Estudos Da Religião, Discrepâncias Metodológicas e Contribuições Weberianas_Emerson Sena e Nina...

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1 ESTUDOS DA RELIGIÃO, DISCREPÂNCIAS METODOLÓGICAS E CONTRIBUIÇÕES WEBERIANAS Impasses e tendências na modernidade globalizada 1 Pelo Prof. Dr. Emerson José Sena da Silveira 2 Juiz de Fora, MG Pela Doutoranda Nina Rosas 3 Belo Horizonte, MG Síntese: Este artigo aborda algumas questões fundamentais da relação pesquisador/pesquisado, a fim de auxiliar jovens pesquisadores que se debruçam sobre os estudos das religiões. Primeiro, chamamos atenção para as não consensuais concepções empregadas pelos estudiosos e também para a diferença entre os modos de vivência da fé e as classificações acadêmicas. O segundo ponto abordado diz respeito à tarefa elementar do cientista social da religião, a saber, a de sintetizar a complexidade do trânsito dos fiéis, que circulam em múltiplas alternativas religiosas. Como um terceiro ponto, ressaltamos a interferência da visão pessoal do pesquisador para a construção do saber. O presente trabalho retoma algumas proposições metodológicas já cunhadas pela literatura e evoca parte da trajetória de pesquisa de um dos pais 1. Uma primeira versão deste texto foi apresentada no GT “Globalizando lo sagrado: religiones, circulaciones y Estados en el mundo contemporáneo”, na XVI Jornada sobre Alternativas Religiosas na América Latina, realizada em Punta del Este, entre 01 e 04 de novembro de 2011, com o título “Modernidade religiosa globalizada e fluxos do sagrado: o campo pentecostal-carismático brasileiro e seus pesquisadores”. Ao fazermos algumas mudanças na proposta do trabalho inicial, compusemos a versão aqui apresentada. 2. O Autor é antropólogo, doutor em Ciência da Religião e docente do Programa de Pós- Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Entre suas principais publicações estão os livros “Corpo, emoção e rito: antropologia dos carismáticos católicos” e “Catolicismo, mídia e consumo: experiências e reflexões” (no prelo). Atualmente pesquisa: os diversos catolicismos, tradições e estilos de vida contemporâneos (católico- carismático e suas relações com mídia, festa, consumo, juventude); Minorias religiosas, espaço público e campo religioso; religiosidades, rituais e terapias alternativas. 3. A Autora é socióloga e doutoranda pela UFMG e faz estágio-sanduíche nos Estados Unidos, na University of Southern California, como bolsista Capes. Durante o mestrado estudou as obras sociais da Igreja Universal e teve sua dissertação premiada para publicação. Atualmente pesquisa o protestantismo renovado/carismático a partir das articulações entre música, gênero e religião.

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Estudos Da Religião, Discrepâncias Metodológicas e Contribuições Weberianas

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    ESTUDOS DA RELIGIO, DISCREPNCIAS

    METODOLGICAS E CONTRIBUIES

    WEBERIANAS

    Impasses e tendncias na modernidade

    globalizada1

    Pelo Prof. Dr. Emerson Jos Sena da Silveira2

    Juiz de Fora, MG

    Pela Doutoranda Nina Rosas3

    Belo Horizonte, MG

    Sntese: Este artigo aborda algumas questes fundamentais da relao

    pesquisador/pesquisado, a fim de auxiliar jovens pesquisadores que se debruam sobre

    os estudos das religies. Primeiro, chamamos ateno para as no consensuais

    concepes empregadas pelos estudiosos e tambm para a diferena entre os modos de

    vivncia da f e as classificaes acadmicas. O segundo ponto abordado diz respeito

    tarefa elementar do cientista social da religio, a saber, a de sintetizar a complexidade

    do trnsito dos fiis, que circulam em mltiplas alternativas religiosas. Como um

    terceiro ponto, ressaltamos a interferncia da viso pessoal do pesquisador para a

    construo do saber. O presente trabalho retoma algumas proposies metodolgicas j

    cunhadas pela literatura e evoca parte da trajetria de pesquisa de um dos pais

    1. Uma primeira verso deste texto foi apresentada no GT Globalizando lo sagrado:

    religiones, circulaciones y Estados en el mundo contemporneo, na XVI Jornada sobre

    Alternativas Religiosas na Amrica Latina, realizada em Punta del Este, entre 01 e 04 de

    novembro de 2011, com o ttulo Modernidade religiosa globalizada e fluxos do sagrado: o campo

    pentecostal-carismtico brasileiro e seus pesquisadores. Ao fazermos algumas mudanas na

    proposta do trabalho inicial, compusemos a verso aqui apresentada.

    2. O Autor antroplogo, doutor em Cincia da Religio e docente do Programa de Ps-

    Graduao em Cincia da Religio da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Entre suas

    principais publicaes esto os livros Corpo, emoo e rito: antropologia dos carismticos

    catlicos e Catolicismo, mdia e consumo: experincias e reflexes (no prelo). Atualmente

    pesquisa: os diversos catolicismos, tradies e estilos de vida contemporneos (catlico-

    carismtico e suas relaes com mdia, festa, consumo, juventude); Minorias religiosas, espao

    pblico e campo religioso; religiosidades, rituais e terapias alternativas.

    3. A Autora sociloga e doutoranda pela UFMG e faz estgio-sanduche nos Estados

    Unidos, na University of Southern California, como bolsista Capes. Durante o mestrado estudou

    as obras sociais da Igreja Universal e teve sua dissertao premiada para publicao. Atualmente

    pesquisa o protestantismo renovado/carismtico a partir das articulaes entre msica, gnero e

    religio.

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    fundadores da sociologia Max Weber , a fim de levantar algumas notas

    metodolgicas sobre sua experincia de viagem aos Estados Unidos e sobre a

    elaborao de As seitas protestantes e o esprito do capitalismo.

    Palavras-chave: Religio. Metodologia. Max Weber.

    Abstract: In order to help some researchers who are beginning on sociological and

    anthropological approach, this article discusses some typical issues about the

    relationship between the researchers and the researched. First of all, we call attention

    to the non-consensual conceptions employed by the researchers, and to the differences

    between the ways which believers live their faith and the classifications which have

    been made by scholars. The second debate we pointed out is elementary and it is

    common to all religious researches. We emphasize the task of connect all the

    complexity of multiple sets of affiliations. As a third point we state about the

    interference of the researchers personal vision to the construction of knowledge. This

    paper revisits some methodological proposals that have been suggested by the

    specialized literature, and evokes part of the trajectory of one of founding fathers of

    sociology Max Weber , in order to develop some notes on his methodological

    experience of traveling to United States and writing The Protestant Sects and the Spirit

    of Capitalism.

    Keywords: Religion. Methodology. Max Weber.

    possvel dizer que, nos ltimos doze anos, os estudos de religio vm se

    atentando cada vez mais para a crescente perda da identificao dos indivduos com as

    instituies religiosas, para a(s) secularizao(es) e para novas modalidades de

    emergncia no espao pblico de grupos, cuja identidade se d em torno de um credo

    religioso. Sobressaem tambm as expresses de f transnacionalizadas e globalizadas, o

    aumento daqueles que se declaram sem religio e o crescimento dos pentecostais. Estes

    assuntos suscitaram e ainda motivam um enorme quinho de textos a tratar do papel da

    religio na sociedade contempornea de alta modernidade4 (Giumbelli 2004; Oro 2005;

    Pierucci 2008; Steil 2001).

    4. Este artigo parte da concepo de modernidade segundo as acepes de Anthony

    Giddens, que, em linhas gerais, entende por modernidade o estilo de vida e organizao social

    que se originaram na Europa do sculo XVII e se tornam mundiais em sua influncia (Giddens

    1991, 11). A alta modernidade pode ser vista como a radicalizao das condies de origem da

    modernidade; enfatiza-se especialmente o ceticismo generalizado e os novos parmetros de risco

    e perigo (Giddens 2002, 32).

