, paralelamente, suas
formulaes metapsicolgicas, nomeadas por ele de sua feiticeira, para auxili-lo
na compreenso da realidade que se apresentava em sua clnica (Freud, 1975, p. 257).
Essa realidade impunha limites e frustraes construo desse novo mtodo, e seu
clnico e terico precisou enfrentar e explicitar essas limitaes, chamando a si a
tarefa de orientar os jovens que pretendiam atender baseados em seu mtodo.
As recomendaes freudianas vo alm de um simples manual, sendo
permeadas pela tica do analista, que Lacan (1997) nomear de tica do desejo.
Esta pautada por um desejo de escuta mais do que por juzos de valor ou por um
padro moral e fundamentada naquilo que Freud denomina regra da abstinncia.
Ao adotar essa regra, o analista abre mo de seu saber terico e de seu poder
sugestivo para que o sujeito a aparecer na anlise seja o analisando. Nesse sentido
que o prprio Freud (1969b, p. 150) aponta a dimenso tica da tcnica psicanaltica,
dizendo que, ao selecionar o material escutado, o analista corre o risco de seguir
suas inclinaes e expectativas e que as ambies teraputica e educativa so
perigosas. Acrescenta tambm que os motivos ticos se unem aos tcnicos para
impedir o analista de dar ao analisando uma resposta sua demanda (Freud, 1969c, p.
219). Responder demanda de cura, por exemplo, fazer calar, e a anlise pretende
exatamente fazer falar.
Ao retomar os princpios que do poder ao tratamento analtico, Lacan (1998)
diz que o analista no compreende, pois, ao tentar compreender, engana-se e d por
encerrada a produo do analisando. Alm disso, quando o analista oferece a escuta,
convoca o analisando a falar e o frustra em sua demanda. Esta demanda intransitiva,
pois no h objeto que d conta de responder ao que demandado. Ao mesmo tempo,
o sujeito que demanda na associao livre comparece transitando entre os
significantes que produz no discurso. A oferta a escuta, e a demanda impossvel
de ser respondida, mas, ao demandar, por meio do discurso, o sujeito se apresenta.
Para Lacan, o analista aquele que sustenta a demanda, no [...] para frustrar o
sujeito, mas para que reapaream os significantes em que sua frustrao est retida
(p. 624).
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Para que essa regra seja respeitada, preciso que o analista tenha seu percurso
numa anlise pessoal e possa balizar a sua prtica clnica pela orientao de uma
suposta neutralidade. Baseando-se em sua prpria experincia, ele seria norteado no
por um ideal derivado do desejo, mas pela falta a que seu desejo o remete e que
poder ser levado a enfrentar na travessia de seu prprio processo analtico. Uma vez
guiado por esse percurso de enfrentamento da falta, o analista poder acompanhar e
testemunhar esse processo de encontro do analisando com sua prpria falta, em seu
tempo e sua maneira.
Freud aponta outros elementos que compem e dirigem esse processo de
anlise e, em seus artigos, abre uma discusso sobre eles de forma a provocar uma
reflexo que no pode ser levada a cabo sem o devido cuidado. Entende-se por
cuidado toda a tentativa de refletir sobre os contedos trabalhados pelas cincias
humanas e sociais, sem deixar de considerar o momento histrico em que
determinado mtodo de compreenso da realidade est em construo. Desprovidos
desse teor crtico e reflexivo, alguns dos argumentos de Freud so usados para afastar
a psicanlise das instituies, fundamentalmente, das pblicas.
A tica do desejo e o trabalho de anlise nas instituies pblicas
So vrias as questes recorrentemente evocadas em contraposio ao
trabalho de psicanlise nas instituies. Para este captulo, trs foram priorizadas: os
atendimentos individuais, o tempo e a questo do dinheiro. A primeira questo, a
forma de trabalho individual, essencial para o acesso ao inconsciente, objeto de
estudo da psicanlise, mas, para refletir acerca da potncia desse objeto e chegar a
uma aproximao com seu contedo, so requeridos alguns cuidados. .
Segundo Lacan, quatro so os elementos a serem considerados na ao
analtica: tica, poltica, estratgia e ttica. As trs ltimas so debatidas em seu texto
A direo do tratamento e os princpios de seu poder (1998) com o intuito de
esclarecer o mal-entendido entre rigor terico e rigidez tcnica. O primeiro elemento
j havia sido discutido em seu Seminrio sobre a tica, em 1960.
Parte-se da tica pelo entendimento de que esta abrange todas as outras
questes, sendo a mais ampla delas. A tica pautada pelo desejo do analista de
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escutar o desejo do sujeito que o procura para testemunhar seu sofrimento. a tica,
a vertente mais ampla, que orienta a poltica da psicanlise em sua falta-a-ser, pois,
se a procura no por uma substncia nem por uma existncia prvia, essa deve ser a
orientao a ser seguida no estabelecimento da estratgia, que antecede e guia a
ttica.
