Estudo sobre os Conflitos entre as Leis de Macau e da China ...

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Estudo sobre os Conflitos entre as Leis de Macau e da China Continental * Xuan Zengyi ** I. A formação de dois territórios jurídicos diferentes e os conflitos de leis. 1. Introdução ao conceito de território jurídico. O território jurídico é também designado por territorium legis na língua latina, rechtsgebiet na língua alemã e law district, legal unit, legal region na língua inglesa. Embora as designações sejam diferentes, o sentido é basicamente o mesmo, isto é, um espaço determinado que goza de poderes legislativo, executivo e judicial, dispondo de um ordenamento jurídico próprio. Segundo este conceito, actualmente a nível internacional coexistem dois tipos de territórios jurídicos. O primeiro tipo de território jurídico, considera o Estado como uma entidade jurídica unitária. Neste território os poderes legislativo, executivo e judicial são absolutamente independentes, pelo que, designamos este território por território com soberania. O segundo tipo, considera as regiões administrativas de um Estado soberano como um território jurídico autónomo. Estes possuem, no âmbito de um quadro constitucional unificado, poderes legislativo, executivo e judicial independentes, dispondo de um regime jurídico específico. Designaria este segundo tipo de território jurídico por território não soberanos. A existência deste tipo de território jurídico depende * Texto da comunicação apresentada pelo autor no Seminário “Linhas de Evolução da R.P.C.- Reflexos em Macau”, organizado pelo Gabinete para a Tradução Jurídica em colaboração com a Universidade de Ciência Política e Direito da China, a 28 de Janeiro de 1994, em Macau. ** Professor Assistente e Director do Departamento de Direito Internacional Privado da Universidade de Ciência Política e Direito da China. 1

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Estudo sobre os Conflitos entre as Leis deMacau e da China Continental*

Xuan Zengyi**

I. A formação de dois territórios jurídicos diferentes e os conflitos de leis.

1. Introdução ao conceito de território jurídico.

O território jurídico é também designado por territorium legis na língua latina, rechtsgebiet na língua alemã e law district, legal unit, legal region na língua inglesa. Embora as designações sejam diferentes, o sentido é basicamente o mesmo, isto é, um espaço determinado que goza de poderes legislativo, executivo e judicial, dispondo de um ordenamento jurídico próprio. Segundo este conceito, actualmente a nível internacional coexistem dois tipos de territórios jurídicos.

O primeiro tipo de território jurídico, considera o Estado como uma entidade jurídica unitária. Neste território os poderes legislativo, executivo e judicial são absolutamente independentes, pelo que, designamos este território por território com soberania. O segundo tipo, considera as regiões administrativas de um Estado soberano como um território jurídico autónomo. Estes possuem, no âmbito de um quadro constitucional unificado, poderes legislativo, executivo e judicial independentes, dispondo de um regime jurídico específico. Designaria este segundo tipo de território jurídico por território não soberanos. A existência deste tipo de território jurídico depende principalmente da organização do País estipulada na Constituição e dos factores sociais ligados à evolução histórica desse mesmo País.

Actualmente, em muitos países existem vários territórios jurídicos, existindo Estados Federais e Estados Unitários. Os Estados Unidos da América eram compostos por 13 Estados aquando da sua fundação, os quais eram originariamente colónias inglesas, e que, após a independência, gozam individualmente do estatuto de «Estados independentes».

Foi impossível fazer com que estas antigas colónias após a independência abandonassem os poderes que anteriormente detinham. Assim, ao redigir e aprovar a «Constituição Federal» as antigas colónias adoptaram o princípio de que, as funções e os poderes do Governo Federal deviam ser necessariamente expressos e rigorosamente estipulados, e as restantes funções e poderes devem ser considerados como pertencentes aos diversos Estados.1 Relativamente ao regime jurídico, cada Estado possui o seu próprio Direito escrito, regras sobre precedentes judiciais, regimes de direito adjectivo e de direito * Texto da comunicação apresentada pelo autor no Seminário “Linhas de Evolução da R.P.C.- Reflexos em Macau”, organizado pelo Gabinete para a Tradução Jurídica em colaboração com a Universidade de Ciência Política e Direito da China, a 28 de Janeiro de 1994, em Macau.** Professor Assistente e Director do Departamento de Direito Internacional Privado da Universidade de Ciência Política e Direito da China.

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substantivo, constituindo sistemas próprios, para além dos tratados vigentes entre esses Estados e de algumas normas de natureza tutelar inseridas em disposições da Constituição Federal.

O Reino Unido é um Estado Unitário. Mas, como os sistemas jurídicos antes e depois da unificação da Inglaterra e da Escócia se desenvolveram de forma independente, surgiram princípios, institutos e tradições diferentes. Embora actualmente a maior parte do direito da Escócia tenha sido influenciada pelo direito inglês, o seu fundamento baseia-se ainda nos princípios do Sistema de Direito Continental ou do Direito Romano e das normas da Igreja.2 Para além do Reino Unido e dos Estados Unidos da América, o Canadá, a Austrália, a Jugoslávia, etc., também possuem diferentes territórios jurídicos.

