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CARRASQUEIRA, A. C. M. D. Estudos Criativos para o Desenvolvimento Harmônico do Instrumentista Melódico: Uma contribuição para a formação do músico. 2011. 194 f .Tese (Doutorado) – Departamento de Música, Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.Esta tese trata da formação do flautista e de outros instrumentistas melódicos - de sopro, e de cordas não dedilhadas. Ilustrada com exercícios, prelúdios e estudos, consiste basicamente em uma metodologia de ensino que visa não somente ao desenvolvimento técnico-instrumental, mas também ao pleno entendimento da linguagem musical e ao desenvolvimento da consciência harmônica. Para isso, propõe uma forma de estudo baseada na criação de conteúdo, e não na repetição de padrões preestabelecidos.

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO ESCOLA DE COMUNICAES E ARTES

    DEPARTAMENTO DE MSICA

    ANTONIO CARLOS MORAES DIAS CARRASQUEIRA

    ESTUDOS CRIATIVOS PARA O DESENVOLVIMENTO HARMNICO DO INSTRUMENTISTA MELDICO:

    UMA CONTRIBUIO PARA A FORMAO DO MSICO

    So Paulo 2011

  • ANTONIO CARLOS MORAES DIAS CARRASQUEIRA

    ESTUDOS CRIATIVOS PARA O DESENVOLVIMENTO HARMNICO DO INSTRUMENTISTA MELDICO: UMA CONTRIBUIO PARA A

    FORMAO DO MSICO

    Tese apresentada ao Departamento de Msica da Escola de Comunicao e Artes da Universidade de So Paulo para obteno do ttulo de Doutor em Msica.

    rea de concentrao: Msica.

    So Paulo 2011

  • Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrnico, para fins de estudo e pesquisa desde que citada a fonte.

    Catalogao na publicao Servio de Biblioteca e Documentao

    Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo Carrasqueira, Antonio Carlos Moraes Dias Estudos criativos para o desenvolvimento harmnico do instrumentista meldico : uma contribuio para a formao do msico / Antonio Carlos Moraes Dias Carrasqueira So Paulo : A. C. M. D. Carrasqueira, 2011. 194 p. : il. + CD Tese (Doutorado) Escola de Comunicaes e Artes / Universidade de So Paulo.

    1. Flauta 2. Instrumentos musicais 3. Criatividade 4. Linguagem musical 5. Improvisao 6. Perfomance I. Jardim, Gilmar Roberto II. Ttulo.

    CDD 21.ed. 788.51

  • Nome: CARRASQUEIRA, Antonio Carlos Moraes Dias Ttulo: Estudos Criativos para o desenvolvimento harmnico do instrumentista meldico: uma contribuio para a formao do msico

    Tese apresentada ao Departamento de Msica da Escola de Comunicao e Artes da Universidade de So Paulo para obteno do ttulo de Doutor em Msica.

    Aprovado em: / / 2011

    Banca Examinadora

    Prof. Dr. ..................................................................................... Instituio: ..................................................... ......................... Julgamento: ................................... ........................................ Assinatura: ............................................................................. Prof. Dr. ..................................................................................... Instituio: ..................................................... ......................... Julgamento: ................................... ........................................ Assinatura: ............................................................................. Prof. Dr. ..................................................................................... Instituio: ..................................................... ......................... Julgamento: ................................... ........................................ Assinatura: ............................................................................. Prof. Dr. ..................................................................................... Instituio: ..................................................... ......................... Julgamento: ................................... ........................................ Assinatura: ............................................................................. Prof. Dr. ..................................................................................... Instituio: ..................................................... ......................... Julgamento: ................................... ........................................ Assinatura: .............................................................................

  • DEDICATRIA

    Aos meus pais, Marina e Joo, sempre amorosos, que mostraram caminhos e ensinaram pelo exemplo. Aos meus mestres, pela pacincia e generosidade.

    `As novas geraes, nossos filhos, netos e alunos, para que continuem a descobrir e a revelar as maravilhas da msica e da vida.

  • AGRADECIMENTOS

    A todos aqueles que vieram antes de mim e tornaram possvel o acesso msica e ao pensamento dos mestres. quele que me fez msico e professor; meu pai, paciente e generoso, mestre de vida e da arte, cuja sabedoria continua a iluminar meus caminhos. minha me, pelo carinho, apoio, oraes e exemplar capacidade de trabalho. Benedicta Arcanjo, in memorian pelo carinho, amor e lies de vida. `A Frau Beatrice Dietzius, in memorian, cujo apoio foi fundamental no incio de minha caminhada. Ao Gil Jardim, querido amigo que me honrou com sua disponibilidade e sbia orientao. Sua lucidez de artista foi de importncia fundamental para o desenvolvimento deste trabalho. s minhas irms Marina Celia e Maria Jos, artistas e educadoras, pelo grande incentivo e apoio. Linice Jorge, cuja imensa generosidade e presena entusiasmada deram uma fora enorme nos momentos decisivos. Claudia Arezio, Suely Ceravolo e Eder Luis Jorge cuja inteligncia e domnio das artes da computao foram fundamentais para a formatao deste trabalho. Mnica Haibara, pelas lindas mandalas e presena tranquila e iluminada. Ao Guilherme Sparrapan, pela preciosa colaborao nas transcries, na gravao e na edio das partituras. Vilma Barban, Kika Loureno, a Cicero Couto de Moraes, Etelvino Bechara Marco Aurlio Barroso, Paulo de Tarso Salles e a George O. Toni, pelas sugestes e apoio. Gizah, pela reviso, bom humor e disponibilidade.

  • Aos meus professores flautistas, J. D. Carrasqueira, Jean Noel Saghard, Grace Bush, Roger Bourdin, Cristhian Lard, Fernand Caratg e James Galway. Aos professores Laura Ronai, Umberto Magnani e Jos Miguel Wisnik, cujos textos foram fundamentais para o embasamento histrico desta tese. minha esposa Marcia, companheira generosa de todos os momentos. L pela fora e a todos os meus filhos, pela alegria e pelo amor incondicional. Aos meus companheiros do Quinteto Villa-Lobos, Aloysio Fagerlande, Luis Carlos Justi, Paulo Sergio Santos e Phillip Doyle, por sua musicalidade, pela companhia sempre inspiradora e pela disponibilizao de livros e mtodos. A todos os meus companheiros das diferentes orquestras e grupos onde toquei e aprendi tanto. Aos professores msicos Eliane Tokeshi, Betina Stegman, Marcelo Jaffet, Luis Antonio Afonso Montanha, Alexandre Ficarelli e Robert Suedholz pela disponibilizao do material de estudo de seus intrumentos. Aos amigos msicos, Felipe Soares, Gabriel Levy, Luis Bastos, Jonas Ribeiro, e Stefania Benatti, pelas gravaes, transcries e preciosas sugestes. A Maurlio Buduga, Flavio Yamaoka, Renato Camargo, Peninha, Baul e a todos os meus alunos de todos esses anos, que me inspiraram e ensinaram muito. A todos aqueles que, de uma forma ou de outra, colaboraram para que este trabalho se tornasse possvel. Aos auxiliares invisveis, que por misteriosos caminhos sempre trazem a ajuda necessria. USP, pelo apoio e pelas condies de trabalho. Msica, que me salva.

  • RESUMO

    CARRASQUEIRA, A. C. M. D. Estudos Criativos para o Desenvolvimento Harmnico do Instrumentista Meldico: Uma contribuio para a formao do msico. 2011. 194 f .Tese (Doutorado) Departamento de Msica, Escola de Comunicao e Artes, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2011.

    Esta tese trata da formao do flautista e de outros instrumentistas meldicos - de sopro, e de cordas no dedilhadas. Ilustrada com exerccios, preldios e estudos, consiste basicamente em uma metodologia de ensino que visa no somente ao desenvolvimento tcnico-instrumental, mas tambm ao pleno entendimento da linguagem musical e ao desenvolvimento da conscincia harmnica. Para isso, prope uma forma de estudo baseada na criao de contedo, e no na repetio de padres preestabelecidos. Palavras-Chave: Flauta. Instrumento meldico. Criatividade. Linguagem musical.Improvisao. Escala musical. Acordes. Performance.

    RESUMO CARRASQUEIRA, A. C. M. D. Estudios Creativos para el Desarrollo Armnico del Instrumentista Meldico: Uma contribuicion para la formacin del msico. 2011. 194 f .Tesis (Doctorado) Departamento de Msica, Escola de Comunicao e Artes, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2011. Esta tesis trata acerca de la formacin del flautista y de otros instrumentista meldicos de viento y de cuerdas friccionadas. Ilustrada com exerccios, preldios y estudios, consiste basicamente en una metodologia de endeanza que no solamente enfoca el desarrollo tcnico-instrumental, sino tambin el entendimiento pleno del lenguage musical y el desarrollo de la consciencia armnica. Para eso, propone una forma de estudio basada en la creacin de contenidos y no en la repeticin de padrones pr-establecidos.

  • Palabras-Llave: Flauta. Instrumento meldico. Creatividad. Lenguage musical.Improvisacin. Escala musical. Acordes. Performance.

    ABSTRACT

    CARRASQUEIRA, A. C. Creative studies for the harmonically development of the melodic instrumentalist: a contribution to the musician improvement. 2011. 194 f. Tese (Doutorado) Departamento de Msica, Escola de Comunicao e Artes, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2011

    This thesis is about the teaching of the flute and others melodic instruments namely winds and strings. Illustrated with studies and etudes, it consists basically of a methodology that seeks not only technical development on the instrument, but also the complete understanding of the musical language and the development of harmonic awareness. With this aim, it proposes a way of practicing based on creativity, improvisation and composition, instead of the repetition of established patterns. Keywords: Flute. Melodic instrument. Creativity. Musical language. Improvisation. Scales. Chords. Performance.

  • SUMRIO

    APRESENTAO

    1

    CAPTULO 1

    2

    1. INTRODUO

    2

    Experincia e Conhecimento: a vida do artista e do professor como referncia da pesquisa.

    1.1 Por um pleno entendimento dos elementos da linguagem musical 4

    1.2. Consideraes sobre o trabalho do intrprete 5

    1.2.1 O discurso musical, msica e sintaxe - tonalismo 8

    1.2.2 A Msica e sua relao com outras reas do conhecimento humano 10

    2. CONSIDERAES SOBRE O ENSINO ATUAL DOS INSTRUMENTOS

    MELDICOS NO BRASIL

    13

    2.1 Os anos de formao: a Msica na vida familiar em dilogo com a escola e a sociedade

    13

    2.2 Aspectos do ensino formal de msica e do instrumento propriamente dito

    15

    2.2.1 Um olhar histrico mecanicismo x criatividade 17

    2.2.2 Ausncia da msica brasileira 21

    2.3 Anlise do predomnio da viso sobre a audio e os impactos da especializao

    23

    2.3.1 Predomnio da viso sobre a audio 24

    2.3.2 Impactos da Especializao 25

    3. DIFERENCIAIS NA CONSTRUO DE UM APRENDIZADO

    CONSISTENTE

    28

    3.1. Trs aspectos fundamentais na formao de um msico no Brasil 28

    3.1.1 Conhecimento dos acordes Consideraes sobre a importncia do conhecimento e do domnio dos acordes pelos instrumentistas meldicos.

