Estudo da Sátira Menipéia

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A SÁTIRA MENIPÉIA NO CONTEXTO DA REVOLUÇÃODE ABRIL: Alexandra Alpha, de José Cardoso Pires POR Wandercy de Carvalho Departamento de Letras Vernáculas Dissertação de Mestrado apresentada ao programa de Pós-graduação em Letras Vernáculas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas (Literatura Portuguesa). Orientadora: Professora Doutora Ângela Beatriz de Carvalho Faria. Rio de Janeiro, maio de 2008 UFRJ/ Faculdade de Letras

Transcript of Estudo da Sátira Menipéia

A STIRA MENIPIANO CONTEXTO DA REVOLUODE ABRIL:

Alexandra Alpha, de Jos Cardoso PiresPOR

Wandercy de CarvalhoDepartamento de Letras Vernculas

Dissertao de Mestrado apresentada ao programa de Ps-graduao em Letras Vernculas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Letras Vernculas (Literatura Portuguesa).

Orientadora: Professora Doutora ngela Beatriz de Carvalho Faria.

Rio de Janeiro, maio de 2008 UFRJ/ Faculdade de Letras

CARVALHO, Wandercy de. A Stira menipia no contexto da Revoluo de Abril: Alexandra Alpha, de Jos Cardoso Pires. Dissertao de Mestrado em Letras Vernculas __ Literatura Portuguesa. Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Maio, 2008, 150 p.

BANCA EXAMINADORA

________________________________________________________________________ Prof. Dra. ngela Beatriz de Carvalho Faria _ UFRJ _ Letras Vernculas _ (Orientadora)

________________________________________________________________________ Prof. Dra. Dalva Calvo _ UFF _ Letras Vernculas

________________________________________________________________________ Prof. Dra. Lcia Maria Moutinho Ribeiro _ UFRJ/ UNIRIO _ Letras Vernculas

________________________________________________________________________ Prof. Dra. Carmem Lcia Tind Ribeiro Secco _ UFRJ _ Letras Vernculas (Suplente)

________________________________________________________________________ Prof. Dr. Silvio Renato Jorge _ UFF _ Letras Vernculas (Suplente)

Carvalho, Wandercy de. A Stira Menipia no Contexto da Revoluo de Abril: Alexandra Alpha, de Jos Cardoso Pires/ Wandercy de Carvalho. - Rio de Janeiro: UFRJ/ FL, 2008. vii, 150.: f; 31 cm. Orientadora: ngela Beatriz de Carvalho Faria Dissertao (Mestrado) - UFRJ/ FL / Programa de Ps-graduao em Letras Vernculas, 2008. Referncia Bibliogrfica: f. 144 - 150. 1. Stira menipia. 2. Fico Portuguesa Contempornea. 3. Jos Cardoso Pires I. Faria, ngela Beatriz de Carvalho. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Letras. III. Ttulo.

NGELA BEATRIZ DE CARVALHO FARIA, ofereo em agradecimento pelos caminhos apontados e a dedicao firme e atenciosa, durante todo o processo de construo.

A TONYVAN CARVALHO OLIVEIRA, eterno mantenedor da minha prpria vida. S eu sei a extenso de sua importncia.

VANDIR, irm querida a quem sou grato pelo apoio contnuo.

A JOS CARDOSO PIRES (in memoriam), com quem espero ter compartilhado a carnavalizao literria.

VERA LCIA SOARES (UFF), mestra querida e dedicada, que jamais ser esquecida. Onde se v um pequeno corpo de mulher, leia-se grandes maravilhas na natureza humana. SUELY ALVES DOS SANTOS, amiga e confidente das horas mais difceis.

AO WANDERLEY, irmo querido, ainda que sempre muito distante.

RESUMO

Ttulo: A Stira Menipia no Contexto da Revoluo de Abril: Alexandra Alpha, de Jos Cardoso Pires. Por Wandercy de Carvalho Orientadora: Prof. Dra. ngela Beatriz de Carvalho Faria

Resumo da Dissertao de Mestrado submentida ao Programa de Ps-graduao em Letras Vernculas, Instituto de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Literatura Portuguesa.

Em diferentes pocas da Histria, os escritores sempre encontraram um meio de escapar da opresso, e a mais poderosa e eficiente arma de combate, usada, para isso, tem sido o riso. Aristfanes, Juvenal, Petrnio, Sneca e tantos outros descobriram, no dia-adia, material para focalizar determinadas questes, somente possveis de serem apresentadas atravs da stira, uma vez que ela estabelece o ponto de interseo entre a tenso poltica e a banalidade social. E ao fazer convergir dois procedimentos sociais to opostos, a representao satrica possibilita o encontro entre essas diferentes linhas de foras, o que resulta em distintas formas de fazer transbordar o riso: O cmico, o burlesco, o dito chistoso, a linguagem de baixo calo, o transformismo e outras manifestaes surgem no espao ficcional sarico. O nosso objetivo resgatar, no romance portugus contemporneo, Alexandra Alpha, de Jos Cardoso Pires, a revivescncia da stira menipia, gnero cmico-srio da Antigidade Clssica, privilegiando as caractersticas inerentes s personagens que testemunharam a Histria recente de Portugal. Como embasamento terico de apoio, utilizamos, principalmente, os conceitos bakhtinianos presentes em Problemas da Potica de Dostoievski, A Cultura Popular da Idade Mdia e o Renascimento: o contexto de Francois Rabelais e Questes de Literatura e de Esttica (A Teoria do Romance). A anlise proposta visa detectar o riso, a ironia e a carnavalizao, a fim de se destacar o propsito autoral e a desmitificao dos arqutipos poltico-revolucionrios, presentes no contexto da Revoluo de Abril de 1974.

Palavras-chave: Stira menipia, Jos Cardoso Pires, fico portuguesa contempornea.

Rio de Janeiro Maio - 2008

RSUM

Ttulo: A Satira Menipia no Contexto da Revoluo de Abril: Alexandra Alpha, de Jos Cardoso Pires Por Wandercy de Carvalho Orientadora: Prof. Dra. ngela Beatriz de Carvalho Faria

Rsum da Dissertao de Mestrado submetido ao Programa de Ps-graduao em Letras Vernculas, Instituto de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Literatura Portuguesa.

En diffrents poques de l'Histoire, les crivains ont toujours trouv une alternative pour chapper l'oppression, le rire ayant t la plus puissante et efficace arme de combat utilise cette fin. Aristophanes, Juvnal, Ptrone, Snque et autant d'autres ont dcouvert, maintes reprises, du metriau pour mettre en evidence certaines questions qui ne pourraient tre prsentes qu' travers de la satire, tant donn qu'elle tablit un point d'intersection entre la tension politique et la banalit social. En faisant converger deux procds sociaux si opposs, la rpresentacion satirique permet la rencontre de ces diffrentes lignes de force, ce qui rsulte dans des manire distinctes de faire dborder le rire: le comique, le burlesque, le dit saillant, le langage argotque, le transformisme et d'autres manifestations dans l'espace ficcional satirique. Notre but est de reprer, dans le roman portugais contemporain, Alexandra Alpha, de Jos Cardoso Pires, la revivescence de la satire menipie, genre comique-srieux de l'Antiquit Classique, en privilgiant les caractristiques propres aux personnages qui ont tmoign l'Histoire rcente du Portugal. Comme appui thorique, nous faisons appel aux prsupposs thoriques de M. Bakhtine et ses tudes dveloppes sur la satire menipe, particulirment, dans les oeuvres: Prolmes de la potique de Dostovsky, La Culture Populaire au Mayen Age et dans la Renaissence le contexte de Franois Rabelais, et Questions de la littrature et esthtique. L'analyse propose prtend detecter le rire, l'ironie et la carnavalisation des archtypes politico-revolucionnaires, que sont prsents dans la Revolution d'Avril de 1974.

MOTS-CL: Satire menipie, Jos Caroso Pires, fiction portugaise contemporaine.

Rio de Janeiro Maio - 2008

SUMRIO

pg 1 - INTRODUO.................................................................................... 08

1.1 - Textos de Cardoso Pires: Contatos e encantamentos .................. 08 1.1.1 - Sob a tica de crocodilos .................................................. 13 1.1.2 - Cenrios de histrias sem fim ........................................... 24 1.1.3 - Alexandra Alpha e outras personagens ............................ 34

2 - O gnero stira menipia e seus temas ................................................. 44

3 - Destronamentos e Renovaes: para alm dos contratos sociais ........ 62 3.1 - Stira e costumes sociais .............................................................. 62 3.1.1 - Religio, sexo e riso ........................................................... 64 3.1.2 - O corpo humano, anatmico e fisiolgico ..........................78 3.1.3 - Sries da nutrio e da bebida-embriaguez ....................... 85

3.2 - Figuraes da morte em Alexandra Alpha ................................... 95 3.2.1 - Runas e infinitudes ......................................................... 97 3.2.2 - Festa popular e renovao ................................................ 112 3.2.3 - Humor e stira na hora da morte ...................................... 123

4 - CONCLUSO ...................................................................................... 141

5 - BIBLIOGRAFIA .................................................................................. 144

1 - INTRODUO

1.1 - Textos de Cardoso Pires: contatos e encantamentos

O primeiro contato com o romance Alexandra Alpha ocorreu na disciplina: "Tpicos de Teoria, Crtica e Histria Literria", ministrada pela professora Doutora Dalva Calvo, no segundo semestre de 2005, no curso, "Jos Cardoso Pires: fico e crtica", na Universidade Federal Fluminense. Na ocasio, tivemos o prazer de conhecer tambm vrias obras deste autor: O Anjo Ancorado (1958), Hspede de Jb (1964), O Delfim (1968), Balada da Praia dos Ces (1982) e Alexandra Alpha (1988), entre outros. Os cinco romances apresentados, no que se refere publicao, ainda que eles tenham surgido em um perodo relativamente grande entre si, formam um conjunto temtico quase homogneo. Ali existem muitas questes relativas identidade e memria relacionadas poltica salazarista, assim como outros fatos Histricos. Durante o decorrer do curso ainda nos foram apresentados os seguintes textos: O Render dos Heris (1960), Os caminheiros e Outros Contos, Cartilha do Marialva (1960), E Agora, Jos? (1978), De Profundis, Valsa Lenta (1998), e Lisboa, livro de bordo: vozes, olhares e memoraes (1997). Muitas outras informaes ainda foram apresentadas, principalmente aquelas referentes s atividades do autor, as conquistas, os prmios, e, principalmente, sobre o tico e o esttico; procedimentos marcantes na obra desse instigante escritor. Aps os primeiros contatos com o romance Alexandra Alpha, percebemos que o mesmo superava as valiosas questes apresentadas ao longo do curso, e, tal fato nos despertou o desejo de uma apreciao mais profunda. E no envolvimento com o mundo ficcional cardoseano, cresceu a percepo de um complexo contedo submerso na

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superfcie do romance Alexandra Alpha, ainda intocado, e que "suplicava" surdamente, como um precioso minrio, para ser explorado. E, to grande foi o impacto causado pela leitura deste romance, que, desde ento, juntando o nosso prvio conhecimento sobre a menipia, obtido ao longo da graduao em Latim, e mais a identificao do romance Alexandra Alpha com outros textos assemelhados, logo decidimos "minerar" a stira menipia no referido romance. A obra ficcional, (em vida), de Cardoso Pires, ao compreender o perodo entre 1949 a 1997, insere e recria numerosos acontecimentos contemporneos ao escritor. Detalhes marcantes e comentrios inesquecveis revelam questes sociais, culturais e histricas que remetem a determinados momento sombrios da Histria recente de Portugal. Tal postura ou intencionalidade autoral, certamente, desperta, no leitor, maior interesse pela narrativa, uma vez que fico e Histria confundem-se no espao ficcional. Em funo dessa e de outras questes, muito j foi dito sobre a escrita de Cardoso Pires, principalmente quando se focaliza o Neo-Realismo. Aqui, entretanto, destacamos um fragmento crtico extrado da obra de Eunice Cabral sobre um dos romances acima referidos:

O Hospede de Job uma narrativa romanesca vinculada a caractersticas da fico neo-realista, que se afiguram centrais ao cnone neo-realista, a saber, a configurao de um espao contnuo como cenrio social constitudo pela representao narrativa dotada de articulao directa com uma realidade emprica de referncia, que diz respeito s condies de vida de camponeses do sul de Portugal, sem terra e sem trabalho fixo, durante o regime totalitrio vigente na dcada de 501.

