Estética Da Forma_ Mário Pedrosa – Crítica de Arte, Psicologia e Psicanálise

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    Esttica da forma:

    Mrio Pedrosa crtica de arte,

    psicologia e psicanlise*

    Joo A. Frayze-Pereira**

    O relacionamento entre Esttica e Psicologia antigo. Antes da

    instaurao da Psicologia como cincia positiva, foi a Esttica

    que assimilou ao seu prprio campo fenmenos psicolgicos,

    diversificando-se segundo algumas tendncias tericas relativa-

    mente complexas (Frayze-Pereira, 2006). Tendo em vista que,

    atualmente, o vrtice esttico tem sido bastante considerado pe-

    los psicanalistas1e que, no final dos anos 1940, a pergunta sobrea experincia esttica, elaborada principalmente no campo da

    Fenomenologia, foi lanada no campo da Psicologia e no da Psi-

    canlise pelo crtico Mrio Pedrosa, creio valer a pena analisar

    o pensamento desse autor. Pedrosa seguramente um dos mais

    importantes crticos da produo artstica brasileira moderna.

    autor da tese Da Natureza Afetiva da Forma na Obra de Arte

    que apresentou, em 1949, Faculdade Nacional de Arquitetura

    do Rio de Janeiro. Trata-se de um trabalho digno de nota, pois

    representa uma articulao pioneira entre Psicologia da Gestalt

    e Arte, anterior mesmo obra do alemo Rudolf Arnheim, con-

    siderada um dos pilares da Psicologia da Arte e da chamada Psi-

    coesttica. Enfatizando que no basta considerar apenas os dois

    polos da experincia esttica o subjetivo e o objetivo , que

    o sentido inerente a essa experincia no reside apenas nos es-

    tados psquicos do sujeito, nem deriva dos objetos como direta

    consequncia de suas qualidades fsicas, Pedrosa reconhece que

    a experincia esttica possui um profundo carter valorati-

    vo. E lana no campo da crtica de arte uma pergunta-chave

    o que a experincia esttica?No entanto, devo dizer que considero uma temeridade es-

    crever sobre esse autor depois dos escritos da professora Ot-

    lia Arantes prefcios e ensaios esclarecedores no campo da

    filosofia e no da crtica de arte que levam o leitor a concluir ter

    sido Mrio no apenas um grande crtico, mas um instigante

    pensador da cultura. Haveria algo mais a dizer? Na condio

    de psicanalista, entretanto, vejo que o trajeto crtico de Mrio

    * Salvo pequenas alteraes, este textofoi elaborado para o ColquioUtopiasGeomtricas e Construtivas ProjetoArte no Brasil: Textos Crticos do scu-lo XX, sob coordenao de Ana Mariade Moraes Belluzzo, com o apoio daFAPESP, realizado na Faculdade de Ar-quitetura e Urbanismo USP, 11e 12

    de junho de 2007.

    * Membro associado da SociedadeBrasileira de Psicanlise de So Paulo.Professor Livre Docente do Instituto dePsicologia da USP.

    1Apenas como exemplo, sem mencio-nar os clssicos, vale lembrar algunsautores atuais que valorizam esse vr-tice: Meltzer, Bollas, Fedida, Kristeva,Pontalis, Herrmann, entre outros.

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    Pedrosa interessa sob outra perspectiva, certamente bem mais

    limitada. Considerando a problemtica da percepo esttica,

    pretendo examinar, inicialmente, a relao entre o pensamento

    de Pedrosa e a noo de Forma, destacando as expectativas des-

    se autor com relao Psicologia da Gestalt, e, posteriormente,

    com relao Psicanlise, bem como a frustrao dessas expec-

    tativas, tendo em vista o projeto de fundamentao rigorosa deuma abordagem crtica da arte.

    Forma e percepo esttica

    Em primeiro lugar, cabe fazer uma pergunta: Por que Mrio Pe-

    drosa veio a se interessar pela Psicologia da Gestalt ou da For-

    ma?Pode-se dizer de imediato que tal Psicologia chamou a aten-

    o do crtico, tendo em vista um projeto seu de elaborao de

    uma esttica da forma. A ideia era possibilitar a crtica de arte

    a transcender a sua maneira convencional que envelhecera e

    pedia substituio (Arantes, 2004, p. 18). A necessidade de le-

    gitimar teoricamente a objetividade da crtica compreensvel se

    pensarmos que Pedrosa estava empenhado no debate figurativis-

    mo abstrao e no embate contra a atitude impressionista que

    impregnava a crtica naquela poca. Ou seja, aquele interesse

    tambm poderia se justificar dado o processo de transformao

    da prpria arte do ps-guerra, com a predominncia do abstra-

    cionismo, que acabou deixando os crticos sem assunto: o quefalar, para alm da descrio formal, de uma obra que no dava

    chance mera alegao temtica, no fornecia qualquer pretexto

    literrio, nenhum ponto de apoio para a impresso ou a livre

    associao? (Arantes, 2004, p. 19). Mas, a partir da, no pos-

    svel pensar que Pedrosa se interessaria pela Gestalt, tendo em

    vista apenas a busca de fundamentos cientficos para a crtica da

    nova arte. Mais profundo, tal interesse era motivado pela expec-

    tativa de superao das oposies forma/contedo, inteligncia/

    sensibilidade, imaginao/realidade sob as quais se oculta uma

    outra: a clssica antinomia subjetividade/objetividade. Para essaproblemtica epistemolgica, a noo de Gestalt parecia oferecer

    uma soluo, uma vez que seria possvel explicar a experincia

    esttica por intermdio das propriedades intrnsecas da Forma.