2. Macau como território jurídico autónomo

Desde tempos imemoriais até à presente data Macau é território chinês, mas, a partir de meados do século XVI foi sendo progressivamente ocupado e administrado pelos portugueses.

Há já muito tempo que vigora em Macau o regime capitalista com uma organização económica e um regime jurídico relativamente completos que reflectem as especificidades locais. Relativamente ao regime jurídico, as leis vigentes em Macau provêm principalmente de duas fontes, isto é, por um lado são transpostas directamente para Macau leis vigentes em Portugal, por outro são aprovadas leis em Macau. As leis vigentes em Macau abrangem principalmente os seguintes tipos:

1) Normas constitucionais. - Além da actual Constituição Portuguesa que é aplicável a Macau, Portugal elaborou especialmente o «Estatuto Orgânico de Macau» em 1976, definindo o estatuto autónomo do território. O «Estatuto Orgânico de Macau» tornou-se no fundamento legal e na origem do poder do órgão executivo de Macau e da elaboração de leis e decretos-leis pela Assembleia Legislativa. Pode afirmar-se que o Estatuto Orgânico de Macau é a lei constitucional vigente em Macau.

2) As leis vigentes em Portugal aplicáveis a Macau. - Estas constituem a estrutura básica das leis vigentes em Macau e abrangem principalmente os cinco grandes Códigos de Portugal: os Códigos Civil, Penal, de Processo Civil, de Processo Penal e Comercial.

3) As leis aprovadas pela A.L. e os decretos-leis, portarias e despachos aprovados pelo Governador. Considerando que presentemente Macau está a promover a localização jurídica e está a rever o Código de Processo Civil, a parte sobre o Direito da Família e das Sucessões do Código Civil, a lei das sociedades comerciais e o Código Comercial3. Estas leis e decretos-leis são, sem dúvida, de extrema utilidade para o futuro regime jurídico de Macau.4

1 Cfr.: «Introdução à História dos Estados Unidos», traduzido e compilado pelo Departamento Cultural da Embaixada dos Estados Unidos, 2ª edição, Maio de 1982, p. 47.2 Cfr.: «Súmula do Sistema Político-Constitucional e do Direito Cível e Comercial de diferentes Países», (volume relativo à Europa), Editora de Direito, 1986, p. 379.3 Cfr.: «Diário do Sistema jurídico», 4ª edição, 14 de Novembro de 1993.4 Cfr.: Mi Yetian, «A Situação Actual da Tradução de Português para Chinês do Direito de Macau e o Futuro Sistema Jurídico de Macau», publicado no Jornal Ou Mun de 23 de Agosto de 1993.

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Para manter a estabilidade social e o desenvolvimento económico de Macau, e atendendo ao passado histórico bem como à realidade actual do território, a «Declaração Conjunta do Governo da República Portuguesa e do Governo da República Popular da China sobre a Questão de Macau» e a «Lei Básica de Macau» consagram que, em 20 de Dezembro de 1999, a China ao voltar a exercer a soberania sobre Macau e, nos termos da Constituição Chinesa, cria a Região Administrativa Especial de Macau. Manter-se-á o seu actual regime de economia capitalista e a Região Administrativa Especial de Macau terá uma grande autonomia, gozando de poderes executivo, legislativo e judicial independentes, incluindo o de julgamento em última instância. As leis, decretos-leis, regulamentos administrativos e demais actos normativos previamente vigentes em Macau mantém-se válidas e em vigor, salvo no que contrariar a Lei Básica ou no que for sujeito a emendas órgão legislativo ou por outros órgãos competentes da RAEM.

Conforme o delineado, a Região Administrativa Especial de Macau será um território jurídico diferente do território da China Continental, independente mas não soberano, com consagração a nível da Constituição Chinesa.

3. Verificação de conflitos de leis entre os dois territórios

A existência de territórios jurídicos diferentes não significa que, necessariamente, surjam conflitos de leis, mas potencia o seu aparecimento. De um modo geral, o aparecimento e desenvolvimento dos conflitos dependem da verificação de outras condições, tais como:

1) Os cidadãos de vários territórios estabelecem contactos civis ou comerciais e daí surgem relações jurídicas civis e comerciais envolvendo outros territórios jurídicos , ou seja, nestas relações algum dos sujeitos é uma pessoa singular ou colectiva de outro território, ou então o objecto da relação jurídica está situado noutro território, ou ainda o facto constitutivo, modificativo ou extintivo da relação jurídica ocorreu no outro território.

Daqui resulta que, este tipo de relação jurídica surge apenas quando haja contactos entre dois territórios jurídicos, envolvendo pelo menos os interesses legais de dois territórios jurídicos. Deste modo, resulta que o tribunal de um território jurídico não se pode preocupar apenas com os interesses do seu próprio território jurídico e descurar os interesses jurídicos de outros territórios também relacionados com aquele assunto, caso contrário, irá prejudicar os contactos normais entre os cidadãos dos vários territórios.

2) Os vários territórios jurídicos reconhecem reciprocamente a respectiva eficácia jurídica, isto é, admitem que leis dos vários territórios têm força coactiva fora do seu território. Se cada território admitir apenas a eficácia jurídica do seu próprio direito e não admitir a eficácia extraterritorial do direito de qualquer outro território jurídico, ainda que surjam relações jurídicas, civis e comerciais que envolvam outros territórios jurídicos, não surgirão conflitos de leis.

