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ESTUDO DO EFEITO DE REPARAÇÕES DE VEÍCULOS ACIDENTADOS NAS SUAS PROPRIEDADES MECÂNICAS F. Jorge Lino e H. Fernandes Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, Departamento de Engenharia Mecânica e Gestão Industrial, Rua Dr. Roberto Frias, 4200-465 Porto, Portugal, Tel.: 225081704 (42), Fax: 225081445, Email: [email protected] , www.fe.up.pt/~falves RESUMO Actualmente não existe grande conhecimento acerca do efeito das reparações de veículos acidentados no futuro desempenho do veículo. Há fortes indícios de que muitas das reparações realizadas afectam significativamente a resistência mecânica e a tenacidade de alguns componentes estruturais. Muitas das vezes, estas reparações efectuam-se devido às companhias de seguros não permitirem a aplicação de novos componentes, mas sim exigirem a reparação dos componentes danificados. Como tal, frequentemente realizam-se reparações que são mais baratas do que substituir componentes. No entanto, não existe nenhuma legislação ou controle acerca do futuro desempenho do veículo, o qual muitas das vezes acaba por nunca mais possuir as mesmos níveis de segurança e desempenho que exibia anteriormente. Com este trabalho, pretende-se apresentar os primeiros resultados de um estudo alargado a realizar no Departamento de Engenharia Mecânica da FEUP, em colaboração com uma empresa do sector automóvel, no sentido de averiguar em que medida é que a resistência de alguns componentes estruturais de veículos acidentados é alterada devido ás operações de reparação realizadas. Nesta primeira fase apresentam-se as propriedades mecânicas de uma parte estrutural de um veículo acidentado, antes e após reparação. Palavras Chave: Automóveis, Reparações, Aços, Propriedades Mecânicas 1. INTRODUÇÃO Actualmente não existe em Portugal nenhum tipo de legislação que controle a qualidade e fiabilidade de reparações realizadas em veículos automóveis. Esta situação

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ESTUDO DO EFEITO DE REPARAÇÕES DE VEÍCULOS ACIDENTADOS

NAS SUAS PROPRIEDADES MECÂNICAS

F. Jorge Lino e H. Fernandes

Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, Departamento de Engenharia

Mecânica e Gestão Industrial, Rua Dr. Roberto Frias, 4200-465 Porto, Portugal, Tel.:

225081704 (42), Fax: 225081445, Email: [email protected], www.fe.up.pt/~falves

RESUMO

Actualmente não existe grande conhecimento acerca do efeito das reparações de

veículos acidentados no futuro desempenho do veículo. Há fortes indícios de que muitas

das reparações realizadas afectam significativamente a resistência mecânica e a

tenacidade de alguns componentes estruturais. Muitas das vezes, estas reparações

efectuam-se devido às companhias de seguros não permitirem a aplicação de novos

componentes, mas sim exigirem a reparação dos componentes danificados. Como tal,

frequentemente realizam-se reparações que são mais baratas do que substituir

componentes. No entanto, não existe nenhuma legislação ou controle acerca do futuro

desempenho do veículo, o qual muitas das vezes acaba por nunca mais possuir as

mesmos níveis de segurança e desempenho que exibia anteriormente.

Com este trabalho, pretende-se apresentar os primeiros resultados de um estudo

alargado a realizar no Departamento de Engenharia Mecânica da FEUP, em colaboração

com uma empresa do sector automóvel, no sentido de averiguar em que medida é que a

resistência de alguns componentes estruturais de veículos acidentados é alterada devido

ás operações de reparação realizadas. Nesta primeira fase apresentam-se as propriedades

mecânicas de uma parte estrutural de um veículo acidentado, antes e após reparação.

Palavras Chave: Automóveis, Reparações, Aços, Propriedades Mecânicas

1. INTRODUÇÃO

Actualmente não existe em Portugal nenhum tipo de legislação que controle a

qualidade e fiabilidade de reparações realizadas em veículos automóveis. Esta situação

conduziu a uma completa anarquia neste sector automóvel, com os proprietários dos

veículos a recorrerem frequentemente aos serviços de oficinas clandestinas que não

garantem os trabalhos realizados. Esta situação é extremamente grave, atendendo a que

do desempenho do veículo depende a segurança e a prevenção de acidentes. O nosso

País, na União Europeia, é frequentemente indicado como aquele que exibe as maiores

taxas de acidentes. Este assunto tem sido objecto das mais acesas discussões e

publicações nas mais variadas revistas. O Governo decidiu alterar o código da estrada,

introduziu medidas de maior controle sobre os condutores, no entanto, a causa dos

acidentes em Portugal não se deve só aos condutores, sendo a qualidade e fiabilidade

dos veículos um factor com bastante peso na taxa de acidentes. Com este trabalho

pretende-se demonstrar a influência que as reparações realizadas em partes estruturais

de veículos automóveis exercem sobre o seu futuro desempenho.