    E o campo a partir do qual tal esttica da formase concebe

    primordial e especificamente o campo da viso.

    Com efeito, a expectativa dos crticos com relao contri-

    buio da Psicologia para a crtica das artes , e sempre foi, a de

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    uma Psicologia da Percepo ou da Viso, o que de fato foi

    iniciado, nas duas primeiras dcadas do sculo XX, precisamen-

    te com a Gestaltheorie, aperfeioada, pouco depois, por Rudolf

    Arnheim, um autor que detalha uma srie de categorias para a

    anlise objetiva das obras, no s do ponto de vista visual, mas

    na perspectiva de uma sntese psicomental (Argan, 1988, p. 156;

    Argan & Fagiolo, 1977, p. 98). Contudo, como j afirmei, mui-to anterior consolidao da Psicologia da Arte de Arnheim

    (1954), Mrio Pedrosa j antecipara a articulao entre Gestalte

    Arte, tematizando as qualidades formais-fisionmicas da Forma,

    responsveis pelas respostas cognitivo-afetivas do espectador.

    Em seu trabalho de 1949, Pedrosa deixa muito claro quais so

    os seus objetivos:O problema que nos interessa agora consisteem apreender a existncia de propriedades inerentes ao objeto

    fenomnico, organizadas estruturalmente em todos. A obra de

    arte o nosso objeto fenomnico presente. Trata-se de conhecer

    as qualidades do seu todo, as qualidades formais que o com-

    pem (1949, p. 53).

    Assim, baseando-se nos fundadores da Psicologia da Forma,

    os alemes Koehler, Koffka e Wertheimer, e no representante

    francs da Escola, Paul Guillaume, Mrio apresenta as leis da

    Forma: distncia e proximidade, semelhana e diferena, equi-

    lbrio e simetria, clausura ou prenhez da forma, articulao figu-

    ra-fundo, subordinao das partes ao todo. So leis ou prin-

    cpios estruturantes das formas privilegiadas ou Gestaltenque

    governam a organizao sensorial. E graas autonomia daGestaltem relao s variveis por ela englobadas que, em lti-

    ma anlise, um objeto permanece sempre o mesmo, apesar das

    mudanas s quais esto sujeitas as suas propriedades. Trata-se

    de um fenmeno cujo entendimento se coloca nos termos de

    uma anlise da organizao estrutural internados dados percep-

    tivos. E como impossvel falar de estruturas perceptuais sem

    que se levem em conta suas significaes, pois, por intermdio

    das leis estruturais, as primeiras esto intimamente amarradas

    s segundas, essa Psicologia pretende, ao analisar a dimenso es-

    trutural dos fenmenos considerados, revelar a sua significao.Em outras palavras, a forma perceptiva sempre expressiva.

    Como Maurice Merleau-Ponty (1945), Mrio Pedrosa (1949,

    p. 12) reconhecia o primado da percepo em todas as realiza-

    es humanas. E assim como afirmava ser a percepo uma

    forma (Pedrosa, 1949, p. 12), isto , suas partes se interde-

    pendem, inseparveis de um todo, conclua: os estetas e os

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    historiadores que ainda no tomaram conhecimento dessa teoria

    da percepo estrutural no conseguem sair de um crculo vi-

    cioso. Ou se delimitam no campo da pura tcnica plstica, evi-

    tando abordar os problemas fenomenolgicos relacionados com

    a atividade artstica, ou, esquecendo os preceitos e afirmaes

    anteriores sobre a independncia da forma na obra de arte, en-

    tregam-se a um subjetivismo abstrato e intelectual baseado aindano atomismo associacionista do sculo passado, quando tentam

    entrar no aspecto terico e psicolgico do problema (Pedrosa,

    1949, p. 24). Ento, aos olhos de Mrio, a Psicologia da Forma

    prometia a fundamentao desejada para a Esttica e a Crtica

    sem cair no unilateralismo subjetivo (1949, p. 55). Quer dizer,

    o que Pedrosa buscava na nova Psicologia (Merleau-Ponty,

    1966a) era a fundamentao terica necessria para a sntese

    conscincia-mundo, subjetividade-objetividade, antinomias que

    ele acreditava terem sido resolvidas poeticamente por Kandinski

    e que a Psicologia da Forma parecia explicar cientificamente pela

    via do isomorfismo psicofisiolgico (Arantes, 2004, p. 70). E,

    como observou Merleau-Ponty (1966b, pp. 150-151), se a Psi-

    cologia da Gestaltfor considerada filosoficamente sem precon-

    ceito, de fato, seria preciso dizer que, revelando a estrutura

    ou a forma como ingrediente irredutvel do ser, questiona a

    alternativa clssica da existncia como coisa e da existncia

    como conscincia, estabelece uma comunicao e uma espcie

    de mistura do objetivo e do subjetivo, concebe de maneira nova

    o conhecimento psicolgico, que no consiste mais em decomporconjuntos tpicos, mas, antes, em espos-los e compreend-los,

    revivendo-os. Nesse sentido, compreensvel que, na segunda

    metade dos anos 1940, o crtico tenha se deixado encantar por

    essa Psicologia recm-criada que oferecia possibilidades estti-

    co-epistemolgicas inditas para a elaborao de uma esttica

    da forma. E tal encantamento s atesta a exigncia e a abertura

    intelectual de Mrio Pedrosa, descontente com o trajeto da crti-

    ca tradicional, insuficiente para dar conta da arte.