A competente autora, exmia especialista em Cardoso Pires, continua a enumerar mais algumas das caractersticas que determinaram a literatura deste perodo e, entre outras, observa-se: "a constituio da personagem em articulao com a realidade

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CABRAL, E. (1999) p. 119.

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exterior representada em que se insere, sendo caracterizada sobretudo nos seus contornos sociais". Com o Neo-Realismo, o texto ganha um novo "material" literrio: a questo social implicada pelos jogos de interesses econmicos e sociais. Na poca, o contexto scio-poltico na Europa passava por momentos de transformaes, e, dentre elas, evidenciavam-se as novas idias polticas e cientficas, assim como as lutas sociais, incorporadas s temticas dos romances, da autoria de escritores engajados politicamente. Esse tema, praticamente esquecido pelos presencistas, veio a motivar algumas crticas por parte da nova "safra" de autores de esquerda; eles comeam a questionar a postura alienante dos membros da revista Presena, que pareciam ignorar a ascenso do nazismo e do fascismo na Europa. Este cenrio de opresso acentuou a conscincia de que a literatura precisava empenhar-se melhor com os fatos relativos s questes sociais, em uma poca marcada pela supresso dos direitos individuais. Estes fatores certamente contriburam para despontar nova ideologia envolvendo Histria e sociedade; tais ocorrncias vo ocasionar o desenvolvimento de uma atitude esttica denominada, como sabemos, de Neo-Realismo. O tema predominante neste novo ciclo narrativo ser o de mostrar que as relaes sociais esto diretamente relacionadas com os fatores econmicos. O Neo-Realismo, portanto, ser uma corrente esttica definitivamente marcada por um vis social; nela existem o claro propsito e objetivos de transformar o que est previamente estabelecido. Em funo da necessria teorizao sobre a menipia, fomos acrescentando outras leituras quelas de nosso prvio conhecimento, para ampliarmos ainda mais o saber sobre os diferentes aspectos satricos identificados em Alexandra Alpha. Com isso, as vrias modalidades desse gnero foram se destacando no referido texto. Em Sob a tica de crocodilos, destacamos alguns aspectos do romance: l

revelamos Jos Cardoso Pires fazendo um "balano" dos ltimos anos que antecederam o

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dia da Revoluo de Abril, este exato dia, e alguns anos aps esta data. Apontamos ainda a forma como o romance apresentado ao leitor; destacamos, principalmente, alguns aspectos das personagens. Para isso tomamos como base a leitura de A Personagem, de Beth Brait, obra capaz de orientar o leitor no que diz respeito reflexo sobre a concepo das personagens, cuja mudana na diacronia literria varia desde Aristteles, passando por Horcio at a mais moderna perspectiva terica da atualidade. De igual modo nos apoiamos nas teorias de Vitor Manuel de Aguiar e Silva, particularmente o VI captulo de Teoria da Literatura, em que apresenta reflexes crticas sobre o romance. Em Cenrios de histria sem fim, falamos sobre o "cenrio portugus"; ali esto relacionados o espao social, o psicolgico, e o geogrfico; locais por onde as personagens se deslocam, estabelecendo diferentes finalidades; e onde, ainda,

focalizada a banalizao de determinados espaos revestidos de outras significaes ou escapes para outros "mundos". Em O gnero stira menipia e seus temas, apresentamos a parte terica sobre os diferentes aspectos do gnero stira menipia. Fazemos uma pequena diacronia, reconhecidamente incompleta sobre a stira; destacamos, ainda, os principais autores poca do Imprio romano. Neste captulo, apontamos a importncia dos estudos de Bakhtin, particularmente o livro A cultura popular na Idade Mdia e no Renascimento: o contexto de Franois Rabelais. Em Destronamentos e renovaes: para alm dos contratos sociais, pomos a teoria em prtica; isto , identificamos, em Alexandra Alpha, algumas sries prprias da stira, assemelhadas quelas encontradas por Bakhtin, na obra de Rabelais. Em razo das numerosas variaes da stira, este captulo foi subdividido em dois: costumes sociais: 1) Stira e

Religio, sexo e riso; O corpo humano, anatmico e fisiolgico;

Sries da nutrio e da bebida-embriaguez; 2) Figuraes da morte em Alexandra

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Alpha. Aqui so destacados os mais variados aspectos envolvendo as diferentes relaes entre humor e morte, a saber: Humor e stira na hora da morte; Runas e infinitudes; Festa popular e renovao. Durante o percurso da pesquisa, fomos encontrando muitos trabalhos teis e significativos. Cada um deles contribuiu com uma fagulha de luz para iluminar este rduo, e, ao mesmo tempo, prazeroso caminho a ser percorrido, ao longo da estrada que resultou nesta Dissertao. Dentre estes trabalhos, possvel citar as importantes

contribuies de Maria Lcia Lepecki: "Ideologia e Imaginrio: ensaio sobre Jos Cardoso Pires" e de Eunice Cabral: "Jos Cardoso Pires - representao do mundo social na fico (1958 - 82)", a quem fazemos meno, retirando trechos que clarificam o autor e a obra selecionada para anlise. Alm desses, outros significativos trabalhos despontaram como importantes fontes de informaes: "Alexandra Alpha, metfora de Portugal", de Izabel Margato (PUC/RJ); "A intertextualidade em Alexandra Alpha, de Cardoso Pires", Joo Dcio (UNESP); "A questo da identidade em Alexandra Alpha", Maria Helena Saldanha Barbosa (CPGL/PUCRS); "Alexandra Alpha, uma leitura", Lcia Maria Moutinho Ribeiro

(UFRJ); "Memria, linguagem e histria na fico portuguesa contempornea", ngela Beatriz de Carvalho Faria (UFRJ); "A Revoluo de abril: a inveno da liberdade", ngela Beatriz de Carvalho Faria (UFRJ); "Bandeira e a Menipia", Maria de Santa Cruz (Universidade de Lisboa); "Entrevista com Jos Cardoso Pires", Maria Fernanda de Abreu (Universidade de Lisboa); "Jos Cardoso Pires, a construo de uma escrita em liberdade", Izabel Margato (PUC - Rio); "Espao em questo: Portugal no romance de Cardoso Pires", Maria Lcia Scher Pereira (UFJF), Utopias de viagem: amor e revoluo em Alexandra Alpha, de Pedro Brum dos Santos, (UFSM), A Escritura do provvel em Augusto Abelaira __ Dissertao de Mestrado, da autoria de ngela Beatriz de Carvalho

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Faria, minha orientadora, que aponta a presena da stira menipia na fico abelairiana, especificamente nos romances O triunfo da morte e O bosque harmonioso. Sou muito grato Professora Dra. Dalva Calvo (UFF). Foi ela quem primeiro me apresentou o autor Jos Cardoso Pires, quando, ento, aps ler o romance Alexandra Alpha, surgiram as primeiras idias para esta Dissertao. Porm, minha maior gratido pela cumplicidade da paixo por esta obra dada Professora Dra. ngela Beatriz de Carvalho Faria (UFRJ), a quem admiro e agradeo a orientao valiosa, inteligente e precisa. Ningum melhor do que ela saberia apontar, com tanta delicadeza, sensibilidade e carinho, os caminhos to preciosos a serem percorridos.

1.1.1 - Sob a tica de crocodilos

O romance Alexandra Alpha foi publicado em 1987, treze anos aps a Revoluo dos Cravos, ocorrida em Portugal. difcil afirmar, entretanto possvel supor que Jos Cardoso Pires tentou recriar todo o clima de incerteza que antecedeu o dia 25 de abril de 1974, o dia principal da Revoluo dos Cravos, e os inesperados e frustrantes primeiros anos subseqentes. Embora no seja definida a data do incio da narrao dos fatos transcorridos no romance, possvel imaginar que eles comeam em 1961, visto que a protagonista rememora fatos transcorridos com ela, neste ano, quando esteve no Rio de Janeiro, "14 de novembro" (AA, 22). O trmino do romance assinala o mesmo dia: "14 de novembro de 1976" (AA, 358), percorrendo, assim, exatos quinze anos. Nesse romance, Cardoso Pires faz um balano de alguns anos da recente histria de Portugal. Atravs de um jogo mimtico, a narrativa como um afiado bisturi que corta na prpria carne as agudas questes do velho e do novo regimes instalados no pas. Alexandra Alpha, antes de tudo, um livro imprevisvel. Nele h mudanas bruscas e

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aparentemente inexplicveis no que se refere aos temas e s formas de representao capazes de submeter o leitor a uma repentina prova de tolerncia, uma vez que, em determinadas pginas, so abordadas questes "srias" e, logo a seguir, pode ocorrer a surpreendente apario do humor com atos risveis e palavras de baixo calo. Alexandra Alpha um texto multitemtico e multiformal. Nada nele se estabelece como fixo, definido. Ainda que caminhe, particularmente, por um terreno documental, instaura-se como fico. "conversa de bar". Parece reportagem, mas, tambm, assemelha-se muito a

Apresenta, portanto, uma mistura de fico e realidade factual,

quando insere poesia, fatos da Histria de Portugal, reprodues fotogrficas, "flashes" da guerra colonial africana, narrativas autnomas de vis alegrico, cenas retiradas de roteiros de cinema, atos polticos, mensagens nos muros da cidade. H, inclusive,

vestgios de campanhas publicitrias, parbolas, provrbios, "Papis de Alexandra Alpha" transformados em epgrafes e presentes no "enquadramento narrativo" (AA, 7). H, tambm, vozes simultneas que ressoam no mesmo enunciado, capazes de configurar o processo polifnico, teorizado por M. Bakhtin. Nossa proposta tem como objetivo analisar o romance Alexandra Alpha e detectar a possvel revivescncia do gnero denominado stira menipia, como veremos no decorrer da exposio. Este gnero cmico-srio, marcado por determinadas caractersticas, pode surpreender o leitor desavisado, no s no que se refere linguagem empregada, como, tambm, sua finalidade; visto que a stira mantm a conhecida disposio para apontar e criticar os maus costumes, tornando-se, assim, um poderoso instrumento, usado pelos escritores, para zombar e criticar os que esto no topo do poder. Fenmeno este, recorrente em Alexandra Alpha. Desse modo, tais caractersticas, presentes no romance citado, nos motivaram a destacar os elementos prprios da stira. Como se sabe, este gnero percorre uma

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historicidade abrangente desde o perodo clssico da Grcia; destaca-se, particularmente, durante o Imprio romano, atravessa toda a Idade Mdia e, nos dias de hoje, ainda parece-nos muito apreciado pelos escritores e humoristas de planto. Em todo caso, de certa forma, convm avisar que esta Dissertao , no mnimo, desaconselhada para aqueles que gostam de temas e de estratgias discursivas totalmente certinhas e bem comportadas, uma vez que optar pela focalizao e aceitao da stira menipia requer uma viso laica, sem preconceito ou censura, para que determinadas situaes ou o prprio vocabulrio, considerado chulo, possam ter lugar, como quaisquer outros, dentro do universo acadmico. O romance organiza-se da seguinte forma: Nota sobre a personagem Alexandra Alpha, apontamentos pessoais gravados em fita magntica ("Papis de Alexandra Alpha"); uma espcie de prlogo, contendo a narrativa da morte de Roberto Waldir Lozano, o "anjo suicida" ou o "anjo vermelho (como lhe chamavam as folhas populares)", (AA, 12), e, a partida de Alexandra para Portugal com o menino Beto. Em seguida o romance dividido em duas partes principais: "A Cor da Prola" e "Ascenso e Morte": A primeira formada por sete captulos e a segunda, por trs, numerados com algarismos romanos. Cada uma, por sua vez, apresenta uma epgrafe que remete s temticas a serem desenvolvidas, a saber: "cidades cor de prolas onde as mulheres existem velozmente" (intertexto com Herberto Helder), e "a repetio em crculos fechados de pessoas e de situaes". Ambas as partes so circunscritas pelas mortes trgicas, inesperadas e involuntrias, que configuram enigmas narrativos. Sero elas resultantes de atos de barbrie, impetrados por sujeitos annimos e inimputveis; ou decorrem de atos que buscam impedir ou incitar transgresses? Implcitas a elas, h solidariedades comunitrias, conscincia poltica e desejos de libertao ou atos de traio e de punio?

