Estão morrendo os velhos italianos

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Artigo escrito pelo Embaixador Rubens Ricupero comentando os objetivos do Projeto Santu Paulu em 2004.

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OPINIÃO ECONÔMICA

Estão morrendo os velhositalianos

RUBENS RICUPERO

"Por toda a América", diz um poema de LawrenceFerlinghetti, "os velhos italianos vêm morrendo, anoapós ano." Com seus chapéus de feltro desbotados, asantiquadas botinas pretas, piemonteses, genoveses,sicilianos esperam sua vez, sentados nos bancos dosjardins, tomando um pouco de sol, e vão morrendo, uma um... Os meus velhos, da primeira geração nascidano Brasil, desapareceram há muito tempo. Meu tioNatale Pelosi, por exemplo, dono de açougue na rua Edo Mercado Municipal. Apesar do ofício sanguinolento,tio Natale era a mais mansa das criaturas; como nosSalmos, a alegria do Senhor era sua força. Em pazcom a vida e com o "sette e mezzo", que jogava ànoite, sorvendo goles de sambuca e café, só perdia acalma quando o Palestra Itália, já desvirtuado embanal Palmeiras, dava vexames. Na época -Deus sejalouvado pela misericórdia de tê-lo poupado dashumilhações atuais- isso apenas sucedia de raro emraro e de forma moderada.Perto do Mercado, do outro lado do Tamanduateí,ficava a rua Santa Rosa, feudo dos atacadistas decereais. Eram quase todos "bareses", na realidadeoriginários de Polignano a Mare, na Província de Bari.Gente do mar e da pesca na terra natal, converteram-se no Brasil em cerealistas ou dedicaram-se àdistribuição e venda de jornais, ramo dominadotambém no Rio de Janeiro por meridionais, mas da

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também no Rio de Janeiro por meridionais, mas daCalábria. Os bareses de Polignano inauguraram umadas mais antigas quermesses e festas de igreja de SãoPaulo, a de São Vito Mártir, complementada por outracelebração de dois santos de sua localidade, Cosme eDamião, também mártires. Menino ainda, nos anos 40,comecei a ir à festa com meu pai, cuja família eratambém da Apúlia e da Província de Bari, mas decidade diversa, Barletta, o que faz toda diferença empaís conhecido pelo particularismo.É curioso, paradoxal até, que os italianos do sul,censurados na Itália por falta de espírito associativo oucomunitário, tenham sido os únicos imigrantespeninsulares a conservar um mínimo de identidade, dapersonalidade cultural originária, não se dissolvendode todo na geléia geral de São Paulo. Sem exceção,as comunidades de igreja que conheci no Brás deminha infância subsistem até hoje e são demeridionais, defendidos pela vizinhança do bairro. Asquermesses, as festas, as vendas de pratos típicos, osjogos com brindes foram organizados, a princípio, a fimde levantar fundos para edificar e sustentar a igreja eacabaram ficando. Os de Polignano com a igreja deSão Vito, os calabreses do Bexiga com Nossa Senhorada Achiropita, os napolitanos de Caserta ou Pozzuolicom a capela da Virgem de Casaluce, da rua CaetanoPinto, os igualmente napolitanos da rua da Mooca,igreja de San Gennaro. Mesmo no Rio, a igreja de SãoFrancisco de Paula, que visitei em companhia dopresidente Scalfaro, é ligada à comunidade calabresa.Deixei São Paulo e o Brás há 45 anos e tudopraticamente desapareceu do meu tempo de menino.Menos as comunidades e festas de igreja. Vãomorrendo os velhos, tal como na São Francisco deFerlinghetti, os italianos de mãos nodosas esobrancelhas cabeludas, esfarinhando o pão duro comos dedos para dar de comer aos pombos, os quegostavam de Mussolini, os que amavam Garibaldi, osvelhos anarquistas leitores de "L'Umanità Nuova" efiéis a Sacco e Vanzetti, cheirando a alho, pimentão, agrapa, quase todos já partiram. Ficaram poucos e,antes que esses se apaguem, é preciso recolher-lhes amemória.É o que tenciona fazer Angela Di Sessa e seuscompanheiros, que se esforçam por meio dosdepoimentos da história oral, da pesquisa de fotosamarelecidas e velhos jornais, a dar visibilidade, nascomemorações dos 450 anos de São Paulo, à"memória pulverizada" dos pugliesi e seusdescendentes. Angela é fotógrafa de olho capaz desurpreender o encontro inesperado de cor e forma, derevelar a beleza do cotidiano pobre. Em 1994, fez uma