    No entanto, o fato de a especificidade da experincia arts-

    tica e a dimenso simblica das obras no terem sido contem-pladas pela Psicologia da Forma, assim como o compromisso

    desta com o objetivismo cientfico que obrigou essa Psicologia

    a reduzir as formas complexas s simples, a perder de vista lite-

    ralmente a particularidade das formas e a afirmar a objetividade

    das leis estruturais, tidas como universais e independentes do

    espectador, levaram Pedrosa a desencantar-se com a noo2.

    necessrio reconhecer, entretanto, que tal decepo aconteceu

    2 Passados trinta anos, na ocasio dapublicao de Arte, forma e personali-dade, em 1979, Pedrosa declarou: notenho mais nada a ver com a Gestalt(Arantes, 2004, p. 9).

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    no por demrito da noo, mas pelo fato de o crtico ter-se

    aliado aos autores clssicos da Psicologia da Forma que a leva-

    ram a um impasse. Novamente, Merleau-Ponty (1966b,pp.148-149) quem esclarece a questo, em um ensaio denso cuja

    concluso contundente: A psicologia da forma, em vez de

    acarretar uma reviso da metodologia e do ideal cientfico que

    durante longo tempo haviam mascarado a realidade da forma,s se desenvolveu enquanto permitiu reanimar essa metodologia

    desfalecida. A Escola de Berlim propunha, de um lado, descre-

    ver as formas privilegiadas da conduta humana e, de outro lado,

    determinar as condies que comandam as suas aparies. O

    retorno descrio, o apelo aos fenmenos como fonte legtima

    de conhecimentos psicolgicos interditavam, em princpio, tra-

    tar a forma como uma realidade menor ou derivada e conservar

    o privilgio que o cientificismo atribua aos processos lineares e

    s sequncias isolveis. No entanto, a Escola de Berlim recuou

    diante dessas consequncias: preferiu afirmar por um puro ato

    de f que a totalidade dos fenmenos pertencia ao universo

    da fsica, atribuindo a uma fsica e a uma fisiologia mais avan-

    adas a tarefa de fazer-nos compreender como as formas mais

    complexas repousam, em ltima anlise, sobre as mais simples.

    ... A psicologia da percepo veio revezar a antiga psicofisio-

    logia no papel de centro das investigaes psicolgicas. E, a

    propsito, acrescenta Marilena Chaui (1966, p. 63): o que h

    de verdadeiramente decepcionante com relao Gestaltheorie

    que tendo avanado e metamorfoseado de maneira radical ainvestigao psicolgica, ela tenha, por inrcia ... mantido o pre-

    conceito cientificista.

    A filosofia de Merleau-Ponty pouco citada nos escritos de

    Pedrosa3, apesar de ter sido o pensador que, desde a sua primei-

    ra obra (1942), mais radicalmente fez a crtica da Psicologia da

    Forma. E, no entanto, no descarta a Gestalt.At em sua ltima

    obra, publicada postumamente, refere-se noo e, em particu-

    lar, a um autor que soube preservar a sua originalidade o belga

    Albert Michotte (Merleau-Ponty, 1964, pp. 230, 255). Trata-sede um contemporneo de Pedrosa, cuja teoria da percepo

    , segundo Merleau-Ponty (1964, p. 251), uma fenomenologia

    que desvela o ser bruto, pr-reflexivo, que opera criticamente

    com a noo de Gestalt, sabendo tirar dela o melhor partido. E,

    com efeito, a diferena entre essa perspectiva e a dos clssicos

    berlinenses repousa no prprio modo como a noo de Forma

    concebida (Frayze-Pereira, 1984).

    3 Mesmo adotando vrios conceitosextrados da fenomenologia e insistin-do cada vez mais no carter indito dasformas artsticas, Mrio Pedrosa nochega entretanto a desenvolver uma cr-tica completa Gestalte suas refern-cias a Merleau-Ponty so poucas, mas por indicao sua que os neoconcretosadotaro, no final dos anos 50, a auto-ridade da Fenomenologia da percepopara se afastarem da Gestalt... (Aran-tes, 2004, p. 78).