De um modo geral, podemos afirmar que a existência de diferentes territórios jurídicos é o fundamento ou a condição prévia para o aparecimento de conflitos de leis e, tanto a existência de relações jurídicas, civis e comerciais que envolvam outros territórios, como o reconhecimento mútuo de eficácia extraterritorial do direito são condições indispensáveis para o aparecimento de conflitos de leis.

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Quando o meu País voltar a exercer a soberania sobre Macau, o intercâmbio e a cooperação entre a China Continental e Macau irão registar um grande desenvolvimento, pelo que, as relações jurídicas, civis e comerciais que envolvam os dois territórios surgirão em grande quantidade.

Por outro lado, como os dois territórios jurídicos são totalmente diferentes, aplicando regimes jurídicos distintos, ao resolver e regular as relações jurídicas, civis e comerciais que envolvem os dois territórios, irá surgir necessariamente a questão de saber qual o direito que se deve aplicar, ou seja, o problema do conflito de leis. Este conflito de leis tem a natureza de conflito de leis interinterregional dentro do nosso país.

II. Características dos conflitos de leis entre dois territórios

Em comparação com os conflitos de leis interregionais de outros países com mais de um território jurídico, os conflitos de leis entre Macau e o nosso país, para além das características gerais dos conflitos de leis interregionais, possuem características próprias:

1) O conflito de leis entre os dois territórios é um conflito de leis no âmbito de dois regimes sociais diferentes. Embora nos Estados Unidos da América, no Reino Unido, no Canadá, na Austrália, na Jugoslávia, etc. existam problemas de conflitos de leis interregionais, trata-se de conflitos de leis no âmbito do mesmo regime social. Em Macau vigora o regime de economia capitalista e na China o regime socialista. Esta diferença de natureza manifesta-se necessariamente nas leis de cada território, dando origem a diferenças entre os princípios básicos, os conceitos e o pensamento jurídico dos dois territórios, criando vários problemas de difícil resolução a nível da reserva de ordem pública, da qualificação de conceitos jurídicos e das regras de determinação do foro competente de acordo com as normas de conexão.

2) O conflito de leis entre os dois territórios é um conflito de leis de âmbito local com leis de âmbito nacional. Tanto nos Estados Unidos da América, como na Austrália, no Reino Unido ou no Canadá, o conflito de leis interinterregional destes países é um conflito de leis entre Estados, entre províncias ou entre distritos, i.e., são conflitos de leis locais. O conflito de leis entre Macau e a China Continental, dá-se por um lado entre leis emanadas pelo Governo Central no interesse geral do país e, por outro lado, leis aprovadas e publicadas pelo Governo Local, enquanto parte constitutiva da R.P.C., sob a direcção do Governo Central. Tal fenómeno não se verifica nos outros países com mais de um território jurídico. Assim, para resolver este tipo de conflitos de leis é necessário que a própria evolução política os vá limitando.

Por outro lado, é necessário realçar que o Governo Central é único e soberano e, por outro lado, é necessário ainda garantir a independência e a igualdade dos dois territórios jurídicos (de Macau e da China Continental), sendo isto o mais importante no ponto de vista das Normas de Conflitos e o que vem tornar mais complexa a resolução destes conflitos.

3) Os conflitos de leis entre os dois territórios são conflitos entre leis elaboradas e publicadas segundo duas leis constitucionais diferentes. A «Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau» consagra o sistema e as políticas da Região Administrativa Especial de Macau, incluindo os seus sistemas económico e social, a garantia dos direitos e liberdades fundamentais, a organização do poder executivo, os

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sistemas legislativo e judicial e as respectivas políticas. O processo legislativo na R.P.C. tem por base a Constituição aplicável a todo o país, isto é, a Constituição da R.P.C. Isto significa que, na resolução os conflitos de leis entre os dois territórios não existe uma base legal comum..

4) Os conflitos de leis entre os dois territórios revelam-se por vezes como conflitos entre o direito local de um território e um tratado internacional aplicável ao outro território, ou também o conflito entre tratados internacionais aplicáveis nos dois territórios.

Segundo as disposições da «Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau», este tipo de conflitos pode surgir nos três aspectos seguintes:

1) A Região Administrativa Especial de Macau, no seu próprio interesse, nos domínios da economia, do comércio, das finanças, do transporte marítimo, das comunicações, do turismo, da cultura, da ciência, da tecnologia e do desporto e com a designação de "Macau, China" pode manter e desenvolver por si própria contactos com outros países ou territórios do mundo, nomeadamente com organizações internacionais, assinando e cumprindo os respectivos acordos. Isto significa que a Região Administrativa Especial de Macau pode assinar qualquer acordo com o exterior segundo a situação e as necessidades do Território, com ou sem a participação por parte do Governo Central;

2) O Governo Popular Central pode, atendendo às necessidades e à situação da Região Administrativa Especial de Macau e, depois de consultado o Governo da Região, decidir a extensão ou não a Macau dos tratados internacionais firmados pela R.P.C. Isto significa que, os tratados internacionais bilaterais ou multilaterais assinados pelo Governo Central não serão necessariamente aplicáveis a Macau;

