Estatuto faz 18 anos em 2008

2
8 | CADERNO DEZ! | SALVADOR, TERÇA-FEIRA, 13/5/2008 NA REAL Lei ainda é ponto de divergência Estatuto faz 18 anos em 2008 A internação não deve ser uma medida banalizada, defende juiz da Vara da Infância e Juventude HAROLDO ABRANTES | AG. A TARDE VITOR PAMPLONA [email protected] Considerado uma das legislações mais avançadas do mundo em sua área, o Estatuto da Criança e do Adolescente continua esbarrando em dificuldades práticas por todo o País, 18 anos após sua promulgação. A começar por diferenças de interpretação: seus 267 artigos enumeram direitos, garantias e medidas a serem empregadas em caso de conflito com a lei. Mas esmiúçam pouco o que é previsto, levando os responsáveis por aplicar a lei – juízes, promotores, defensores públicos e gestores de unidades socioeducativas – a divergir. O principal embate diz respeito às infrações passíveis da internação. O artigo 122 do ECA prevê três tipos de conduta para isso: praticar ato infracional por meio de grave ameaça ou violência; cometer outras infrações graves de forma reiterada; e descumprir continuamente e sem justificativa medida aplicada antes. O juiz Nelson Amaral, da 2ª Vara da Infância e Juventude de Salvador, tem críticas ao Ministério Público e a seus colegas de comarcas do interior. “O MP tem pedido a internação onde não cabe. Ela não pode ser banalizada, tem que observar os requisitos legais. E juízes do interior têm julgado sem observar essas condições”, aponta. ”Não se pode prender por qualquer coisa, violando o direito à liberdade. O homem nasceu para ser livre“. A promotora da Infância e Juventude Edna Sara Cerqueira não vê outra solução para os reincidentes. ”O estatuto prevê a medida mais forte no caso de prática reiterada. Se o histórico é de furto, furto, furto, tenho que pedir a internação”, argumenta. Parte da raiz do problema está na própria legislação, lembra o juiz Nelson Amaral: “O conceito de grave, mencionado no artigo 122 do Estatuto da Criança e do Adolescente é subjetivo”. Para o juiz, deveria ser mais aplicada nas comarcas do interior do Estado a medida de semi-liberdade, que não priva o infrator do direito de ir e vir. ”A Fundac tem um projeto na zona rural de Pojuca para 100 pessoas. Tem só 16 lá hoje“, observa. BANDIDOS – Apesar das divergências, no Judiciário e no Ministério Público, há um consenso. Um dos grandes obstáculos à maior eficácia do ECA é o desconhecimento da lei. A posição é compartilhada pelo diretor da Fundac, o ex-deputado estadual Walmir Mota, responsável pela gestão dos centros sócio-educativos no Estado. ”Falta compreensão da legislação. A sociedade precisa entender mais as medidas. Na cabeça de quase todo mundo, quem pratica o ato vira bandido. Não é verdade. Temos experiências de gente que se arrependeu e recuperou a vida“. Otimismo à parte, Mota reconhece problemas no caminho da ressocialização. O primeiro é a resistência particular de quem perde a liberdade. ”Não se pode esquecer que três anos é praticamente metade da adolescência. Passar esse tempo internado é uma problemática a ser levada em conta”. Ele defende medidas alternativas, como a prestação de serviços à comunidade e a matrícula em cursos profissionalizantes. ”A possibilidade de aprender a conviver consigo mesmo e com a sociedade é muito maior nesses casos”, acredita. Nas estatísticas do MP, a maioria dos adolescentes infratores tem histórico de desagregação familiar. ”A maior parte não tem pai, não tem mãe, ou não tem os dois, embora muitos estejam vivos“, diz Edna Sara, que aponta fatores como o fracasso das escolas, o uso abusivo de drogas, a falta de oportunidade de trabalho, a desigualdade social e o apelo ao consumo entre as causas que levam ao crime. A ausência do convívio familiar, contudo, parece ser preponderante. “Quando os pais estão aqui diante dos filhos, observamos uma grande dificuldade de transmitir caráter e amor. O abraço é de culpa, é um pedido de perdão. Não é um hábito”. * Nas estatísticas do Ministério Público Estadual, a maioria dos adolescentes infratores tem histórico de desagregação familiar, o que facilita o aliciamento de criminosos.