    28

  • 3.1.1.1 A Prtica da Transposio 32

    3.1.2 Emprego da improvisao como ferramenta da experimentao 33

    3.1.3 Familiaridade com a msica brasileira 37

    4. METAS A SEREM ATINGIDAS

    38

    CAPTULO 2

    40

    5. DESENVOLVIMENTO REVELANDO O NO REVELADO

    40

    5.1. Uma Proposta de Estudo

    41

    6. ELEMENTOS DA LINGUAGEM MUSICAL

    43

    6.1 Intervalos 44

    6.2 Gnesis Escalas primitivas: pentatnicas e modos naturais 50

    6.2.1 Escalas Pentatnicas 52

    6.2.2 Modos Gregos 55

    6.3 Art et Technique de la Sonorit Ampliando o estudo dos intervalos e descobrindo estruturas simtricas

    60

    6.3.1 Intervalo de 2 menor - escala cromtica 62

    6.3.2 Intervalo de 2 maior escalas de tons inteiros 63

    6.3.3 Intervalo de 3 menor; um tom e um semitom - acordes diminutos 65

    6.3.4 Intervalo de 3 maior, dois tons acordes aumentados 67

    6.3.5 Escalas diminutas - octatnicas 69

    6.3.6 Escalas hexafnicas - tons inteiros 72

    6.4 - Divertimentos Descobertas 74

    6.4.1 Intervalo de 4a justa - dois tons e um semitom 82

    6.4.2 Intervalo de 4a aumentada o trtono 83

    6.4.3 Intervalo de 5a justa 85

    6.4.4 Intervalo de 5a aumentada (4 tons) 88

  • 6.4.5 Intervalos de 6m e 6M. 89

    6.4.6 Intervalos de 7m e 7M. 92

    6.4.7 Intervalos de 8J 94

    6.5 - Acordes, estrutura e cifragem - Trades Maiores, Menores, Aumentadas e Diminutas. Inverses e encadeamentos

    96

    6.5.1 Metodologia para o estudo dos acordes cifras: trades, ttrades inverses

    97

    6.5.2 Trades maiores e menores no crculo das 5as ou 4as. 105

    6.5.2.1 Inverses 107

    6.5.2.2 Trades em ciclos de 2s, 3s e 4s 109

    6.5.3 Acordes de 6a 122

    6.5.4 Campo Harmnico 123

    6.5.5 Notas meldicas ou notas de adorno; apogiaturas, bordaduras, retardos, antecipaes, escapadas, notas de passagem e notas pedais

    128

    6.5.6 Acordes de 7a, 9a, 11a e 13a - escalas de acordes 137

    Acordes de 7a 143

    Acordes de 7a e 9 152

    Acordes de 11a 154

    Acordes de 13a 156

    7. ANLISE HARMNICA DE ALGUNS ESTUDOS CONSAGRADOS

    158

    8. ENCADEAMENTO HARMNICO. CADNCIAS 162

    CAPTULO 3

    169

    9. PRELDIOS E ESTUDOS DIDTICOS 169

    10. CONSIDERAES FINAIS 188

    11. REFERNCIAS 190

    ANEXO I Publicaes para outros instrumentos meldicos

    ANEXO II - CD

  • 1

    APRESENTAO A presente Tese - Estudos Criativos para o Desenvolvimento Harmnico do

    Instrumentista Meldico: uma contribuio para a formao do Msico - insere-se no

    empenho da Universidade de So Paulo em produzir conhecimentos que possam

    contribuir para a melhoria da qualidade da formao cultural, artstica e educacional

    da populao brasileira. Tem como foco a formao do instrumentista meldico.

    Corporificada na dimenso de um caderno de estudos e composies, consiste

    basicamente na elaborao de uma metodologia de ensino que visa ampliar o

    conhecimento obtido pelo mtodo convencional. Baseada no estmulo criatividade,

    prope um profundo entendimento da linguagem musical e o desenvolvimento da

    conscincia harmnica dos instrumentistas meldicos - de sopro e de cordas no

    dedilhadas.

    Foi desenvolvida a partir de minha experincia como flautista atuante no

    Brasil e no exterior e tambm como professor h 25 anos do Departamento de

    Msica da Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo e em

    diversos festivais nacionais e internacionais. Por meio de uma reflexo crtica, esta

    tese objetiva focalizar espaos no contemplados pela formao tradicional,

    caracterizando-se como pesquisa de linha qualitativa na busca de um conhecimento

    que est encarnado em minha prpria vida e enraizado tanto na histria de minha

    formao como em meu trabalho de docncia.

    No primeiro captulo do trabalho, fazendo uma reflexo sobre os processos

    vividos na aprendizagem da linguagem musical pelo instrumentista meldico, optei

    pela forma de um relato de experincia na expectativa de contribuir para a formao

    terica e prtica do msico brasileiro. Nessa parte contextualizo essa formao,

    apresento um panorama introdutrio geral e uma proposta do trabalho, focando trs

    aspectos fundamentais para a construo de um caminho de aprendizado

    consistente.

    No segundo captulo exponho o desenvolvimento da pesquisa, seguindo os

    passos metodolgicos que visam contribuir para a formao do msico.

    No terceiro captulo, que inclui um CD anexado, so apresentadas as

    composies criadas a partir da metodologia proposta, com a finalidade de ilustrar

    determinadas estruturas da linguagem musical. E para concluir, as consideraes

    finais, as referncias bibliogrficas e os anexos.

  • 2

    CAPTULO 1

    1. INTRODUO

    Experincia e Conhecimento: a vida do artista e do professor como referncia da pesquisa.

    Esta tese , em grande parte, a formalizao do que venho realizando com

    meus alunos nesses 25 anos na Universidade de So Paulo (USP). Fundamenta-se

    na vivncia de 40 anos de vida profissional no Brasil, na Frana - pas onde vivi por

    quase seis anos - e em cerca de 50 pases em trabalhos com msicas de variadas

    vertentes - erudita e popular, tradicional e contempornea - em palcos e estdios de

    gravao, em que venho atuando como camerista, solista, msico de orquestra e

    eventualmente como ator e produtor musical. Essa trajetria, que inclui minha

    atuao como professor, tem me propiciado uma rica convivncia com artistas e

    estudantes de diversas culturas, idades e origens. Seja como intrprete ou

    professor, ao longo desse percurso tenho enfrentado grandes e diversos desafios,

    cuja superao tem me exigido constante aprendizado e reciclagem continuada.

    Minha experincia docente diz que o melhor mtodo , sobretudo, flexvel.

    Depende da realidade local e humana e construdo a cada aula, junto com cada

    aluno, de forma a fortalec-lo em sua identidade e na busca de um caminho para a

    expresso musical. Todos esses anos de trabalho vm me trazendo muitas reflexes

    e fortalecendo minha convico de que o aprendizado de um instrumento meldico

    no Brasil deveria contemplar de forma mais aprofundada certos aspectos da

    formao de um msico. Essa convico o motivo desta tese.

    Cabe aqui definir que instrumentos meldicos so aqueles que se

    caracterizam por tocar apenas uma nota de cada vez. o caso dos instrumentos de

    sopro, como flauta, obo, clarineta, fagote e trompa, que no podem tocar duas, trs

    ou mais notas simultaneamente, formando acordes1, como fazem o piano, o violo, o

    1 Acordes so estruturas nas quais as notas so superpostas e tocadas simultaneamente. Aqui, no me refiro aos multifnicos, grupos de duas a trs notas conseguidos por meio de posies especiais nos instrumentos de sopro e utilizados por compositores a partir da segunda metade do sculo XX. 2 Termo utilizado pelo Mo. Sergio Magnani para designar apogiaturas, retardos, antecipaes,

  • 3

    rgo ou o acordeo. Os instrumentos meldicos tocam as notas dos acordes de

    forma arpejada: uma aps a outra.

    Tambm podem ser considerados como meldicos os instrumentos de cordas

    friccionadas (violino, viola, violoncelo e contrabaixo), apesar de esses instrumentos

    eventualmente tocarem mais notas ao mesmo tempo.

    Observando os alunos de flauta que ingressam no Departamento de Msica

    da USP, vejo que, com rarssimas excees, mesmo aqueles que apresentam um

    bom nvel instrumental, no possuem uma compreenso clara da construo dos

    acordes. interessante constatar que, mesmo frequentando as aulas de harmonia,

    eles ainda tm dificuldade em pensar harmonicamente quando tocam seus

    instrumentos. Como veremos adiante, na metodologia de tradio europia a

    formao do instrumentista meldico se d de uma maneira que no o leva a ter

    uma compreenso dos acordes. Consequentemente tambm lhe passam

    despercebidos outros elementos da linguagem musical tonal, como, por exemplo, as

    apogiaturas e as outras notas meldicas2.

    Paralelamente, percebo tambm a frustrao de muitos msicos por no

    conseguirem improvisar e brincar com a msica como o fazem outros msicos to

    naturalmente. Identifico-me com eles, pois comigo aconteceu o mesmo, sendo essa

    inclusive uma das razes iniciais deste trabalho.

    H alguns anos, j depois de ter completado meus estudos formais na Europa

    e sendo um concertista internacional bastante respeitado, eu invejava a capacidade

    dos msicos populares, sobretudo do jazz e do choro, de improvisar melodias de

    uma forma to espontnea, coisa que eu no conseguia fazer. Isso era para mim

    motivo de desconforto e frustrao, que gerou um srio questionamento.

    Observando o aprendizado de jazzistas e chores, compreendi que sua

    requintada acuidade auditiva vem do fato de que grande parte de seu aprendizado

    feito tirando msicas de ouvido3, sendo que os jazzistas, alm desse aspecto,

    contam com uma vasta bibliografia que estimula a improvisao, fundamentada no

    estudo e no entendimento dos acordes. Incorporando esses elementos minha

    forma de estudar, consegui, para minha grande alegria, desenvolver-me

    2 Termo utilizado pelo Mo. Sergio Magnani para designar apogiaturas, retardos, antecipaes, bordaduras, etc. MAGNANI, 1989. 3 A expresso tirar de ouvido significa aprender a tocar uma msica apenas ouvindo-a, sem que seja necessrio ler a partitura.

  • 4

    consideravelmente. Hoje, muito embora ainda me considere um aprendiz, tenho sido

    convidado a atuar ao lado de alguns dos melhores chores e improvisadores

    brasileiros. Como a alegria ainda mais completa quando compartilhada e ciente do

    interesse cada vez maior dos jovens no aprendizado da improvisao, pensei em

    desenvolver um trabalho didtico que lhes pudesse ser til.