3) Os tratados internacionais aplicáveis a Macau, e a que a R.P.C. não tenha aderido, continuam em vigor. Segundo as estatísticas, actualmente existem aproximadamente cem tratados internacionais bilaterais ou multilaterais aplicáveis a Macau, sendo a R.P.C. parte nuns e noutros não.5

Além disso, existe um outro ponto a referir. Em 1997 a China voltará a exercer a soberania sobre Hong Kong. Segundo as disposições específicas aplicáveis, Macau e Hong Kong terão o mesmo estatuto jurídico, tornando-se territórios jurídicos independentes e não soberanos. Nesse momento, entre Hong Kong e a China Continental irão surgir conflitos de leis. Mas, os conflitos de leis entre Macau e China Continental e os conflitos entre Hong Kong e a China Continental apresentam características diferentes que se evidenciam principalmente nos dois aspectos seguintes:

1) Em Hong Kong o processo legislativo segue principalmente a regra do precedente existente em Inglaterra, e as leis vigentes abrangem principalmente, as "Letter-Patent" e as "Royal Instructions", a Common Law, as regras da equidade, as leis provenientes do Reino Unido, as leis elaboradas pelo Órgão Legislativo de Hong Kong e alguma legislação subsidiária. O sistema jurídico de Hong Kong pertence ao sistema de Direito Anglo-Saxónico, pelo que os conflitos de leis entre Hong Kong e a China Continental são conflitos de leis entre sistemas jurídicos diferentes.

5 Cfr.: «Descrição Oral do Direito de Macau», Editora da Universidade de Direito e de Ciência Política da China, 1993, p. 424.

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Em Macau , as leis vigentes seguem principalmente o sistema jurídico português, que pertence à família do Direito Continental, onde o direito é essencialmente composto por leis escritas. O Direito da China embora tenha natureza socialista, do ponto de vista do sistema jurídico pertence também ao sistema de Direito Continental. Pelo que, os conflitos de leis entre Macau e China Continental são conflitos dentro da mesma família de direito.

2) O direito de Macau é implementado com base numa cultura jurídica diversificada, existindo tanto leis de Portugal, leis do Governo Português de Macau, como leis de Portugal e da China, os usos e os costumes de Macau e algumas leis de Hong Kong, o que revela uma cultura jurídica relativamente complexa; enquanto que o direito de Hong Kong é mais simples, baseado principalmente na Common Law proveniente do Reino Unido.6 Pelo que, do ponto de vista das Normas de conflitos, os conflitos de leis entre Macau e a China Continental são mais complicados e de difícil resolução do que os conflitos entre Hong Kong e a China Continental.

III. Algumas reflexões sobre o problema da resolução de conflitos de leis entre dois territórios

Já aquando da assinatura da Declaração Conjunta do Governo da República Portuguesa e do Governo da República Popular da China sobre a questão de Macau e da Declaração Conjunta do Reino Unido e do Governo da República Popular da China sobre a questão de Hong Kong se chamou a atenção comunidade jurídica nacional, nomeadamente da comunidade jurídica do Direito Internacional Privado para as regras de direito internacional privado a aplicar na análise do problema dos conflitos de leis interregionais no nosso país. Na sequência disto, alguns autores publicaram artigos e apresentaram opiniões sobre a resolução do conflito de leis regionais do nosso país. Em 1988, a Conferência anual da Associação do Direito Privado da China procedeu à discussão do problema dos conflitos de leis interregionais na China como um tema específico. Segundo as nossas contas foram até agora publicados na China mais de 30 artigos sobre o problema dos conflitos de leis interregionais da ChinaA, e as opiniões apresentadas constituem referências valiosas para a resolução destes conflitos.

Mas, a maior parte dos estudos acima referidos referem-se apenas ao estudo global dos conflitos de leis entre os quatro territórios jurídicos, China, Hong Kong, Macau e Taiwan, enquanto conflitos de leis interregionais da China. Actualmente, ainda não se procedeu a estudos específicos sobre o problema dos conflitos de leis entre Macau e a China Continental. Por isso, procuramos proceder a um estudo de carácter experimental, com o objectivo de tentar resolver os conflitos de leis entre os dois territórios, com base no estudo das suas características pedindo ainda a contribuição de todos os especialistas.

(1) Estudo sobre a forma de resolução dos conflitos de leis interregionais nos países com mais de um território jurídico.

Ao proceder ao estudo da prática legislativa e judicial na resolução do conflito de leis interregionais em países com mais de um território jurídico, podemos verificar que os países recorrem geralmente a duas vias, isto é, a via das normas de conflitos e a via do direito substantivo unificado.6 Cfr.: Mi Yetian, «A Situação Actual da Tradução de Português para chinês do Direito de Macau e o Futuro Sistema Jurídico de Macau», publicado no Jornal Ou Mun de 23 de Agosto de 1993.

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1) A via das normas de conflitos.