Dessa forma, o analista no sabe o que ir encontrar, mas sabe que a escuta
imprescindvel. Tornar essa escuta possvel dentro das condies freudianas, isto ,
convocando o analisando a associar ideias livremente, essa a estratgia. Blanton,
analisando de Freud, elucidou essas condies, que se apresentam no tratar de forma
simples e interessada o que o outro traz. Isso requer uma flexibilidade na ttica o
equivalente s recomendaes tcnicas freudianas , ou seja, o analista precisa
respeitar o teor de seu objeto, j que este no poder ser alcanado de forma direta,
dentro de uma lgica linear. No obstante a flexibilidade, o analista no livre, pois
de sada est sustentado pelo rigor da tica.
Lacan (1998, p. 596) adverte que o analista ainda menos livre naquilo que
domina a estratgia e a ttica, ou seja, em sua poltica, onde ele faria melhor situando-
se em sua falta-a-ser do que em seu ser. Dessa forma, se a poltica da psicanlise se
fundamenta na tica do desejo do analista de escutar o desejo do analisando, h uma
orientao, um rigor fundamentado na teoria que oferece condies para o acesso s
formaes inconscientes. Para a concretizao dessa poltica, faz-se necessrio que o
sujeito se apresente na forma mais livre de racionalizaes possvel. Mais do que uma
liberdade, a ttica tem de apresentar uma flexibilidade tal que, numa distncia
amistosa, como diz Blanton a respeito de Freud, o sujeito confie em se apresentar l
em sua poro desconhecida. Destarte, o processo de anlise se orienta na tica que
privilegia a singularidade como ponto de partida para a multiplicidade de sua
composio, que, fundamentalmente, d-se na relao com o outro e, portanto,
social e se mantm como tal em atendimentos individuais.
A regra da associao livre na clnica psicanaltica tem como finalidade
estabelecer um lao social descolado das obscenidades de grupo (Lacan, 1985). Tais
obscenidades dizem respeito ao gozo do poder experimentado pelo sujeito, tanto o
gozo de exerc-lo, e assim exercer o controle por meio de seu pequeno sintoma,
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quanto o de submeter-se ao poder de outros que respondam rapidamente ao seu mal-
estar com sentidos para aquilo que deveria ser recriado e compartilhado por vias
simblicas.
O que sustentaria o trabalho de psicanlise numa instituio pblica? Em
contraposio ao apaziguamento do mal-estar numa conduta individualizante e
solitria, aqui a psicanlise se dirige ao lao social, porm de forma distinta das
outras teraputicas. A histria que compe a noo da teraputica aponta para a busca
de uma resposta apaziguadora sobre o ser: o Homem pergunta a Deus sobre a
natureza, depois pergunta natureza sobre a matria e, em seguida, pergunta
matria sobre seu corpo biolgico. A cura, tomada como adaptao, cooptada pelo
mercado da sade e pautada pela eficcia da medida, da avaliao e do resultado
breve.
Desligar-se de demandas como a previsibilidade e instaurao de um tempo
externo subjetividade e condizente com a acelerao do processo de produo no
mundo das mercadorias significa pontuar a subjetividade do tempo como o princpio
do processo de anlise. O que se encontra em questo aqui a segunda proposta
apresentada para a discusso sobre o trabalho de psicanlise: o tempo de atendimento.
Em seu incio, o trabalho de psicanlise requer que o analista no saiba qual o
seu fim, apesar de saber que h um fim para o processo. De forma semelhante, o
prprio analisando precisa esquecer seu objetivo inicial, fundamentado em demandas,
para ento entrar em anlise, introduzindo um corte civilizatrio no modo de
agremiao humana (Sauret, 2006, p. 27). Esse corte no seria o abandono do lao
social; pelo contrrio: por intermdio dele, o sujeito teria a possibilidade de
reencontrar no lao social uma posio distinta do automatismo guiado pela
obedincia e de se despregar do mimetismo, que sugere sua insero no coletivo por
meio das regras e do poder do grupo.
A finalidade da anlise no cabe na limitada lgebra da quantificao e
eficcia da tecnocincia mercadolgica, como aponta Sauret (2006). Segundo ele,
na contemporaneidade, a tecnocincia fabrica objetos e tcnicas para o que falta,
sustentando-se na ideologia de que nada seria impossvel, nem a superao da morte e
muito menos o peso de pens-la e vivenci-la. H um fim, a temporalidade marcada
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por limites, mas estes no so controlados pelo homem. Sustentar um no saber sobre
o tempo uma radicalidade em tempos de juventude prolongada, de acelerada
produo e experincias descartveis. Por isso, a psicanlise radical ao enfatizar o
tempo do sujeito no desdobramento de seu processo.