    Este trabalho, que agora toma forma, focaliza alguns aspectos que considero

    fundamentais da formao de um msico. Acredito que ser de grande valia para os

    estudantes que ingressam em nossas universidades e escolas de msica, podendo

    ser utilizado com muito proveito nos primeiros anos de faculdade ou mesmo num

    eventual curso de preparao para o vestibular.

    1.1 Por um pleno entendimento dos elementos da linguagem musical

    H alguns anos, por necessidade prpria e inspirado em meus alunos, venho

    criando alguns estudos que visam inteira compreenso dos diferentes elementos

    da linguagem musical: intervalos, acordes, notas meldicas, os diferentes modos e

    suas combinaes.

    Compostos em sua maioria por formas tradicionais brasileiras (choros, valsas,

    baies), esses estudos pretendem no somente ampliar a conscincia musical dos

    alunos, mas tambm estimular sua criatividade. Lidando com aspectos como

    percepo auditiva, memorizao, afinao, agilidade de raciocnio e leitura

    primeira vista4, objetivam tambm possibilitar ao instrumentista meldico o

    desenvolvimento do ouvido harmnico como consequncia do conhecimento dos

    acordes e da lgica de seus encadeamentos.

    A compreenso desse material e o desenvolvimento dessas habilidades

    possibilitam ao estudante um mergulho na linguagem musical e colaboram para o

    pleno entendimento e uma execuo aprimorada das obras musicais. Oferecem

    ferramentas e vocabulrio propiciatrios para sua autoexpresso, dando-lhe

    condies para criar melodias, frases e preldios, para improvisar e escrever sua

    prpria msica. Certamente lhe permitiro abordar com mais fundamentos, facilidade

    e natural alegria todo o repertrio musical que lhe ser proposto ao longo de seus

    estudos.

    4 Agora, em vez de nota por nota, pode-se ler acordes na horizontal.

  • 5

    Tendo em vista que o aprendizado fruto da observao e da

    experimentao e que a improvisao uma ferramenta essencial para a

    experimentao, acredito que a melhor forma de compreender e incorporar os

    elementos da linguagem musical no apenas ler e repetir ad infinitum o que j est

    escrito, de uma forma que tende a ser maante, mas estudar de forma criativa e

    prazerosa, individualmente e tambm em grupo. Improvisar e compor com o mesmo

    material, ou seja, estudar de uma maneira que no seja baseada somente na

    repetio, e sim na criao de contedo, o melhor caminho para atingir tal objetivo.

    Concordo plenamente com o clebre professor russo, o pianista Heinrich

    Neuhaus (1971, p.26), quando diz: La base la plus solide pour ne pas dire unique

    de la connaissance, surtout pour celui qui se destine lart, est celle que lon acquiert

    par ces propres moyens et par sa propre exprience 5.

    Dessa forma, postulo que possvel, aconselhvel e proveitoso desenvolver

    no instrumento no somente todos os aspectos da tcnica instrumental, como

    propem os mtodos tradicionais, mas ao mesmo tempo estudar de forma

    consciente alm de ler, compreender - os elementos da linguagem musical. Alis,

    o pleno entendimento desses elementos a base que possibilita o estudo da

    harmonia, do contraponto, da anlise e da composio.

    Penso tambm que possvel e extremamente benfico para o

    desenvolvimento humano e artstico do estudante contextualizar historicamente o

    desenvolvimento da linguagem musical e relacionar o estudo da msica com outras

    reas do conhecimento humano.

    1.2. Consideraes sobre o trabalho do intrprete.

    Em 1976, aps a concluso de meus estudos na cole Normale de Musique

    de Paris, participei de uma masterclass na Inglaterra sob a orientao de Sir James

    Galway, que viria a ser meu grande mestre. Toquei a Piece para flauta solo, de J.

    Ibert. J.Galway, que j me conhecia do ano anterior, ento me disse: Muito bem,

    Antonio, vejo que voc aprendeu todos os segredos e requintes da tcnica e da

    5 A base mais slida para no dizer a nica do conhecimento, sobretudo para o artista em formao, aquela adquirida por seus prprios meios e sua prpria experincia ( traduo nossa).

  • 6

    escola francesa de flauta. Mas isso no me interessa nem um pouco; o que quero

    que voc toque essa msica novamente, mas agora me diga quem voc .

    Essa aula afetou profundamente minha relao com a flauta e com a msica.

    Galway me lembrou o poeta portugus Fernando Pessoa (1972, p.164) em sua

    persona Alberto Caieiro: O poeta um fingidor. Finge to completamente que finge

    ser dor a dor que deveras sente.

    Percebi que, como o poeta e o ator, que interpretam pensamentos de

    diferentes pocas e estilos, o intrprete musical tambm pode contar a sua prpria

    verdade tocando a msica de outro compositor.

    O estudo de um instrumento musical pode abrir perspectivas imensas. Alm

    de nos colocar em contato com vrios sculos de produo musical, que inclui o

    pensamento de gnios como J. S. Bach, W.A.Mozart, L.V. Beethoven, H.Villa-Lobos

    e seus contemporneos pintores, escultores, arquitetos, escritores e filsofos,

    desvelando-nos a histria da humanidade, pode nos revelar muito sobre ns

    mesmos. ainda um exerccio de autoexpresso, pois por meio da msica

    conseguimos expressar aquilo que no possvel transmitir com palavras.

    A msica mexe com nossa memria afetiva e nos pe em contato com

    nossos sentimentos e fantasmas, nossas fantasias, regies profundas de nosso ser.

    A busca da beleza, do estilo e do equilbrio, ao mesmo tempo em que desenvolve

    nosso senso esttico e aprimora nossa capacidade de pensar, conduz-nos auto-

    observao, movimenta-nos em direo do autoconhecimento.

    O som pode ser a ponte para um estado de encantamento, para uma outra

    dimenso. Assim, a msica, curiosamente, ao mesmo tempo em que nos revela o

    mundo exterior, nos faz perscrutar nosso mundo interior. linguagem de grande

    poder, mgica, potica; pode nos tocar profundamente, transportar-nos para

    diferentes estados dalma, criando um silncio interno que nos permite ouvir nossas

    vozes interiores. Pode nos colocar em contato com conflitos internos e por vezes

    abrir comportas e libertar emoes represadas, tanto do intrprete como do ouvinte.

    Diz o pianista e maestro Daniel Baremboim (2009,p.125):

    O poder da msica reside em sua capacidade de se comunicar com todos os aspectos do ser humano o animal, o emocional, o intelectual e o espiritual. Com muita frequncia, pensamos que as questes pessoais, sociais e polticas so independentes, sem influir umas nas outras. Pela msica, aprendemos que essa uma impossibilidade objetiva; simplesmente

  • 7

    no existem elementos independentes. O pensamento lgico e as emoes intuitivas devem estar constantemente unidos. A msica nos ensina, em resumo, que tudo est ligado.

    O som que sai da flauta , por assim dizer, um espelho do ser interior do

    flautista. O instrumentista trabalha, burila o som de seu instrumento como um

    escultor, diuturnamente, anos a fio, durante toda a vida, como quem trabalha a

    prpria alma. Arteso e artfice, molda-o de forma a ser capaz de adapt-lo a cada

    obra, a cada formao instrumental, e tambm de pronunciar adequadamente cada

    nota, cada slaba, cada frase e cada perodo, dando sentido e vida ao texto musical

    para torn-lo inteligvel e capaz de atingir o corao e a mente do ouvinte.

    Isso pode ser reafirmado no pensamento do lder sufi, Vilayat Inayat Khan:

    Trabalhe com o som at ficar surpreso pelo fato de o estar produzindo e surpreso

    pelo fato de ser exatamente voc o instrumento atravs do qual o divino flautista

    forma seu sons. (KHAN apud BERENDT,1983, p.47).

    Essa sensao, difcil de ser descrita em palavras, maravilhosa e rara, mas

    acontece. como se no estivssemos tocando, mas sendo tocados ou sendo a

    prpria msica.

    interessante observar o fato de que em ingls se diz to practise, praticar,

    para se referir ao estudo do instrumento musical. Em portugus, diz-se estudar; em

    francs, travailler, trabalhar. To play un instrument - jouer un instrument tocar um

    instrumento. Os verbos play e jouer tambm podem significar jogar, brincar.

    Refletir sobre os significados dessas palavras pode ampliar nossa viso do

    que pode ser o estudo de um instrumento musical, mostrando-nos diferentes

    enfoques a respeito da mesma prtica. Dependendo de nossa atitude, ela pode ser

    agradvel ou maante, inspiradora ou montona, criativa ou repetitiva, mas, parte

    fundamental e indispensvel ao desenvolvimento do instrumentista, deve ser diria e

    persistente.

    Podemos fazer um paralelo entre a prtica do intrprete e aquela do yogue,

    como diz o mestre Kuut Hume:

    (...) Teus exerccios, pratica-os diariamente com a seriedade de um ritual e com a inflexibilidade e o zelo de um genuno artista interessado em produzir uma obra genial. A obra genial s tu mesmo, e o artista, tambm. (apud HERMGENES, 2008, p.7).

  • 8

    1.2.1 O discurso musical, msica e sintaxe - tonalismo

    O discurso musical construdo numa lgica que lhe d equilbrio formal e

    esttico. Porm, nem a msica de gnios como J.S. Bach, W.A.Mozart ou L.V.

    Beethoven resiste a um mau intrprete, que pode deform-la, fazendo com que ela

    perca a essncia e o interesse. A partitura musical que vai ser interpretada,

    traduzida, um texto sem palavras e, portanto, de contedo subjetivo, cujas

    sutilezas e ambiguidades precisam ser muito bem compreendidas para serem bem

    enunciadas. Essa compreenso dever do intrprete, que atua como um orador, um

    contador de histrias; a profundidade e a inteligncia de sua interpretao

    dependem de seu conhecimento da linguagem musical utilizada pelo compositor.

    A esse respeito, diz o professor Sergio Magnani (MAGNANI,1989,p.75):

    [...] Como toda linguagem, a msica possui uma morfologia, uma

    sintaxe e uma fraseologia. Embora no seja indispensvel o

    conhecimento da linguagem para a captao da mensagem esttica

    musical, pois a msica comunica-se atravs do ritmo das suas

    tenses, tal conhecimento amplia a compreenso das informaes

    estticas.

    Uma grande revoluo na histria da linguagem musical foi o nascimento do

    sistema tonal. Situando-o historicamente, pode-se dizer que a transio gradual do

    modalismo para o tonalismo aconteceu ao mesmo tempo em que ocorreu a

    transformao do sistema feudal para capitalista. Consolidou-se paulatinamente na

    Europa ao longo dos sculos XVI, XVII e XVIII.