A resolução do conflito de leis interregionais através das normas de conflitos determina que a lei aplicável a relações jurídicas, civis e comerciais que envolvam outros territórios jurídicos será a indicada pelas normas de conflitos. Como esta via indica apenas quais as leis de um território jurídico que devem ser aplicadas, sem definir os direitos e deveres do interessados, esta via é designada pela comunidade jurídica por "método indirecto de resolução". Embora nesta solução existam algumas lacunas, de acordo com a prática de diversos países, é ainda um método importante para a resolução dos conflitos de leis interregionais. É evidente que, devido às diferenças nas situações concretas dos diversos países que possuem mais de um território jurídico, os métodos de resolução de País para País não são totalmente idênticos.

Há países que resolvem o problema dos conflitos de leis interregionais através da aprovação de leis uniformes a nível nacional. Por exemplo, em 1926, a Polónia publicou o Código de Direito Privado Interinterregional, a Jugoslávia aprovou também legislação avulsa contendo normas de direito privado interinterregional, para a resolução dos conflitos de leis entre as várias repúblicas.7

Em alguns países, em cada território jurídico, são estabelecidas normas de conflitos interregionais para resolver os casos de conflito entre as normas do próprio território e as dos outros. Por exemplo, em 1926, antes da publicação do Código de Direito Privado Interinterregional, os diversos territórios jurídicos da Polónia tinham as suas próprias regras de conflitos.8

Há ainda outros países que aplicam por analogia o direito internacional privado na resolução dos conflitos de leis interregionais. Por exemplo, a Lei de Direito Internacional Privado da Checoslov·quia de 1948 e o artigo 5º do Código de Direito Privado Interinterregional consagram a utilização analógica das normas de conflitos internacionais para a resolução dos conflitos de leis interregionais.

Por outro lado, no Reino Unido e nos Estados Unidos da América não há distinção entre conflitos de leis interregionais e conflitos de leis internacionais, aplicando-se as mesmas normas de Direito Internacional Privado para resolver os conflitos de leis interregionais.

Nos Estados Unidos da América a «Lei sobre duplicação das normas de conflito» (2ª versão) determina que as regras de conflitos de leis são aplicáveis tanto para casos de conflito entre Estados federados como para casos de conflito internacional.

No Canadá, aplicam-se as normas previstas para os conflitos internacionais nos conflitos interregionais, mas na resolução dos casos de conflito entre leis provinciais, o órgão legislativo e os tribunais de cada província aplicam necessariamente medidas diferentes das utilizadas nos conflitos internacionais.9

7 Cfr.: Pater (Jugoslávia), «Novo Direito Internacional Privado da Jugoslávia», 1985, edição em inglês, p. 284.8 Cfr.: Huang Jin, «Estudo sobre o Direito de Conflitos Interregional»,1993, p. 77.9 Cfr.: Castro (Canadá), «A Questão Constitucional no Direito Internacional Privado da Austrália e do Canadá», 1969, edição em inglês, p. 2-12.

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2) A via do direito material unificado

A via do direito material unificado baseia-se na aplicação de um direito civil e comercial uniforme nos vários territórios jurídicos, determinando directamente os direitos e os deveres dos interessados nas relações jurídicas, civis e comerciais que envolvem vários territórios jurídicos, a fim de eliminar os conflitos de aplicação de leis entre os vários territórios jurídicos. Este método é designado por "método directo de resolução".

Em comparação com o "método indirecto de resolução", este método é mais claro e concreto, evitando e eliminando o fenómeno do conflito de leis; o "método indirecto de resolução" resolve passivamente os conflitos de leis, sem os eliminar. Devido a este facto, os países com mais de um território jurídico procuram sempre resolver os conflitos de leis interregionais do seu país a partir do direito material unificado.

A França foi historicamente um país com leis não uniformes, mas depois de um esforço para uniformizar a sua legislação, foram aprovados em 1804 e em 1807 o «Código Civil» e o «Código Comercial», aplicáveis a todo o país, eliminando os conflitos de leis interregionais existentes no País.10

Para diminuir os problemas resultantes dos conflitos de leis provinciais, o Canadá instituiu, em 1918, a "Comissão para uniformização das Leis" designada presentemente por "Comité para a Uniformização de Leis". Nesta Comissão chegou-se a acordo, mediante negociação, quanto ao estabelecimento de muitas normas legais gerais e uniformes nos domínios dos Direitos Civil e Comercial.11

Os vários Estados dos Estados Unidos da América estabeleceram a "Comissão Nacional para a uniformização das leis estaduais", responsável pela uniformização da redacção das leis. Em 1958 esta Comissão, com a colaboração do Instituto Jurídico dos E.U.A., estabeleceu e aprovou a «Lei Comercial Uniforme». Actualmente, à excepção do Estado da Luisiana, todos os outros, incluindo o Distrito de Columbia e as Ilhas Virgens utilizam esta Lei. O Congresso Americano poderá aprovar uma proposta de lei complementar para que a «Lei Comercial Uniforme» passe a ser direito federal, aplicável às relações dentro do país, entre os seus Estados federados bem como nas relações internacionais.12

Do mesmo modo, o Reino Unido empreendeu sempre esforços neste sentido. O Parlamento britânico estatuiu em 1882 a «Lei uniforme das letras de câmbio», e em 1963 a «Lei sobre o Testamento». Mas estas duas leis só se aplicam na Inglaterra, Escócia e na Irlanda do Norte, não se aplicando nas ilhas do Canal e na Ilha de Man.13