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Estas mortes ocorrem durante vos: Waldir foi assassinado ao planar de asa-delta; Alexandra, Maria e Miguel, vtimas de uma bomba-relgio, quando voavam na "avioneta Piper Club", no momento em que se preparavam para espalhar cartazes alertando sobre uma epidemia suna em Portugal, no perodo socialista da Ps-Revoluo de Abril. Se comparado s outras divises do romance, o prlogo minsculo, pois contm apenas sete pginas (09 a 15)2. Nele, os fatos transcorrem no Brasil e conta-se a histria de Waldir, um dos amantes da protagonista Alexandra Alpha, durante o tempo em que ela morou no Rio de Janeiro. Waldir passeia de asa delta, na orla martima do Arpoador, em Ipanema, quando atingido por dois tiros, ao ser confundido com uma imensa ave de rapina. O "belo anjo" cai e morre. Em funo da ambigidade das atitudes e dos atos de interpretaes diferenciados, a histria de Waldir adquire vrias verses nos jornais. Aps a morte dele, Alexandra retorna a Portugal, levando consigo o Beto, garoto de trs anos, filho de Waldir Lozano e Neusa Paloma que estava presa por trfico de drogas, latrocnio e falsificao. A parte que vai da pgina 17 at a 284 nomeada de "A Cor da Prola". Sendo que da pgina 19 at a 273 so narrados os fatos que antecedem a Revoluo de 25 de Abril de 1974; tais fatos so entremeados por narrativas autnomas e alegricas: "O caso das monjas desnudas e dos monstros de Deus", "A deusa janela", Parbola da mulher drago", etc. Naquelas pginas, apresentado o quotidiano alienado da classe mdia lisboeta. As personagens, privilegiadas economicamente, ainda que constituam a elite intelectual, quase nunca levantam questionamentos; elas se encontram nos bares, restaurantes e botes, onde bebem, fumam e se divertem. As conversas, prolixas, giram sobre temas do dia-a-dia: projetos, viagens, cinema, literatura, relaes humanas, artes e noitadas

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PIRES, J. C. Alexandra Alpha. So Paulo: Cia das Letras, 1988.

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interminveis. Ou seja, os debates giram em torno daquelas questes aparentemente "menores". Em funo da bebida, do desregramento provocado pelo lcool, nesta parte do romance que mais aparecem as manifestaes satricas. Dentre elas, os jogos de palavras e trocadilhos, os comportamentos excntricos, as obscenidades, a linguagem de baixo calo, as manifestaes de virilidade, ou seja, muito "material" utilizado pelo autor como instrumento de ataque aos vcios e aos maus costumes. Parece-nos que h um interesse em recriar uma "atmosfera" alienada dos tempos do governo de Salazar; estando, tal ateno, centrada na classe mais privilegiada; pois a narrativa se caracteriza, principalmente, pela ausncia de iniciativa da intelectualidade, no que diz respeito a uma praxis social que levaria to desejada Revoluo. Cardoso Pires tem um modo especial de contar, e quando o faz, parece que pinta ou expe uma "radiografia" contraluz. Ao leitor revelado um Portugal marcado por suas verdades e contradies. Em "A cor da prola" (pgina 19 at 273), o recente passado portugus matria resgatada como um filme que passa aos olhos do leitorespectador. Ali h o registro da histria de um Portugal que parece fazer parte da vida daquele crtico, que no se limita em apontar os fatos indicados como se no fizesse parte deles. como se dissesse: "a coisa se passou assim, eu fiz parte disto". Ento, sem poder conter o impulso de contar, ele se lana nessa aventura de registrar, atravs de um relato documental, os fatos recentes da vida dos portugueses e de Portugal. Mas, ao fazlo, se entusiasma tanto que, em certos momentos, "exagera nas tintas". Contudo, no final, produz um livro que transborda transgresso, lucidez, atitude e coragem. Da pgina 273 a 284, o narrador assinala fatos ocorridos durante o dia vinte e cinco de abril __ o momento exato da Revoluo dos Cravos, em Portugal. Neste fragmento textual manifestada a euforia que atinge as pessoas quando elas sabem que findou o

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salazarismo. uma narrativa curta (menos de doze pginas), mas suficiente para expor a plena e radiosa alegria provocada pela queda do antigo regime. Nesse instigante trabalho de rememorao, h um inteiro envolvimento entre aquele que assume o discurso e os fatos narrados. Os acontecimentos ocorridos, no dia da Revoluo, assemelham-se a um grandioso espetculo, transcorrido em praa pblica, do qual, o sujeito autoral tambm fez parte. Como um menino ribeirinho que pula dentro de um rio junto com os outros aps uma partida de futebol, o narrador-autor fala do dia vinte e cinco de abril como se a data e os acontecimentos daquele dia representassem um fato extremamente desejado. Os eventos descritos e narrados so inteiramente cinematogrficos. Entusiasmado no meio da multido, Cardoso Pires se deixa, inclusive, fotografar em cima de uma chaimite (espcie de tanque de guerra), localizada nas proximidades do Largo do Carmo e, ao mesmo tempo, sitiada pela multido. O que nos permite, por vezes, falar em narradorautor, no decorrer da Dissertao. Em determinados momentos torna-se bastante difcil diferenciar o fato da fico. Isabel Margato3, em um estudo de sua autoria, reproduz uma foto tirada na ocasio. Nela, o escritor, que aparece em primeiro plano, observa os soldados a apontarem suas armas para o alto. O riso estampado no rosto de Cardoso Pires demonstra ser aquele um momento muito especial. O grupo de civis que o acompanha confraterniza e compartilha do mesmo entusiasmo prazeroso; o mgico instante, capturado pela fotografia, aproxima e assemelha a comemorao do ato de bravura e euforia a uma grande festa dionisaca. E a foto, documento vivo do que acaba de acontecer, "tematiza a questo da identidade do pas e do prprio sujeito revolucionrio4". Esta grande festa em praa pblica, feita para comemorar a queda do salazarismo, tem marcas de carnaval, sinais de desregramento, de embriaguez coletiva e, mais uma vez, marcas dionisacas, tpicas da menipia.3 4

MARGATO, I. (2001) p. 217. FARIA, A. B. (2001) p. 54.

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Mas ao documentar essa alegria que tomou conta das pessoas, o narrador parece preparar e convidar o leitor, para, juntos, decepcionarem-se com as questes que sero abordadas mais frente. Pois na seqncia da leitura, so apontados fatos que,

condenados por ocasio da vigncia do salazarismo, so postos em prtica pelos revoltosos ao assumirem o poder. Aps o clima festivo da comemorao do dia vinte e cinco de abril, uma parcela da sociedade percebe que aquela alegria festejada foi um engodo, e a liberdade, prometida ou desejada, utopicamente, durante anos, ainda vai ter que esperar mais um pouco. A partir da pgina 287, comea a segunda parte denominada "Ascenso e Morte". Aqui os equvocos cometidos pelos revoltosos comeam a surgir, e eles so muito parecidos aos do regime anterior; assim como as aes que visavam desestabilizar a nova ordem poltico-social. De forma clara e evidente, a violncia e o uso da fora revelam-se de forma a no deixar nenhuma dvida. Quando aqueles fatos so inseridos na fico, parece-nos que existe uma investigao sobre o que realmente pretendia a Revoluo. Alexandra Alpha um romance de perguntas sem respostas, de muitas situaes srias e problemticas. Entretanto, tais fatos so "suavizados" atravs da ironia, pardia e da carnavalizao; ainda que o narrador-autor esteja, da

visivelmente,

desencantado. Ao ser entrevistado por Maria Fernanda de Abreu5, Cardoso Pires desabafa algo extremamente revelador, sado, ab imo pectore, isto , do fundo do peito: "La angustia es ma y no de los personajes". Contudo, parece que esse mal-estar era mais que justificvel, uma vez, que no final do romance, o leitor surpreendido com esta espcie de desabafo: "Miguel, medida que os dias passavam, sentia cada vez com maior clareza que a desmemria era a esclerose das revolues" (AA, 357). Para quem tanto desejou a implantao de um novo

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ABREU, M. F. (2005) p. 216.

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regime, a "desmemria", o esquecimento de um fato to significativo, d indcios, realmente, de uma grande frustrao. Isto fica explcito com a morte de Alexandra. A falta de respostas para explicar o "acidente" areo parece proporcionar uma grande sensao de perda. A queda da avioneta de propaganda, capaz de alertar a populao rural sobre a epidemia suna, representaria a morte definitiva dos ideais revolucionrios? O texto aponta, sutilmente, para a hiptese de algum ter colocado uma bomba na aeronave da empresa recm estatizada. Nesta parte do romance so expostas questes poltico-sociais do tipo: "a prova era que s via gente a desfazer-se das suas coisas por qualquer preo" (AA, 314). O episdio fala do desespero das pessoas que no mais suportam a opresso dos revoltosos: "Era realmente verdade e at vinha nos jornais que o Spnola andava l fora a preparar uma contra-revoluo. Falava-se de mercenrios e dum exrcito de libertao, armas Ou seja, portugueses vendiam os seus

desembarcadas de contrabando" (AA, 314).

pertences por valores depreciados, com claros objetivos de transpor as fronteiras de Portugal para escaparem de um perigo iminente. Os empresrios tambm viviam continuamente com medo de terem suas atividades "engolidas" pela arbitrariedade e o possvel equvoco da estatizao. A prpria Alpha Linn, multinacional de propaganda e marketing, onde a protagonista Alexandra trabalhava, passa a ser administrada pelo Estado. De igual modo, jornais, revistas tudo parece ter sido encampado pelos comunistas: "A Alpha Linn se transformou num arraial de dspotas" (AA, 294). E ainda: "Maria logo entrada (da empresa Alpha Linn) tinha visto: um exemplar da Aurora do Povo em cima da mesa da recepcionista. E no corredor: um poster com a cabea do Mao projetada na silhueta do Lnin." (AA, 326). Ocorrem ainda descries de outros fatos com as seguintes propores:

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Barricadas de vigilncia s sadas de Lisboa, toma que pra aprenderes; bancos e grandes empresas nacionalizadas, e quem no gostar que se trame; a reforma agrria a avanar, desencabrestada; ocupaes de prdios; comisso de moradores a zumbirem aos enxames na cidade de Lisboa, e as coisas no iam por ali, pois no, brincas, a vingana estava vista e ainda a procisso ia no adro. (AA, 314)

Alexandra Alpha um romance de inegvel ruptura com a narrativa tradicional, principalmente, no que se refere ao vocabulrio e representao das convenes sociais. H uma clara evidncia relativa a diferentes tipos de crises. entrevista Ins Pedrosa, declara: O prprio autor, em

Em Alexandra Alpha o Portugal em causa outro, de crise abertamente citadina. Ou seja, a crise que ali se debate a de uma intelligentsia urbana complexada por um passado de burguesia rural. Crise de identidade cultural, aberta e declaradamente, face paisagem social. O mundo, l fora, o mundo a civilizao industrial, o 25 de abril vem a, eles no sabem, mas vem, e, porque no sabem, inventamse a si prprios. Se no inventamos o pas, no cabemos nele, diz uma personagem do livro, suponho que a prpria Alexandra Alpha6.