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revelar a beleza do cotidiano pobre. Em 1994, fez umaexposição memorável, mostrando, lado a lado, comoas imagens visuais da velha Polignano renasciam nocoração de São Paulo. Oriunda da comunidade, elaconta com o apoio da Associação São Vito Mártir e daAssociação Pugliesa de São Paulo para o projetoSantu Paulu. O nome vem do dialeto greco-salentino.A Apúlia saiu da pré-história quando os espartanosfundaram Taranto no 8º século antes de Cristo. Foi umdos principais esteios da Magna Grécia, quando Romanão passava de covil de salteadores. Ainda se falagrego em Gallipoli e em sete lugares de nomessonoros -Castrignano dei Greci, Calimera, Melpignano-, onde se servem favas secas com queijo fresco deovelha e se come a pasta de farinha rústica, a"incannulata".Taranto é uma das cinco Províncias da Apúlia, a regiãoque, a partir do sul, se estende por todo o calcanhar dabota itálica para o norte, passando por Brindisi, Lecce,a terra de Aldo Moro, Bari e Foggia. Campo de guerramilenar, foi nos arredores de Barletta, em Canna dellaBattaglia, que Aníbal esmagou as legiões romanas. DaApúlia partiu a Primeira Cruzada, com o agigantadoguerreiro normando Boemundo, Príncipe de Antioquia.Gregos, cartagineses e romanos, árabes, longobardose bizantinos, normandos e suábios se sucederam nasterras férteis do Tavoliere della Puglia. Minha "nonna"Mariangela era a prova viva da herança normanda:porte de escandinava, os cabelos louros e finos, osolhos do azul lavado do extremo norte.Passada a repressão fascistóide do Estado Novo,quando se proibiu falar italiano e se apagaram osnomes da pátria de origem, não faria mal a São Paulouma pitada multicultural que ponha em evidência, no450º aniversário da cidade, a riqueza e diversidade deorigens e contribuições, de toda parte do Brasil e domundo, das mulheres e homens que a construíram.Entre esses, os pugliesi figuram nas estatísticas comoum dos contingentes menos numerosos dos italianoschegados ao Brasil, pouco mais de 30 mil, longe domeio milhão de vênetos. Deixaram, não obstante, suamarca inconfundível, guardaram um resto deidentidade no meio do anonimato da metrópole. Numdia como hoje, 15 de junho, festa de São Vito Mártir,continuam a "re-cordar", isto é, a reviver no coração aimagem dos velhos ancestrais que nos deixaram,lutando contra a morte com a recusa do esquecimento.A memória é nossa única arma para inverter o sentidodo processo natural e dar vida a nossos pais e avós,aos que ainda recordavam o perfume dos frutos nataise falavam os estranhos dialetos que desaprendemos. É o último e comovido tributo que podemos render aos

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É o último e comovido tributo que podemos render aosnossos velhos italianos, agarrando-nos a essasqueridas sombras pela lembrança, impedindo pelamemória que o esquecimento os condene a morrer denovo. Nota: quem se interessar pelo projeto poderá entrarem contacto com a coordenadora pelo e-mail:[email protected].

Rubens Ricupero, 66, é secretário-geral da Unctad (Conferênciadas Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), masexpressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro daFazenda (governo Itamar Franco).

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