De um modo geral podemos afirmar que o método do direito material unificado é mais vantajoso do que o método das normas de conflitos, sendo o objectivo que os países com mais de um território jurídico procuram alcançar para a resolução dos conflitos de leis

10 10. Cfr.: Huang Jin, op. cit., p. 81.11 Cfr.: «Súmula do Sistema Político-Constitucional e do Direito Civil e Comercial» (volume relativo à América do Sul e à Oceânia), 1986, p. 166.12 Cfr.: «Súmula do Sistema Político-Constitucional e do Direito Civil e Comercial» (volume relativo à Europa), p. 217- -218.13 Cfr.: «Huang Jin, op. cit., p. 80.

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regionais. Mas, também sabemos que a existência de vários territórios jurídicos se deve a factores sociais e ao desenvolvimento histórico nestes países e às diferentes tradições históricas e hábitos culturais das várias regiões, pelo que, é difícil uniformizar a curto prazo a legislação nacional, só sendo possível uniformizar as leis civis e comerciais no âmbito de alguns territórios ou de uma determinada área. Actualmente, as normas de conflitos são a via mais usada para a resolução do conflitos de leis interregionais nos vários países.

(2) Vias e formas de resolução dos conflitos de leis entre dois territórios.

1. Princípios fundamentais na resolução dos conflitos de leis entre dois territórios.

Em termos gerais, quanto aos conflitos de leis entre dois territórios, considera-se que durante o processo legislativo e judicial de resolução dos conflitos de leis tem que se atender aos dois princípios seguintes:

Princípio da igualdade entre territórios jurídicos

A igualdade dos territórios jurídicos significa que os dois territórios são independentes, o território da China Continental e o território de Macau estão situados ao mesmo nível, sendo autónomos um em relação ao outro e coexistindo um com o outro. Isto é, os regimes jurídicos dos dois territórios, principalmente o regime jurídico civil e comercial estão em perfeita igualdade, a lei de qualquer território jurídico não pode ter primazia sobre a lei do outro. Isto deve ser interpretado em quatro vertentes:

1. Causa da eclosão dos conflitos de leis - Os conflitos de leis são conflitos entre as leis de territórios jurídicos do mesmo nível, pois se entre os vários territórios jurídicos existisse uma relação de subordinação, ou se entre as leis dos vários territórios jurídicos existisse uma relação de hierarquia qualitativa, então, o conflito de leis perderia de facto o seu fundamento, já não se podendo falar em conflito de leis;

2. Reflexo nas leis - Exige-se que as leis civil e comercial tenham numa verdadeira igualdade de estatuto, respeitando-se e reconhecendo-se mutuamente eficácia jurídica. Se ao resolver um litígio se defende apenas a aplicação das leis do próprio território, dando-lhe primazia em relação às leis do outro, adoptando uma atitude de exclusão das leis do outro, prejudica-se então a resolução dos conflitos de leis entre os dois territórios;

3. Efeitos relativamente ao próprio interessado - Devem reconhecer-se mutuamente os direitos das partes que foram adquiridos em conformidade com a respectiva lei e, a nível legislativo, deve ser concedido estatuto de igualdade a ambas as partes, conferindo as mesmas garantias de defesa dos direitos, não devendo existir qualquer discriminação;

4. Efeitos no funcionamento do sistema judicial - Os dois territórios devem colaborar entre si no domínio judicial e reconhecer e executar reciprocamente as sentenças dos tribunais do outro território.

Princípio do Apoio ao Desenvolvimento Económico dos dois territórios

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A resolução dos conflitos de leis entre dois territórios permite, no fim de contas, acelerar a colaboração e o intercâmbio económico entre os dois territórios, favorecendo o seu desenvolvimento económico. Por isso, ao resolver os conflitos de leis tanto a nível legislativo como judicial, deve partir-se sempre do princípio de que se deve apoiar o desenvolvimento económico da China Continental e a estabilidade e prosperidade económica de Macau.

2. Vias e formas de resolução

A resolução dos conflitos de leis entre os dois territórios passa por duas vias: a via das normas de conflitos e a via do direito material unificado. Mas, para a resolução dos conflitos de leis entre a China Continental e Macau, que possuem características próprias, não poderemos transpor pura e simplesmente e com toda a sua rigidez as regras de conflitos de outros países com múltiplos territórios jurídicos mas, devemos encontrar uma solução própria que considere as características das duas partes.

Relativamente ao método das regras de conflitos, pensamos, à semelhança de muitos especialistas da China, que não é recomendável que os dois territórios jurídicos estabeleçam unilateralmente normas de conflitos interregionais. Isto porque, devido à diferença entre os sistemas sociais e a cultura jurídica dos dois territórios, as diferenças entre as normas de conflitos interregionais seriam enormes, podendo surgir conflitos entre as regras de conflitos, assim como o aparecimento do fenómeno da "escolha do foro" (Forum shopping), tornando o problema mais complicado. Consideramos que em vez de nos concentramos no estabelecimento unilateral de normas de conflitos, é preferível aplicar por analogia as normas do direito internacional privado vigentes nos dois territórios. Embora nesta forma de resolução existam lacunas, pelo menos trata-se de normas estabelecidas com base na experiência resultante da práticas de vários anos, e de entre as quais a maioria reflecte o modo habitual como são resolvidos internacionalmente os conflitos de leis.