    Segundo Wisnik (1989.p.118), da renascena para o barroco a msica no se

    contentou em ser um cdigo de carter polifnico, mas mostrou-se uma verdadeira

    linguagem dos afetos, um discurso das emoes. A msica de J.S.Bach sintetiza o

    cdigo musical, histrica e estruturalmente. Em suas obras convivem polifonia e

    linha acompanhada, resoluo horizontal e vertical das tenses sonoras, as duas

    dimenses investidas num mesmo projeto discursivo. Isso s foi possvel graas ao

    advento e ao acabamento do sistema tonal praticado com todo o luxo polifnico que

  • 9

    remonta s suas origens, isto , quele longo processo por meio do qual o tonalismo

    foi desentranhado dos desdobramentos do modalismo medieval.

    Ao comparar a sintaxe das linguagens faladas e escritas com aquela da

    linguagem musical tonal, Magnani (1989, p. 93) diz que o acorde de tnica tem uma

    funo de substantivo, equivalente do sujeito, atuando como um centro propulsor

    de onde partem as aes. Essas aes, que desencadeiam um caminho de tenses

    e repousos, irradiam-se para os outros acordes, cuja hierarquia funcional pode ser

    comparada dos verbos e demais complementos da linguagem. Dessa forma, no

    sistema tonal, cada acorde, que em si um puro fonema, adquire valor sinttico

    dentro da frase, representando uma etapa no itinerrio da tenso.

    Ainda a respeito do tonalismo, diz Jos Miguel Wisnik (1989, p.105 e 107):

    Na segunda metade do sculo XVIII e comeo do sculo XIX, poca do estilo clssico que vai de Haydn a Beethoven, o tonalismo vigora em seu ponto de mximo equilbrio balanceado (no contexto da msica erudita), passando em seguida por uma espcie de saturao e adensamento, que o levam desagregao afirmada programaticamente nas primeiras dcadas do sculo XX. Nesse arco histrico, que inclui a afirmao e a negao do sistema, a linguagem musical contracanta, maneira polifnica, com aquilo que se costuma entender, em seu sentido mais amplo, por modernidade. [...] A grande histria da tonalidade, , assim, a histria da modernidade em suas duas acentuaes: a constituio de uma linguagem capaz de representar o mundo atravs da profundidade e do movimento, da perspectiva e da trama dialtica, assim como a conscincia crtica que questiona os fundamentos dessa mesma linguagem e que pe em cheque a representao que ela constri e seus expedientes. Esse movimento pode ser acompanhado ao longo da sua brilhante histria, que , sem dvida, um dos pontos mais altos daquilo que chamamos Ocidente.

  • 10

    1.2.2 A Msica e sua relao com outras reas do conhecimento humano

    Nos anos 70, vivendo em Paris, assisti no auditrio da Maison de la Radio a

    uma srie de aulas pblicas ministradas pelo Prof. Franz Brggen, lendrio flautista

    holands, um dos primeiros mestres da interpretao historicamente orientada. Alm

    de mostrar seu profundo conhecimento da linguagem e dos diferentes estilos do

    perodo barroco, nessas aulas ele enfatizava a importncia da cultura geral e de

    uma vida rica em experincias para o trabalho de um msico. Dava a esses

    aspectos tanta relevncia quanto necessidade de vrias horas de estudo dirio do

    instrumento. A pedagoga Violeta de Gainza costuma dizer que "a msica s vale a

    pena se for uma janela para a vida".

    O universo musical pode ser apresentado ao aluno de diferentes maneiras.

    Pode ser abordado de forma essencialmente tcnica ou ento de modo a estimular a

    curiosidade e a reflexo sobre diversos aspectos da existncia, como a histria do

    homem e das leis que regem o universo, de forma a ampliar nosso entendimento

    sobre importantes questes atuais e da nossa vida cotidiana. A relao da Msica

    com outras artes e reas do conhecimento e da especulao humana, como

    Matemtica, Arquitetura, Fsica, Medicina, Religio, Astronomia, Geografia, Dana,

    Psicologia, Literatura, Filosofia, Meditao, Histria, Sociologia e Poltica, abre

    amplos horizontes. Por isso mesmo seria muito benfico que o estudo da msica

    fosse incorporado ao currculo escolar desde o ensino bsico.

    Ao longo da histria vrios povos vm estudando as propriedades do som.

    Como lembra Wisnik (op.cit, p.55 e 56) - e a podemos atentar para o fato de o

    mundo grego estar na base de toda a civilizao do ocidente -, a descoberta por

    Pitgoras da ordem numrica inerente aos intervalos musicais teve largas

    consequncias para a edificao da metafsica ocidental. A analogia entre a

    sensao do som e sua numerologia implcita contribuiu para a formulao de um

    universo constitudo de esferas analgicas, de escalas de correspondncia em todas

    as ordens, que se estende para as relaes entre som, nmeros e astros. Da veio a

    ideia fascinante de uma msica das esferas, ou seja, a possibilidade de que as

    relaes entre os astros seriam correspondentes escala musical e que o cosmos

    tocaria msica inteligvel, mesmo que fora da nossa faixa de escuta.

    O chamado quadrivium medieval europeu manteve as disciplinas j citadas

    por Plato (Aritmtica, Geometria, Msica e Astrologia) como sendo bsicas para o

  • 11

    conhecimento do universo. Nessa e em outras pocas - no somente na Europa,

    mas tambm no Oriente -, conhecia-se a importncia dos valores transmitidos pela

    msica, considerada assunto religioso e moral. Era, portanto, supervisionada pelo

    Estado.

    Hoje, em diversos pases do ocidente, inclusive no Brasil, sua difuso nas

    rdios, televises e lojas controlada e determinada por algumas poucas

    corporaes multinacionais. Ser isso uma evidncia de que essas corporaes

    substituram os antigos Estados e, apagando a memria musical desses pases,

    esto impondo uma nova cultura?

    Em relao s transformaes dos costumes e valores no Brasil,

    interessante verificar que o maxixe era considerado imoral, sendo execrado pela

    sociedade carioca no comeo do sculo XX e, hoje, no mesmo Rio de Janeiro,

    predomina o baile Funk, cuja msica largamente difundida pelas rdios e TVs.

    A arte parte importante da histria; de certa forma a explica e tambm

    explicada por ela. Por isso, revelador observar a contemporaneidade de W.A.Mozart e J. Haydn com a revoluo francesa, influenciada pelos ideais do

    iluminismo e da independncia americana (1776). igualmente interessante atentar

    para a contemporaneidade de L.V.Beethoven com a poltica expansionista do

    Imprio Francs sob o comando de Napoleo Bonaparte. Criadores do sculo XX,

    como Villa-Lobos, Bela Bartok, Stravinsky, Oscar Niemeyer e Pablo Picasso viveram

    as duas grandes guerras mundiais, a guerra civil espanhola e a revoluo socialista

    sovitica; isso certamente influenciou o trabalho deles. A Geografia e a Histria nos

    permitem situar e perceber a inter-relao entre a msica de S. Prokofieff, o cinema

    de S.Eisentein e a poesia de V.Maiakovsky.

    Da mesma forma, o conhecimento do movimento modernista, especialmente

    do pensamento do escritor Mario de Andrade, fornece fundamentos para o trabalho

    de um intrprete da msica de Camargo Guarnieri e das obras de seus

    contemporneos pintores, msicos e escritores.

    Perceber a contemporaneidade do momento da criao do Conservatrio de

    Paris (1795) com a Revoluo Industrial e conhecer as idias vigentes nesse

    momento histrico favorece, por exemplo, o entendimento da pedagogia de seus

    professores, cuja influncia se espalhou por tantos pases, inclusive o Brasil, onde

    se faz presente ainda hoje.

  • 12

    Finalizando, eu diria que todos esses e ainda outros assuntos e reflexes

    podem e devem mesmo fazer parte do universo do msico, do professor e do

    intrprete, dando-lhes fundamentos para seus ofcios, uma viso histrica e um olhar

    amplo e crtico do mundo em que vivem e trabalham.

    Mas isso nem sempre acontece.

    Dependendo da formao de seus professores, dos mtodos e das escolas

    em que estudou, um msico pode perfeitamente ser competente em seu ofcio e at

    mesmo um grande especialista, j que foi bem treinado para isso, mas ainda assim

    um msico limitado, preparado para somente um tipo de trabalho, e uma pessoa de

    horizontes estreitos.

    Obviamente o contato pessoal com um professor decisivo e pode tanto

    ampliar como embotar a viso de mundo do aluno, mas, de qualquer forma, um

    mtodo escrito tambm pode despertar nele a curiosidade, o interesse e a

    capacidade para perceber o inter-relacionamento entre os diferentes assuntos.

    Como o aprendizado de um instrumento musical exige uma disciplina de

    muitas horas de prtica diria e costuma ter incio ainda na infncia ou na juventude,

    perodos decisivos na formao de um ser humano, importantssimo que essa

    pessoa em formao possa desenvolver ao mximo a criatividade e que tambm

    seja estimulada a vislumbrar um horizonte mais amplo possvel.

    Nesse contexto se insere este trabalho, cujo objetivo contribuir para a

    formao de um msico criativo, capaz de se expressar plenamente, preparado para

    atuar no Brasil e em qualquer parte do mundo. De um artista que se perceba como

    parte de um grande todo, ciente da importncia de buscar fundamentos histricos e

    de cultura geral que lhe permitam analisar criticamente o momento presente para

    melhor se posicionar e trabalhar como agente da histria na direo de um futuro de

    acordo com seus ideais.

  • 13

    2. CONSIDERAES SOBRE O ENSINO ATUAL DOS INSTRUMENTOS MELDICOS NO BRASIL

    Tecer um amplo panorama do ensino da Msica no Brasil transcenderia os

    objetivos deste trabalho. Assim, tratarei somente do ensino dos instrumentos

    meldicos, tendo como referncia minha formao, a de meus pares e a dos alunos

    com quem tenho trabalhado.

    2.1 Os anos de formao: a Msica na vida familiar em dilogo com a escola e a sociedade

    O artista no um tipo especial de pessoa, mas toda pessoa um tipo especial de artista.

    Dourado,1998, p.5.

    Os primeiros contatos com a msica, e esse um dado fundamental no

    processo de musicalizao, podem acontecer na famlia, por meio do rdio, da

    televiso, da Internet, da escola ou dos integrantes da comunidade a que pertence a

    criana.

    A concepo de formao atrelada idia de cidadania cultural, ou seja, do

    direito de cada criana e de cada indivduo ao acervo cultural acumulado na

    sociedade requisito para a formao humana plena. Infelizmente, no Brasil esse

    um desafio em todas as reas da cultura e da educao, entre elas a Msica.

    No final dos anos 60, a Msica, juntamente com outras disciplinas, como o

    latim e o francs, foi retirada do currculo das escolas de Ensino Fundamental e de

    Ensino Mdio. Assim, para compreender a formao e a referncia musical da

    maioria da populao brasileira nos dias de hoje - incluindo-se a cidados de todas

    as classes sociais, inclusive dirigentes polticos, elite econmica, professores de

    todos os nveis e especificamente nossos futuros alunos - necessrio atentar para

    a programao musical das emissoras de rdio e TV.