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    Frente multifacetada possibilidade de discusso desses temas, uma questo

    motiva este artigo e nortear o esforo terico subsequente: a que questes

    metodolgicas estamos submetidos quando realizamos um estudo no campo da religio?

    Nossa motivao, sem intentar abarcar toda a vasta extenso de problemas

    metodolgicos existente, oferecer pistas que ajudem na tarefa de analisar as

    religiosidades. Nosso intuito retomar trs pontos elementares que podem auxiliar os

    estudos de pesquisadores iniciantes.5 Se comearmos com Zaluar, que se perguntou o

    que fazer com o relativismo cultural face ao ecoturismo, globalizao e ao

    aparecimento de naes modernas entre os povos tribais, nos confrontaremos com

    novos problemas, novas perplexidades, novos dilemas [que] se apresentaram para o

    antroplogo (Zaluar 2009, 557). Apesar de sabermos que h novas questes

    metodolgicas que atingem o amplo grupo de cientistas sociais, nossa inteno a de

    recuperar velhas questes, que no devem ser esquecidas e que devem ser postas

    como horizonte para aqueles que se aventuram pelas trilhas de investigao do

    religioso.

    Como o espao de um artigo pequeno, chamaremos ateno apenas para trs

    dimenses metodolgicas, dentre as muitas possveis.

    O primeiro ponto se refere s assimetrias entre significados e terminologias,

    tarefa comum no campo cientfico, mas que pode dificultar snteses importantes quando

    consideramos, por exemplo, a constante discordncia (problemtica quando

    infrutfera) entre os pesquisadores. Neste eixo, tambm nos referiremos aos dissensos

    que ocorrem entre pesquisadores e crentes; ponto de partida para as pesquisas

    acadmicas, mas que apresenta o risco de levar a um descarte de categorias e

    compreenses nativas fundamentais.

    A segunda anotao que fazemos tratar das implicaes decorrentes do fato de

    terem os pesquisadores que incorporar em suas anlises o quase no abarcvel fluxo e

    trnsito dos religiosos para alm das tipologias j empregadas. Poucos esforos tericos

    tm sido produzidos nesse sentido quando consideramos o campo evanglico brasileiro,

    para citar apenas um exemplo.

    O terceiro ponto que ser abordado se refere ao papel das crenas pessoais dos

    pesquisadores no tocante produo do conhecimento. Como esta ltima dimenso j

    5. Sabemos que as questes trabalhadas no texto so de natureza distinta, pois uma

    de cunho prtico, e as outras duas poderiam ser consideradas mais epistemolgicas. Contudo,

    gostaramos de apont-las conjuntamente, uma vez que estas so indagaes constantes que

    preocupam pesquisadores que esto comeando suas experincias.

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    foi considerada de inmeras formas pela literatura, na abordagem aqui proposta

    retomamos alguns passos da trajetria analtica de Max Weber, a fim de acentuarmos

    essas discusses.

    E por que mencionaremos o exemplo da sociologia weberiana, dentre tantos

    outros possveis? De maneira mais ampla, Weber conciliou duas metodologias distintas

    nas cincias sociais a interpretativa e a explicativa. Weber: (...) revelou-se (...) um

    causalista e um interpretacionista sofisticado, que ao mesmo tempo renovou e

    transformou sua herana metodolgica (Ringer 2004, 16)6 e ainda hoje nos pe

    questes cruciais. De maneira mais circunscrita, consideramos importante voltar

    especificamente a Weber frente ao eminente e progressivo crescimento do grupo de

    pentecostais no Brasil e no mundo; na medida em que compartilhamos, juntamente com

    Gracino Jnior, a ideia de que:

    a temtica weberiana, que aponta para a afinidade entre protestantismo e

    modernidade, foi incorporada s anlises do pentecostalismo no Brasil, transpondo as

    concluses de Weber a respeito da destradicionalizao levada frente pela Reforma

    Protestante europeia para o contexto brasileiro (Gracino Jnior 2008, 87, grifo do

    autor).

    Partindo deste pressuposto, a trajetria weberiana nos estudos de religio pode

    ser considerada o alicerce e a pedra de toque de grande parte das teorizaes sobre a

    religiosidade brasileira e sobre a relao desta com a modernidade, fato que nos motiva

    a apresentar certa nuance de seu mtodo de estudo. Ademais, referir-nos-emos a um

    dos textos weberianos menos considerados nas abordagens metodolgicas As seitas

    protestantes e o esprito do capitalismo.

    Sabemos que a presente tarefa a que nos propusemos, assim como a prpria

    metodologia weberiana, vtima das condies dos campos (acadmico e religioso).

    Sendo assim, nosso intuito no esgotar o debate, mas, a partir de um dilogo inicial,

    oferecer um dos vrios retornos possveis a determinadas indagaes que por vezes so

    esquecidas e que entendemos no s perpassarem os estudos de religio, mas os

    constiturem enquanto tais.7

    6. No se configura como o objetivo deste artigo fazer uma abordagem terica detalhada

    sobre a metodologia weberiana. O programa weberiano de anlise causal j foi amplamente

    discutido por Ringer, 2004, e do raciocnio deste autor nos interessa destacar em especial como

    Weber pode ser compreendido atravs de uma leitura histrica de seu campo intelectual e social,

    que o que faremos, mesmo que brevemente, na segunda seo deste trabalho.

    7. A primeira verso deste texto contava com relatos pessoais de nossas pesquisas de

    campo. Contudo, preferimos focar a anlise nas proposies weberianas e em um determinado

    horizonte de questes. Uma anlise de nossas experincias entre catlicos carismticos e fiis da

    Igreja Universal configuraria outro exerccio metodolgico, para alm dessa reflexo.

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    Estudos de religio, estudos religiosos: trs questes para debate

    A primeira questo que elencamos : h uma distncia considervel e por vezes

    improdutiva entre as vrias definies existentes quanto aos fenmenos da religio. Tal

    afirmativa pode ser compreendida em dois aspectos. Primeiro, existem certas dissenses

    entre os prprios pesquisadores que no permitem um consenso mnimo e que por isso

    impedem o avano de algumas problemticas. Segundo, as incongruncias evidentes

    entre pesquisadores e pesquisados vo alm do modo peculiar que a

    sociologia/antropologia apreende cientificamente os fenmenos sociais. Sabemos que a

    tarefa de um pesquisador propor questes de maneira nova, pois seu ofcio

    compreender a realidade social de modo instrumentalmente distinto. Apesar disso, e

    mesmo considerando que toda pesquisa apenas uma das muitas fotografias da

    realidade, possvel incorrer no erro de realizar um esforo terico que se distancie

    sobremodo das noes nativas.

    Para ilustrarmos a discordncia entre os pesquisadores, faamos uma rpida e

    transversal digresso sobre um ponto de impreciso elementar: a irresolvvel noo de

    secularizao.8 Em 1994, por exemplo, Jos Casanova cunhou uma das proposies mais

    paradigmticas sobre o papel das religies na modernidade secularizada a noo de

    religio pblica.9 Antes de desenvolver essa proposio, Casanova gastou parte de seu

    trabalho retomando as distines entre secularizao enquanto conceito e enquanto

    teoria, pois tais geravam (e ainda geram) inumerveis controvrsias. Ele destacava que,

    como processo histrico, a secularizao primeiramente expressaria a expropriao

    massiva, geralmente feita pelo Estado, de monastrios e latifndios das mos da Igreja.