Essa intelligentisia __ a elite cultural, qual Cardoso Pires se refere em seu depoimento, so as prprias personagens centrais do romance em questo. E essa "crise de identidade", visvel e inegvel, expe uma grande falta de conscincia poltico-social na maioria daquelas pessoas que, por terem mais informaes, mais conhecimentos, pertencerem camada social de maior prestgio econmico, deveriam ser mais atuantes e conscientes em relao ao seu pas, mas, no entanto, no isso o que corre. Quando as referidas personagens se renem no Bar Crocodilo, parecem esquecidas dos problemas de Portugal. Suas conversas exploram, sobretudo, temas relacionados produo cultural da Frana. Falam de Barthes, Buuel, Godard, Truffaut etc. Nestes muitos encontros noturnos, entre os temas abordados, tambm aparecem os ditos populares, mas,

6

PEDROSA, P. (1999) p. 103.

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principalmente, como elementos chistosos e exticos, prprios para fazer rir: "O co conhece o prprio pnis fora de muito o lamber" (AA, 36); "O cavalo e a mulher no se empresta a quem quer" (AA, 134); "De mulheres e de bebida cada qual a sua medida" (AA, 201). Sem dvida h, nessa proposital mistura de registros e de saberes, uma ironia articulada pelo narrador, capaz de levar a intelligentisia a repensar suas atitudes, uma vez que, no mbito social, todos "so omissos e alienados, substituindo a participao pelo Kitsch poltico, pela tergiversao e pelo egocentrismo.7 Do freqentado Bar Crocodilo, possvel destacar esta cena: "Ao correr do balco alinhava-se um coro de vultos diante dum crocodilo tutelar" (AA, 25). Isabel Margato8, ao analisar a cena, comenta: "Nesse enevoado bar o autor rene segmentos do que se pode chamar 'elite intelectual'. No entanto, o autor os v como 'vultos' __ portanto, sem imagens prprias que os defina __ controlados pela figura do crocodilo (alegoria de Salazar?)." A interrogao fica em suspenso. No entanto, a analogia se d, talvez por

que, tanto o crocodilo metlico fixo na parede (morto), como o Dr. Salazar (enfermo, vivendo no interior do pas, subconsciente. Seguindo o mesmo depoimento a Pedrosa, Cardoso Pires acrescenta: fora do poder), ainda assim, induzem a um medo

(Alexandra Alpha) , ou pretende ser, uma dissertao conflituosa sobre a identificao a vrios nveis, inclusivamente ao nvel da linguagem __ certo vozear cosmopolita que por l se ouve faz prova disso... E, claro, todos esses relacionamentos esto demasiadamente prximos da experincia que vivemos nos dias de hoje para que um certo nmero de leitores no se sinta incomodado.9

Convm destacar do fragmento citado as palavras "linguagem" e "incomodado".

7 8

BARBOSA, M. H. S. (1994) p. 523. MARGATO, Isabel (1995) p. 295. 9 PIRES, J. C. apud PEDROSA, I. (1999) p. 103.

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Ambas fazem referncia a um certo vocabulrio e atitude que, aqui e ali, aparecem no romance como a apiment-lo com uma pitada de humor ou ironia. Entretanto, os

aparentes termos chulos e a reao que provocam so "diludos" de tal forma, ao longo do texto, que talvez no sejam capazes de causar grandes "estragos" na delicada sensibilidade dos leitores mais moralistas, tendo em vista ser, nesse momento, que a narrativa adquire mais "leveza" no seu inquietante labirinto de temas e interrogaes. Ento, "para que um certo nmero de leitores no se sinta incomodado", convm destacar que a linguagem, desmedida e desbocada e os atos transgressores tm a sua razo e, principalmente, funo de ser. Ao mesmo tempo que assinalam um desabafo, tambm resultam numa vlvula por onde escapam as tenses, no s do leitor, como do prprio texto, que, tal como um mapa aberto na mesa de um cartgrafo, aponta para mltiplos caminhos. Diferentes veredas e mltiplas possibilidades instalam-se no espao textual. No humor mordaz pode existir a explicao para algumas perguntas, uma vez que, atravs do riso e da ironia, possvel extrair as larvas dos vcios e dos maus costumes sociais. No configurando, com isto, que Jos Cardoso Pires seja um moralista; mas um lcido crtico da realidade circundante, que evita emitir juzos de valor contundentes, de forma explcita.

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1.1.2 - Cenrios de Histrias sem fim

Aqui sero entendidos, particularmente, como cenrios de Histria sem fim, as praas e os seus monumentos; observando-se que o emprego do sintagma, "sem fim", visa destacar, no s a perenidade assinalada pelos anos de existncia dos mesmos, como tambm, apontar o fato de que os "cenrios" que aparecem em Alexandra Alpha, com o passar dos anos, ainda podem reaparecer em outros romances de novos escritores. Tendo em vista que o uso dos espaos pblicos uma das caractersticas dos textos de Cardoso Pires, no podemos ignor-los, principalmente, em funo da forma como eles so apontados em Alexandra Alpha; ali, existe, particularmente, a inquestionvel marca da carnavalizao de alguns desses monumentos; e isto muito diz respeito ao nosso estudo, e ela ser revista em Runas e infinitudes (3.2.1). Assim, falar em cenrio de Histria sem fim implica, tambm, atribuir aos monumentos arquitetnicos, smbolos de solidez e fora da cidade, categoria e importncias histricas semelhantes ou maiores aos dos seres animados que do romance participam. Pois, o autor, ao dar destaque a um ponto turstico, um parque ou praa, de certa forma, direta ou indiretamente, presta homenagem no s cidade, mas, principalmente, ao mos maiorum, ou seja, aos desejos, aos costumes dos antepassados, onde se apoia o prprio alicerce da nao portuguesa. Ao descrever a cidade, por vezes, ele demonstra querer formar um catlogo dos acontecimentos que ocorreram no passado, para que os mesmos contem a Histria de Lisboa. Entretanto, no texto, h uma voz a denunciar: "Lisboa uma rameira de cais e taberna", (AA, 53). Essa cidade com ares de mulher de vida fcil, classificao

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aparentemente inapropriada, remete a Bakhtin10: "as declaraes inoportunas, ou seja, as violaes das normas comportamentais estabelecidas pela etiqueta", __ so caractersticas da manipia. E o romance Alexandra Alpha est repleto destas "violaes", quando algum fragmento da cidade destacado ou mesmo alguma personagem. "A pelas 04:00 da manh", entre as "raparigas de m vida", estava a "machona Bravo Grelo, como tal conhecida em razo das dimenses do cltores (do tamanho de um pnis de lobo, ao que contava)" (AA, 231). Diante de tal marca ou "deformidade" ntima, verdadeiramente impossvel conter o riso. E a "machona Bravo Grelo", mesmo a alimentar, calada, o insacivel "cltores devorador", "acompanhada do amante travesti" (AA, 231), s quatro horas da manh, no passa despercebida no Bolero bar. Visto que, no interior do mesmo estabelecimento, estava, provavelmente, na imaginao do leitor, o ironista Cardoso Pires, a tudo observar, repleto de sensibilidade, perspiccia e ateno. Assim, quando ele deseja, no perde a oportunidade para questionar ou desmitificar "la realidad contempornea"11, e ao mesmo tempo, fazer rir. O romance analisado s desconstruo e descontrao. Muitas cenas de Lisboa aparecem como mosaicos micnicos a contar fragmentos de histrias ou pedaos de vidas, que fornecem "pistas" e contextos situacionais para o leitor reconhecer a cidade: "Contornaram a esttua do Terreiro do Pao, saudados pelo cavalo do dom Jos, e marginaram o cais do Tejo" (AA, 66). Ainda que evidente o desejo de falar sobre esse lugar que tanto preza, Cardoso Pires recorre, tambm, a um cineasta francs __ Francois Dsanti. E a se manifesta a maior das ironias, uma vez que atravs do olhar de um estrangeiro que Lisboa documentada de forma arbitrria, anrquica e metafrica. Quando o cineasta entra em cena, o romance, no que diz respeito formalidade esttica, passa por mais uma de suas metamorfoses, visto que a narrao transformada10 11

BAKHTIN, M (1981) p. 101. PIRES, J. C. apud ABREU, M. F. (2005) p. 214.

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em um surpreendente roteiro cinematogrfico:

Doca de Belm. Esttua do infante d. Henrique sobre o Tejo. Um velho em uniforme de remador desportivo. A olhar o rio. ................... Batizado elegante: sada da igreja (Igreja de Santo Estvo, estas ltimas seqncias foram de fato rodadas em Alfama) alguns cavalheiros de casaca e chapu alto. Nenhuma mulher, a no ser a ama que transporta ao colo a criana. Ela e os restantes convidados seguem a p at calada ngreme. (AA, 125)

A narrativa flmica assim mesmo: registra uma cena a partir do olhar, utilizandose de uma linguagem seca, limpa, prpria de roteiro. No entanto, alguns espaos de significao permanecem vazios e enigmticos. Muitas outras cenas so apontadas como filmadas; e a maioria delas transcorre nas "externas", isto , acontece ao ar livre; e h tambm outras tantas "internas", "filmadas" no interior de casas ou espaos ocupados pela elite intelectual. Deslocando a viso para o Alentejo, vamos encontrar Alexandra e seu companheiro em viagem pelo interior do pas: "Adeus Algarves, que em campos me quero ver. Campos largos, solides":J no corao de Alentejo, passaram por uma torre de relgio encimada por uma cegonha de sentinela no ninho. Um relgio coxo, sem um ponteiro, e um ninho enorme mas vazio: o tempo ali tinha parado de repente e a cegonha era uma retardatria enganada. Enfrentava a plancie, muito s e muito solene, e o dia declinava volta dela. (AA, 188)

O cenrio descrito contm imagens perturbadoras, ao mesmo tempo enigmticas e belas, nunca arbitrrias. E provvel que as mesmas pudessem facilmente passar

despercebidas, se fossem usadas, literalmente, em uma simples narrativa de contos de fadas. Entretanto, visto que nenhum texto inocente ou neutro, o autor deve t-las usado tambm como figuras de linguagem, tais como: metfora, ironia, ou alegoria,

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principalmente porque as entrelinhas esto carregadas de sentidos. O no dito ou os "subentendidos" fornecem pistas muito significativas e o dialogismo insinua-se no texto. Portanto, neste romance, os enunciados devem ter sido produzidos com o objetivo de comunicar algo que est alm de sua prpria superficialidade. Por conseqncia, a palavra "cegonha" j um signo carregado de muitos significados: entre eles, ave de

bom pressgio, e, em muitos mitos vista como smbolo da fertilidade e migrao. Entre outras caractersticas, est associada agricultura. Segundo Chevalier e Gheerbrant12, a cegonha " smbolo da piedade filial e da imortalidade. Imvel e solitria, evoca

contemplao". Porm, a cegonha, em causa, est de "sentinela" em um "ninho vazio" e, "retardatria", revela-se "enganada". E no toa que habita o Alentejo. Do pequeno fragmento acima, extrado do romance em anlise, conforme o nosso conhecimento de mundo, muitas outras coisas ainda podem ser ditas, principalmente, quando destacados alguns sintagmas do tipo: relgio coxo, ninho vazio, tempo parado, cegonha enganada etc. Assim, ainda que sem nenhuma pretenso de ser intrpretes

definitivos do pressuposto textual, tentaremos fazer uma leitura, dentre outras possveis, dos termos assinalados: Relgio coxo, por exemplo, sobre o ato de coxear, destaca: remete-nos Jean-Pierre Vernant, que, ao discorrer

A categoria "coxo" no est estritamente limitada a um defeito do p, da perna e do andar, que seja suscetvel de uma extenso simblica a outros domnios que no o simples deslocamento no espao, que ela possa exprimir metaforicamente todas as formas de conduta que paream desequilibradas, desviadas, moderadas ou bloqueadas13.