    H algumas dcadas, essa programao ainda era definida por diretores

    artsticos e com critrios artsticos. Atualmente, ela determinada pelas grandes

    gravadoras e com critrios exclusivamente comerciais. As rdios so pagas para

    tocar as msicas que essas gravadoras determinam - prtica que tem o nome de

    jabacul ou jab. Como conseqncia, ouve-se, na massacrante maioria das

  • 14

    rdios e TVs brasileiras, quase que to somente a chamada msica de consumo,

    descartvel e sem valor artstico. A msica inteligente, msica como arte, seja ela

    erudita ou popular, brasileira ou de outra origem, escutada apenas em rdios

    universitrias ou estatais, como a Cultura FM de So Paulo e a MEC do Rio de

    Janeiro.

    Apesar de atualmente existirem iniciativas de criminalizao do jab, ele

    ainda prevalece e pode ser entendido como uma verdadeira tentativa de genocdio

    cultural, que gera o empobrecimento, fecha horizontes, tira, rouba das novas

    geraes brasileiras o que lhe de direito: sua memria e seu patrimnio cultural.

    Ele interrompe, corta o elo de transmisso da cultura.

    Consequentemente, as novas geraes no conhecem nem a msica de seus

    ancestrais nascidos no sculo XIX, como Henrique Alves de Mesquita, Ernesto

    Nazareth, Henrique Oswald, Carlos Gomes e Heitor Villa-Lobos, nem a de seus

    contemporneos, como Hermeto Pascoal, Guinga, Egberto Gismonti, Aylton

    Escobar, Ronaldo Miranda ou Fernando Iazzetta, que pensam a msica como

    expresso inteligente do esprito humano. Isso certamente significa uma perda

    enorme, impossvel de avaliar.

    Essa situao se insere num contexto mundial, no qual necessria, urgente

    e possvel uma mudana de paradigmas para que seja vivel a sobrevivncia da

    espcie humana. O planeta continua dominado pelos interesses econmicos de uma

    minoria e por uma ideologia em que no h espao para valores de ordem moral; o

    que importa o lucro: tudo se vende, tudo se compra. Na lgica monetria do

    mercado, tudo passa a ser tratado como mercadoria, inclusive a msica (como

    vimos), os medicamentos e a educao. Como consequncia desse quadro,

    multiplicam-se aes destruidoras do meio ambiente, que inclui indefesas

    populaes locais e povos da floresta. No por acaso a violncia assume nveis

    assustadores, sobretudo entre os jovens.

    Uma mudana nesse cenrio somente seria possvel com uma j prevista

    catstrofe planetria ou com mudanas drsticas na educao.

    J h algumas dcadas praticamente abandonada pelo Estado, a educao

    pblica (responsvel pela formao da grande maioria de nossas crianas e

    adolescentes) em pases como o Brasil, atingiu um nvel lamentvel. Na formao de

    nossas crianas (e de seus jovens pais), a escola e as antigas brincadeiras de roda

    foram substitudas pela televiso, com as consequncias que isso representa. Para

  • 15

    se avaliar minimamente o que isso significa, necessrio atentar para o fato de que

    uma criana brasileira passa em mdia 4 horas, 50 minutos e 11 segundos por dia

    assistindo programao televisiva6 e que o programa de maior audincia da TV

    brasileira o famigerado Big Brother, assistido por pais e filhos.

    Se existe uma preocupao com a educao da parte dos detentores do

    poder econmico, pelo fato de que os trabalhadores precisam estar minimamente

    qualificados e treinados para produzirem mais e melhor, gerando mais lucro para

    suas empresas. Nada muito diferente do pensamento escravagista que aportou em

    nossas terras h mais de quinhentos anos.

    2.2 Aspectos do ensino formal de msica e do instrumento propriamente dito

    O estudo de um instrumento, que geralmente acontece numa escola de

    Msica, pode tambm principiar numa famlia de pais msicos, na banda da cidade

    ou na igreja. Normalmente, em qualquer dessas instncias, ele feito por meio de

    um livro, intitulado Mtodo Completo para Flauta (ou outro instrumento), aquele no

    qual o professor estudou e que foi geralmente escrito por algum autor francs,

    italiano ou alemo. Em sua maioria, essas publicaes foram editadas entre a

    segunda metade do sculo XIX e a primeira metade do sculo XX.

    Alm de revisitar os vrios mtodos e dezenas de cadernos de estudos para

    flauta que j conhecia, pesquisei para este trabalho publicaes semelhantes7

    concebidas para obo, clarineta, trompete, trompa, violino e violoncelo. Algumas das

    mais consagradas e utilizadas pelos professores da maioria de nossas escolas.

    Existem muitas semelhanas entre esses mtodos e estudos, e a maioria parece

    seguir um mesmo modelo.

    Alguns desses trabalhos so valiosos, como os de Hyacinthe Klos (clarineta)

    - Mthode Complete pour la Clarinette, (Ed. Musicales Alphonse Leduc, Paris

    1845); os de Marcel Moyse (flauta) - trabalhos didticos compostos entre os anos de

    1921 e 1935 e agrupados numa srie de nome Enseignement Complet de la Flute e

    publicados por Editions Leduc, Paris; e o de Oscar Franz (trompa) - Complete

    Theoretical and Practical Horn Method (1880). 6 Painel Nacional de Televisores, IBOPE 2007. 7 A relao desss publicaes consta do anexo I.

  • 16

    Esses mestres produziram trabalhos amplos e profundos que fundamentaram

    a formao de excelentes msicos. Quase todos abordam os diferentes aspectos da

    tcnica instrumental, como, no caso dos instrumentos de sopro, embocadura,

    respirao, emisso de som, articulao, golpes de lngua, flexibilidade dos lbios,

    variaes de dinmica, sonoridade, agilidade de leitura e de dedos, resistncia,

    diferentes aspectos mecnicos e atributos fsicos, todos fundamentais na formao

    de um bom instrumentista.

    Porm, apesar de grandes virtudes, mesmo os melhores desses mtodos

    apresentam, a meu ver, lacunas importantes. Essa observao vale tambm para

    estudos elaborados por autores da atualidade, como o de Peter Lucas Graf8.

    A primeira dessas lacunas a falta de estmulo criatividade. No h espao

    para a experimentao, para a improvisao, para a pesquisa de outras formas de

    lidar com o material a ser estudado. Prope-se uma forma de estudar engessada,

    cristalizada, baseada na repetio.

    A segunda lacuna diz respeito ao estudo dos acordes, que raramente

    ultrapassa o nvel bsico e que, da forma como proposto, no nos leva a um

    entendimento da estrutura desses elementos da linguagem musical. Ser que os

    autores desses mtodos acreditam que esse estudo deva ocorrer somente nas aulas

    especficas de harmonia?

    A busca de uma explicao histrica para essas lacunas pode nos levar a

    perceber que existe uma interligao entre elas.

    8 GRAF, P. Check-Up: 20 estudos bsicos para flautistas. Mainz, Alemanha: Schott, 2001. Peter

    Lucas Graff, excelente flautista, foi durante muitos anos professor no Conservatrio de Basilia, Sua.

  • 17

    2.2.1 Um olhar histrico mecanicismo x criatividade

    Tudo o que no se renova, que no contribui para a inovao do pensar, da sensibilidade e da conscincia, torna-se contraproducente9 (2001,p.46).

    H.J. Koellreutter

    Tudo indica que a pedagogia dos autores dos mtodos que vm sendo

    utilizados em nossas escolas fruto da mentalidade mecanicista gerada pela

    revoluo industrial. Como verificaremos, essa concepo de educao musical

    representa uma ruptura em relao quela existente anteriormente, sendo

    decorrncia de uma nova forma de entender o mundo. A Revoluo Francesa de

    1789 e a mecanizao crescente e acelerada da Europa ocidental no sculo XIX

    geraram uma nova estrutura social e um novo modo de ver o mundo que se

    estendeu a todas as reas do conhecimento humano. O universo e tambm o

    prprio homem passaram a ser vistos como mquinas. Como consequncia dessa

    viso, a prtica dos msicos tambm foi afetada.

    O exerccio da criatividade e o conhecimento dos acordes e de outros

    elementos da linguagem musical - fundamentais para o trabalho de compositores e

    regentes -, que faziam parte da formao de qualquer msico instrumentista no

    sculo XVIII, tornaram-se desnecessrios para o ofcio do instrumentista dos novos

    tempos, notadamente aquele que tocaria em uma orquestra e que seria um

    especialista, responsvel apenas por um aspecto da produo. Numa linha de

    montagem da msica, sua funo equivaleria de um tcnico ou de um

    trabalhador braal.

    Nos mtodos do sculo XIX (utilizados em nossas escolas) surgem os

    chamados exerccios de mecanismo e os exerccios dirios exercices

    journaliers, daily exercices, tglishe bngen que trazem passagens padronizadas

    para serem repetidas a cada dia. Esses exerccios, que continuaram presentes nos

    mtodos editados no sculo XX e, no por acaso, so algumas vezes chamados de

    exerccios de automatismo, ainda constituem a base da construo da tcnica do

    instrumentista.

    9 BRITO, T. A. de. Koellreutter educador: O humano como objetivo da educao musical. So Paulo: Peirpolis, 2001.

  • 18

    A respeito dessa transformao, na qual a criatividade que se traduzia na

    composio de preldios foi substituda pelos chamados exerccios de mecanismo,

    diz a Profa. Laura Rnai (2008, p.111):

    Num sculo que descobre a industrializao, se encanta com as mquinas e prepara o surgimento das linhas de montagem, parece natural imaginar que no estudo do mecanismo pode-se encontrar a frmula mgica da fabricao de um msico. Assim como o exerccio fsico regular aprimora o atleta, a repetio de passagens padro que ir aprimorar o msico.

    Sobre os chamados estudos ou exerccios de mecanismo, a autora Nancy

    Toff, (1985, p.116, p.127) tambm comenta:

    claro que voc deve tocar os exerccios com articulaes compostas ou misturas de ligaduras e ataques. Variar a articulao tambm ajuda a aliviar a monotonia desses treinos importantssimos, mas reconhecidamente no muito musicais. (...) Lembre-se de que o estudo do msico no l muito diferente daquele do atleta: seu objetivo desenvolver habilidades musculares e agilidade. , antes de mais nada, um processo de aprendizado fsico e, convenhamos, no necessariamente um desafio intelectual. Em seus estgios bsicos, o estudo no um processo criativo, mas o estudo lhe fornecer as ferramentas para ser criativo.

    Concordo com Toff quando ela diz que a prtica do msico tem um lado

    semelhante ao do treinamento do atleta: dirio e de treinamento muscular. Porm,

    discordo quando ela diz que o estudo no necessariamente um desafio intelectual.

    Os ditos exerccios so elaborados sobre escalas, intervalos e acordes, elementos

    da linguagem musical que, alm de dominados pelos dedos do aluno, poderiam

    perfeitamente ser compreendidos por seu intelecto e tocados de forma mais musical

    e menos mecnica. Isso aconteceria se fossem explicados e trabalhados de uma

    forma criativa, mais artstica, que quebrasse a monotonia e que estimulasse um

    pouco mais o uso do raciocnio e da sensibilidade.