Portanto, para Sauret (2006), as crticas psicanlise por sua longa durao e
ineficcia de cura perante os sintomas contemporneos, na verdade, so uma
homenagem sua diferena. Ela tem como especificidade a oferta de um lao social
no qual a funo do sintoma possa se desdobrar (p. 38) sem responder lgica do
mercado ou do cientificismo. O tempo da psicanlise outro, um tempo do sujeito,
fora da lgica da produo adaptativa, acelerada e avaliativa.
Ainda pensando pelo vis da lgica do mercado e dos argumentos que a
acompanham para desautorizar a entrada da psicanlise nas instituies pblicas,
chega-se questo do dinheiro. No seria o dinheiro uma das condies para o
processo de anlise? A psicanlise no , muitas vezes, pensada apenas para clnicas
particulares, proposta somente para a elite? Mas as recomendaes de Freud sugerem
a existncia de uma nica regra para que a anlise acontea: o espao de escuta.
Todas as outras regras esto a servio desta, para garanti-la. Portanto, sustentada na
associao livre, possvel uma clnica voltada escuta do sofrimento de qualquer
sujeito em qualquer instituio, independente de sua condio financeira: para haver a
associao, necessrio apenas o espao de escuta que permita o deslizamento da
fala do sujeito.
Com base nessa condio, faz-se necessrio pensar sobre a presena do
dinheiro na clnica psicanaltica, se sua importncia estaria em si prprio, ou se ele
seria mais uma forma de convocar a presena do sujeito ($) barrado em seu desejo.
Nos termos de Quinet (2002), o dinheiro pensado no como um salrio-base para o
sustento do analista, e sim em sua singularidade, qual seja, dizer do sintoma daquele
que se apresenta para associar livremente por meio da escuta flutuante.
O dinheiro uma forma de apresentar a falta do sujeito de linguagem. Assim
seria impossvel analisar o milionrio, pois, para este, aparentemente, nada falta. O
dinheiro e o consumo tamponariam com compulses de acmulo de objetos as
lacunas criadas pelas faltas (Quinet, 2002). Portanto, o dinheiro compreendido
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como a representao da libido investida pelo analisando em seu percurso de anlise,
dizendo do desejo que se apresenta na clnica.
Quanto custa o trabalho de anlise para o sujeito? Seu valor diz do
investimento dele, pois, de acordo com Quinet (2002, p. 85), o dinheiro metaforiza a
falta implicada no desejo. Esta uma das formas de reconhecimento da posio da
libido: represent-la como uma transferncia de capital (p. 89). A economia em
questo a da energia libidinal. Quando o desejo se apresenta, como no fato de o
sujeito ter de atravessar a cidade, precisando, para isso, abdicar de suas economias
para pegar mais de dois meios de transporte pblico, h uma troca de investimento do
sintoma. Isso deixa ver o desejo pelo furo da demanda; ou seja, provoca-se um furo
no saber at ento orientado pelo sintoma. Por esse furo, possvel ver que, alm das
demandas, instauradas pelos objetos postos pelo mercado, h algo que foge
satisfao e permanece fazendo questo ao sujeito.
A tica aqum e alm da tcnica
A tica inaugurada pela psicanlise diferencia-se da tica filosfica, que
pressupe a existncia de um bem supremo a servio do qual estariam as profisses,
inclusive, a do psiclogo, ao buscar o bem-estar do outro. A tica filosfica, portanto,
corre o risco de trabalhar a favor de tentativas de normatizao e adaptao. A da
psicanlise, na qual o analista orienta sua escuta, permite o acesso verdade
recalcada do desejo, levando em conta a singularidade. uma aposta no sujeito e na
possibilidade de ele responsabilizar-se por sua posio inconsciente. O processo de
anlise implica reconhecer o que se expressa como demanda vinda do mais ntimo
do ser e assumir a responsabilidade da derivao disso que no pode no ser
derivado (Cabas, 2009, p. 86).
Desde o incio, Freud (1989) j anunciava as diferenas entre psicanlise e
psicoterapia e apontava os limites daquela. Numa referncia a Esculpio, deus da
medicina e da cura na mitologia greco-romana, ele admite que a psicanlise est
distante do ideal de uma terapia que configure um tratamento seguro, rpido e
agradvel. A ambio da psicanlise mais modesta, levando-se em conta o
paradoxo do sintoma daquele que sofre e goza com seu modo singular de funcionar.
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Se a anlise implica bendizer o sintoma, como Lacan j dissera, podemos ainda
perguntar: e os efeitos teraputicos, de que muitos analisandos so testemunhas? Ah,
esses chegam no como premissa, mas por acrscimo, por efeito retroativo, num s
depois.
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