description

Matéria sobre os avanços e limitações do Estatuto da Criança e do Adolescente, 18 anos após sua aprovação

Transcript of Estatuto faz 18 anos em 2008

Page 1: Estatuto faz 18 anos em 2008

8 | CADERNO DEZ! | SALVADOR, TERÇA-FEIRA, 13/5/2008

NA REAL ❚ Lei ainda é ponto de divergência

Estatuto faz 18anos em 2008

A internação nãodeve ser umamedidabanalizada,defende juiz daVara da Infânciae Juventude

HAROLDO ABRANTES | AG. A TARDE

VITOR PAMPLONAv p a m p l o n a @ g r u p o a t a rd e . c o m . b r

Considerado uma das legislações maisavançadas do mundo em sua área, oEstatuto da Criança e do Adolescentecontinua esbarrando em dificuldadespráticas por todo o País, 18 anos apóssua promulgação. A começar pordiferenças de interpretação: seus 267artigos enumeram direitos, garantias emedidas a serem empregadas em casode conflito com a lei. Mas esmiúçampouco o que é previsto, levando osresponsáveis por aplicar a lei – juízes,promotores, defensores públicos egestores de unidades socioeducativas –a divergir.

O principal embate diz respeito àsinfrações passíveis da internação. Oartigo 122 do ECA prevê três tipos deconduta para isso: praticar atoinfracional por meio de grave ameaçaou violência; cometer outras infraçõesgraves de forma reiterada; edescumprir continuamente e semjustificativa medida aplicada antes.

O juiz Nelson Amaral, da 2ª Vara daInfância e Juventude de Salvador, temcríticas ao Ministério Público e a seuscolegas de comarcas do interior. “O MPtem pedido a internação onde nãocabe. Ela não pode ser banalizada, temque observar os requisitos legais. Ejuízes do interior têm julgado semobservar essas condições”, aponta.”Não se pode prender por qualquercoisa, violando o direito à liberdade. Ohomem nasceu para ser livre“.

A promotora da Infância eJuventude Edna Sara Cerqueira não vêoutra solução para os reincidentes. ”Oestatuto prevê a medida mais forte nocaso de prática reiterada. Se o históricoé de furto, furto, furto, tenho quepedir a internação”, argumenta.

Parte da raiz do problema está naprópria legislação, lembra o juiz NelsonAmaral: “O conceito de grave,mencionado no artigo 122 do Estatutoda Criança e do Adolescente ésubjetivo”.

Para o juiz, deveria ser mais aplicadanas comarcas do interior do Estado amedida de semi-liberdade, que nãopriva o infrator do direito de ir e vir. ”AFundac tem um projeto na zona ruralde Pojuca para 100 pessoas. Tem só 16lá hoje“, observa.

BANDIDOS – Apesar das divergências,no Judiciário e no Ministério Público,há um consenso. Um dos grandesobstáculos à maior eficácia do ECA é odesconhecimento da lei. A posição écompartilhada pelo diretor da Fundac,o ex-deputado estadual Walmir Mota,responsável pela gestão dos centrossócio-educativos no Estado.

”Falta compreensão da legislação. Asociedade precisa entender mais asmedidas. Na cabeça de quase todomundo, quem pratica o ato virabandido. Não é verdade. Temosexperiências de gente que searrependeu e recuperou a vida“.Otimismo à parte, Mota reconheceproblemas no caminho daressocialização. O primeiro é aresistência particular de quem perde aliberdade. ”Não se pode esquecer quetrês anos é praticamente metade daadolescência. Passar esse tempointernado é uma problemática a serlevada em conta”. Ele defende medidasalternativas, como a prestação deserviços à comunidade e a matrícula emcursos profissionalizantes. ”Apossibilidade de aprender a conviverconsigo mesmo e com a sociedade émuito maior nesses casos”, acredita.