    A respeito da criatividade, diz o compositor Ernst Widmer (Dourado, 1998,

    prefcio):

    Potencialidade inata, a criatividade frequentemente incompreendida, esquecida e at oprimida no processo educacional. (...) Muitos educadores no sabem como proceder, seja por terem

  • 19

    desaprendido a serem criativos, seja por no encontrarem meios didticos apropriados.

    Os exerccios de mecanismo, que surgem justamente no momento em que se

    abandona a prtica da improvisao e composio de preldios e o conhecimento

    da harmonia (necessrio para a improvisao), visam principalmente desenvolver a

    agilidade de dedos e de leitura, no o entendimento da linguagem, a conscincia

    auditiva e a criatividade.

    Citando Rnai (2008, p.111):

    Parece-nos at mesmo desnecessrio afirmar que estudos repetitivos de mecnica so imprescindveis a uma boa formao musical. Por isso, uma surpresa constatar que eles no faziam parte da rotina do estudante de msica at o meio do sculo XIX. Nenhum mtodo barroco sugere, de modo inequvoco, que se empreenda esse tipo de trabalho.

    A respeito do aprendizado do msico do perodo barroco, indispensvel

    citar a publicao LArt de Preluder sur la Flute Traversiere, escrita em 1707 por

    Jacques-Martin Hotteterre [le Romain], na qual o flautista e compositor francs

    apresenta princpios de como compor preldios que devem ser realizados na hora,

    sem qualquer preparo prvio - os chamados preludes de caprice. Alis, improvisar

    um preldio10 antes da execuo de uma pea, de forma a se acostumar com a

    tonalidade e o esprito da msica a ser tocada, era uma prtica comum no sculo

    XVIII e que foi pouco a pouco se perdendo.

    Sobre essa questo, Rnai diz que no sculo XVIII o hbito de preludiar era

    to difundido que comear uma pea sem um preldio seria considerado estranho.

    Um flautista era julgado e avaliado por sua capacidade de preludiar com

    criatividade (op.cit, p.229). Autores daquela poca, como Vanderhagen, por

    exemplo, recomendavam ao aluno minimamente tocar escalas e arpejos, caso

    encontrasse dificuldade para inventar um preldio, pois isso ainda seria melhor do

    que nada.

    10 Sero esses preldios uma herana dos Alap orientais, que so praticamente obrigatrios na msica na India e no mundo rabe, em que se apresenta e se brinca com os elementos que faro parte da pea "principal" : o maqam, ou o raga?

  • 20

    No final do sculo XVIII os compositores passaram a escrever todas as notas,

    inclusive as dos instrumentos de teclados (cravo ou pianoforte), que antes se

    incumbiam da realizao da harmonia indicada por um baixo cifrado.

    Assim, cada vez menos se exigia do msico um conhecimento mais amplo de

    msica e grande parte dos msicos limitou-se a ler exatamente a partitura, deixando

    de desenvolver outros aspectos do pensar e fazer msica.

    Certamente as mudanas ocorridas no ensino da Msica foram influenciadas

    pelas mudanas da prtica da msica nesse momento da histria europia.

    Segundo o Prof. Sergio Magnani (op.cit, p.102), no final do sculo XVIII, com

    a ascenso da burguesia ao poder, antes dividido entre o clero e a nobreza, a

    msica deixou de ter um carter palaciano-religioso para se tornar um bem de

    consumo de domnio pblico. As editoras difundiam as obras, e os compositores

    sabiam que poderiam ser interpretados por pessoas sem vivncia alguma do

    ambiente em que as msicas haviam sido compostas. Da a preocupao com a

    exatido grfica.

    Expressando seu ponto de vista em relao s consequncias de uma forma

    de estudar que privilegia os repetitivos estudos de mecanismo, Rnai diz (p.cit.

    p.128):

    O aluno se transforma numa mera mquina que reproduz gestos quase que ininterruptamente, mas que nem mesmo precisa realizar as transposies necessrias a cada nova passagem. Isso se coaduna com a tendncia cada vez mais acentuada de aumentar a importncia do compositor em detrimento da do intrprete. A este cabe obedecer s instrues escritas, sem protestar nem pensar. Ao compositor dada a certeza de ter no intrprete uma azeitada mquina de tocar, capaz de executar qualquer passagem, por mais difcil que esta seja.

    Eu acrescentaria que essa mquina de tocar, que no pensa nem protesta

    (sic), funcionaria, sobretudo, a partir de um reflexo imediato da leitura da partitura.

    No difcil perceber que os mtodos utilizados em nossas escolas,

    imbudos de uma concepo mecanicista, visam mais ao treinamento de mo de

    obra especializada do que formao integral do indivduo e ao pleno

    desenvolvimento de seu potencial humano e artstico, como seria de se desejar.

    importante observar, porm, que as formas de aprendizado meramente

    reprodutivas no so uma inveno do mundo moderno. Pode-se constatar sua

  • 21

    existncia para os msicos de orquestra Gagaku, no Japo; num Gamelan, de Bali;

    ou mesmo nos mosteiros da Europa Medieval, nos quais o monge demorava cerca

    de 9 anos para decorar o bsico do repertrio eclesistico.

    Da mesma maneira, necessrio ressaltar que a repetio necessria, pois

    sem ela o aprendizado de um instrumento musical no se realiza. Mas ela deve ser

    criativa, a exemplo do que acontece na natureza, onde todo dia o sol se levanta,

    toda tarde ele se pe, mas cada dia nico, diferente do anterior.

    2.2.2 Ausncia da msica brasileira

    A msica popular brasileira a mais completa, mais totalmente nacional, mais forte

    criao de nossa raa at agora.

    Mario de Andrade - Ensaio Sobre Msica Brasileira

    Concluindo um diagnstico sobre o ensino atual de um instrumento meldico

    no Brasil, observo que existe uma terceira e importante lacuna na formao de

    nossos estudantes: a nfima presena da msica brasileira, clssica e popular.

    O fato que a maioria, se no a totalidade, dos nossos professores baseia

    seu ensino em mtodos europeus. Provavelmente pelo seu desconhecimento da

    msica brasileira, que gera o preconceito, tendem a discrimin-la e subestim-la,

    sobretudo a tradicional, folclrica e popular. No percebem sua riqueza e a enorme

    importncia que ela pode ter num projeto pedaggico e de construo de uma

    identidade.

    curioso observar que nossos professores, vivendo num pas de cultura

    musical riqussima e forte, possam desprez-la. Ser isso reflexo de uma

    mentalidade colonizada, que considera a cultura da metrpole superior do pas

    colonizado, o chamado complexo de vira-lata detectado pelo dramaturgo Nelson

    Rodrigues?

    Naturalmente esse descaso pela msica brasileira e a falta de percepo de

    sua riqueza tm tambm uma explicao histrica.

    Nesses 500 anos de histria do Brasil, nossa cultura popular sempre foi

    menosprezada, quando no reprimida. A grande maioria da populao brasileira

    sempre foi explorada, escravizada, manipulada, utilizada como massa de manobra

    pelos poucos detentores do poder econmico.

  • 22

    Os cultos religiosos afro-brasileiros, com sua grande complexidade e riqueza

    rtmica, assim como a capoeira, hoje presente em quase duzentos pases e

    considerada a arte marcial da paz, foram, na maior parte da nossa histria,

    manifestaes culturais proibidas por lei e reprimidas pela polcia.

    Manifestaes musicais populares, como o jongo, as danas de umbigada, o

    lundu, os maracatus e congados tambm sempre foram discriminados e malvistos

    pela elite econmica e letrada. Hoje tambm o so, inclusive pelas novas seitas

    pentecostais, que esto se proliferando rapidamente e causando o desaparecimento

    dos tradicionais grupos de reisados, congados, maracatus e folias, chamados por

    elas de macumba.

    Conforme presenciei no bairro do Rio Escuro, municpio de Ubatuba, o

    cancioneiro tradicional (Noel Rosa, Luiz Gonzaga, Ari Barroso, Dorival Caymmi,

    Pixinguinha e muitos outros) vem sendo substitudo por hinos de esttica pop

    compostos pelos novos pastores e gravados em CDs, vendidos facilmente aos fiis.

    Em Recife, conheci o famoso mestre Salustiano, do Maracatu Piaba de

    Ouro, que, convertido a uma dessas novas seitas, deixou de exercer seu cargo.

    Felizmente o retomou depois de um tempo. Tem-se a impresso de que uma

    verdadeira lavagem cerebral est ocorrendo, visando acabar com as referncias

    culturais brasileiras, como se j no bastasse a citada programao musical de

    nossas emissoras de rdio e TV.

    O choro, nascido no Rio de Janeiro em meados do sculo XIX, raiz da msica

    popular urbana do Brasil, msica instrumental da melhor qualidade e gnero hoje

    cultuado em diversos pases, produziu, como j dissemos, alguns dos mestres

    fundamentais da identidade musical brasileira. Alis, vrios deles flautistas e

    compositores, como Joaquim Callado Jr., Pattpio Silva, Pixinguinha, Benedito

    Lacerda, Joo Dias Carrasqueira e Altamiro Carrilho, entre outros. No entanto, o

    choro tambm era visto, e ainda hoje considerado por alguns, como msica

    menor, provavelmente por ser oriunda das camadas populares.

    O samba, atualmente tido como a mais autntica manifestao musical

    brasileira, sempre foi e ainda vtima de preconceito.

    Por extenso, o prprio msico popular tambm era e malvisto por muitos.

    Joo Dias Carrasqueira, um dos maiores mestres da flauta no Brasil, nascido em

    1908, dizia que, em sua juventude, quem fosse visto carregando um violo era tido

    por malandro, quase um malfeitor, tal era o preconceito. Isso explica por que o

  • 23

    violo, talvez o mais popular dos instrumentos musicais no Brasil, demorou a ser

    incorporado ao rol dos instrumentos nobres, mesmo na prpria USP. O mesmo

    aconteceu com a viola caipira, recm-admitida na universidade.

    Felizmente no Brasil, diferentemente do que aconteceu nos Estados Unidos,

    no se chegou a destruir os tambores tocados pelos africanos e seus descendentes,

    o que teria representado uma perda incomensurvel para a riqueza e o

    desenvolvimento da nossa msica. Mesmo assim, os cultos religiosos afro-

    brasileiros, com seus tambores e sua msica sagrada, s deixaram de ser proibidos

    e reprimidos pela polcia em meados do sculo XX. Diga-se, a bem da verdade, que

    at hoje so muitas vezes discriminados e vistos como instrumentos de feitiaria.