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    No seria o caso de, neste instante, passar a citar as pesquisas

    de Albert Michotte, sempre muito engenhosas. Para alm desses

    estudos, o que importante considerar que, para o autor, o

    percebido uma Gestaltcuja definio negativa e exterior isto

    , um todo que no se reduz soma das partes no se mantm,

    pois implicaria repor a Gestaltno domnio do em si, como se

    tudo aquilo que pudssemos dizer acerca das perspectivas de umobjeto no lhe dissesse respeito. Nos estudos desse psiclogo,

    quer no campo das configuraes cinticas, quer no nvel de um

    objeto slido, ou ainda no do prprio corpo, fica muito claro

    que, no se deixando apanhar como positividade, ao contrrio,

    como se a Forma estivesse nos aspectos efetivamente dados,

    ou aqum ou alm deles, emergindo entreum ponto de vista do

    observador e um perfil da coisa que se mostra (Michotte, 1962).

    Mas, se ela no um indivduo espaciotemporal, tambm no

    uma ideia intemporal e a-espacial. um sistema de equivalncias

    do qual os fenmenos parcelares so a manifestao e que no

    se deixa fixar em um lugar objetivo e em um ponto do tempo

    objetivo. Como pensava Merleau-Ponty (1964, p. 255), a Forma

    se instala em um campo onde onipresente sem que se possa

    jamais dizer est aqui. transcendncia. E aquele que vem

    experienci-la no um esprito que a apreenderia como ideia,

    mas um corpo. No o corpo objetivo massa de ossos, nervos

    e msculos , mas o corpo como Gestalt, que, entendido feno-

    menologicamente, abertura para..., e, nesse sentido, compo-

    nente da prpria Gestalt. Com relao a isso, e considerando apossibilidade de elaborao de uma esttica da forma, vale a

    pena seguir resumidamente um dos estudos de Michotte, um dos

    mais simples, apenas como um exemplo extrado do campo das

    configuraes geomtricas, visveis na natureza, como a esfera, o

    cilindro e o cone como propunha Czanne4.

    Uma outra lio da Gestalt:

    a forma surge no vnculo entre sujeito e objeto

    Ao serem confrontados com o lado convexo de um hemisf-

    rio (15cm de dimetro), isolado no espao ambiente e apenas

    fixado em uma haste, centenas de sujeitos so unnimes em

    declarar que veem uma bola, uma esfera completa, cuja super-

    fcie perfeitamente contnua (Michotte et al., 1964, p. 20). A

    esfera percebida na sua totalidade a partir de um de seus pos-

    sveis perfis. A bordado hemisfrio efetivamente apresentado4Para mais anlises dos estudos deMichotte, cf. Frayze-Pereira (1984).

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    no limita a superfciedaquele objeto. E justamente porque

    no limitada nesse nvel, na direo anteroposterior, que essa

    superfcie parece se prolongar naquela direo. No entanto, se o

    sistema de estimulao for modificado, a Gestaltou fisionomia

    especfica do conjunto substituda por outra. Ou seja, levan-

    do-se a borda a assumir a funo de limite, o hemisfrio que

    se apresenta no lugar da esfera. Para atingir esse resultado, bastacolocar a mo aberta contra a face posterior do hemisfrio, isto

    , a linha de demarcao entre a mo e o hemisfrio aparece,

    imediatamente, como sendo o limite prprio deste ltimo.

    Examinando essa experincia, pode-se dizer banal e qua-

    se cotidiana, deve-se notar, inicialmente, que os sujeitos esto

    situados em um certo lugar. Possuem o objeto (quer hemis-

    frio, quer esfera) conforme uma nica perspectiva fixada

    pela situao. A sua face posterior (e poderiam ser includas as

    faces laterais, inferiores, superiores..., quantas faces fazem par-

    te de um objeto esfrico?) no vista objetivamente. De fato, o

    hemisfrio torna-se visvel atravs de uma modificao do con-

    junto dos dados da percepo: a mo colocada contra a face

    plana do objeto apresentado fazo hemisfrio aparecer. E, se ele

    se torna visvel, porque a mo tambm percebida. preciso

    compreender a percepo de um na do outro, ou melhor, a

    percepo de ambos na do conjunto. Para tanto, o conhecido

    efeito de anteparo aqui pode ser aplicado: um objeto (hemis-

    frio) recobre parcialmente um outro (mo), sem que a integri-

    dade do ltimo parea alterada.Ora, se h esta possibilidade, porque o complemento perceptivo sob forma amodal intervm,

    interveno esta que, por sua vez, se torna possvel na medida

    em que a superfcie de um objeto notenha limite prprio em

    uma dada direo (Michotte et al., 1964, p. 22). Mas no seria

    a percepo do hemisfrio o caso de uma percepo correta

    produzida pela presena objetiva de um estmulo que especi-

    ficaria a verdade do objeto apresentado? A linha estabelecida

    entre a mo e o hemisfrio no seria propriamente uma borda

    que, pela ptica objetivista, destacaria a superfcie de um objeto

    diante de outra? Esse ponto de vista invivel.Observe-se, em primeiro lugar, que as condies experimen-

    tais adotadas por Michotte fogem inteiramente quelas consi-

    deradas essenciais para o aparecimento de uma borda como

    estmulo: a configurao mo/hemisfrio apresentada esta-

    ticamente, e o observador est situado em um certo lugar, fixa-

    do pelas circunstncias. No h, portanto, ocluso cintica.