12 13

CHEVALIER, J. e GHEERBRANT, A. (1988) p. 218. VERNANT, J. P. e PIERRE, V. N. (1986) p. 50.

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Desse modo, "relgio coxo" induz falta de simetria entre vrios aspectos; assinala um enigma a traduzir defeitos ou alguma impossibilidade advinda de mltiplas direes; induz a uma determinada precariedade na regio ou no prprio pas. O "relgio coxo" a nao e/ ou a regio que gira em torno de si mesma sem desempenhar a sua verdadeira vocao. E esse giro circular demonstra, tambm, entre outras coisas, ao repetitiva e circunscrita a si mesma. A ausncia de ponteiro indica infrao e violao da normatividade, carncia de bssola. A mquina, a nao que h anos gira sob o signo de Salazar, demonstra cansao e falncia. Esse "relgio coxo", por perder sua integridade fsica, , talvez, diablico, inesperado. "O coxear sinal de fraqueza, de irrealizao, de desequilbrio"14, mas tambm ambivalente: "nos mitos e lendas, o heri coxo sugere um ciclo que se pode exprimir pelo final de uma viagem e o anncio de uma nova viagem"15. Ainda que a citao refira-se ao heri das narrativas helnicas, o ato de coxear nos leva Alexandra Alpha e, ali, vamos encontrar o engenheiro Miguel "que manquejava duma perna" (AA, 360) e dirige-se para o avio que ir explodir em pleno ar, dando fim a trs ciclos de vidas: o dele, o de Maria e o de Alexandra. Convm observar o fato de ser "coxo", ele poder contribuir para desfazer o enigma que cerca a morte das personagens. Ser ele o responsvel pela colocao da bomba-relgio e pela inaugurao de uma nova "viagem" ou proposta ideolgica? Por outro lado, o sintagma, "ninho vazio", induz a pensar na ausncia de nascimento ou no abandono do lugar de origem por diferentes motivos: presso poltica, decadncia financeira, doenas etc. Entretanto, o que h de similar, entre o ninho da cegonha e o lar humano, a garantia de que, aps o tempo necessrio para a migrao, o retorno certo e garantido, em funo, principalmente, de uma memria infinda naqueles que se vo.14 15

CHEVALIER, J. e GHEERBRANT, A . (1988) p. 297. Idem. P. 297.

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A expresso "tempo parado" est, por sua vez, diretamente associada falta de oportunidade ou expectativa paralisante e que no induz a aes imediatas. Se o tempo parou em Alentejo, o que dizer das expectativas de seus cidados? O grupo de

habitantes, metaforizado em "cegonha enganada", se pensarmos em termos de falncia da utopia revolucionria, momentaneamente detectada, fica a olhar a plancie ao pr do sol. E, quando a noite chega, todos se recolhem a esperar a nova luz do dia seguinte, que, provavelmente, reaparecer em uma determinada hora. Chamamos a ateno para o privilgio dado ao tema rural __ "material" ou espao privilegiado pelo Neo-Realismo, perodo literrio em que os textos escritos, sob esta "bandeira", muito vo contribuir para assinalar uma literatura capaz de abordar, sobretudo, as questes relacionadas aos jogos de interesses econmicos e sociais. Ao comentar sobre o uso do espao, na obra de Jos Cardoso Pires, Maria Lcia Sher Pereira16 destaca: " misturando dados ficcionais e referncias historicamente verificveis que Alexandra Alpha, na linha de Balada da praia dos ces, tem no espao uma categoria para a construo de sentido da obra", o que ratifica o dito anteriormente. Assim, quando os protagonistas de Balada da praia dos ces ou de Alexandra Alpha se deslocam por diferentes lugares do territrio portugus, tambm esto construindo memrias sociais e interligando, com isso, Histria e fico. Em um determinado momento da narrativa, Alexandra vai visitar a me e o tio Joo de Berlengas, em Beja. No pra-brisa de seu mini-austin (smbolo capitalista), h,

incoerentemente, um adesivo das Brigadas Revolucionrias Populares (BRP). E tal sigla interpretada pelo cnego Domingos como: "Banditismo, Renegao, Perversidade" (AA, 332). Isso significa que, de acordo com o observador e sua ideologia poltica __ revolucionria ou reacionria __, a sigla adquire diversos e relativos

16

PEREIRA, M. L. S. (2001) p. 213.

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significados; socialistas e fascistas preenchiam-na com diferentes valores interpretativos. E, sendo o cnego um "porta voz" local e smbolo da tradio, a referida analogia entre revolucionrios e banditismo indica um alto grau de rejeio queles que instituram o novo regime em Portugal. No interior do pas, de um modo geral, prevalecia a

preferncia pelo antigo regime, mantenedor do statu quo agrrio. Com relao opinio do cnego Domingos sobre os revolucionrios, ainda possvel acrescentar: "Estava em pleno Vero Quente. Levantavam-se labaredas a toda a volta, pinhais em fogo, falhas ao vento, e quem eram os autores? Os bolchevistas, (...) Tambm fugiam pides das cadeias, oitenta e nove desta vez" (AA, 337). O cnego continua a denunciar os desmandos, a conivncia entre a cpula do poder com membros do regime precedente. "O povo cantava, coitado, mas a mozinha comunista que tinha preparado a festa" (da fuga dos 89 membros da PIDE) (AA, 337); "Com as bombas nas casas dos partidos de esquerda passava-se coisa semelhante" (AA, 338). E o cnego a denunciar essa visvel dissidncia interna do regime revolucionrio: "Rivalidades l entre eles, a razo era essa. Os partidos bolchevistas estoiravam-se uns aos outros para ficarem sozinhos no poder" (AA, 338). Ainda a voz do cnego: "As revolues cegam, as revolues matam os filhos, nunca esquecer, nunca esquecer. A hidra peonhenta j comea a devorar as suas

prprias cabeas" (AA, 338). Ao denunciar a "hidra peonhenta", o cnego refere-se prpria Revoluo dos Cravos, que, na opinio dele, ao possibilitar a destruio de uns pelos outros, acabar por "devorar a si prpria" (AA, 339). Estas questes apontadas pelo cnego, se comparadas quelas tiradas do caso do lavrador dos Tojais" (AA, 296), parecem expor um cncer, e no apenas uma das numerosas lceras abertas pela Revoluo. Trata-se de uma esttua, que fora "arrastada por duas mulas, uma das quais meio cega; parece que por essa razo os animais no se entendiam, puxavam torto, e cada

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um para seu lado, e a esttua, encontro para a esquerda, encontro para a direita..." (AA, 296). A analogia estabelecida entre a cegueira animal e a cpula do poder revolucionrio parece oportuna. E as "mulas", que arrastam a esttua para o rio, assemelham-se aos "mulos revoltosos" que empurram o pas para o "brejo"; coincidncia ou no, o fato que no se pode negar tamanha verossimilhana. A seguir, outro episdio ps-revolucinrio. O fato se passa entre os no

contemplados com a Revoluo e o acontecimento, que transcorre no interior do pas, envolve certas personagens que representam a tradio cultural portuguesa. "O cnego e a prima" acompanham os acontecimentos dirios transmitidos pela televiso. Sem animus, ambos esto sempre a maldizer os novos tempos:

O cnego e a prima (...) no ligavam. O que os preocupava era o insulto do televisor, os comcios, ocupaes de terras, reforma agrria, e por outro lado o tormento dos honrados que quela hora sofriam no exlio as perseguies e a ingratido da ptria como o dito lavrador dos Tojais. Esses, os verdadeiros ofendidos, constituam, no dizer do cnego Domingos, a Nova Dispora Lusitana. (AA, 296)

Conforme a opinio do cnego, "o tormento dos honrados que quela hora sofriam no exlio as perseguies" fortalece uma hiptese: em linhas gerais, a Revoluo dos Cravos foi, em certos momentos, pouco diferente do regime anterior. provvel que, ao constatar esse fato, Cardoso Pires tenha percebido que, ao unir-se com os comunistas, fazia uma leonina societas; ou seja, uma sociedade de fortes contra os fracos. Esse fato, talvez, tenha sido a causa de sua sada do partido comunista. Em funo disso, o ideal para ele, seria, portanto, esclarecer, atravs da literatura, para os posteri, o que foi, realmente, a "democracia" da Revoluo dos Cravos. Aos olhos do cnego, os "honrados", os verdadeiros portugueses so os latifundirios que foram obrigados a fugir do pas. O que antes fora uma arbitrariedade aplicada pelo salazarismo, agora prtica

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semelhante. Ao agir assim, os gritos de "O TRATOR SOBRE O CAPITAL" (AA, 323)" indicam existir um sutil paradoxo a ecoar nos pores do novo regime, uma vez que a potncia do "trator", embora auxilie os pobres a arar a terra, esmaga um grande produtor, um latifundirio. Em termos de macroeconomia de um pas, a Revoluo preocupa-se em transformar agricultura de exportao em agricultura de subsistncia. O fragmento de texto parece expor mais um dentre os muitos "equvocos" da Revoluo: uma vez expulsos os grandes "lavradores" de Portugal, como suprir o povo com suas necessidades alimentares bsicas? O reverendo Domingos parece que o nico a ter uma resposta: "A hidra da Revoluo acabaria devorada pelas sete cabeas do seu prprio corpo insacivel. Nosso Senhor o ouvisse, pensava a dona da casa", a me de Alexandra (AA, 296). Outro exemplo semelhante ao anterior: Afonsinho vai visitar a tia. Nesse

momento, ela se queixa ao sobrinho dos "disparates a que assistia" na televiso:Afonsinho: "Credo, senhora. Ento algum pode andar contente nos seus affaires com o despautrio que vai por a?". Para comprovar, descrevia casos. Fulano e Sicrano a emalarem pressa as pratas da famlia e a serem agarrados na fronteira pelos comunistas; recheios de casas entregues por tuta e meia ao primeiro judeu que aparecia; relquias, preciosidades que s vistas, tudo confiscado pelo Estado; sargentos tarimbeiros a beberem aguardente por clice de prata, uma dor de alma: sargentos, senhora, sargentos, hoje em dia uma pessoa tinha de andar s ordens da sargentada e dos soldados barbudos. (AA, 297/8)