    Da em diante, este processo passou a ser referido como a apropriao por instituies

    seculares de funes tradicionalmente pertencentes a instituies eclesisticas

    (Casanova 1994, 13-17). Para ele, secularizao um conceito multidimensional e

    reversvel, cujas conotaes so por vezes contraditrias. Afinal, a separao das esferas

    da vida, quer em maior ou menor grau, teria tornado a esfera secular a nica realidade

    na qual a religio teria para se adaptar (Casanova 1994, 15).

    8. No cabe aqui recuperar nem a gnese nem os pormenores desta discusso. Contudo,

    destacaremos alguns expoentes do assunto, no intuito exclusivo de ilustrar o primeiro ponto

    proposto.

    9. Na opinio de Casanova, a religio moderna j no reinaria sobre as demais esferas da

    vida, nem as subjugaria, alm de no conseguir oferecer a elas todo o sentido e orientao que

    porventura j o tivesse feito. Na verdade, o espao da religio na contemporaneidade no estaria

    afetando e no viria a afetar o crescente (mesmo que inacabado) processo de separao das

    esferas (poltica, econmica, cientfica etc.). A religio no espao pblico seria uma contestadora

    da moral e da poltica e funcionaria como um protetor, tanto do prprio Estado, contra

    autoritarismos e absolutismos, quanto da sociedade civil, refreando a autonomia inquestionvel

    das leis seculares e da administrao jurdica dos governos.

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    Concordando em parte com Casanova, Pierucci, um dos socilogos da religio

    mais prestigiosos a tratar da temtica no Brasil, chegou a dizer que:

    No caso da secularizao, a no explicitao da sutil multiplicidade de sentidos que

    acompanha o uso do termo desde suas origens tem atrapalhado seriamente a discusso

    do tema e desviado a ateno para aspectos no fundamentais da coisa (Pierucci

    1998).

    Mas, embora diga isso, o autor sustenta ser radicalmente contra o encerramento

    de debates que envolve o termo e, a despeito da sofisticada defesa quanto ao correto

    uso do conceito de secularizao, argumenta:

    Modestamente, minha proposta (...). A saber, no abrir mo da secularizao. Nem

    terica, nem prtica, nem terminolgica, nem existencialmente. Urge, isto sim, que

    cada um de ns se esforce por saber do que est falando (Pierucci 1998).

    E Pierucci complementa. Para ele, o pressuposto de Casanova10 a respeito do

    processo de secularizao poderia ser melhor pensado luz do movimento pendular de

    fluxo e refluxo do religioso, que oscilaria entre o tipo ideal protestante (segundo

    Pierucci, mais intimista e em boa medida deslocado da vida pblica) e o catlico (mais

    conectado a dilemas de ao coletiva). O caso brasileiro, nesse sentido, seria

    diferenciado, singular, e ajudaria a compreender os demais casos ao redor do mundo.11

    O Brasil guardaria expressivas manifestaes religiosas em momentos de grande

    desenvolvimento e modernizao cultural e social, mostrando que quando a

    secularizao se estende principalmente ao Estado, a tentativa governamental de

    neutralidade pode cooperar para a garantia da liberdade religiosa, aumentando

    consequentemente a pluralidade de opes de f (Pierucci 2004). Assim, a secularizao,

    no caso nacional, acentuaria, indiretamente, a proliferao e a efervescncia da religio.

    Giumbelli e Ortiz tambm tentaram sintetizar as controvrsias sobre o assunto,

    argumentando que a religio no desapareceu, embora tenha perdido sobremaneira sua

    10. O argumento de Pierucci que a anlise de Casanova pode ser explicitada a partir de

    trs pilares: a diferenciao estrutural dos espaos sociais (que consiste na separao entre

    religio e esfera poltica e na destituio da religio quanto tarefa de controle da vida); a

    privatizao da religio; e a diminuio da relevncia macrossocial da crena e da

    institucionalidade religiosa. Apesar de Casanova perceber uma mudana substancial no segundo

    ponto, Pierucci prefere destacar apenas o primeiro a separao entre o Estado e a Igreja.

    Descrente da intensidade e da durabilidade da relao atual entre religio e poltica, Pierucci

    afirma que a anlise de Casanova interessante, mas j caducou.

    11. Rivera (2002) tambm foi um autor que chamou ateno para o modo diferenciado

    da diminuio brasileira da simbiose entre a sociedade civil e a religiosa, ressaltando que na

    Amrica Latina podem coexistir circunstncias mais ou menos tradicionais, mais ou menos

    modernas. Segundo ele, h instantes em que prevalece a desprivatizao da religio, bem como

    outros em que se v o deslocamento rumo privatizao.

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    centralidade e capacidade de atribuir sentido s experincias da vida; e ainda e

    simultaneamente, passou a estar circunscrita em uma esfera prpria, cuja liberdade

    seria garantida, desde que seus limites no extrapolassem outras fronteiras sociais

    (Giumbelli 2004; Ortiz 2001). Giumbelli acrescenta que diversas formas de expresso do

    religioso se constituiriam no em oposio secularizao, mas a partir de seu prprio

    interior, mostrando a indissociabilidade do par religioso e secular (Giumbelli 2008).

    Podemos citar ainda Zepeda (2010), que recupera a vasta discusso e os pontos

    de vista diferenciados sobre o lugar da religio nas sociedades secularizadas. Apesar do

    aparente avano dessa discusso, o autor acaba mostrando diversas controvrsias que

    incidem sobre o tema. Ele defende a importncia da permanncia dos termos

    ressacralizao, ps-secularizao e dessecularizao, que sinteticamente se

    refeririam ao no nfimo espao que a religio ocuparia na atualidade. Sem discorrer

    sobre a pertinncia ou no de cada significado, interessa-nos ressaltar, deste esforo

    terico, os dissensos quanto s terminologias e classificaes.12 Inmeros outros autores

    poderiam ser citados tambm, mas o que queremos deixar claro com este pequeno

    exemplo que no se trata apenas de um dilogo plural, que seria imprescindvel para o

    avano de qualquer cincia. H conceitos como este (secularizao) sobre os quais no

    se pode afirmar taxativamente se devem ser pontos de partida, ou se se trata de

    cacoetes sociolgicos. Um recorte preciso do objeto de pesquisa e das relaes a partir

    dele estabelecidas um dos caminhos que visualizamos para que se saia dessa areia

    movedia.

    Alm disso, assim como os prprios pesquisadores ainda tateiam a compreenso

    do lugar da religio na modernidade e os melhores termos a serem empregados nessas

    anlises, tambm se observa a dificuldade na apreenso do sentido dado pelos prprios

    crentes sobre suas opes religiosas e sobre a mobilidade nas diversas alternativas de

    f. Novamente, preciso ressaltar que no nos referimos instrumentalizao do

    religioso prpria da anlise socioantropolgica. Trata-se, ao contrrio, do fato de que

    grandes certezas textuais e sofisticadas acepes produzidas pelas cincias sociais e que

    circundam as noes de religio, crenas, prticas, ritos, converses etc. podem se

    distanciar e/ou se confrontar diretamente com a narrativa dos indivduos sobre suas

    experincias, que, muitas vezes, no se encaixam nas tipologias adotadas.

    Nos dias de hoje, h enorme variao de conduta e distintos entendimentos

    quanto aos preceitos balizadores da f e do pertencimento. So percursos to dinmicos

    12. Para Zepeda h um retorno no tradicional da religio, o que salientaria ainda mais

    as diferenciaes das esferas, rejeitaria o controle absoluto das instituies em nome da

    autonomia bricolar dos indivduos e apontaria o carter indito desse ressurgimento.

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    que suscitam no s a constante redefinio dos problemas e o peridico revisar dos

    instrumentos de anlise, mas tambm demandam redobrada ateno para que as

    desarmonias heursticas no atrasem ainda mais a disparidade entre cincia e prtica.