2. CONTROLE DAS REPARAÇÕES

Após um acidente, dependendo da situação, os condutores fazem a participação às

companhias seguradoras. As companhias seguradores vão às oficinas e atribuem um

valor à reparação a realizar. Muitas vezes, estas companhias não autorizam a

substituição dos componentes danificados, exigindo a sua reparação. Noutros casos, as

companhias seguradoras autorizam a sua substituição, mas as empresas reparadoras não

o fazem, realizando apenas a reparação. Estes factos têm consequências, a nível de

resistência, extremamente graves, pondo em causa a segurança dos passageiros em

futuros acidentes. Nalguns casos, esta reparações são realizadas em oficinas do

representante da marca, as quais possuem equipamento especializado, aumentando

assim a qualidade da reparação, no entanto os custos das reparações são elevados. Para

pagar menos, as pessoas tendem a recorrer a oficinas de baixa credibilidade, as quais em

grande parte dos casos, não realizam qualquer tipo de controle nos veículos, nem

possuem equipamento adequado para a realização das reparações.

Os testes de controle de reparações em carroçarias automóveis são essencialmente

testes dimensionais.. O corpo de carroçaria ou chassis, incluindo as chapas exteriores,

só pode ser restaurado de modo perfeito se forem cumpridas as medidas prescritas pelo

construtor. A verificação das medidas mais importantes deverá ser feita a partir de um

banco de ensaios. Só assim se poderão seguir os controles verticais da carroçaria a partir

do plano horizontal do banco. Isto significa que a oficina reparadora deverá conhecer e

estar familiarizada com todas as possibilidades de medição e controle do chassis dos

modelos a reparar. Só com estas condições será possível efectuar o diagnóstico correcto

e determinar a reparação mais adequada a realizar. Seguidamente indicam-se diversos

métodos de medição [1-4].

2.1. ALINHAMENTO

Quando um sinistro ocorre num local do veículo próximo das rodas, o seu

alinhamento poderá ter sido alterado, sendo então necessário verificar os seus valores.

Este processo está representado na figura 1.

Figura 1 - Medição da distância entre eixos.

2.2. DISTÂNCIA ENTRE EIXOS

A medição da distância entre eixos serve para verificar a hipótese de ocorrência de

deformação da carroçaria, não permitindo, no entanto, obter valores exactos [2, 3].

2.3. MEDIÇÃO DIAGONAL

É uma forma pouco comum de medição da carroçaria. Mede-se, partindo da

construção simétrica do corpo de carroçaria, os pontos opostos em diagonal, no plano

ou no espaço. Os valores obtidos são então comparados com os valores normalizados

especificados pelo fabricante para os novos modelos [2, 3].

2.4. OURAS MEDIÇÕES

Para se verificar pontos específicos poderão ser utilizados calibres autocentrantes.

Com um mínimo de três calibres pode efectuar-se a verificação do conjunto do chassis.

Os calibres autocentrantes são suspensos em pontos específicos, alinhados no sentido

transversal ao veículo.

Diversos fabricantes de automóveis têm criado para os seus modelos calibres de

controle de chassis para obterem uma medição exacta do veículo antes, durante e depois

da reparação. Estes calibres servem também para posicionar peças novas para serem

soldadas. As principais vantagens da sua utilização são a fácil mobilidade e o peso

reduzido, no entanto, estes calibres nem sempre possuem uma estabilidade adequada,

sendo por isso necessário realizar medições periódicas de controle dos próprios calibres.

Na figura 2 pode ver-se um destes calibres [2-5].

Figura 2 - Calibres de controlo de chassis (a vermelho) [1].

2.5. PROCESSOS DE MEDIÇÃO MAIS RECENTES

As medições descritas anteriormente poderão ser realizadas de uma forma rigorosa

e sofisticada utilizando um sistema informático. Nestes sistemas, os pontos

característicos do chassis de todos os veículos conhecidos no mercado estão inseridos

num software comercial. Este programa é fornecido juntamente com o sistema de

medição, o qual poderá utilizar um sistema de ultra sons ou de laser. Após a medição, o

programa calcula a diferença entre as medidas reais do chassis e as medidas

normalizadas prescritas pelo fabricante, fornecendo o valor dos deslocamentos

existentes. Perante estes resultados a firma reparadora decide qual o tipo de intervenção

a efectuar no veículo [2-5].