    Esses dados merecem uma reflexo, cujo aprofundamento no caberia neste

    trabalho, mas importante ressaltar que, devido a esses fatores, muitos dos

    professores, que tiveram uma formao acadmica, conhecem muito pouco da

    msica brasileira. Assim, preparam seus alunos para tocar a msica de

    compositores europeus, mas no para tocar a msica de autores brasileiros.

    importante lembrar que hoje j existem excelentes publicaes sobre a

    msica popular brasileira, vrias delas com finalidades didticas.

    2.3 Anlise do predomnio da viso sobre a audio e os impactos da especializao

    Refletindo sobre a situao da educao musical, possvel perceber dois

    aspectos que certamente a influenciam e que esto presentes na cultura globalizada

    da atualidade como um todo: o predomnio da viso sobre a audio e a existncia

    de uma pedagogia voltada para a especializao. Esta no visa formao integral

    de seres humanos, isto , uma formao com ampla viso de mundo, no qual os

    alunos possam se inserir como protagonistas, criadores e transformadores; antes,

    objetiva o treinamento de mo de obra especializada para atender s necessidades

    do mercado.

  • 24

    2.3.1 Predomnio da viso sobre a audio

    A grande maioria dos mtodos de ensino de msica baseada na leitura. O

    aprendizado pela escuta, tirando msicas de ouvido no estimulado, sendo at

    mesmo reprimido.

    Na medida em que mesmo os estudos baseados na transposio - que, se

    transpostos de ouvido(como fazem os cantores) seriam excelentes para o

    desenvolvimento da percepo auditiva e da memria - so escritos integralmente e

    tocados lidos, bvia a priorizao do visual sobre o auditivo.

    Sobre esse assunto, muito interessante observar o que diz Joachin-Ernst

    Berendt (1997, p.21):

    Sempre que Deus se revelou aos seres humanos, Ele foi ouvido. Ele pode ter aparecido como luz; todavia, para ser entendido, Sua voz teve de ser ouvida. A expresso e Deus disse est em todas as escrituras sagradas. Os ouvidos so o meio de acesso do receptor. O mbito da viso a superfcie. O mbito da audio a profundidade. Os olhos veem o superficial. No entanto, nada do que percebido pela audio deixa de entrar a fundo. Sim, mesmo quando ouvimos algo superficialmente, h maior penetrao do que quando apenas vemos alguma coisa, pois o olhar que s detecta a superfcie no v alm dela. A pessoa que ouve tem mais oportunidade de aprofundar-se do que aquela que apenas v. A profunda modificao da nossa conscincia (e incontestvel que precisamos de uma nova conscincia, de uma nova percepo de mundo) ser alcanada quando aprendermos a usar inteiramente o nosso sentido da audio tal como usamos nossos olhos e nosso sentido de viso h sculos. Quando tivermos reaprendido a ouvir, tambm poderemos corrigir a nossa hipertrofia dos olhos. S ento compreenderemos como disse Goethe, um homem de viso que os olhos do esprito tm de ver em unssono com os olhos fsicos; caso contrrio, h o risco de ficarmos olhando e, no entanto, as coisas passarem despercebidas.

    De fato, a forma pela qual vem se ensinando msica nos leva a olhar e no a

    ver, a ouvir e no a perceber. curioso verificar que a palavra italiana para o verbo

    ouvir sentire. Sentir, em portugus, tem a ver com emoo e notrio que o

    som nos toca emocionalmente muito mais que a imagem visual. Para fazer essa

    verificao, basta assistir a um filme de suspense sem a trilha sonora.

  • 25

    Fritzjof Capra avalia, no prefcio do livro Nada Brahma11 (BERENDT, 1997),

    que a compreenso de que o mundo som tem implicaes profundas no somente

    para a Cincia e a Filosofia, mas tambm para a vida cotidiana e a sociedade.

    Durante muitos sculos a cultura ocidental deu nfase viso em detrimento da

    audio. Segundo Berendt, a atual mudana de paradigma inclui uma modificao

    essencial dessa nfase. Berendt ainda verifica que tal modificao coincide com a

    mudana dos valores masculinos para os femininos, do conhecimento racional para

    o intuitivo e da agressividade para a no violncia e a paz.

    Por sua vez, o maestro Daniel Baremboim (2008,p.48) comenta que a

    educao do ouvido pode ser muito mais importante do que se imagina no somente

    para o desenvolvimento do indivduo, mas para toda a sociedade e, portanto, para

    os governos. Em seu ponto de vista, a habilidade de ouvir diferentes vozes ao

    mesmo tempo, compreendendo a fala de cada uma delas separadamente, assim

    como a capacidade de lembrar-se de um tema que reaparece sob uma luz diferente

    e outras caractersticas do saber ouvir e estar afinado com outras vozes muito

    importante. Pode ajudar a formar seres humanos mais aptos a escutar e a

    compreender vrios pontos de vista de uma s vez, mais capazes de avaliar seu

    prprio lugar na sociedade e na histria, logo mais propensos a perceber e valorizar

    as semelhanas entre todas as pessoas e culturas, em vez de destacar as suas

    diferenas.

    2.3.2 Impactos da Especializao

    Em outras pocas era comum haver homens que dominavam vrias reas do

    conhecimento humano. Eram, ao mesmo tempo, arquitetos, engenheiros, artistas,

    pensadores, filsofos O exemplo maior talvez seja Leonardo da Vinci, artista da

    Renascena.

    At o final do sculo XVIII era normal que um msico fosse no somente

    instrumentista, mas multi-instrumentista e compositor, muitas vezes tambm

    regente. Um belo exemplo o do flautista, terico e compositor J.J. Quantz,(1697-

    1773) professor de Frederico II, rei da Prssia.

    11 Nada Brahma, do idioma snscrito, pode ser traduzido como: Tudo Som , O Mundo Som, ou ainda Deus Som.

  • 26

    Com o caminhar da civilizao na direo do desenvolvimento tecnolgico

    (em 1712 Thomas Newcomen inventou a primeira mquina a vapor para bombear

    gua de minas de carvo) e com o advento da revoluo industrial, paulatinamente

    passou a vigorar a concepo do trabalho em srie e especializado, na qual cada

    operrio realizava uma funo especfica. Uma magnfica crtica desse sistema nos

    dado por Charlie Chaplin em seu filme Tempos Modernos.

    Assim tambm nas Cincias, nas Artes e outras reas do conhecimento

    humano os estudos foram sendo pouco a pouco direcionados para a especializao.

    Surgiram especialistas que se, por um lado, so muito proficientes em um aspecto,

    so muito fracos ou mesmo nulos em outros.

    No caso da Msica, provavelmente o nvel de virtuosidade instrumental

    alcanou patamares mais elevados. Por outro lado, passou a haver compositores e

    regentes incapazes de tocar razoavelmente um instrumento e muitos instrumentistas

    incapazes de harmonizar uma melodia, por mais simples que ela fosse.

    Dessa forma, foram sendo elaborados mtodos de ensino para instrumentos

    musicais visando principalmente formao de msicos de orquestra ou, quando

    muito, cameristas ou solistas, funes para as quais no era mais necessrio

    improvisar ou compor.

    Laura Rnai (op.cit.,p.115) observa claramente essa tendncia presente no

    sculo XX, na qual o compositor apenas compe, o regente rege e o intrprete

    precisa ser virtuose de um instrumento especfico, sem nenhum domnio de outro

    instrumento. Em decorrncia dessa realidade, passou a existir uma estrutura

    hierarquizada de domnios de conhecimento no universo da Msica, no qual a

    criao de domnio do compositor, enquanto o intrprete relegado a um segundo

    plano. Os ideais do instrumentista dessa gerao podem ser associados aos

    objetivos de um esportista: rapidez e controle. medida que a tcnica se

    aprimorava, maiores as exigncias do repertrio. Nesse processo, aquele artista do

    perodo barroco, que era capaz de diversificar sua arte em mais de um instrumento e

    ainda compor com razovel habilidade, deu lugar ao especialista. O Homem da

    Renascena - aquele que sabia de tudo um pouco (ou muito), o homem de cultura

    abrangente, universal - passa a ser coisa do passado.

  • 27

    A respeito da estreiteza de viso decorrente da especializao, importante

    lembrar que na histria recente do ensino no Brasil matrias como Msica, Latim e

    Filosofia, por exemplo, foram retiradas do currculo das escolas de segundo grau

    como consequncia do chamado acordo MEC USAID12. No por acaso isso

    aconteceu no final dos anos 60, nos primeiros anos do triste e longo perodo em que

    nosso pas viveu sob o jugo de uma ditadura militar, como praticamente todos os

    pases da Amrica do Sul.

    Parece claro que o objetivo dessa reforma no ensino foi impedir que as novas

    geraes tivessem acesso a elementos capazes de faz-las entender melhor o

    mundo e assim no questionassem a ordem das coisas.

    12 MEC USAID a fuso das siglas: Ministrio da Educao (MEC) e United States Agency for International Development (USAID). Isso se deu por meio da reforma do ensino, na qual os cursos primrio (cinco anos) e ginasial (quatro anos) foram fundidos, passando a se chamar Primeiro Grau, com oito anos de durao; o curso cientfico fundido com o clssico passou a ser denominado Segundo Grau, com trs anos de durao; e o curso universitrio passou a ser denominado Terceiro Grau. A implantao desse regime de ensino tambm retirou do currculo matrias consideradas obsoletas, tais como Filosofia, Latim, Educao Poltica e Msica. Cortou-se a carga horria de vrias matrias, como Histria e Geografia entre outras. Entre junho de 1964 e janeiro de 1968, perodo de maior intensidade de acordos, foram firmados 12 deles, abrangendo desde a educao primria (atual Ensino Fundamental) ao Ensino Superior. O ltimo dos acordos foi firmado em 1976. Destacam-se a Comisso Meira Mattos, criada em 1967, e o Grupo de Trabalho da Reforma Universitria (GTRU), de 1968, ambos decisivos na reforma universitria (Lei n 5.540/1968) e na reforma do ensino de 1 e 2 graus (Lei n 5.692/1971). Fontes: http:projetomuquecababys.wordpress.com/2010/07/21/um-rapper-na-literatura-educaional/. E http://www.ppe.uem.br/dissertes/2009_alan.pdf

  • 28

    3. DIFERENCIAIS NA CONSTRUO DE UM APRENDIZADO CONSISTENTE

    3.1. Trs aspectos fundamentais na formao de um msico no Brasil

    Com base no que acabamos de analisar, estou seguro de que

    seria muito benfica uma releitura dos mtodos tradicionais de forma a aproveitar e

    ampliar o seu contedo, abrindo um espao para a experimentao. O exerccio da

    imaginao e da criatividade estimular o desenvolvimento de uma identidade e de

    uma personalidade artstica prpria. Alm disso, a improvisao ser uma

    ferramenta valiosa no sentido de proporcionar ao estudante a observao, a

    compreenso e a conquista de entidades expressivas da linguagem musical, a

    exemplo da dimenso vertical contida nas frases meldicas; os acordes, base do sistema tonal.