    Um exemplo que ilustra a segunda dimenso que queremos abordar (a da distncia

    entre as concepes dos pesquisadores e a dos pesquisados) e que tambm acaba

    acentuando a primeira parte da questo sobre as assimetrias (exemplificada atravs do

    conceito de secularizao) a confuso terminolgica sobre o campo evanglico. Esta

    teve um pico com a proliferao do movimento de cura divina e do posterior

    aparecimento da Igreja Universal, da Renascer em Cristo e de outras denominaes

    chamadas de neopentecostais.13 Um esforo de compreenso desse fenmeno foi feito

    por Ricardo Marino (2005, segunda edio) no fim da dcada de 90. Na poca, o foco

    dos centros de pesquisa e dos pesquisadores constituiu-se por muito tempo em

    estabelecer definies sobre as distintas denominaes religiosas. Contudo, nem a

    prpria tentativa de sntese de Mariano foi largamente aceita e empregada; e ainda h

    incmodo exagerado no emprego da categoria neopentecostal algo que novamente

    ilustra a primeira dimenso referida.

    Agora, j passados mais de vinte anos desta ltima grande tentativa de

    reconfigurao, as prticas religiosas j no podem ser compreendidas simplesmente a

    partir do entendimento do que significa ser batista, presbiteriano, quadrangular,

    universal, entre outros. Afinal, a pentecostalizao do cristianismo complicaria as

    classificaes, uma vez que diversas igrejas poderiam coincidir no tocante a suas

    prticas (Mariano 2005, 49). E isso sem contar como a tendncia pentecostal afeta o

    campo de um catolicismo sincrtico, como o caso do brasileiro. E, alm disso, sequer

    possvel observar a incluso de categorias como dupla pertena religiosa no

    desenvolvimento de questionrios ou de pesquisas de maior abrangncia, algo que j

    comum na religiosidade brasileira e que inclusive j foi considerado em estudos

    qualitativos.

    Para jogar luz em tal questo, consideramos til voltar ao argumento de Pace

    (2009) sobre a utilizao da religio como um meio de comunicao. Segundo ele:

    prefervel, ao contrrio, considerar as religies como sistemas vivos que evoluem

    nascem, crescem e morrem conforme se mostram capazes de traduzir a energia

    externa em informao inteligente interna, ou seja, capazes de dominar a variedade, a

    multiplicidade e a imprevisibilidade dos ambientes sociais nos quais os sistemas de

    13. Resumidamente, os neopentecostais so considerados aqueles fiis que declaram

    pertencimento a igrejas que surgiram na dcada de 1970 e que acentuam em especial a pregao

    da Teologia da Prosperidade (aqui resumida no direito dos fiis usufrurem dos bens de Deus,

    sem esperar por um mundo vindouro) e a guerra contra o diabo (prticas de exorcismo).

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    crena religiosa nascem e se inserem sucessivamente, se extirpam e se transplantam,

    se adaptam com menor ou maior eficincia a diferentes ambientes (Pace 2009, 11).

    Observar as religies a partir deste prisma pode diminuir as distncias entre as

    definies cunhadas por religiosos e por pesquisadores e auxiliar-nos a fugir de ardilosas

    buscas por definies fixas ou essencialistas e pela superao/resoluo absoluta de

    grandes entraves nos estudos de religio, como os postos pelas dicotomias

    modernidade e tradio, simples e complexo, centro e periferia etc. Deve-se

    ressaltar, contudo, que isso pode implicar em quase jogar fora o beb com a gua do

    banho, isto , descartar antigas tipologias e noes j enraizadas nos estudos

    acadmicos. Algo deveras custoso a alguns! Talvez, pensar o sistema religioso como um

    sistema vivo possa ajudar, sem tantos pesares, no descarte ou na manuteno de

    classificaes. Se tomarmos esse caminho de Pace, deparar-nos-emos ento com uma

    dupla tarefa decorrente. A primeira diz respeito a abandonar certas percepes

    produzidas e articuladas pelos prprios sistemas de crenas quando eles se comparam

    aos outros (noes como as de puro/impuro, bom/ruim, certo/errado,

    racional/irracional). O segundo afazer o de ainda assim adotar a maneira como as

    religies observam a si mesmas no sentido de que nenhum sistema de crena se v

    isolado dos ambientes sociorreligiosos dos e nos quais emergem. Toda religio est

    circunscrita num conjunto de relaes que ilumina suas caractersticas fundamentais.14

    Outra possvel sada para a lacuna que h entre as concepes do religioso para

    os pesquisadores e para os pesquisados pode ser encontrada na apropriao das

    peculiaridades da religio na modernidade globalizada. So elas: a destotalizao da

    experincia humana, a crise da transmisso religiosa e os novos tipos ideais de

    vivncia da religiosidade (as figuras do peregrino e do convertido) (Herviu-Leger

    2008). Vamos ater-nos apenas a este ltimo ponto, pois ele se configura relevante para

    a questo proposta. Segundo Danile Herviu-Leger, o peregrino sintetizaria as

    experincias de f da atualidade. Nele, por meio da construo de uma biografia, os

    variados percursos religiosos que se apresentam como contradies15 se resolvem. O

    peregrino pode ser desde aquele indivduo que planeja a viagem a Taiz, na colina de

    Borgonha na Frana, e se rene com jovens de todo o mundo no vero europeu para

    14. Enzo Pace acrescenta ainda que deve fazer parte do modo de anlise do estudioso

    das religiosidades a distino entre a fundao de um sistema de f (improvisao originria de

    ressignificao de diversas crenas) e o processo de sistematizao sucessiva das prticas e

    valores de uma religio.

    15. Almeida e Montero (2001, 92) mostraram que o conceito de converso de Weber, a

    saber, de mudana de credo e adoo de novas prticas de f, j no explica suficientemente a

    complexidade do campo religioso. Assim, estes autores no se contentam em caracterizar o

    movimento religioso no Brasil como sendo contnuo ou sincrtico. Eles chamam ateno para a

    necessidade de compreend-lo em seus pormenores e de apontar tendncias.

  • 10

    participar de um encontro, experincia mstica, turstica ou cultural, at o crente que

    peregrina na Igreja Universal do Reino de Deus no Brasil, buscando exorcizar seus

    demnios e obter sucesso na vida. Em ocasies como estas, predomina uma

    religiosidade mvel e individualizada, voluntria, varivel e fortuita. J a figura do

    convertido, por outro lado, e concomitantemente, vem espelhar um modelo de adeso

    individual, cuja filiao institucional no necessariamente implica numa vivncia

    comunal. Ela pode se dar ou como um fim de caminhos tortuosos, ou na busca de um

    sentido para a vida. Segundo a autora, aparecem ainda as justificativas individuais de

    preenchimento espiritual, assim como a busca por suporte material e emocional

    (Hrvieu-Leger 2008).

    Entretanto, considerar as tipologias converso/peregrinao como propostas por

    Hrvieu-Leger abre uma segunda questo metodolgica que acaba sendo um corolrio

    da soluo acima mencionada: o de no s considerar, mas ter que se apropriar do

    fato de que a no heteronomia dos indivduos a sistemas fechados aferidores de

    respostas ltimas, como as instituies tradicionais, implica um complexo processo de

    bricolagem, ou tambm e analogamente envolve exclusivismos religiosos, ambos

    fenmenos indissociveis na contemporaneidade e que caracterizam uma variedade de

    opes e percursos ainda mais diversos e difceis de serem detidamente includos nas

    anlises dos movimentos de f. Estas posies trazem para o debate acadmico as

    novas formas de solidariedade, identidade e memria religiosas criadas e recriadas pelos

    crentes. E justamente nisso que a segunda questo nos prope a pensar: como

    abarcar a complexidade das imbricaes da religio nos dias de hoje?