Nas estatísticas do MP, a maioria dosadolescentes infratores tem históricode desagregação familiar. ”A maiorparte não tem pai, não tem mãe, ounão tem os dois, embora muitosestejam vivos“, diz Edna Sara, queaponta fatores como o fracasso dasescolas, o uso abusivo de drogas, afalta de oportunidade de trabalho, adesigualdade social e o apelo aoconsumo entre as causas que levam aocrime. A ausência do convívio familiar,contudo, parece ser preponderante.“Quando os pais estão aqui diante dosfilhos, observamos uma grandedificuldade de transmitir caráter eamor. O abraço é de culpa, é umpedido de perdão. Não é um hábito”.

* Nas estatísticas doMinistério Público Estadual,a maioria dos adolescentesinfratores tem histórico dedesagregação familiar, oque facilita o aliciamentode criminosos.

Page 2: Estatuto faz 18 anos em 2008

9| CADERNO DEZ! |SALVADOR, TERÇA-FEIRA, 13/5/2008

Infrações maiscomuns sãofurto e roubo

No Centro de Atendimento doAdolescente, na Avenida Bonocô, omês de abril terminou com um recordeindesejado. No primeiro trimestre de2008, o Ministério Público registrou 11homicídios – aumento de 54% emrelação ao ano passado, quando aPromotoria da Infância e Juventudeatendeu a 18 casos de assassinato.

Apesar do crescimento, as mortescausadas por adolescentes representamuma parcela mínima no universo totalde infrações. Em 2007, o MP contou2.953 atendimentos, a maioria casos defurto [667] e roubo [539]. Nos últimostempos, o que mais tem chamado aatenção da promotora Edna SaraCerqueira é o aumento de ocorrênciascom jovens de 12 a 14 anos. “O públicomajoritário costumava ser mais velho.Não sei, acho que estão sendoaliciados, levados à prática criminosa”.

Depoimentos como o da promotoracostumam servir de munição para osadeptos da redução da idade penal,assunto que quase sempre acabaentrando na discussão sobre ocrescimento da violência e dacriminalidade no Brasil. Para quemtrabalha com o ECA, contudo, diminuira faixa etária criminal dos atuais 18anos é inadmissível pela próprianatureza do estatuto. “A idéia dereduzir a idade penal é resultado dedesconhecimento do ECA, cuja lógica édar dignidade ao ser humano. É umerro colocar o adolescente como bodeexpiatório na onda de violência”,considera Edna Sara.

A exemplo dela, os demaisresponsáveis pelo sistemasocioeducativo – juízes da Infância eJuventude, defensores públicos egestores de unidades de recuperação –também costumam ser completamentecontrários à redução da maioridade.Walmir Mota, diretor da Fundac, põe aquestão em números. “Em vez de dizerque 13% dos crimes são praticados poradolescentes, como já ouvi noCongresso de deputados favoráveis àmudança, temos que inverter essalógica, afirmando que 87% dos crimessão praticados por adultos”, diz,apresentando dados do Ministério daJustiça. “Pelo ECA, o adolescente já éresponsabilizado desde os 12 anos. Elenão fica impune. Mas está numa faseda vida em que precisa de formação,por isso as medidas devem serdiferenciadas”. Para a sociedade,defende Mota, o maior prejuízo seriajogar meninos no sistema prisional.Onde, ele acredita, realmente não hajanenhuma condição de ressocialização.