É evidente que os conflitos de leis interregionais dentro de um país e os conflitos de leis internacionais têm natureza e características diferentes, pelo que, a utilização da analogia na aplicação das normas de direito internacional privado é apenas um recurso transitório.

Deste modo, o estabelecimento de regras de conflitos interregionais uniformes entre os dois territórios é a via ideal e viável de resolução. Como muitos especialistas indicaram já, uma das vantagens em resolver os conflitos de leis interregionais a partir da uniformização das regras de conflitos é que os tribunais de territórios jurídicos diferentes poderão decidir da mesma forma, eliminando a necessidade de "determinação do foro".

Em termos rigorosos, devido a razões históricas que afastam os dois territórios, criando uma falta de compreensão e de confiança, torna-se difícil criar, imediatamente, regras de conflitos uniformes.

Todavia, este conflito é um conflito dentro de um país soberano, ou seja, trata-se de dois territórios jurídicos da China, não existindo uma situação de conflito de interesses, pelo que, mediante esforços de ambas as partes, é possível concretizar a uniformização das normas de conflitos.

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Poderemos, hipoteticamente, evoluir da seguinte forma: Em 1999, depois do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau e durante um certo período de tempo, tanto a China Continental como Macau devem adoptar as suas normas próprias de direito internacional privado, a fim de se poderem responder às necessidades mais urgentes resultantes das relações jurídicas, civis e comerciais emergentes de contactos entre os dois territórios.

Por outro lado, especialistas das duas partes podem aumentar o intercâmbio, tentando chegar a uma conclusão das duas experiências concretas, tanto a nível legislativo como na prática judicial. Devem também tentar descobrir as semelhanças e diferenças entre as normas de conflitos vigentes e reflectir sobre a possibilidade de uniformização.

Sugerimos que, quando se tornar necessário, especialistas de ambas as partes possam constituir um "Instituto de Estudos das Normas de Conflitos Uniformes entre a China Continental e Macau" que teria o encargo de estudar cientificamente o problema e apresentar propostas de elaboração de normas de conflitos uniformes. Posteriormente, os órgãos legislativos de ambas as partes, através do diálogo, poderiam adoptar as propostas sugeridas, começando por uma parte e expandindo-a à globalidade, passando das normas aplicáveis por analogia para a aplicação de normas uniformes.

Por outro lado, e atendendo aos interesses da população e às necessidades do desenvolvimento económico, ambas as partes devem aderir às convenções Internacionais sobre regras de conflitos e, como membros dessas convenções, devem acatar as respectivas normas.

A uniformização do direito material, de acordo com a situação real de ambas os territórios não permite, num futuro próximo, evitar e eliminar os conflitos de leis nas áreas civil e comercial dos dois territórios. Isto deve-se, no plano económico, à organização económica capitalista de Macau e à economia planificada da China. Tal diferença na organização económica torna muito difícil a adopção de um direito material uniforme.

No entanto, tal não significa que nada possa ser feito. De acordo com o desenvolvimento económico internacional, têm vindo a surgir um conjunto de normas aplicáveis ao comércio internacional que a maioria dos países aceita, tais como a «Convenção das Nações Unidas sobre Transacções Internacionais de Mercadorias», a «Convenção Internacional sobre a Unificação de Certos Princípios Gerais de Direito Relativos aos Conhecimentos de Embarque», as «Regras sobre a Interpretação de Conceitos de Comércio Internacional», as «Leis Uniformes Relativas a Títulos de Crédito», etc.

Algumas destas normas e regras podem não vir a ser logo adoptadas por ambos os territórios, no entanto, na elaboração e revisão das leis, devem ser dados passos no sentido de se aproximarem àquelas convenções.

Procedendo desta maneira, por um lado, torna-se útil e proveitoso para o desenvolvimento económico externo do território e, por outro lado, o direito substantivo dos dois territórios pode gradualmente uniformizar-se, evitando-se assim o aparecimento de conflitos de leis.

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Podem ainda ambas as partes, na medida do possível, aderir a convenções internacionais. Com a adesão, torna-se obrigatório o uso das normas nelas contidas para a resolução de conflitos. Actualmente, a China Continental e Macau são parte nas seguintes convenções internacionais: «Convenção de Berna Relativa à Protecção dos Direitos do Autor», «Convenção sobre o Envio para o Estrangeiro de Documentos Judiciais e Extrajudiciais em Matérias Civis e Comerciais», etc.14 Quer isto dizer que ambas as partes uniformizaram as matérias acima referidas. No entanto, estes são apenas passos dados sem ligação entre si, e, para uma total uniformização, muito há ainda a fazer.

Segundo a análise feita, as normas de conflitos serão o principal método para a resolução de conflitos emergentes, e a uniformização do direito material é uma medida meramente acessória.