    No haveria, assim, a produo de uma borda. Em vista

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    disso, poder-se-ia apelar para a noo de limite projetado

    no arranjo ptico em virtude de uma descontinuidade da

    intensidade luminosa entre duas superfcies em contato. No

    entanto, definindo-se essa noo por uma diferena que ne-

    cessariamente bilateral, vemos que ela nada teria a ver com a

    noo de um limite com funo unilateral. Concebido como

    uma descontinuidade ptica das superfcies adjacentes, nose encontraria um motivo para que esse limite pertencesse a

    uma superfcie e no a outra. E mais ainda: se a ausncia de

    limite da superfcie de fundo fosse dada opticamente, essa su-

    perfcie deveria se interromper ao nvel da linha que separa as

    duas reas. E, como sabemos, no isso o que ocorre. A mo

    percebida prolongando-se atrs do hemisfrio que, nesse senti-

    do, valecomo anteparo, e sua borda, como limite. Entretanto,

    no se pode dizer que a borda dohemisfrio que o torna vis-

    vel. Se fosse este o caso, no haveria motivo para se perceber a

    esfera em seu lugar. A borda, portanto, no pode ser considera-

    da um atributo positivo e propriedade do objeto em si. Como

    h pouco foi salientado, a linha de demarcao entrea mo

    e o hemisfrio que aparece como sendo o limite prprio deste

    ltimo, de sorte que a borda do hemisfrio, mas junto com

    ela o hemisfrio total, se manifesta.

    Examinando a percepo da esfera, pode-se dizer que o mero

    prolongamento da superfcie do hemisfrio no suficiente para

    explicar a forma percebida. Assim, deve-se notar que um outro

    fator determinante de sua especfica fisionomia e que intervmaqui a pregnncia excepcional da esfera. Com efeito, na

    medida em que a curvatura circular, encarnada na superfcie do

    objeto apresentado, tende a continuar regularmente, aparen-

    temente ela deve se encerrar atrs deste, delimitando a metade

    posterior da esfera, que, aqui, constitui o complemento amodal,

    o nico capaz de tornar compreensvel o fato dessa forma ser

    percebida na sua totalidade (Michotte et al., 1964, p. 21). Ou

    seja, o outro lado da esfera percebida, aparentemente oculto

    por uma parte dela mesma, est presente sob forma amodal,

    isto , percebido na ausncia de qualquer qualidade visual doobjeto, e to intimamente integrado parte descoberta que a

    forma do conjunto aparece como um todo perfeitamente cont-

    nuo. E essa percepo no uma fantasia arbitrria do sujeito,

    mas se apoia na prpria organizao do campo visual. Se a face

    posterior do hemisfrio for por ele apenas tateada, cuidando o

    experimentador para que a mo no ultrapasse as extremidades

    do objeto, a planura dessa face atestada, mas isto no interfe-

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    re na percepo visual, que permanece a da esfera completa. Ela

    ser alterada se a mo se deixar ver parcialmente oculta pelo

    objeto. Nesse caso, figurando contra a sua face posterior, ela

    quebra a continuidade aparente da superfcie do objeto, fazen-

    do surgir entre ambos um contorno, uma linha, que tambm es-

    capa ao domnio do em si e do localizvel, pois no visvel por

    si mesma. No est nem na mo nem no hemisfrio, nem aquinem ali. Est aqum ou alm do ponto onde se olha, implicada

    pelas coisas, mas sem ser propriamente coisa. Gerada entrea

    mo e o hemisfrio, s valena medida em que se apaga para

    deixar falar certa espacialidade das coisas. Sua funo dia-

    crtica: de-marcando a diferena entre uma e outra, atravs

    dela a significao do conjunto se mostra e se institui. E, parti-

    cularmente, a visibilidade do hemisfrio se torna possvel. Ele

    percebido como um objeto total atravs de uma perspectiva,

    algo que se repete no caso da percepo da esfera. Ela se oferece

    aos olhos dos sujeitos presente-ausente, visvel-invisvel.

    No se deve imaginar, entretanto, que o invisvel da esfera

    apenas o no-visvel ou um possvel visvel, aquilo que no visto

    mas que poder ser visto. Neste caso, ele seria apenas ausncia ob-

    jetiva, isto , presena objetiva alhures, num alhures em si (Mer-

    leau-Ponty, 1964, p. 295). Por um lado, se perceber a ausncia, no

    caso da esfera, perceber a sua face positivamente oculta, teramos

    com isso apenas a percepo de mais um perfil do objeto e no a do

    objeto total, pluralidade de perspectivas, que continuaria a se man-

    ter distncia. Por outro, no caso especfico relatado, a equaoausncia = presena objetiva em outro lugar no poderia sequer

    ser formulada: no h um outro lado objetivo da esfera, pois o que

    se apresenta aos sujeitos, do ponto de vista do experimentador,

    um hemisfrio. preciso compreender, ento, que a ausncia est

    na prpria presena, que esta comporta aquela, mas que reside

    a sem ser objeto (Merleau-Ponty, 1964, p. 278). Fazer dela uma

    positividade romper a unidade estrutural da esfera percebida e

    adotar a atitude isolante. A esfera, mais do que qualquer outro

    slido, d-nos a impresso de sempre nos oferecer a mesma face.