No sistema de medição por laser, numa barra horizontal, paralela ao veículo,

circula um sensor a laser que irá incidir em reflectores que foram previamente

colocados nos pontos característicos do chassis. O sensor mede não só a distância entre

ele e os reflectores como também a distância entre os diversos pontos do veículo. Após

a medição, o software do sistema disponibiliza os resultados com as medidas correctivas

adequadas.

Na medição por ultra sons, existe um emissor de ultra sons e receptores situados

nos pontos fundamentais do chassis. Os receptores reflectem o sinal que permite

determinar as diferentes distâncias entre pontos.

3. TRABALHO EXPERIMENTAL

Neste trabalho utilizou-se o lastro, ou piso de mala, da figura 3, retirado dum

veículo ligeiro acidentado. Desconhece-se qual o aço utilizado na sua produção, no

entanto, atendendo aos aços utilizados na indústria automóvel (Pechiney, Sollac,

Cockerill, etc.), trata-se de um aço de construção de baixo carbono de pouca liga [5].

Este lastro foi analisado antes e após a reparação. A reparação envolveu as seguintes

etapas; aquecimento da chapa para lhe conferir maior maleabilidade durante a sua

reparação, e marteladas sucessivas para conferir à chapa a sua forma inicial. Refira-se a

propósito que esta reparação foi realizada numa oficina, nas condições iguais às

utilizadas em qualquer veículo acidentado.

a) b)

Figura 3 - a) Veículo acidentado já sem a parte da mala acidentada, b) lastro retirado

do veículo. Os provetes antes da reparação foram retirados da zona A (ver figura 4),

enquanto que os provetes depois da reparação foram retirados da zona R.

A

R

Realizaram-se ensaios de tracção e de dureza. O tipo de provetes a obter para a

realização destes ensaios foi condicionado pelas dimensões do lastro existente, o qual

tinha 1 mm de espessura e a forma apresentada na figura 4.

a) b)

Figura 4 - Provetes de tracção antes da reparação, a) identificação dos locais de onde

foram retirados os provetes, b) provetes após a maquinagem.

Para os ensaios extraíram-se 5 provetes para cada uma das situações do lastro,

antes (A) e após a reparação (R). Os 5 provetes do ensaio de tracção (TR) foram

cortados e maquinados para as dimensões especificadas na tabela I. Na tabela II estão

indicados os valores médios obtidos nos ensaios de tracção e de dureza, antes e após

reparação, respectivamente.

Tabela I - Dimensões dos provetes

Provete Dimensões (mm)

Tracção Largura Lo Comprimento Lt

TR 12,50 50 135

Como facilmente se conclui, a reparação realizada aumentou significativamente a

tensão de limite de elasticidade (8,8%) e a tensão de ruptura da chapa (16%), no entanto

reduziu drasticamente (34%) a sua capacidade de absorção de energia de deformação.

Perante estes resultados era também de esperar o aumento de dureza da chapa, cerca de

32 %. Este facto deve-se provavelmente às operações de martelagem que originaram um

encruamento significativo na superfície da chapa.

Tabela II - Resultados do ensaio de tracção e dureza.

Provete Rp0,2 [MPa]

Rm [MPa]

At [%] HV5

ATR 244 272,5 41,0 114

RTR 265,5 315,5 27,0 150

Para a análise microestrutural as amostras foram cortadas, desbastadas e polidas

usando os procedimentos usuais de preparação metalográfica. As amostras foram

observadas em microscópico óptico, sem e com ataque com Nital a 1%. Foram

adquiridas e caracterizadas imagens digitais utilizando o Software DP - Soft da

Olympus.

A figura 5 mostra a microestrutura da uma secção transversal da chapa, antes e

após a reparação, respectivamente. Como facilmente se observa, esta microestrutura é

composta por uma matriz ferrítica, contendo pequenas quantidades de perlite (cor

escura), localizada essencialmente nas fronteiras de grão, e grãos alinhados na direcção

perpendicular ao plano da chapa. Em termos gerais não há diferenças significativas

nestas duas microestruturas. A microestrutura obtida do plano da chapa é idêntica a esta,

mas os grãos apresentam-se equiaxiais.

O tamanho do grão (G) foi determinado utilizando a seguinte expressão [6]:

MNLG 56,1= (1)

em que L é o comprimento total das rectas, M a ampliação da imagem e N o número de

intersecções (para serem significativas deve ser > 400). Foram utilizadas 9 rectas a que

correspondeu um L de 1387 mm, e utilizaram-se ampliações de 370 e 875x. Mediram-se

os tamanhos de grão ao longo do plano da chapa e em secções transversais. Os

resultados obtidos estão indicados na tabela III.

a) b)

Figura 5 - Microestrutura do aço com ataque com Nital a 1% e com a mesma

ampliação, a) antes da reparação e b) após a reparação.