    Hollinger (1998) mostrou que era necessrio certo refinamento no modo de

    analisar as prticas religiosas frente aos fenmenos de secularizao, pluralizao e

    globalizao (esta ltima que inclui a circulao das prprias prticas religiosas).

    Segundo ele, a aparente ausncia ou expresso exacerbada da religio no espao

    pblico, o aumento ou a diminuio de dada filiao, bem como as distintas

    participaes de indivduos em rituais diversos no poderiam ser explicados levando em

    conta apenas uma das teorias sobre a religio na modernidade. Pensar na secularizao,

    no mercado religioso competitivo ou num ressurgimento do religioso separadamente

    no explicaria o movimento diferenciado de prticas e crenas em vrias regies. Para

    ele, preciso contextualizar.

    Desse modo, em relao questo que levantamos, o pensamento de Hllinger

    pode ser usado para ilustrar uma perspectiva que no deve ser perdida de vista: a de

    que a relao das sociedades com a igreja (f institucionalizada) ou com expresses do

    religioso indica o papel da religio na sociedade ao longo da histria. O autor atribuiu a

  • 11

    maior religiosidade norte-americana, por exemplo, ao desenraizamento cultural advindo

    da imigrao, liberdade religiosa constitucionalmente assegurada e ao

    denominacionalismo, acentuando a alta valorizao da religio no processo de formao

    do Estado. Abarcar certo perspectivismo histrico, ento, no significa reduzir o leque

    comparativo, mas, como lembra Segato (1997) ao questionar se nas cincias sociais o

    discurso da globalizao no estaria sendo incorporado de modo quase acrtico, faz parte

    do labor de pesar os lados da balana, de medir os prprios relativismos.

    Isto posto, outra conjectura de peso tambm considervel forma o que

    apontamos aqui como um terceiro ponto: o da conjugao entre o saber cientfico e as

    experincias, percursos e diversas crenas pessoais dos prprios pesquisadores. Este

    um dos maiores embaraos nos estudos de religio, pois antroplogos e socilogos

    podem produzir e reproduzir suas prprias cosmologias. Claro que preciso

    compreender a diferena entre uma autoprojeo do pesquisador e identidade da

    pesquisa, mas no exatamente disso que se trata. Ao analisar o fenmeno do

    religioso, cientistas sociais podem ser ao mesmo tempo nativos e pesquisadores de suas

    crenas e pertenas. Isso foi o que Pierucci chamou de impureza acadmica.

    Mas possvel tambm incorrer num risco distinto, embora acabe sendo similar:

    o de reproduzir, para obter aceitao dos pares, a doxa corrente (Perez 2010), as

    ticas j estabelecidas e as assertivas j elaboradas e consolidadas pelas cincias.

    Quanto a esta defesa de pontos de vista, verdades e concluses, Mariz havia alertado:

    A capacidade dos pesquisadores de ver fatos que desmintam seus trabalhos

    anteriores (as teorias que defenderam em congressos e textos publicados) pode variar

    bastante. A o pesquisador tem interesses e valores to fortes para defender quanto os

    que professam alguma crena religiosa (Mariz, 2000, 34).

    Isso mostra que a contaminao acadmica tratada por Pierucci deve ser

    relativizada; afinal, como ressalta Mariz, muitos pesquisadores defendem suas opinies

    de maneira nada pura. Mesmo que concordemos com Pierucci quanto ao fato de que os

    interesses religiosos dos pesquisadores podem contaminar a prtica intelectual

    (Camura 2000, 68-69), preferimos ainda ponderar com o ponto de vista defendido por

    Marcelo Camura: de que Pierucci desconsidera possveis interesses concorrenciais dos

    socilogos esfera institucional religiosa, implicando em uma anlise desfavorvel da

    religio sob a capa de um discurso cientfico e objetivo (Camura 2000, 82).

    E podemos acrescentar: se os pesquisadores h muito se debruam sobre os

    tnues limites entre a aproximao e o estranhamento, entre a subjetividade e a

    intersubjetividade, entre as crenas dos outros e seus limites de verdades, os

  • 12

    pesquisados de hoje, em contrapartida, vm cada vez mais conhecendo e falando a

    lngua de seus observadores, fazendo dos acadmicos tambm seus macacos,16

    invertendo prismas. Segundo Zaluar, os nativos so agora cidados de seus respectivos

    pases, muitos deles transformados em nativos antroplogos de seus povos,

    historiadores de sua histria, filsofos de seu modo de encarar o mundo (Zaluar 2009,

    557).

    Deste modo, lembremo-nos que o pesquisador , ao mesmo tempo, o seu

    prprio cronista e historiador, fato que faz da exposio das condies nas quais so

    realizadas as coletas de dados a nica chance de minimizar a distncia entre o material

    bruto e as concluses de pesquisa, como j apontava Malinowski (1998). Ademais, a

    prpria noo do que pesquisa, assim como expusemos na primeira questo

    considerada, passa por fluxos e refluxos, definies e redefinies de limites, fronteiras,

    conceitos (a ttulo de exemplo, ver Giumbelli 2002). Uma boa pista tambm deixada

    por Gilberto Velho (1986) ao lembrar que a antropologia (e por que no a sociologia e

    outras reas afins?) por vezes se mostra com o etnocentrismo contra o qual luta,

    representando um ponto de vista externo, quase caindo na tentao de se pr como

    exclusivamente conhecedora e definidora do que religio, cultura, local/global,

    nativo/estrangeiro e assim por diante. Consequentemente, em tempos de modernidade,

    em que se questionam no s as verdades religiosas, mas a prpria cincia, discusses

    como essas no so apenas importantes ou revigorantes, mas so condies prvias de

    qualquer experincia com religiosos, de experincias religiosas (Mariz 2000).

    Para ilustrarmos ainda mais os pontos levantados, principalmente o da terceira

    questo, lanaremos mo agora do exemplo weberiano. Mediante a recuperao de

    parte da trajetria deste autor, nossa inteno cooperar com a agenda de estudos de

    religio e metodologia, sempre aberta a novas discusses.

    Weber: contribuies ao debate

    A forma de mapear os fenmenos e o modo de compreender a posio do

    pesquisador no algo novo, mas emerge nos contextos epistemolgicos e polticos da

    modernidade, desde suas origens e histria desenvolvimental.17 Dentre os textos

    16. Guilherme Jos da Silva e S (2005), que traz uma rica discusso sobre a percepo

    dos nativos, aplicou a lgica de observao dos primatlogos (que a de observar primatas) aos

    prprios primatlogos, quando os observava em campo. Parte do ttulo de seu artigo remente a

    tal postura: meus macacos so vocs. Pensando nisso, o regresso tambm pode ser observado

    na medida em que os nativos pesquisados no apenas dialogam com os pesquisadores, mas

    incorporam suas produes acadmicas e elaboram discursos de contra resposta.

    17. Antes, preciso uma observao. As vivncias de uma poca histrica s podem ser

    entendidas, e de novo avivadas com sentido e significado, a partir das leituras e vivncias do

    presente, cuja velocidade e fluxo de mudanas se aceleram, se cruzam em inesperadas

  • 13

    weberianos, o que ser referido em nossa reflexo , principalmente, As seitas

    protestantes e o esprito do capitalismo,18 que, em sua verso primeira, o que mais se

    distancia de uma linguagem sociolgica e isenta de locuo pessoal, pois transmite ao

    leitor a ntida sensao das observaes vividas.

    No inteno explcita dessa obra dessa obra uma discusso metodolgica e

    uma comparao cultural detalhada, embora uma das vrtebras do pensamento

    weberiano se esgueire pela comparao entre traos e formaes culturais e religiosas.