Com base no que o narrador expe no romance, ocorreram muitos desagrados com o novo regime. Aquela alegria, aquela euforia, ocorrida no dia vinte e cinco de abril restringiu-se a um determinado grupo. Agora talvez j no exista mais crena, generalizada, nos mitos, nem naqueles que governam a nao. Por este motivo preciso trabalhar o pas no real (AA, 328), ou seja, naquilo que h de verdadeiro, sem artifcios ou falcatruas. Entretanto essa proposta talvez no seja mais vivel aos que esto no

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poder. Faz-se necessrio instalar, no alicerce social, o contrrio de tudo o que j fora idealizado no plano do sonho. preciso introduzir, no cerne da nao portuguesa, algo oposto quilo que foi apenas imaginado. a prpria Alexandra quem confirma isso, ao conversar com a Mana Maria: "Mas Mana, o pas que nos calhou e antes de mais nada h que desinvent-lo. Trat-lo no real." (AA, 328). As duas personagens falam de um "pessimismo confiante" e de um pudor musical a "embalar a m conscincia" (AA, 328) daqueles que teimam em manter o otimismo atravs de um discurso demagogo:Passamos tempo de mais a viver do histrico e do abstrato, sculos de mais a fingir que ramos histricos-campesinos e todos os polticos nos enchiam os ouvidos com isso. Enchiam e enchem. Dantes porque a Igreja de campanrio que tudo mandava, agora porque no campo que est a grande densidade de votos. (AA, 328)

Parece que em muitos casos a verdade relativa. Tudo se desenvolve no plano da artificialidade e dos interesses particulares. S porque no interior de Portugal existe maior nmero de eleitores, a classe poltica induz a algum tipo de iluso. Os polticos "vendem" a imagem de que os habitantes do interior so mais importantes, porque neles est o desempenho da nao, forjada, principalmente, na agricultura. Dela provinha o progresso portugus. Segundo a personagem, todos viviam uma abstrao: esse suposto produto, vindo l do interior, no passa de um simulacro, j que o mesmo no corresponde verdade. Esse fato esclarecido quando Maria e Alexandra continuam a conversa: "Muito me contas, Mana, muito me contas. 'Pas abstrato', continua Maria. 'Um pas que se diz agrcola e que importa metade da agricultura que consome c uma abstrao. Agrcola, olha o desplante" (AA, 327). Por essas e outras "deturpaes" do sistema poltico, era preciso "desinventar" Portugal. Uma nova e eficaz proposta ideolgica deveria ser adotada aps o vinte e

cinco de abril. Era preciso inventar uma outra realidade onde fosse possvel resolver numerosos impasses entre o Portugal rural e o Portugal urbano, ou, melhor dizendo, entre

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a tradio e a modernidade. Era necessrio estabelecer o fim da mitologia do poder rural, atravs de uma reforma agrria produtiva e justa. Mas o tempo da fraternidade e da igualdade no se cumpriu. No romance, esse "n" emblemtico est muito bem representado: pela tradio, os proprietrios rurais, atravs dos moradores de Beja (me e tio de Alexandra), e seu receio de serem desalojados da propriedade; pela modernidade, a nova gerao, atravs da protagonista do romance e seus amigos, moradores de Lisboa, que passaram a compartilhar os ideais socialistas. Contudo o destaque se d,

principalmente, em Alexandra. Nela est centrado o carter transgressor, inerente a todos os sintomas da modernidade. Entre eles: alteridade e excentricidade que sero agora destacados.

1.1.3 - Alexandra Alpha e outras personagens

Alm de recriar/ recordar fatos ocorridos/ vividos em Portugal, o narrador centra o seu foco de ateno na personagem Alexandra Alpha, mulher de mltiplos objetivos e identidades: liberal, independente, executiva de marketing da empresa Alpha Linn, marcada pela alteridade, vive dividida entre vrios nomes: "O primeiro era Alexandra e o ltimo Maninha, este s para uso dela e de Beto (filho adotivo), e derivado de Mana, Mana Alexandra, ou Mana Xana". (AA, 15), Maria Alexandra (AA, 12), Maria Mana

(AA, 327), solteira, natural de Lisboa. Freqenta os bares noturnos, tem vrios amores. Dividida entre as atividades "oficiais" e aquelas menos recomendadas s mulheres conservadoras, Alexandra absorve todas as funes sem muitas dificuldades. E essa multitarefa, anteriormente atribuda mais s personagens masculinas, como tributo a um

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certo "machismo-herico", vai integr-la por definitivo ao mundo contemporneo e globalizado. Esses vrios nomes, mutantes e intercambiveis, apontam para uma crise de identidade? Parece que sim. Alexandra est sempre se reinventando a partir do nome primitivo. Da ter outras memrias, outras identidades, vrios rostos e, em cada um deles, so encontrados ecos de muitas personagens que compem o cenrio portugus. Com isso, j que existe o metapoema, a metalinguagem, o metacinema e tantos outros "metas", Alexandra uma metapersona. No no sentido restrito da personagem que fala de si, mas daquele ser ambivalente e desdobrado em outras identidades. Pois no est nisso a noo de contemporaneidade e, tambm, do prprio cristianismo, to vivo em Portugal? No ele que diz que o homem composto de mais de um ser? Um que morre, o outro que perene? Um que carne, o outro, esprito? Um que pecador, e um outro que santo? Sendo assim, essa dualidade j faz parte da prpria natureza humana, Alexandra Alpha a metapersona a falar de si, atravs das suas multiplicidades nominais e seus enigmas. Em cada posio que ocupa na vida, Alexandra desempenha um papel social diferente. Em certos momentos ela a executiva de uma multinacional; em outros a revolucionria que, junto "ao mar de gente" (AA, 276), no dia da Revoluo, canta Grndola vila Morena; ora ela me de Beto, ora irm dele; em outras situaes amante, confidente etc. "Mulher dividida, de dia guerra e noite vida" (AA, 23). Segundo Stuart Hall17, "as identidades modernas esto entrando em colapso" porque "um tipo diferente de mudana estrutural est transformando as sociedades modernas no final do sculo XX." E isto o que se v em Alexandra Alpha, tudo est partido e precisa ser juntado como um quebra-cabeas. Ainda segundo Hall, "isso est

17

HALL, S. (2005) p. 9

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fragmentando as paisagens culturais de classe, gnero, sexualidade, etnia, raa e nacionalidade, e mudando nossas identidades pessoais". Assim, o acmulo dessas mltiplas faces identitrias acaba transformando Alexandra Alpha, mulher "de boca fresca e luminosa" (AA, 357), em uma femina virago. "Virago" usado aqui no no sentido masculino do termo, mas como a mulher forte, corajosa, "guerreira", a tpica representante da mulher contempornea, da mulher "que vai luta". Alexandra uma personagem hbrida, ex legibus naturis, isto , fora dos padres, ou, aquela que se afasta das leis naturais, como queiram. Influenciada pela multiplicidade e fragmentao do mundo contemporneo e globalizado, ela carrega consigo a sndrome dos mltiplos nomes. E essas vrias identidades compem diversos sentidos com os quais ela teve de aprender a "transferir-se" ou transportar-se de um para outro conforme a necessidade, e os mesmos vo compor um elo de ligao com os mais diferentes nveis sociais, isto , com os mltiplos papis sociais que desempenha:Sophia Bonifrates via-se obrigada a reconhecer que no era caso para espantar, isso dos rigores, pois Alexandra estava sempre certa com o momento. Integradssima como Alexandra Alpha no seu gabinete de vidro da empresa, integradssima como Alexandra Mana no mini-austin de ir s noites, integradssima como Maninha mais que privada na sua vida com o Beto. Assim mesmo. Trs Alexandras iguais e distintas, qual delas a mais eficaz? (AA, 106).

Assim a protagonista, "descentrada" ou "deslocada", marcada pela vida pblica e pela vida privada, e, consequentemente, sem identidade fixa. E isso vai coadunar-se com o que Hall denomina de "sujeito ps-moderno":

O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que no so unificadas ao redor de um "eu" coerente. Dentro de ns h identidades contraditrias empurrando em diferentes direes, de tal modo que nossas identificaes esto sendo continuamente deslocadas18.

18

HALL, S. (2005) p. 13.

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Embora a memria no seja a razo principal deste estudo, convm no abandonar os fatos relativos a ela, quando se trata da personagem Alexandra. Nela existem

mediaes capazes de fornecer numerosas questes desencadeadas ao longo do tempo que transcorre o romance. Dentre outras, convm destacar:

Dizem que quando hibernou para o Rio esqueceu a pele da Mana Xana em Lisboa, esqueceu gente, esqueceu casos, desperdcios. Nenhuma carta para ningum, sequer para Maria, a mais mana das suas amigas: Alexandra sempre se orientou separando as vidas que continha e afastando as memrias. (...) Por isso podia dizer, como sempre disse: Previno-te, o meu corpo no tem memria. (AA, 23)

Desejar viver a desmemria como negar-se a olhar ou rever o passado. E, ao privilegiar o esquecimento, parece "negociar" com a superficialidade da vida e com a fugacidade do tempo. Sem memria, Alexandra tambm est "descentrada", fora do equilbrio racional da maioria da populao. Ela no dispe de uma identidade fixa para poder atribuir-se o cogito ergo sum. Seu instinto de Mulher Selvagem e livre no permite prender-se a nada. Qual lio tirar daquele advertir de Alexandra? Que sendo a memria um fato social, os antigos acontecimentos de uma nao tambm podem ser esquecidos ou rasgados como uma antiga coleo de fotografias? Eis a um bom tema a ser discutido por quem se interessar possa. O nome alpha, primeira letra do alfabeto grego, significa princpio e fim de todas as coisas; estrela brilhante, e segundo Cirlot19, "alpha relaciona-se com o

passado, atributo do deus criador". Da ser possvel observar que, por mais "moderna" que seja a personagem Alexandra Alpha, existe tambm nela um apego ao seu passado. Caso seja considerada uma metonmia de Portugal, podemos afirmar que a Histria da

19

CIRLOT, J. E. (1984) p. 71.

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nao portuguesa est fixada, no romance, por meio das numerosas verossimilhanas de representaes dialgicas estabelecidas entre o passado e o presente. Levando-se em considerao a srie da indumentria, convm acrescentar que "a lady" (AA, 22), Alexandra Alpha, executiva da multinacional Alpha Linn, aps a Revoluo, passa por uma visvel metamorfose, no s no que se refere ao modo de vestir, como, tambm, no pensar. Ela substitui a elegante roupa de executiva por um "visual" bem alternativo, prximo ao dos revolucionrios, o qual muito chocava o tio Berlengas, por ocasio das suas visitas a Beja:

(Alexandra) acabou de vestir a canadiana no elevador e verificou as algibeiras que eram uns alforges onde cabia tudo e mais alguma coisa, chaves, documentos, livros de cheques, e at uma carta do Beto acabada de chegar. Alforges foi como o tio Berlengas chamou quele casaco da ltima vez que ela esteve no Monte Grado. Ao ver aquele desmazelo, calas esfiapadas, cinto de corda e casaco de lona a modos que de globe-trotter, a modos que de militar, o velho ficou a coar na cabea: Para que semelhantes alforges, para qu semelhante preparo? (AA, 331).

Se aquele modo de vestir no agradava ao conservador Berlengas, muito menos era aceito pelas criadas da casa materna, tanto que uma delas ficou a censur-la por achar que, em funo da boa condio financeira da patroa, aquele modo de vestir era uma provocao: "parece impossvel, a fazer pouco dos pobres" (AA, 331). Estaria aqui mais uma das ambigidades da protagonista? Pois o seu "inapropriado" modo de vestir no aceito, nem pela elite cultural de Beja, nem pela classe trabalhadora; tanto que propicia alta e baixa sociedade bejeana diferentes interpretaes. Transformada, Alexandra j no cabe naquele universo to pequeno e nem pode ser idntica a si mesma. A classe operria que ela julga favorecer usando aquelas roupas, no a compreende; assim como a famlia dela. Como viver nesse mundo to dividida?