    O terceiro aspecto dessa proposta a incluso da msica popular brasileira

    no currculo de nossas escolas, por motivos que explicarei a seguir.Assim , esses

    trs aspectos so:

    - Aprofundamento da compreenso das estruturas harmnicas;

    - Estmulo criatividade, emprego da improvisao;

    - Maior contato com a msica brasileira.

    3.1.1 Conhecimento dos acordes Consideraes sobre a importncia do conhecimento e do domnio dos acordes pelos instrumentistas meldicos.

    Diferentemente dos pianistas, violonistas e acordeonistas, os instrumentistas

    meldicos raramente desenvolvem o que chamamos de conscincia harmnica, ou

    seja, no tm uma clara percepo das estruturas verticais sobre as quais se

    constri a msica no sistema tonal. No percebem tambm que toda melodia tem

    uma harmonia implcita13, como diz Arnold Schoemberg (1965,p.29).

    Isso acontece porque o estudo que lhes transmitido baseado na leitura

    linear, meldica, proposta da totalidade dos mtodos tradicionais eruditos

    13 Na msica harmnico-homofnica, o contedo essencial est concentrado em uma s voz, a voz principal, que possui uma harmonia inerente. A acomodao mtua entre melodia e harmonia , num primeiro momento, difcil, mas o compositor no deve jamais criar uma melodia sem estar consciente de sua harmonia.

  • 29

    pesquisados. Assim, embora toquem at exaustivamente, em forma de arpejo, os

    acordes contidos em toda e qualquer msica, no percebem que aquelas melodias,

    linhas horizontais, tm sua estrutura baseada em notas que pertencem a uma

    estrutura vertical, os acordes. Como acordes so estruturas nas quais notas so

    superpostas e tocadas simultaneamente, talvez o instrumentista meldico se

    pergunte: Mas por que preciso estud-los, se s me possvel tocar uma nota de

    cada vez?.

    Uma das respostas possveis que o conhecimento dos acordes gera a

    compreenso da frase harmnica que sustenta a frase meldica, e essa percepo

    fundamental para a boa realizao da frase, objetivo primeiro do instrumentista

    meldico.

    Outra resposta evidente que muitas e muitas vezes as melodias so

    formadas exclusivamente por notas de determinados acordes, como ocorre, por

    exemplo, no concerto para flauta harpa e orquestra, de W.A.Mozart, no qual a

    primeira frase da flauta o acorde de D maior:

    O mesmo ocorre na primeira frase da Badinerie da Sute em Si menor, de

    J.S.Bach, construda apenas com as notas do acorde de Si menor:

    Os exemplos so praticamente infinitos. Assim, quanto mais conhecermos os

    acordes, mais facilmente os reconheceremos e mais preparados estaremos para

    tocar novas obras.

    Para o estudo dos acordes utilizaremos as cifras que os representam. Parte

    importante da moderna metodologia da harmonia14, as chamadas cifras so

    smbolos dos acordes, constitudos por letras e nmeros: Bm5b, Dm, E7, F7M,

    14 Aqui, o termo harmonia designa a rea da teoria musical que trata dos acordes, seus encadeamentos e suas funes.

  • 30

    G# dim, etc. Presentes na notao do jazz e da msica popular brasileira, elas

    explicam a formao do acorde, sendo muito prticas e teis para o estudo de seus

    encadeamentos.

    O desconhecimento dos acordes no privilgio dos estudantes; ele

    acontece tambm com msicos profissionais e, o que surpreendente, tambm com

    muitos pianistas e violonistas. Vrios msicos de nossas orquestras tm dificuldade

    de tocar, de memria, uma sequncia de acordes maiores arpejados num ciclo

    cromtico ascendente; no entanto, se esses arpejos estivessem escritos, eles os

    tocariam fluentemente. Convivendo com msicos de vrios pases, posso afirmar

    que isso no acontece somente no Brasil, o que compreensvel, j que os mtodos

    utilizados em seus pases so basicamente os mesmos.

    Chega a ser curioso e contraditrio que isso acontea, pois esse

    desconhecimento priva o msico da compreenso de elementos bsicos da

    composio musical. E, obviamente, quanto mais elementos tivermos para a

    compreenso do texto musical, melhor poderemos enunci-lo.

    Diz o pianista e maestro Daniel Baremboim (2009,p.130,131):

    Um elemento que, na msica tonal, costuma ser negligenciado atualmente a harmonia. A tenso harmnica tem um efeito crucial num trabalho e na maneira que este executado. Dos trs elementos harmonia, ritmo e melodia que influenciam de forma profunda a msica tonal, a harmonia possivelmente o mais importante, porque o mais potente. possvel tocar o mesmo acorde com milhes de ritmos diferentes e lidar com todos eles sem necessidade de modificao. Uma melodia se torna desinteressante se ela no se move harmonicamente, o que implica que o impacto da harmonia muito maior do que o do ritmo e o da melodia. E ele existe em todo trabalho tonal. Existem inmeras distines entre Bach, Wagner, Tchaikovsky e Debussy, mas eles tm algo em comum: a fora do impacto da harmonia. Isso implica que um acorde exerce uma espcie de presso vertical no movimento horizontal da msica. Quando o acorde se desenvolve, o fluxo horizontal da msica modificado. Isso no depende de Bach ou Chopin ou de qualquer outro; em minha opinio, essa uma lei da natureza.

    Pode-se dizer que acordes e escalas esto para a msica tonal assim como

    tijolos e cimento esto para a construo de uma casa. Algum j disse que tocar

    sem perceber a harmonia como ver apenas duas dimenses; perde-se a noo de

    perspectiva, de profundidade. Para o instrumentista meldico que toca numa

    formao camerstica - duo, trio, quarteto - ou numa formao orquestral, o fato de

  • 31

    perceber quem est tocando a tnica, a tera ou outra nota de um determinado

    acorde permite, entre outras coisas, afinar melhor esse acorde, equilibrando,

    timbrando, colorindo a msica com segurana e conscincia.

    A respeito da importncia do conhecimento da harmonia, mesmo para o

    instrumentista meldico, vejamos o que diz Jos Miguel Wisnik (1989, p.118):

    Pelo prprio carter duplamente articulado, meldico e harmnico garantido msica bachiana pelo novo sistema, o discurso tonal pode, no entanto, realizar todas as suas potencialidades no apenas nas grandes massas corais das cantatas e das paixes, com seu tecido de mltiplas vozes, mas, por exemplo, numa simples sonata para flauta solo (assim como nas sonatas para violino ou nas sutes para violoncelo). que a melodia solitria, tocada por um nico instrumento, no mais aquele desenho infinitamente circular em torno do carter de um modo; mesmo quando no acompanhada de acordes, a sucesso meldica depositria da linguagem da simultaneidade onde o fio da melodia no d nenhum ponto sem n harmnico. (...) Assim como o pensamento meldico est investido de harmonia, o pensamento mondico est investido de polifonia e a polifonia apresenta um grau acabado de resoluo harmnica. (...) a grande novidade que a tonalidade traz ao movimento de tenso e repouso (que, em alguma medida, est presente em toda a msica) a trama cerrada que ela lhe empresta, envolvendo nele todos os sons da escala numa rede de acordes, isto , de encadeamentos harmnicos. Tenso e repouso no se encontram somente na frase meldica (horizontal), mas na estrutura harmnica (vertical) ().

    As suites para violino e violoncelo solo, de J.S.Bach, assim como as 12

    Fantasias, de G.P.Telemann; a Partita en L m, de J.S.Bach; e a Sonata em L m,

    de C.P.E.Bach, essas para flauta solo, so timos exemplos de pensamento

    mondico investido de polifonia e de melodia investida de harmonia. Para uma

    leitura minimamente interessante dessas peas necessrio perceber e ser capaz

    de diferenciar as diferentes vozes presentes na mesma melodia. necessrio

    tambm valorizar o movimento de tenso e repouso justamente gerado pelo

    contraste entre dissonncias e consonncias e pelo encadeamento dos acordes e

    suas cadncias. Sem o reconhecimento desses elementos do discurso musical e a

    capacidade de ressalt-los, o intrprete fica desprovido de fundamentos para uma

    interpretao altura da inteligncia dos compositores.

  • 32

    3.1.1.1 A Prtica da Transposio s vezes o mestre aponta para a lua, mas o discpulo olha para o dedo do mestre.

    Ditado Zen

    Um trabalho que pode ser de grande valia para o aprendizado e a assimilao

    dos acordes, seus encadeamentos e cadncias a prtica da transposio. Ao

    mesmo tempo em que exige um clculo racional, estimula a intuio e desenvolve a

    percepo auditiva.

    Os cantores, quando realizam seus tradicionais vocalizes de aquecimento em

    vrios tons, conseguem faz-lo intuitivamente, de ouvido. Os instrumentistas no

    tm essa prtica, que lhes seria muito proveitosa. No entanto, a maioria dos

    mtodos e cadernos de estudos que conhecemos apresenta estudos de

    sonoridade ou de agilidade baseados em determinados encadeamentos de

    acordes que so transpostos para vrias tonalidades. Alguns desses estudos

    consistem em apenas uma frase que transposta e escrita nos doze tons.

    Curiosamente, porm, a harmonia subjacente a essas frases e sequncias jamais

    explicada. Assim os estudantes, na maior parte das vezes, no a percebem e

    desperdiam uma excelente oportunidade de aprender algo que lhes seria muito

    til15. Como a transposio para outras tonalidades sempre escrita, os estudantes

    no so estimulados a pensar. Isso acontece inclusive em trabalhos recentes16,

    como o de Phillippe Bernold,

    certamente mais fcil realizar as transposies de ouvido com a voz do

    que com um instrumento. Porm, se os acordes implcitos na frase a ser transposta

    forem compreendidos pelo instrumentista, ele ter fundamentos para realizar essa

    transposio sem a necessidade da leitura. Esse procedimento propiciar, por um

    lado, um pequeno e benfico trabalho intelectual; por outro, desocupando o sentido

    15 Uma honrosa exceo cabe aos tudes Modernes pour la Flute, de Paul Jeanjean, Ed. Leduc, Paris, que mostram, no rodap, os acordes sobre os quais foram construdas determinadas frases. 16 BERNOLD, Philippe. La Technique dEmbouchure: 218 exercices pour matriser toutes ls difficults lies lembouchure de la flte traversire et acqurir une belle sonorit. [S.l.]: Philippe Bernold professor no Conservatoire de Musique de Lyon, Frana.

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    da viso, permitir mais ateno auditiva, fazendo com que o estudante possa

    atentar para detalhes que antes lhe passavam despercebidos.

    Aparentemente, os mtodos e cadernos de estudos acima referidos

    subestimam o intelecto dos alunos e fazem com que estes concentrem sua ateno

    em somente alguns dos aspectos da msica. No entanto, no deixam de apontar

    para a lua, como diz a citao acima.

    Na segunda parte deste trabalho, estudos de M.A. Reichert, T. Boehm,

    P.Taffanell, M.Moyse e P.Bernold, baseados na transposio de sequncias de

    acordes, se