    No entanto, diante dela a prpria esfera que vemos espetacular-mente. Pregnante, ela se define por uma estrutura ou sistema de

    equivalncias. Vendo-se a parte, v-se o todo. Transgredindo as

    fronteiras das outras, cada parte parte-total, emblema do todo

    (Merleau-Ponty, 1964, pp. 257, 267). , portanto, transcendncia.

    Assim, nem coisa nem ideia, nem objetiva nem subjetiva, a

    Gestaltno est nem no objeto nem no sujeito da observao,

    mas entre ambos, emergindo no e pelo pacto que se estabelece

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    entre eles. Com base em Michotte (1962) pode-se dizer que o

    todo umprocesso, umdesenvolvimento gradualdeum conjun-

    to diacrtico, opositivo, relativo que no est nem aqui nem ali,

    nem antes nem depois, mas sempre entre, realizando-se particu-

    larmente com uma significao porque conta com a cumplicida-

    de do olhar. Nessa medida, pode-se concluir com Merleau-Pon-

    ty (1942, p. 223): o que h de profundo na Gestalt,ponto doqual partimos, no a ideia de significao, mas a de estrutura,

    juno de uma ideia e de uma existncia indiscernveis, arranjo

    contingente por cujo intermdio os materiais se pem a ter um

    sentido diante de ns, a inteligibilidade em estado nascente.

    Ora, Mrio Pedrosa no chegou a encontrar nos gestaltis-

    tas que conheceu essa perspectiva psicodinmica, fundamenta-

    da fenomenologicamente, que inclui na Gestalta coisa visvel,

    a situao do espectador e a invisibilidade essencial de toda e

    qualquer viso. Nesse sentido, para o crtico, as obras de arte

    estavam muito alm do alcance da Psicologia da Forma. E no

    foi por acaso que nesse momento de seu percurso crtico Mrio

    tenha desviado sua ateno para a Psicanlise, interesse que, en-

    tretanto, tambm durou pouco.

    Um outro desencanto, uma outra viso

    Logo aps a tese de 1949, com efeito, Pedrosa escreve Forma

    e personalidade, em 1951, e Freud e a arte, em 1958, tex-tos nos quais registra a sua viso da perspectiva psicanaltica

    para a apreciao das obras de arte e, portanto, para o exerc-

    cio rigoroso da crtica. Entretanto, curioso notar que, no de-

    correr da sua reflexo, no h meno a algum psicanalista ou

    terico da arte brasileiro que se refira Psicanlise. A ateno

    dada por ele ao trabalho clnico de Nise da Silveira e ao Museu

    de Imagens do Inconsciente que dele resultou, observa que a

    perspectiva que impregnava esse trabalho era a derivada da

    psicologia analtica de Jung, uma abordagem conteudista ou

    temtica, diferente da perspectiva que interessava a Pedrosa,nesse momento do seu trajeto crtico, voltado para a elabo-

    rao de uma esttica da forma. Deste modo, destaca-se que

    o apelo perspectiva psicanaltica fazia sentido, sobretudo se

    lembrarmos mais uma vez Merleau-Ponty (1966b, p. 149), que

    afirmou: A prpria psicanlise, salva de seus dogmas, o pro-

    longamento normal de uma psicologia da forma consequente.

    Portanto, baseando-me neste filsofo da percepo, estudioso

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    da Psicologia da Forma, posso dizer que arelao entre Psica-

    nlise e Gestalt intrnseca, considerados dois dos principais

    aspectos definidores da forma singularidade e transcendncia

    que surgem no vnculo sujeito-objeto.

    No entanto, no ensaio de 1951, aliando-se ao crtico de arte

    ingls, Roger Fry, formalista extremo (p. 88), Pedrosa conclui

    que a concepo de Freud de a arte ser a satisfao de umdesejo, sublimao da libido, no atende aos fenmenos mais

    intrnsecos da criao artstica (p. 83). E o fundamento des-

    ta concluso j havia se colocado, anteriormente, no ensaio de

    1949, no momento em que Pedrosa j adiantara explicaes so-

    bre o motivo de a Psicanlise vir a ser descartada para a crtica

    de arte: At agora, tratando de problema to complexo como

    a forma na arte, no fizemos nenhuma referncia Psicanlise.

    ... A omisso se deve a uma questo de mtodo. Nossa ateno

    se concentra na obra de arte, na vida de suas formas, na qua-

    lidade autnoma destas. A Psicanlise aborda o problema por

    definio, do lado do artista, do sujeito. No lhe interessa o

    problema seno pelo seu aspecto subjetivo (p. 54). E, em 1958,

    no ensaio sobre as relaes entre Freud e a arte, depois de tecer

    alguma crtica ao conceito de sublimao que no exprime, e

    muito menos define, intrnseca ou especificamente, o fenmeno

    da criao (p. 222), Pedrosa volta a afirmar que a preocupao

    da Psicanlise ainda com a pessoa do artista. A obra de arte,

    a influncia desta sobre o contemplador, descurada (p. 223).