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Conforme o exposto, no que se refere personagem Alexandra Alpha, retratada no romance cardoseano, s nos resta perguntar: ela, "realmente", existiu? Ou se trata de um libi de veracidade (um recurso meramente ficcional?) Pois o autor atribui a ela uma data especfica ("14 de novembro de 1976") e certos textos, identificados como: "papis de Alexandra Alpha"; os quais utiliza, no espao textual, transcrevendo-os ou adaptandoos. Para persuadir o leitor, afirma que esses "papis" se encontram nos "arquivos do 10 cartrio notarial de Beja." (AA, 07). No importa: especular se Alexandra realmente existiu o mesmo que ficar discutindo o sexo dos anjos. H outras personagens que se destacam, no s pelas caractersticas prprias, como tambm por dar um sentido muito particular narrativa. Entre elas est Opus Night - assim conhecido por ter um irmo membro da Opus Dei, e ainda: ser "juiz, salazarista, solteiro, vegetariano, beato" (AA, 75). "Sebastio Manuel, o Opus Night. Ou Copus Night, tambm podia ser; Octopus Night, Antropus Night. Basta. Trocadilhos comia ele s colheres e vomitava-os a dobrar. Tinha alturas em que disparava trocadilhos em rajadas" (AA, 75). Embora apresente essa multiplicidade de nomes, Opus Night uma personagem definitivamente oposta descrita acima. Em relao a Alexandra, como foi constatado, para cada nome h uma funo social diferente. Entretanto, os vrios nomes de Opus

Night so meros princpios de camadas, ou seja, diferentes formas de escrita para a mesma funo; os vrios nomes so meras parfrases que designam a mesma personagem. Ela no est dividida entre vrias outras identidades. De Opus Night s se conhece o pblico, o externo. Talvez por no ter problemas financeiros, ou conscincia social, ele nada questiona. Do seu mundo interior, psicolgico, nada revelado. O leitor sabe apenas do seu exterior, da alegria de viver. Ele um indivduo inteiramente

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epicurista, Epicuri de grege porcus.

Opus Night homem da elite, improdutivo. Passa

as noites nos bares e dorme durante o dia. Opus, em latim, trabalho, mas do modo como o termo est empregado, no

romance, parece um grande equvoco atribuir-lhe o mesmo significado. Entretanto a referida palavra, quando acompanhada com o verbo esse (opus esse = coisa necessria), (o verbo pode vir apenas subentendido), tambm pode significar apenas "coisa". Termo mais apropriado para Opus Night. Ou seja, parece que estamos diante de mais uma das ironias de Cardoso Pires, que trata a elite portuguesa apenas como "coisa necessria", ou, o "mal necessrio." "Coisa" essa, que se acomoda, que no questiona, que vive de renda, que nada produz. Assim ele. Divorciado, s caricatura, e, entre outras coisas, acredita que sua ex-mulher passa por diversas metaformoses na esperana de reconquist-lo. Ao longo da narrativa, ao envolver-se com ele, de forma "mascarada", ela confundida com travesti, prostituta, camponesa, com a mulher fatal etc. Por outro lado, ao que se refere a Opus Night, sero nas muitas perambulaes noturnas em diferentes bares, assim como nos mais variados encontros com as inusitadas "figuras" femininas, que ele far transparecer ex nihil, isto , do nada, os indcios, as pistas, os fatos que provocaro o riso e, consequentemente, sinais da stira. Exemplo: Opus Night e o amigo Nuno Leal vo jantar em um restaurante perto do aeroporto, local onde se encontram muitas prostitutas. Ao lado, na beira da estrada, existe um posto de gasolina e um bar-restaurante. Sentam-se a uma mesa dos fundos e logo chegam duas prostitutas: Mizete e Sabrina:A ruiva sentou-se: "Sabrina, muito prazer". Opus Night: "Sabrina? Eh, p, vocs tm cada nome que at parece marcas de lambretas". Mizete: "Parecemos o qu?". Opus Night: "Nada. O que vale que so giras. So ou no so giras, Nuno?".

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Mizete, deitanto-lhe a mo braguilha por debaixo da mesa: "Ainda voc no viu nada. Ui, coisa boa". Opus Night agastou-a cautelosamente para evitar que o aparelho entrasse em labareda. (AA, 80).

Aqui est exposto um fragmento do cmico distribudo ao longo do romance. E se necessrio apontar o motivo para elaborar esta Dissertao, fica dito que as diferentes manifestaes do riso, encontradas em Alexandra Alpha, contriburam para despertar o interesse em investigar, no referido romance, a possvel presena da stira menipia. Gnero este que nos desperta muito interesse, em razo, no apenas da revelao da sua origem e de seu percurso no tempo, questionamentos e importncia social, como tambm, pelo desejo de trabalhar "academicamente" o grotesco, o "baixo" material do riso. contribuio por abordar um tema ainda no

Portanto, eis a nossa significativa explorado na obra cardoseana.

Nuno Leal o amigo de Opus Night, que o acompanha nas mais variadas aventuras e bebedeiras; entretanto, quando ocorre a Revoluo, adere ela e chega a ocupar dois importantes cargos burocrticos, "Fomento de Construo Escolar" e o outro no "setor rural" (AA, 327). Nesta poca, perde a amizade de Opus Night; este passa a considerlo "traidor das famlias", um "parvo" (AA, 320). Afonso Pompadour a caricatura em pessoa: "era calvo e pestanudo e quando falava estava mais atento a quem passava do que pessoa que ele ouvia" (AA, 95). Primo de Alexandra, antiqurio, homossexual, importa da Frana dois bonecos inflveis, e, com eles vive completas aventuras amorosas e sadomasoquistas. Para o velho tio Joo de Berlengas, Afonsinho era s "desmandos, luxrias, vergonhas sobre vergonhas (...), a mariquice chegara a tal ponto que o Afonsinho tinha posto casa a um soldado de Artilharia 1. E nas costas do soldado deitava a escada ao que lhe aparecia" (AA, 98).

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Joo de Berlengas - tio de Alexandra e de Afonsinho - o senhor representante do salazarismo. Insiste em manter a vida e as atividades dos seus familiares sob rigoroso controle. Para preencher o vazio de uma vida solitria, ele embriaga-se acompanhado de sua "cadelinha Traviata", a qual, mesmo ameaada de morrer com uma cirrose, passou "a gostar de vinho como qualquer cristo". (AA, 56). Sophia Beatriz ou Sophia Bonifrates tem esse segundo nome em funo de sua dedicao aos bonecos de fantoche. Grandalhona e desajeitada, rdua defensora da cultura popular. Produtora cultural, "ela procurava novas propostas para o teatro infantil nos bonecos e nas marionetas populares, atualmente em vias de extino" (AA, 32). Cultua uma constante gravidez artificial e morre de cimes do marido bonito. Bernardo Bernardes surge como a caricatura do intelectual que acredita tudo saber. Segundo Alexandra, ele "redundante at no nome". Seduzido pela cultura francesa, gosta de citar, em francs, os prprios autores portugueses. Tal personagem, entretanto, contribui para que o romance fique repleto de intertextualidades, ocorrendo, com isso, uma completa "antropofagia cultural", a partir de referncias relacionadas a cinema, fotografia, literatura, monumentos etc. Ao misturar Barthes, Sartre, Buuel e Jean-Luc Godard, acaba por confundir-se entre "Lus de Cames ou Lus de Camus?" (AA, 90). Aps a Revoluo foi nomeado "chefe de gabinete do Ministrio da Informao" (AA, 304). Em funo da presena de tantas caricaturas, Cardoso Pires expe um pas, entre outras coisas, marcado pela excentricidade. Em Alexandra Alpha, a grande maioria dos acontecimentos est situada margem daquilo que se poderia denominar de "normatividade". Com isso o romance em questo induz leitura de que nos anos 70 e 80 do sculo XX, Portugal foi ou uma grande fico.

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Enfim, eis o desafio: terreno minado. armadilhas.

o romance multiestrutural Alexandra Alpha parece um

Caber ao leitor atento contornar e desativar as suas possveis

2 - O gnero stira menipia e seus temas

Ao refletir, na Potica, sobre os diversos gneros literrios, Aristteles, em alguns momentos, aproxima a comdia da tragdia. Para este autor, "com os mesmos meios pode um poeta imitar os mesmos objetos."20. Entretanto, estes objetos de imitao

revelam a diferena entre a tragdia e a comdia. Nesta, "os poetas imitam os homens piores do que so, e naquela, melhores do que eles ordinariamente so."21. Continuando suas explanaes, aps esclarecer que tanto a tragdia quanto a

comdia so "nascidas de um princpio improvisado" __ a tragdia veio "dos solistas do ditirambo" (composio lrica que exprime entusiasmo ou delrio) e a comdia, "dos solistas dos cantos flicos"22, Aristteles continua referir-se ainda a evoluo da tragdia at chegar ao mais conhecido autor deste gnero, squilo. Entretanto convm deixar de lado este gnero, j que o objetivo inicial desse captulo tecer um fio condutor do cmico. Assim, apesar de serem poucas e

incompletas as informaes sobre a fase embrionria do riso, convm resgatar aquelas fontes mais confiveis. Para alguns (at mesmo para Aristteles), tudo teve incio nas festividades comemorativas das colheitas e nas festas religiosas, nas quais se danava e cantava, ou tambm, nas ocasies especiais: banquetes de npcias, festas populares e demais comemoraes, onde ocorriam cnticos dramatizados, com caractersticas licenciosas e grosseiras. Muitos pretendem encontrar nestas festividades e cnticos __ que chegaram a ser proibidos em algumas oportunidades, em funo de suas caractersticas injuriosas e

20 21

ARISTTELES. (1984), (III, 10). Idem, ( II, 9). 22 Ibidem, (IV, 20).