    Apesar disso, a perspectiva comparativa levou o trabalho weberiano a mincias e a

    detalhamentos em funo da pergunta pela singularidade do desenvolvimento histrico-

    cultural da modernidade ocidental, cujo fulcro pode ser identificado sob a forma de

    afinidades eletivas em determinadas regies geogrficas da Europa e dos EUA. Assim,

    uma pergunta parece sempre estar por trs do esforo comparativo weberiano: Porque

    em tal local, essa, e no outra conjuntura de fatores religiosos e no religiosos,

    engendrou tal arranjo que no pde ser verificado em nenhum outro lugar? Sua

    incansvel comparabilidade buscava encontrar a conjuntura ideal que tivesse levado a

    uma ruptura irrevogvel, e seu modo de faz-lo apresenta pontos importantes sobre seu

    mtodo de estudo.

    Ao longo do texto As seitas protestantes e o esprito do capitalismo, as imagens

    que surgem de sua perspectiva experiencial so muito instigantes, pois Weber narra

    uma sucesso de experincias: a viagem por territrio ndio ao lado de um caixeiro-

    viajante; o mdico alemo habitante de uma cidade do rio Ohio que, espantado, narra a

    fala de seu primeiro paciente; alm de um ritual de batismo na Carolina do Norte,

    realizado entre seus parentes e comentado por um deles com desdm. Todo o texto

    contm densas observaes e as mais caudalosas notas de rodap enlaadas a

    conceituaes histrico-sociolgicas e pessoais: desde as sesses da Suprema Corte

    Americana que invocam o nome de Deus, s sesses laicas na Alemanha, alm das

    indagaes feitas pessoalmente sobre seu comparecimento ao culto religioso na cidade

    de Portree e a resposta dada s senhoras que o abordaram.19

    combinaes, esto em rede. So leituras e vivncias cultivadas e consumidas num mercado,

    entendido aqui como um campo de esportes; o local do jogo entre oferta e procura.

    18. As seitas protestantes e o esprito do capitalismo foi originalmente publicado como:

    Die protestantischen Ethic und der Geist des Kapitalismus (1904-1905); em seguida, o Autor

    publicou o ensaio: Die protestantischen Sekten und der Geist des Kapitalismus; e mais tarde, em

    1920, reuniu os dois conhecidos ensaios em: Gesammelten Aufsaetzen zur Religionssoziologie,

    sendo que o segundo texto, objeto de nosso estudo, se encontra no vol. 1, 207-236.

    19. A traduo portuguesa, a partir de uma traduo inglesa do alemo, mostra-nos uma

    alternncia de estilos lingusticos. Um Weber que escreve ora no modo plural, ora no impessoal e

    ora no pessoal. Contudo, as observaes em primeira pessoa, a partir de experincias pessoais,

  • 14

    Faz-se uma ressalva. Uma das questes que percorrer o texto diz respeito

    secularizao (Pierucci 1998). Nesse sentido, dir Pierucci:

    J no ensaio As seitas protestantes e o esprito do capitalismo h apenas dois

    empregos. Fortssimos [...], porquanto aqui Weber usa nas duas passagens o sintagma

    processo de secularizao (Skularisationsprozess) para nomear aquele processo

    caracterstico que, visto mais de perto, se mostra em constante progresso, ao qual

    nos tempos modernos sucumbem por toda a parte [berall verfallen] os fenmenos

    que se originam em concepes religiosas [...]. Aqui, secularizao designa, antes de

    mais nada, o processo caracteristicamente moderno de declnio da religio (haja vista o

    emprego aqui e ali dos verbos sucumbir, desfalecer...), desenhando uma trajetria de

    esmorecimento e de cesso, de subtrao de religio, que, se verdade que pode

    ocorrer em qualquer poca e lugar, constitui em sua tipicidade o roteiro caracterstico

    dos tempos modernos (Pierucci 1998, 23).

    No entanto, neste artigo, no nos interessa a centralidade epistemolgica dessa

    discusso, mas a tessitura do texto, suas modalidades de construo, abordando este e

    outros temas. Ou seja, como essa temtica trabalhada de forma inovadora nesse

    texto, fazendo-o diferir de outros tantos.

    Weber oferece-nos um panorama cambiante que vai da observao de gestos e

    atitudes, como a de um servio de culto num colgio da Pensilvnia, a observaes

    histricas sobre o exrcito de Santos de Cromwell (Weber 2002, 222-223). Mas no so

    fragmentos soltos. Antes, esto alinhavados e afinados a temticas mais universais,

    como a disciplina moral rigorosa dos protestantes e a admisso ao culto da ceia do

    Senhor. Percebendo um jogo de estratgias e aes, um comportamento que alterna a

    cartelizao das seitas a cdigos tcitos de cooperao entre as mesmas, Weber

    articula motivaes pessoais dos agentes envolvidos com camadas cada vez mais

    amplas de compreenso do fenmeno estudado.

    Em compensao, se de um lado nosso autor brilhantemente concatenou

    processos locais e globais, pessoais e sociais, ele, demasiado humano, foi influenciado

    por categorizaes teolgicas e vivncias religiosas imersas nas disputas internas do

    campo protestante. Assim, ao aproximar tanto as concepes nativas quanto as

    sociolgicas, em termos antropolgicos, podemos dizer que Weber comeu corda dos

    nativos.20 E, no caso, foi de alguns telogos calvinistas interessados em forar o

    se no chegam a ser uma etnografia no sentido estrito, deixam um aroma de cunho

    antropolgico em um pensamento de alto flego comparativo.

    20. Expresso usada para ilustrar uma situao em que um pesquisador leva a srio

    categorias nativas, sem perceber que essas mesmas categorias no so levadas a srio pelos

  • 15

    contraste identitrio com os luteranos. Apesar de alguns dados histricos e empricos

    citados por Freitas (2010) apontarem que tal contraste no era abissal, sendo, na

    verdade, pouco ntido, seno contrrio ao que foi argumentado por Weber, como se,

    indiretamente, espissemos os bastidores da construo dos tipos ideias a grande

    pedra de toque da metodologia weberiana e constatssemos que, independente disso,

    faltou conjugar o tratamento histrico e o emprico das fontes de construo de algumas

    tipologias bsicas.21

    Em outras palavras, Weber, ao acessar certas fontes no caso, telogos e

    documentos (manuais e livros devocionais) para construir sua tipologia contrastante

    do novo e do velho, no se apercebeu (ser?) que, na verdade, tudo isso era apenas a

    ponta de uma imensa rede de dados, agentes e informaes interconectados e extensos,

    que se desdobram por um perodo de tempo muito lato. Ou, ao contrrio, na busca do

    melhor posicionamento no oceano da realidade emprica, Weber teria intencionalmente

    escolhido determinadas conexes e atores, documentos e reflexes que julgava

    expressar melhor as afinidades eletivas e os processos histricos que constituram os

    fenmenos religioso-culturais. A nosso ver, isso seria um grande empecilho do texto

    weberiano para estar no tnue limite entre a adoo do modo de ver a religio segundo

    o prprio sistema de crena e o abandono das diversas dicotomias produzidas por estes

    mesmos sistemas.

    Mas, nesse ponto, o leitor deve estar se perguntando: no isso o que todo

    pesquisador deve fazer, se no quiser se perder num dos labirintos ao estilo de Jorge

    Lus Borges, e como imposio metodolgica e no de contingncias sociais e culturais?

    E aqui acentuamos o que denominamos como a segunda questo dos pesquisadores da

    religio na cultura, ou da cultura na religio: quais fontes devero ser privilegiadas,

    afinal, e como devero ser tratadas, j que se torna cada vez mais difcil abarcar a

    totalidade delas e da rede poltica, cultural e social com as quais elas interagem? Se

    estamos mergulhados em uma rede cujas mltiplas direes e fluxos combinam e opem

    posies, estilos, agentes individuais, instituies coletivas, valores e discursos, como

    escolher fontes e dados emprico-etnogrficos ou documentais e fazer anlises sem

    pesquisados. Ou ainda, categorias que os pesquisadores no percebem que so verses ldicas

    da realidade, formas de chiste e outras maneiras de dar inmeras verses de um fato ou evento.