    Ora, ao fazer essas consideraes, Pedrosa revela seu com-promisso com alguns comentadores de Freud, em particular,

    Charles Boudouin e Ernst Kris, que se incluem na categoria da-

    quele tipo de autor que, no dizer de Paul Ricoeur (1977, p. 147),

    fazem uma m psicanlise da arte, uma psicanlise equivo-

    cadamente biogrfica, tributria do conhecido estudo de Freud

    sobre Leonardo da Vinci. E mesmo depois, em 1960, quando

    Pedrosa (1975) aproxima as ideias dos mestres Ernst Cassirer e

    Susanne Langer s de Anton Ehrenzweig para pensar a questo

    da intuio, a Psicanlise proposta por este ltimo autor, se no

    est preocupada com a pessoa do artista, do ponto de vistapsicanaltico tambm bastante abstrata. H que se reconhe-

    cer, sobretudo, que, na articulao entre Gestalt e Psicanlise,

    a noo de campo transferencial, que inclui o espectador, a sua

    situao e a invisibilidade de todo ato perceptivo, e essencial

    em qualquer abordagem que se diga psicanaltica, mesmo a das

    obras de arte, no considerada por Ehrenzweig. Trata-se da-

    quele tipo de psicanlise aplicada, sofisticada, mas inteiramente

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    baseada nos livros, que no consegue esconder seu parentesco

    com a perspectiva designada por Freud (1910) psicanlise sil-

    vestre. E, neste momento, cabe abrir um novo parntese, desta

    vez final, para fazer um breve esclarecimento.

    Psicanlise no campo da esttica da recepo

    bom relembrar que so dois os estudos de Freud relaciona-

    dos s artes plsticas Leonardo da Vinci e uma lembrana de

    suainfncia (1910) e Moiss de Michelangelo(1914). Muito

    diferentes entre si, no primeiro a arte evocada apenas como

    fonte de interrogaes que aprimoram no o conhecimento

    que se poderia ter das obras de arte, mas a prpria teoria psi-

    canaltica. E, com efeito, o que torna suspeita a psicanlise de

    Leonardo que ela parece ir muito alm das analogias estru-

    turais que uma anlise da composio permitiria, chegando a

    trabalhar a temtica pulsional que as obras encobrem. Mas,

    como se sabe, no nesse ensaio que se verificam as possibi-

    lidades da psicanlise para a crtica da arte, mas no estudo

    sobre o Moiss.Neste, importante lembrar que Freud est

    interessado em descobrir o enigma da escultura de Michelan-

    gelo, o motivo das intensas emoes suscitadas nele enquanto

    espectador. E, nesse sentido, examina minuciosamente a pea e

    a percepo da obra como um momento de uma histria ocul-

    ta que busca reconstruir. A ideia de Freud que a pea possuiuma dimenso invisvel cuja construo suscitada pelo vis-

    vel, uma histria imaginria intrnseca, a remeter aos gestos de

    Moiss que precederam a cena esculpida. Portanto, a leitura

    feita atenta aos sentimentos despertados no espectador, mas

    tambm aos detalhes da obra e s lacunas dos comentrios

    feitos e publicados acerca dela. Em suma, uma percepo da

    escultura ao mesmo tempo descentrada e sonhadora, mas cui-

    dadosa quanto singularidade dos aspectos formais da com-

    posio. Considerar todo esse processo constatar que Freud,

    ousando livrar-se de todo um jogo de projees e de elabora-es terico-conceituais, situa uma hermenutica no campo

    que se forma entre seu olhar e o objeto artstico, rompendo

    com a ideologia da verdade esttica, fixada anacronicamen-

    te. E, procedendo dessa maneira, distancia-se da ideia de uma

    simples psicanlise aplicada e possibilita a implicao da

    Psicanlise no campo da esttica da recepo (Frayze-Pereira,

    2004, 2006).

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    142

    Ora, se no ensaio sobre Leonardo Freud j tentava operar a

    partir do cruzamento entre dois pontos de vista, o endopoi-

    tico e o exopoitico isto , o ponto de vista que considera

    os constituintes internos obra e o que considera os fatores

    provenientes do contexto que a sustenta (Green, 1994, p. 97),

    no estudo sobre Michelangelo essa maneira de trabalhar fica

    mais clara, abrindo o campo compreendido pelas estruturassubjetivas do artista que no se confundem com o que diz res-

    peito biografia do criador. As estruturas subjetivas no so

    da ordem dos acontecimentos, mas resultam da transformao

    das relaes entre o exterior e o interior. Nesse sentido, o

    investigador que se prope como finalidade o estudo das estru-

    turas subjetivas no pode excluir de sua pesquisa suas prprias

    estruturas subjetivas (Green, 1994, p. 100). Assim, dada a

    imbricao do investigador no objeto de sua investigao, a

    interpretao ser sempre arriscada, pois o intrprete est li-

    vre de um lado exatamente porque ligado ao outro, podendo

    acontecer de as descobertas resultantes afetarem sua relao

    com seu prprio inconsciente. E talvez seja este o tributo obri-

    gatrio a ser pago por esta transgresso feita por intermdio

    de um outro o universo oculto do artista cuja obra estuda-

    da. Ora, quando se trabalha com obras de arte preciso reco-

    nhecer este risco e aceit-lo. No entanto, no fcil manter-se

    aberto alteridade que nos interroga, uma vez que as obras es-

    to sempre a exigir de ns um trabalho criativo para delas ter-

    mos experincia, como pensava Merleau-Ponty (1964, p. 248).Trata-se de uma experincia propriamente esttica que vemos