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agressivas, __ a semente do riso. Entretanto, reconhecido que, com o passar dos tempos e com os constantes contatos entre os povos do mediterrneo, aos poucos essas festividades foram evoluindo e aquilo que, a princpio, eram apenas brincadeiras grotescas dos helenos, aos poucos vai se desenvolvendo, at adquirir a denominao de farsa, __ pardias ainda obscenas representadas por atores mascarados. No sculo V a. C., estas farsas j adquiriram por definitivo a denominao de comdia, tendo, como representante principal, Aristfanes. A caracterstica primordial deste gnero a preferncia pela poesia satrica. De esprito mordaz e sarcstico, ela se destaca pelos freqentes ataques a figuras conhecidas da sociedade; e pelo tom poltico. Manifesta-se, tambm, como a imprensa de oposio, sendo este o sinal marcante, estando presente com tal caracterstica, at nos dias de hoje. conhecida como Comdia Antiga. No sculo IV a. C., surge a Comdia Mdia, que se notabilizou pelo culto a temas mitolgicos. No incio do sculo III a. C., com o cansao das guerras e o desejo de paz, desaparecem os temas grotescos e surge ento a Comdia Nova, que tem, como assuntos principais, os fatos corriqueiros e engraados, ocorridos com as pessoas das mais variadas classes sociais. a comdia de costumes que explora, principalmente, o amor Esta comdia ficou

contrariado, o dia-a-dia do homem comum. So estas comdias que vo contaminar os latinos Plauto e Terncio. Os seus autores principais so: Menandro, Filmon, Dfilo. Em sua fase inicial, a stira era apenas uma espcie de poema de pouca extenso, que abordava assuntos srios, gracejos ou zombarias. Quanto origem referente

nocionalidade, h uma certa polmica se ela provm dos gregos ou de latinos; e isto se d, principalmente, em funo de um testemunho de Quintiliano: satura tota nostra est, defende. Mas, na realidade, por mais paixo que se tenha pela literatura latina, no se pode negar que esta, em seus primrdios, tem toda a sua origem na literatura grega e,

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consequentemente, a stira tambm tem origem com os helenos. Entretanto, em funo do esprito zombeteiro latino, a stira, tendo em vista s suas caractersticas particulares, adquire grande prestgio entre os romanos. Para comprovar a influncia da literatura grega, at os dias de hoje, vamos destacar um fragmento do texto As rs, de Aristfanes, V sc. a C. A cena a seguinte: Dionisos e seu escravo Xantias esto a caminho do inferno na tentativa de livrar Atenas da opresso. O escravo carrega uma pesada trouxa nas costas. Os dois entram em cena assim:

Xantias _ Devo ou no, meu amo, dizer uma daquelas minhas habituais graolas, que sempre provocam o riso nos espectadores? Dioniso _ Por Zeus, dizes o que quiseres, exceto, "estou apertado !" Xantias _ No poderei dizer outro chiste qualquer? Dioniso _ Exceto, "como estou apertado!" Xantias _ Como? Direi ento o grande gracejo? Dioniso _ Por Zeus, dize logo _ basta que no me digas uma coisa... Xantias _ Qual? Dioniso _ Que ests com vontade de cagar! Xantias _ Nem mesmo devo dizer que, sobrecarregado com tanto peso se no aparecer algum que me alivie dele, eu vou soltar um peido?23

Esta aparente "brincadeira" tem a funo de prender a ateno dos espectadores (capitatio benevolentiae), j que o tema a ser tratado o das guerras, traies e, sobretudo, da libertao e sobrevivncia de Atenas. Com isso, lcito imaginar o efeito crtico que as comdias provocavam na platia em espaos projetados para receber mais de cinco mil pessoas. , entretanto, com o romano Luclio (148 a 102 a. C.), que se fixa, ainda que com certas restries, a stira como conhecida at os dias de hoje, ou seja: aquela manifestao literria que focaliza a corrupo dos costumes e o luxo excessivo, alm de expor o ntimo do homem para depois atingir as mazelas da sociedade. Para Luclio, a

23

BRANDO, J. S. (s. d. ) p. 90.

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stira tem um sentido amplo de provocao, sarcasmo e ironia. Porm, Terncio (116 a 27 a. C.) quem primeiro nomeia a expresso Saturae Menippeae. (H quem atribua o mesmo feito a Varro, contemporneo de Terncio). E o adjetivo menippeae, provavelmente, est associado a Menippus, filsofo grego da escola dos cnicos (ou Cinosarges), sculo III a. C. Esta escola, em funo da completa independncia, despreza a riqueza, as convenes sociais, e obedece, exclusivamente, s leis da natureza. em funo dessa liberdade incondicional, que os autores de stira encontram autonomia para falar com iseno, no s dos vcios, das distores sociais, como tambm dos poderosos. Quando se diz que a stira no se presta ao servilismo e adulao, este sentido que se instala no espirito satrico, verve da imaginao ainda presente at os dias de hoje. com Juvenal que este gnero se estabelece, tendo em vista ter ele usado a sua indignao a servio da stira. Por ser um homem permanentemente encolerizado em funo das injustias, lana-se contra os vcios de Roma, cidade depravada e sem lei. De forma livre e independente, denuncia a cobia do dinheiro, tal como fazem os antigos cnicos-estoicos. Horcio, na poca de Augusto, abandona os temas lendrios e mostra o homem vulgar, o inoportuno, a avareza, a ambio, os amores das mulheres casadas, cujas aventuras com facilidade so logo identificadas. Sneca faz uma stira mordaz contra o imperador Claudius, usando o riso profanador. Do mesmo modo, Petrnio, e sua obra Satiricon, transforma uma srie de aventuras, em fonte da crtica e de prazer. Da mesma forma, Apuleio, em seu romance o Asno de ouro, dissemina, em sua obra, o tema satrico; nela est a fuso do elemento religioso e o profano, e, em cada captulo, revela a carnavalizao dos costumes daquela poca. Diante de tais fatos, difcil conter o riso.

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Convm ressaltar que, apesar da represso sofrida pelos autores de stira, esse gnero se destaca, principalmente, nos perodos mais obscuros de Roma. no reinado de Tibrio que surge Fedro, durante o tempestuoso Trajano que se destacam as stiras de Juvenal, e, da mesma forma, no perodo de Nero que surge o talentoso Petrnio. Assim possvel supor que o salazarismo tambm deve ter fornecido muito "material" para Cardoso Pires zombar dos costumes da poca. Como ilustrao, citamos s o ttulo da obra: Dinossauro Excelentssimo __ suficiente para indicar o grau de ironia e zombaria, ao configurar, alegoricamente, a caricatura de Salazar. Fato este que muito lembra Sneca (4 a C. 65 d. C), em sua obra Apokolokyntosis, ou Aboborizao, onde o autor romano zomba do gordo imperador Cludius Germnicus, ao transform-lo em uma imensa abbora. Plauto e Terncio so os maiores representantes da comdia latina, mas os mesmos s aparecem aqui por uma questo cultural, visto que seus textos esto mais centrados no riso tradicional, na crtica aos costumes familiares. Isto , suas stiras no so stiras no sentido pleno da palavra atual, no fazem crtica ou ataques pessoais. Eles abordam

temas relativos avareza, ao casamento por interesses, aos fatos pitorescos, s peripcias dos deuses etc. Mas os vcios e os equvocos da Repblica e dos poderosos no so apresentados. A origem do nome stira perde-se no tempo, mas na tentativa de reconstruir o percurso que o determinou, possvel atribuir dois caminhos que talvez possam levar at a origem deste nome e, consequentemente, do gnero. 1) Satyros, so atores que dizem e fazem coisas ridculas e vergonhosas. tambm um semideus companheiro de Baco; 2) Lanx = prato, satira = iguaria formada pela mistura de vrias frutas e legumes. Ou seja, a stira pode ser compreendida como um prato cheio de muitas variedades de frutas que os antigos ofereciam aos deuses poca das festas da colheita. Sendo, pois, assim, tais

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festas relacionadas ao folclore, semelhante a muitas outras festividades, dentre elas, o carnaval, o qual, tambm se faz presente em muitas situaes satricas. Sendo possvel aceitar a origem da palavra "stira" de satura lanx, torna-se vivel conceber a sua relao com a literatura, pois a noo de "mistura" e de "abundncia", confunde-se, primordialmente, com a idia de alimento para o corpo (fsico), assim como a stira literria, (mistura de vrios gneros), por sua vez, "alimenta" o corpo espiritual. Isto vai se confirmar com a prpria etimologia de determinadas palavras. Exemplos: Satiate (fartura), satiatus (saciado, farto), saties (fartura), satietas (abundncia), satio (plantao), satiare (fartar, saciar, saturar), satis (suficiente), satur (abundante, farto), satura / satyra / satira (mistura, stira literria), satus (ao de semear)24 etc. Como possvel constatar, esta etimologia prpria do vocabulrio da satura lanx confunde-se com a mesma origem daquelas relacionadas a diversas referncias com os alimentos. E a idia de mistura, prpria da nutrio, tambm se faz presente no gnero da stira literria. Tal fato, provavelmente, deva-se a um deslocamento semntico

ocorrido nos ltimos milnios, ou mesmo ainda pode estar relacionado com as primitivas comemoraes poca das colheitas, quando ento ocorriam a mistura dos fatos relacionados ao sagrado e ao profano, ao sublime e ao grotesco. Portanto, ao misturar todos esses ingredientes iniciais, a partir de um certo tempo da histria literria, apareceu este gnero denominado de stira menipia. Nele possvel encontrar um texto sem uma caracterstica definida, sem um personagens comportadinhas, sem uso apenas de tema nico, sem

vocabulrio padro, mas, sobretudo,

um texto que se caracteriza pela denncia ou por apresentar coisas "ridculas", "grosseiras" e "vergonhosas". Esse gnero, ento, se distingue por ser um verdadeiro prato cheio para ser apreciado por uns e detestado por outros.

24

FARIA, E. (1962) pp. 893 - 895.

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A stira latina est presente nos seus mais variados aspectos; mas, em funo das caractersticas do romance que estamos analisando, destacamos do livro Satyricon, de Petrnio, um fragmento do conhecido episdio A Ceia de Trimalquio. Nesse texto, o autor faz uma acentuada crtica aos novos ricos da poca. Todo o baixo corporal assinalando as imagens grotescas e os vcios so expostos, como a opor-se riqueza extravagante da poca de Nero. Assim, o que est relacionado ao corpo __ flatos, arrotos, vmitos etc __ faz parte da narrativa como um fato natural. fragmento: Destacamos, pois, o

Entretanto, Trimalquio teve de ausentar-se para satisfazer uma necessidade corporal. (...) (Depois, ao voltar, disse) __ Amigos, perdoai-me. J faz vrios dias que tenho o corpo desarranjado e nem mesmo os mdicos sabem o que seja. Contudo, fezme bem uma infuso de casca de rom e de pinheiro no vinagre. Espero que o meu ventre tome juzo; e se assim no for, tereis que ouvir alguns rumores, semelhantes ao mugido de um touro. Alis, se qualquer de vs tiver necessidade de fazer o mesmo, no deve de nenhum modo envergonhar-se. Somos todos de carne e osso, e creio que nada causa tanto sofrimento neste mundo, do que ter a gente de conter-se. Ests rindo Fortunata?25 Tu que durante a noite me interrompes continuamente o sono?26

impossvel falar de stira sem incluir esse to "escandaloso e espetacular" livro de Petrnio. Nele o leitor vai encontrar uma srie de aventuras satricas narradas por Enclpio, jovem inquieto em busca de distraes e sensaes extraordinrias. Estes relatos acabam constituindo-se um verdadeiro retrato do Imprio romano. No banquete identificado acima, so discutidos temas literrios, filosficos, mas tambm, como no poderia deixar de ser, possvel notar a aguda crtica ao imperador Nero. E este acaba por obrigar o escritor a matar-se, cortando os seus prprios pulsos, e, enquanto morria lentamente, recitava os versos de suas stiras. Felizmente este tempo passou; e o imenso Imprio latino se transformou em vrias naes independentes. Dentre elas vamos25 26

Fortunata o nome da mulher de Trimalquio. PETRNIO. (s. d. ) p. 74.

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encontrar, no sculo XVI, a nao francesa, com sua cultura e particularidades, entre as muitas possveis de serem destacadas, apontamos a literatura; em especial a obra de Rabelais, a quem Bakhtin dedicou longo estudo. O autor francs, dentre suas peculiaridades, tal como Petrnio, recorre ao baixo material corporal para, tambm, falar da sociedade de sua poca. Por sua vez, Bakhtin analisa aquelas imagens que retratam a sociedade renascentista; onde o homem, antropocntrico, era capaz de todas as coisas. Para melhor compreender Rabelais e o gnero da stira menipia, mais abaixo est destacado um fragmento do livro: Cultura Popular na Idade Mdia e no Renascimento: o contexto de Franois Rabelais. Esse livro, organizado por Bakhtin, refere-se obra do escritor renascentista e este, por sua vez, descreve o clebre captulo dos limpa-cus de Gargantua (Livro I, cap. XIII) e, nele aparecem as imagens de uma sociedade circense e surreal, capaz de provocar o riso, acentuando o nonsense e a transgresso. Eis a descrio