    21. A intensidade das transformaes na sociedade norte-americana, em que pese

    tipologia ideal, que nunca poder ser encontrada em plenitude na realidade, o faz afirmar: Hoje,

    o tipo de congregao a que algum pertence irrelevante. No importa que seja maom,

    cientista cristo, adventista, quacre ou qualquer outra coisa (Weber 2002, 215). E o novo e o

    velho so aproximados e contrastados. Mas o que o novo e o velho? O novo e o velho, em

    Weber, so pares de oposio usados para caracterizar os antigos e novos empreendedores, os

    luteranos e calvinistas, os judeus e os calvinistas, mas no so contrastes, ao fim das contas,

    autoevidentes (Freitas 2010).

  • 16

    considerar essas injunes e a forma como elas afetam o trabalho do pesquisador? Sem

    mencionar, claro, as questes postas pela vertente ps-moderna da reflexo

    antropolgica, que a partir de James Clifford (1998) questiona a autoridade e a autoria

    do texto.

    Fato que, ao escolhermos a forma, o trajeto e o material da pesquisa, no

    escapamos de injunes de valor de um contexto histrico, bem como das hegemonias

    interpretativas que certos paradigmas possuem em determinadas pocas. Assim, Weber,

    para sair desse impasse, parece ter tentado equacionar em sua reflexo a diferena

    entre juzos de valor e relao com valores, o que de certa forma escapa ao argumento

    de Freitas (2010) e de Srgio da Mata (2011), pesquisadores brasileiros que apontaram

    vias alternativas de leitura. Nesse sentido, preciso atentar para as passagens das

    esferas valorativas (nas quais todos ns estamos imersos) e para um rigor metodolgico

    de grande esforo, como pontuamos ao nos referir terceira questo de pesquisa dentre

    as muitas possveis na modernidade globalizada em que se inscrevem as religies.

    Juzos de valor expressam o desejo e a crena investida no que as comunidades

    de cientistas ou de crentes afirmam que uma realidade, sociedade ou fenmeno deve

    ser. Mas, por outro lado, enquanto objeto de estudo, no so proibidos reflexo

    cientfica (Saint-Pierre 1991). As relaes que homens e mulheres reais travam com os

    valores so elementos fundamentais das cincias da cultura. em funo dos valores,

    possuidores de uma determinada sociognese histrica passvel de intensas

    transformaes, que o comportamento humano histrico e emprico se recobre de

    significao para o cientista que o estude (Saint-Pierre 1991). E essa relao com os

    valores que so os trilhos nos quais se move o interesse cientfico no necessrio recorte

    do infinito e incessante fluir das aes humanas, de suas manifestaes e realizaes,

    para, dessa maneira, construir seu objeto de conhecimento (Saint-Pierre 1991, 33).

    Por meio da diferenciao entre juzos de valor e relao com valores, Weber

    pretendeu diferenciar o papel do cientista e do homem de ao. Por meio do juzo de

    valor, o agente poltico reafirma-se politica e moralmente, enquanto a relao com os

    valores oferece um procedimento de seleo e organizao do objeto ao cientista.

    Apesar de pesadamente criticada, essa pressuposio weberiana diz que a significao

    objetiva relativa ao valor que orienta a investigao, mas no como uma aposta na

    universalidade de determinados valores.

    Apesar disso, misturando observaes objetivas com posies valorativas, Weber

    nunca chegou a obter a clareza meridiana nesses dois postulados decorrentes de sua

    prpria metodologia: por um lado, a clareza de conscincia do autor e do leitor acerca

  • 17

    dos critrios adotados para mensurar a realidade e obter, a partir deles, os juzos de

    valor; por outro, a clareza rigorosa que o autor devia buscar tanto para si mesmo como

    para o leitor, ou seja, quando o investigador e o homem como sujeito de vontade falam

    e quando silenciam (Saint-Pierre 1991). No entanto, o propsito weberiano era, entre

    outros, o de tornar inteligvel como chegamos a ser o que somos, sempre em traos

    parciais, ou como a famosa analogia usada por Weber para caracterizar sua relao com

    a dimenso religiosa: como notas musicais de uma partitura para sempre inconclusa

    (Saint-Pierre 1991).

    Agora, ao nos atermos especificamente a observaes a respeito das seitas,22

    vejamos o contexto que fez Weber cair no terceiro ponto que mencionamos

    (conjugao de valores pessoais e objetivos cientficos). Da forma como so

    apresentadas idealmente por Weber, as seitas j no existiam mais na Alemanha de sua

    poca, embora sua me pertencesse a um movimento de fortes tendncias sectrias, o

    pietismo. A referncia emprica weberiana eram as seitas norte-americanas, cujos cultos

    teve a oportunidade de frequentar e cujos membros conheceu ao visitar os Estados

    Unidos, em 1904 (Freitas 2010). Na problematizao do modus weberiano, Freitas

    (2010) mostra uma sutil adjetivao feita por Weber. Segundo Freitas, Weber se

    alegrava com a existncia dessas seitas nos Estados Unidos. Isso nos conduz a enxergar

    detalhes de escrita tambm comuns nos textos de religio o da adjetivao. Esta,

    mesmo que sutil, leva o argumento rumo a uma imputao de sentido que se confronta

    com a assumida amusicalidade weberiana para o fenmeno religioso, algo que seus

    familiares e amigos comentaram e que tambm foi retratado pelos socilogos

    publicadores da obra de Weber nos EUA.

    Como exemplo do contexto que propiciou tais adjetivaes, v-se que, em 1904,

    Weber tinha redigido uma parte do clssico A tica protestante e o esprito do

    capitalismo, quando, em companhia de sua mulher Marianne e de seu amigo telogo,

    Ernest Troeltsch, para conhecer a Exposio Universal de St. Louis, fez uma viagem

    longa que ficou marcada em sua memria; e sobre esta viagem far constantes

    remisses em suas pesquisas. Uma parte das impresses foi publicada e o texto ao

    qual este artigo se refere. A partir do retorno da viagem aos EUA, formou-se na casa do

    casal Marianne e Max Weber um crculo intelectual muito importante, reunindo nomes de

    22. A discusso e os decorrentes significados que se atriburam ao termo seita aps os

    escritos de Troeltsch e Niebuhr no so considerados no uso desse vocbulo. No presente

    trabalho, a palavra utilizada apenas conforme as concepes weberianas encontradas na

    coletnea Ensaios de Sociologia, organizada por H.H. Gerth e C. Wright Mills (Weber 2002). Em

    resumo, entende-se por seitas as associaes voluntrias de indivduos religiosa e moralmente

    qualificados.

  • 18

    distintas tradies intelectuais23. Nessa breve remisso, as questes das redes esto

    postas: as exposies universais do sculo XIX e incio do XX punham em contato

    amplos setores da sociedade. E, nesse sentido, os crculos intelectuais podem ser

    pensados como redes de relacionamento e debate, fundamentais na consolidao de

    ideias e trajetrias do saber.

    Entre 1893 e 1894, Da Mata (2011) diz que Weber se empenhava em promover

    a reflexo sobre a questo social e operria nos meios evanglicos, o que demonstrava

    sua insatisfao face ao que acreditava ser a tendncia quietista do luteranismo,

    reencontrado, mais tarde, como o subtexto da tica Protestante. Mas tambm certo

    que Weber se esforou para traar finas fronteiras entre a atuao como investigador e

    agente poltico-civil atuante, norteadas por uma concepo, hoje superada e criticada,

    de neutralidade axiolgica. Ser essa uma das causas pela qual Weber carregou as

    tintas na distino entre o velho e o novo, no caso, entre luteranismo como tradio e

    calvinismo como inovao? Ser que o novo em Weber significava uma tomada de

    posio? (Freitas 2010).