Tabela III - Tamanhos de grão médios.

Tamanho de Grão Médio G – secção transv. (µµµµm) G– secção horiz.(µµµµm)

Antes da Reparação 28 18

Após Reparação 31 28

Verifica-se assim que há um aumento do tamanho de grão. Este facto deve-se

provavelmente às temperaturas a que a chapa fica sujeita, durante o aquecimento para

aumentar a sua maleabilidade, e às martelagens realizadas na superfície da chapa

(origina valores mais elevados na secção horizontal). Futuramente, este aspecto irá ser

abordado com detalhe através da instrumentação dos paineis a serem reparados. Refira-

se também que a atmosfera da reparação é importante e será futuramente caracterizada,

uma vez que pode contribuir para alterações da % de C da camada superficial da chapa,

o que se reflecte nos valores de dureza obtidos.

A reparação da chapa teve consequências graves na camada zincada. A camada

inicial medida era bastante homogénea a apresentava uma espessura média de 13.2 µm.

Após reparação, num dos lados da chapa esta camada é totalmente destruída, ficando a

outra face com a camada deteriorada e desgastada, com uma espessura de cerca de 7

µm, tal como se pode observar na figura 6.

a) b)

Figura 6 - Camada zincada, a) a camada zincada desapareceu da chapa na face em que

foi realizada a reparação, b) camada zincada deteriorada correspondente à outra face da

chapa.

CONCLUSÕES

Este trabalho forneceu elementos importantes para a caracterização do efeito das

reparações realizadas em veículos acidentados, tendo-se analisado, neste caso, um lastro

(piso da mala) de um automóvel ligeiro. Comparando as curvas de tracção obtidas, antes

e após a reparação, verifica-se que depois da reparação o material apresenta um

aumento de 8,80% na tensão de limite de elasticidade e que a tensão de ruptura aumenta

cerca de 16 %, ou seja, há um aumento significativa da resistência do material após a

reparação. Contudo, há uma diminuição significativa da ductilidade do material, a

capacidade da chapa em absorver energia é reduzida de 34 %, o que poderá ter

consequências graves em caso de um novo acidente.

Os valores obtidos com o ensaio de dureza permitiram constatar que as secções

transversais e longitudinais apresentavam valores similares, tendo sido calculada a sua

média. A dureza aumentou, após a reparação, cerca de 32%.

A análise de uma secção transversal da chapa revelou que a espessura da camada

de zinco que reveste a chapa, por forma a protegê-la da corrosão, diminuiu numa das

faces cerca de 47% depois da reparação, o que se deve ao aquecimento e ao seu

manuseamento. Na outra face da chapa a camada desapareceu praticamente por

completo, devido às marteladas sucessivas e à chama oxiacetilénica utilizada no

aquecimento. Este resultado mostra que a resistência da chapa à corrosão vai ser

Chapa

Camada zincada

significativamente reduzida. A análise microestrutural evidenciou a existência de uma

matriz ferrítica com muito pequenas quantidades de perlite, localizada essencialmente

nas juntas de grão, o que está de acordo com os aços de baixa percentagem de carbono.

Após reparação não se notam diferenças significativas a este nível, podendo o aumento

de resistência ser justificado pela encruamento provocado pelas operações de

martelagem.

O tamanho do grão aumenta 54% com a reparação, o que se deve às temperaturas

atingidas pela chapa durante a reparação, e à inexistência de mecanismos de redução da

mobilidade das juntas de grão a temperatura elevada.

REFERÊNCIAS

[1] A.S.M, International Conference Proceedings, “ HSLA Steels, Metallurgie &

Applications” Edited by J.M.Gray, November, 1985.

[2] Danner, M., La moderna reparación de automoviles, Editorial Mapfre S.A., Centro

de Investigação de Seguridad Vial (CESVI), 1987.

[3] Iliffe, Body Construction and Design, Ed. J. G. Giles, Automotive Technologie

Series, Volume 6, January, 1989.

[4] Mech, I., Vehicle Structures, International Conference on Publications, published

for the Institution of Mechanical Engineers by Mechanical Engineering

Publications Limited, July 18th, 1984.

[5] Pawlowski, J., Vehicle Body Engineering, Business Books Limited, Edited by

Grey Tidbury, 1989.

[6] Wurst, J. C. and Nelson, J. A., Lineal Intercept Technique for Measuring Grain

Size in Two-Phase Polycristalline Ceramics”, J. Am. Ceram. Soc., 55 [2] pp. 109

1993.