MARIA AUGUSTA RAMOS ❚ cineasta

“A Justiça nãopode dar conta daquestão social”

DILER E ASSOCIADOS/DIVULGAÇÃO

Maria Augusta: arte que nãomuda a realidade, mas faz refletir

Brasília, 1964. A cineasta Maria Augusta de Ramos veio ao mundojustamente quando o mundo, ou parte dele, assistia ao maior dos golpesantidemocráticos que já vivera o Brasil. A coincidência se estende a suaobra. A idéia da falência de instituições do Estado, presente em Justiça,premiado documentário de 2003, volta agora em Juízo, seu novo filme.Por telefone, a cineasta falou ao repórter Diego Damasceno sobre leis,suas falhas e o lugar do cinema na sociedade. Pós-graduada em música,Maria Augusta encontrou no cinema mais que um modo de expressão,uma via de denúncia.

AT – Seu filme anterior, Justiça,fala do sistema Judiciário voltadopara maiores. Que diferenças vocêencontrou na pesquisa que fezpara Juízo?MAR – A justiça para menores émais rápida e informal. Eles [osadolescentes] não podem ficarpresos por muito tempo,esperando julgamento. Aqui noRio, pelo menos, há esse esforço.

AT – O que pensa da idéia dediminuir a maioridade penal?MAR – Isso não resolve o problemada criminalidade. Só serve paraaumentar o número de presos nascadeias e acabar com qualquerpossibilidade de ressocialização. Amaioria dos crimes cometidos pormenores é leve. Noventa por centodos casos são de crimes contra opatrimônio, roubo, furto. Sãoadolescentes com falta deperspectiva. A Justiça não pode darconta de um problema social. Asinstituições [de internação demenores] são como presídios. Nãoressocializam, os meninos ficam lánum ócio absoluto. Colocarmeninos com criminososveteranos? Penas maiores tambémnão coíbem crimes. A lógica domenino é diferente da docriminoso.

AT – Que idéia esses adolescentestêm de Estado, de lei, de crime?MAR – Apesar de viverem emsituações degradantes, sem pai,sem mãe, na pobreza, acho quesão uma juventude politizada. Elestêm noção da injustiça, de que sãotratados como bicho, comoindignos. Sabem que só sãocidadãos na hora de sentar nobanco dos réus, que só ali têm

direitos. É por isso que cometemcrimes. Não têm nada a perder,vivem numa sociedade que “caga”para eles.

AT – No filme, um dosadolescentes diz que participou deum roubo por que o outrochamou. Tornou-se banal cometerum crime?MAR – Não acho. Essesadolescentes têm consciência [doque é cometer um crime]. Elesagem por desespero, por falta depossibilidade de melhora. Quemvai empregar um menino desses,que não estudou?

AT – Em que medida um filmepode mudar a realidade?MAR – Filme não muda, artenenhuma muda a realidade. Omáximo que faz é propor umareflexão, como aconteceu comJustiça. A sociedade brasileiraprecisa de filmes assim.

Ministério Público

Audiência

1 2

Entenda o sistema de medidas socioeducativas

A trilhada lei

Adolescente [12 a 18 anos] comete ato infracional

A OCORRÊNCIADetido vai para Delegacia do Adolescente Infrator

Fundac avalia

ASSISTENTE SOCIAL

EDUCADOR

PSICÓLOGO

INFRAÇÃO LEVE Solicita-se a remissão [perdão homologado

por juiz]

INFRAÇÃO GRAVEMP formula uma

denúncia contra o adolescente

Acontece no mesmo dia da denúncia

promotor autor da açãodefensor público

defende o adolescente

juizdecide medida a ser aplicada

REVISÃODe acordo com a lei, o processo deve ser revisado a cada seis

meses

JUSTIÇADecide por internação

INTERNAÇÃO PROVISÓRIA Em uma unidade

socioeducativa. Máximo de 45 dias, prazo para

realização da audiência que definirá a suspensão

ou continuidade da medida

INTERNAÇÃO DEFINITIVANão mais de

três anos. Adolescente só

permanece internado até

21 anos

Infografia Gil Maciel, Iansã Negrão Fonte Ministério Público da Bahia e ECA

6meses

Relatório é preparado. Tenta-se contato com a família