    Da Matta (2011) diz que Weber defendeu os participantes dos Congressos

    Evanglico-Sociais de uma das mais intensas crticas dos conservadores, qual seja, o

    desprezo a um clero engajado na problemtica social, condenado ao diletantismo. Em

    1894, numa palestra no Congresso Evanglico-Social, Weber afirmou que a igreja

    protestante no poderia ficar alheia aos problemas sociais, pois a luta de classes est a

    e uma parte integrante da sociedade atual (Da Matta 2011, 13). Mas Da Matta (2011)

    afirma ainda que ningum jamais duvidou da postura luterana de Weber, olhando para

    uma concorrncia calvinista.

    Assim, se bem entendemos a trajetria weberiana, resta-nos ler as afirmaes

    de Ringer com um tom mais pessimista, afinal:

    Ele [Weber] simplesmente traou uma linha divisria entre as razes que levam o

    pesquisador escolha (possivelmente objetiva) de um objeto de estudo, tipicamente

    23. Esses encontros foram chamados de Crculo Max Weber de Heidelberg (KARDI,

    1987). Eram encontros semanais na casa de Max Weber e uma bela para conseguir atender

    parcialmente os constantes pedidos de debates e intercmbios de ideias de muitas pessoas que o

    procuravam. Os encontros, realizados aos domingos, reuniam as mais diversas correntes tericas

    e at mesmo polticos. Entre 1906 e 1918, frequentaram a casa dos Weber: Ernst Troeltsch, Karl

    Jaspers, Alfred Weber (irmo de Weber e socilogo da cultura), os polticos Hans Ehrenberg e

    Franz Rosenzweig, o jurista George Jellinek, vrios msticos e niilistas russos, alm de um

    especialista em Dostoievski (Nikolai von Bubnov). (ARATO; BREINES, 1986 89; KARDI, 1987).

    Houve participaes espordicas de filsofos como Wilhelm Windelband e Heinrich Rickert, bem

    como de socilogos como Ferdinand Tnnies, Werner Sombart, Georg Simmel e Robert Michels.

  • 19

    um resultado histrico significativo, e a explicao causal deste resultado, que em

    princpio de visar a objetividade, embora possa passar longe desse alvo na prtica (...).

    Destarte, Weber repudiava a maioria dos argumentos dos relativistas, e essa defesa da

    objetividade ajudou a moldar sua atitude para com a questo mais ampla dos juzos

    de valor na cincia (...). Na ideologia acadmica alem, por outro lado, supunha-se que

    a Wissenschaft engendrava a Bildung e uma Weltanschauung de orientao axiolgica

    (...). Weber no abandonou prazerosamente essa esperana; mas esta lhe parecia cada

    vez mais no realista e uma ameaa retido intelectual que ele prezava acima de

    tudo (Ringer 2004, 170-171, grifos do autor).

    Novamente lembrando a desconfiana de Pierucci sobre tal retido intelectual no

    que tange ao comportamento dos estudiosos das religies, v-se que Weber ficou

    enredado na teia das relaes com valores, embora tenha levado a cabo, do modo como

    considerou possvel, a celebrada objetividade nos estudos de sociologia da religio e

    nos tantos outros estudos em diversas reas (economia, direito, msica e outras).

    Complementando, til lanar mo da concepo boasiana, ao comentar a

    questo da universalidade de certas ideias e, mais ainda, as duas indagaes bsicas da

    antropologia sobre as mesmas (quais so suas origens e como elas se afirmam em

    vrias culturas), quando conclui que as ideias no existem idnticas em toda parte: elas

    variam (Boas 2004, 27), e h interveno de fatores internos e externos, mltiplos, e

    nem sempre congruentes, na causalidade e nos efeitos, o que rompe com o padro

    aristotlico de lgica que atribui causas idnticas ou similares quando se observam

    efeitos iguais ou similares.

    guisa de concluso

    Chegamos a esta concluso, muito mais abrindo as questes propostas que

    propriamente buscando encerr-las ou oferecer respostas satisfatrias e conclusivas.

    Como exposto na primeira parte do texto, sabemos que estamos constantemente em

    descompasso, ao produzir definies e conceptualizaes que precisam rotineiramente

    fazer um movimento de retorno realidade social. preciso, antes, compreender os

    sistemas de crenas, assumindo suas relaes e interpretaes e no reproduzir

    automaticamente suas cosmovises. Isso configura um grande desafio, que se traduz,

    na maior parte das vezes, na conciliao de contradies, na dissociao analtica de

    fenmenos indissociveis e na conexo de processos microssociolgicos a tendncias

    histricas e gerais. preciso considerar que a tarefa de estudar religio (e qualquer

    outro fenmeno social) implica um recorte, uma seleo de fontes e um desenho de

    pesquisa que andar sempre na corda bamba entre o exerccio de conjugar adjetivaes

    e verdades pessoais com os objetivos e rigores da cincia (mesmo que isso nos custe

  • 20

    estar numa desconfortvel posio de impuramente acadmicos). Afinal, sirva-nos

    como mea-culpa o fato de nem mesmo Weber ter obtido uma clareza meridiana nesse

    postulado.

    H muitos dilemas de etnografia numa sociedade em processo irreversvel de

    mundializao. Montero (1993) desconstri a idlica imagem do pesquisador, no caso o

    antroplogo, que est longe de ser o isolado, de preferncia, em alguma ilhota da

    Melansia ou numa tribo remota da frica ou do Amazonas. Pois no se trata mais, se

    que j se tratou, de um pesquisador que consegue isolar os fenmenos e estabelecer

    relaes de significado, como se estivesse em uma espcie de laboratrio ao ar livre.

    E do presente exerccio, ainda uma ateno: na busca por encontrar o limiar

    entre oposio e identificao (Velho 1997, 12), no cedamos ao risco de ora tornar

    os objetos demasiado exticos, ora congel-los (Velho 1997), tendenciosos que somos

    por confirmar dados j explorados e, assim, produzir algo mais propenso a ser aceito no

    meio acadmico. Ou ainda, superemos observaes precedentes e, assim, galguemos

    um lugar de destaque. Debaixo do sol, os paradigmas so ultrapassados, relidos e

    reinterpretados quando os mtodos acadmicos tradicionalmente aceitos reposicionam

    como minorias cognitivas o que antes eram maiorias hegemnicas.

    Para isso, necessrio operar distines e articulaes entre, pelo menos, trs

    dimenses: as perspectivas observacionais de onde se observam os fenmenos

    religiosos do lugar social, institucional e poltico; as perspectivas sujeito-objetais

    quem observa e quem observado, em termos socioeconmicos, intersubjetivos, morais

    e ticos; e, por fim, as possibilidades de perspectivao produo de alternativas de

    compreenso a partir da necessria conjugao de posturas de confiana e de

    desconfiana em relao aos sistemas interpretativos hegemnicos e minoritrios.

    Assim, ao invs do monotesmo cientfico, pensemos num entrelugar; afinal, a cincia

    est assentada em um dos diversos e mais fundamentais pressupostos metodolgicos: a

    da possvel refutabilidade.

    Endereo dos Autores:

    Emerson Jos Sena da Silveira

    Avenida Itamar Franco, n 885, apart. 701

    36.010-021 Juiz de Fora MG/BRASIL

    E-mail: [email protected]

    Nina Rosas

    Rua Ilacir Pereira Lima, 497/203A

    mailto:[email protected]
  • 21

    31.140-540 Belo Horizonte MG/BRASIL

    E-mail: [email protected]

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