3. Alguns sistemas de normas de conflito

Quer através da aplicação analógica de normas de direito privado internacional, quer pela elaboração de normas de conflitos uniformizadas pode-se, eventualmente, chocar contra determinado tipo de obstáculos, nomeadamente, a qualificação de certos conceitos jurídicos, o reenvio e a reserva de ordem pública.

(1) A qualificação de conceitos jurídicos é a questão que deve ser resolvida em 1º lugar e para a sua resolução há duas teorias diferentes. A 1ª é a resolução de acordo com a lei do foro pertinente; A 2ª é através do direito comparado e do estudo do próprio direito, ou seja, através da comparação e análise dos conceitos gerais do direito de ambas as partes.

Preferimos a adopção do segundo modelo porque, globalmente, embora haja divergências, ambas os territórios pertencem ao mesmo país e possuem hábitos e costumes semelhantes e por isso há muitos dos conceitos semelhantes, Por outro lado, esta via torna as soluções mais aceitáveis para os tribunais, pelo que facilita o reconhecimento e execução das decisões, daí permitindo a uniformização do direito dos dois territórios.

(2) Sobre o reenvio.

O reenvio existe quando no âmbito do conflito de normas entre duas partes, cada qual determina o reenvio da resolução do conflito para outra parte. Caso ambas as partes adoptem normas de conflitos uniformes, o reenvio deixa de ter razão de existir e não haverá interesse no estudo e regulamentação do reenvio. Mas, conforme anteriormente dissemos, de momento é difícil concretizar a unificação das normas de conflitos, mantendo-se, por isso, o interesse no estudo do reenvio.

Actualmente na China Continental ainda não existem normas sobre o reenvio.

Segundo o Código Civil em vigor em Macau, é admitida a figura do reenvio, com duas restrições: 1. Se por causa do reenvio um negócio jurídico que deve ser válido se torna inválido ou parcialmente inválido, o reenvio não é admitido; 2. Quando a lei o permita, se as partes tenha optado por determinada lei estrangeira, o reenvio não é utilizado. Esta disposição é abrangente e protege melhor os interesses legítimos das partes.

14 Cfr.: «Descrição Geral do Direito de Macau», 1993, p. 424-432.

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Ao legislar sobre o reenvio, a China Continental poderá aproveitar a experiência de Macau nesta matéria.

(3) Escolha do foro.

No âmbito das normas de conflitos, a escolha do foro permite que as partes, artificialmente, criem as condições para que se aplique a lei que lhes é mais favorável numa determinada relação jurídica.

Quanto a isto, há determinados países que não o aceitam e outros que o admitem.

Quando a China reassumir o exercício de soberania sobre Macau, os contactos entre as pessoas e o movimento financeiro entre os dois territórios tornar-se-ão mais fáceis.

Através da escolha do foro, uma das partes pode eximir-se às leis que não lhe sejam vantajosas, através da mudança de domicílio ou através da transferência do seu património; e isso pode criar um ambiente de instabilidade e insegurança jurídica, tornando inúteis as normas de conflitos. Assim, deve ser proibida a escolha do foro.

O Código Civil de Macau proíbe esta escolha, considerando-se a escolha do foro como uma fraude à lei. Entendemos que, para além de proibir, devem ser definidas, claramente, as condições da sua verificação, caso contrário poderão ser indevidamente alargadas através de interpretação extensiva, prejudicando as partes.

(4) Reserva de ordem pública.

No âmbito das regras de conflitos a reserva de ordem pública é uma restrição à aplicação da lei estrangeira.

Quando da aplicação de determinada norma resulte a ofensa à ordem pública do país aplicador, este poderá recusar-se a aplicá-la, precisamente com este fundamento. Isto deve-se às diferenças do sistema social, desenvolvimento económico e usos e costumes entre países soberanos. A aplicação ida lei estrangeira, por vezes, pode causar prejuízos à ordem económica e jurídica de um país. Daí que todos os países possuam no seu ordenamento jurídico esta "válvula de segurança".

Por exemplo, no artigo 8º dos «Princípios Gerais do Direito Civil» do nosso país, estatui-se que da aplicação das leis estrangeiras e do costume internacional não podem resultar prejuízos para a ordem social chinesa.

Todavia, a prática do conflito de leis interregionais, revela que a maioria dos países com vários territórios jurídicos não admite esta figura, porque neste caso tudo se passa no interior de um único país soberano. Não existe aí uma diferença de natureza entre as normas, havendo semelhanças no sistema e no desenvolvimento económico.

Contudo, relativamente ao conflito de leis entre a China Continental e Macau, há grandes diferenças entre as normas reguladoras das questões fundamentais do direito dos dois territórios, daí que os tribunais de uma das partes ao aplicarem as leis da outra parte para ajustar as relações jurídicas, civis e comerciais que envolvam dois territórios poderão estar a prejudicar a sua ordem pública.

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Assim, nos âmbitos legislativo e judicial, na resolução dos conflitos de leis dos dois territórios pode-se pensar na utilização adequada da reserva de ordem pública.

Convém lembrar que a reserva de ordem pública é um obstáculo à eficácia das normas de conflitos pelo que a sua utilização deve ser prudente, evitando abusos. Caso a eficácia das normas de conflitos seja completamente negada, pode ser prejudicada a resolução dos conflitos de leis entre dois territórios.

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