    realizada por Freud na sua relao com Moiss, introduzin-

    do-se desta maneira na fortuna crtica da obra. Diferente foi

    seu propsito na relao com Leonardo. Curiosamente, neste

    estudo, embora a problemtica da criao esteja pressuposta,

    o pintor no tratado como divino, mas como um homem

    comum. E, com efeito, neste ensaio, no a esttica a questo

    com a qual Freud est s voltas, mas a problemtica da vida,

    da troca contnua entre passado e futuro, a questo de que

    cada vida sonha enigmas cujo sentido no se encontra fixadoem lugar algum e, portanto, exige liberdade para ser e se de-

    senvolver (Kofman, 1995, p. 196). , portanto, um equvoco

    tomar o estudo sobre Leonardo como modelo da relao entre

    Psicanlise e Arte. Ao contrrio, a leitura de Freud do Moiss

    que legitima a aproximao psicanaltica das artes do visvel,

    legitimidade que permite ao intrprete recorrer a certas noes

    constitudas no campo da anlise para repens-las. Mas no

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    s. Esses trabalhos justamente contestam o chamado conser-

    vadorismo de Freud em matria de arte. Ao tratar dois gnios

    clssicos como homens comuns, o autor reafirma mais uma vez

    a vocao da Psicanlise para a subverso de certas represen-

    taes culturais. E mais: com o ensaio sobre a escultura, quase

    meio sculo antes de a crtica moderna ser sacudida com a tese

    de Duchamp so os espectadores que realizam as obras ,Freud abre a Psicanlise para a esttica da recepo e, talvez

    sua revelia logo ele que afirmava ser distante da arte , para

    o campo da crtica contempornea da arte.

    possvel que fosse essa a abertura que Pedrosa esperava

    encontrar na Psicanlise, assim como, anteriormente, na Psico-

    logia da Gestalt. Porm, se chegou a descart-las como perspec-

    tivas para a anlise da obra de arte, no meu entendimento isto

    aconteceu por um mesmo motivo: as fontes equivocadas que

    nutriram seu pensamento e no foram suficientes ou no permi-

    tiram noo de Forma, seja na Psicologia, seja na Psicanlise,

    expressar toda a sua potncia. Assim, os limites encontrados

    por Mrio decorreram menos da noo que privilegia e, mais

    precisamente, da maneira como ela utilizada pelos autores nos

    quais se baseou, autores comprometidos com o psicologismo,

    em suas faces objetivista e subjetivista, subjacente Psicologia

    e Psicanlise tal como encontradas por ele. De qualquer ma-

    neira, no foi o crtico quem saiu perdendo da aventura pelos

    domnios das teorias psicolgicas, mas as perspectivas psicol-

    gica e psicanaltica para arte. Foram elas que, lamentavelmente,foram privadas de ser honradas e aprofundadas com o exerc-

    cio do pensamento crtico de Mrio Pedrosa. Com a mediao

    desse pensamento, tais perspectivas, quando voltadas para a

    arte, ainda hoje, seriam poupadas de alguns equvocos.

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    O artigo analisa a posio crtica de Mrio Pedrosa que se ope

    crtica conteudista/impressionista e apela noo de Forma (Ges-

    talt) para fundamentar conceitualmente uma esttica da forma.

    Como contraponto, considera a crtica Gestaltheorie, segundo

    Merleau-Ponty, apresentando a concepo de Gestalt ou estrutura

    elaborada por este filsofo. Mostra ainda que Pedrosa entra em

    contato com essa filosofia e reconhece os limites da Teoria da For-

    ma, apelando psicanlise freudiana, porm, na chave interpreta-

    tiva da psicanlise da arte de Ernst Kris e na de Anton Ehrenzweig.

    Finalmente, mostra como Pedrosa, dadas essas escolhas tericas

    equivocadas, perde de vista a fecundidade da noo de Forma e

    preconcebe a psicanlise, na relao com a arte, como psicanlisedo artista, ignorando as possibilidades da psicanlise no campo

    da esttica da recepo, possibilidades fecundas para a apreciao

    crtica da arte, da cultura e do mundo sensvel. | The article analy-

    ses the critical position of Mario Pedrosa. This position opposes

    itself to the content/ impressionist critics and appeals to the notion

    of Gestalt, considering the possibility of conceptually substantia-

    ting an aesthetics of the form. As a counterpoint, it considers the

    phenomenological critics to the Gestaltheorie, according to Merle-

    au-Ponty, presenting the Gestalt or the concept of structure pro-

    posed by this philosopher. It also underlines that Pedrosa gets intouch with Merleau-Pontys thought, recognizing the limits of the

    Form Theory and appealing to the Freudian psychoanalysis, in the

    interpretative key of the art psychoanalysis elaborated by Ernst

    Kris and Anton Ehrenzweig. Finally, given these theoretical choi-

    ces, it shows how Pedrosa loses sight of the richness of the notion

    of structure or Gestalt and preconceives the art psychoanalysis

    as an artist psychoanalysis, ignoring its fertile possibilities in the

    RESUMO| SUMMARY

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