Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha...

96

Transcript of Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha...

Page 1: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.
Page 2: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

2

Índice

Prólogo – A título de início..................................................................................................03 Dos cadernos de poesia queimados: Soneto atônito...........................................................05 Capítulo I – Apresentações..................................................................................................06 Dos cadernos de poesia queimados: Renúncia ao fogo......................................................11 Capítulo II – A Torre...........................................................................................................12 Dos cadernos de poesia queimados: Um sonho de morte...................................................16 Capítulo III – Incidente na Torre.........................................................................................17 Dos cadernos de poesia queimados: Fala Balaão...............................................................20 Capítulo IV – Entre a loucura e a sanidade..........................................................................21 Dos cadernos de poesia queimados: Um poste...................................................................23 Capítulo V – O estabelecimento da distância......................................................................24 Dos cadernos de poesia queimados: O jogo.......................................................................28 Capítulo VI – Pensamentos de um domingo negro.............................................................29 Dos cadernos de poesia queimados: Tenso é o dia.............................................................32 Capítulo VII – O trabalho dos dias......................................................................................33 Dos cadernos de poesia queimados: O idólatra..................................................................37 Capítulo VIII – Da arte dos palhaços..................................................................................39 Dos cadernos de poesia queimados: Sonetos fatais............................................................44 Capítulo IX – Espetáculos do pó.........................................................................................45 Dos cadernos de poesia queimados: Um mero detalhe.......................................................48 Capítulo X – Metamorfoseando roteiros..............................................................................50 Dos cadernos de poesia queimados: Estando escrito..........................................................54 Capítulo XI – Sine metu Dei, sine fiducia............................................................................55 Dos cadernos de poesia queimados: O Veículo..................................................................59 Capítulo XII – Professores de alienação..............................................................................60 Dos cadernos de poesia queimados: Passando...................................................................63 Capítulo XIII – Filmando o impossível...............................................................................64 Dos cadernos de poesia queimados: Morte musa minha....................................................67 Capítulo XIV – Episódio com Aurum.................................................................................68 Dos cadernos de poesia queimados: Olhos de carcaça.......................................................71 Capítulo XV – Pérolas, porcos e ambições..........................................................................72 Dos cadernos de poesia queimados: Enterro......................................................................75 Capítulo XVI – De olhos fechados......................................................................................76 Dos cadernos de poesia queimados: Canino.......................................................................79 Capítulo XVII – Conselhos de Ogry....................................................................................81 Dos cadernos de poesia queimados: Grumos de dor..........................................................83 Capítulo XVIII – O Colosso estava sedento........................................................................84 Dos cadernos de poesia queimados: Auto-retrato no Limbo..............................................86 Epílogo – Uma pira literária.................................................................................................95 Dos cadernos de poesia queimados: O fim.........................................................................96

Page 3: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

3

Prólogo:

A título de início

Qual é o desejo de teu espírito, filho da deusa Vendo já em segurança tua armada e amigos?

Virgílio – A Eneida

“É realmente de seu interesse o trabalho?” “Já há três anos venho pleiteando uma vaga, trabalhando como diarista sempre que possível. Creio que isto, sem necessidade de qualquer outra justificativa verbal, expõe mi-nha disposição e também minha competência para ocupar o cargo.” “Sem dúvida. Mas responda, meu caro, e espero que use de sinceridade: julga ser capaz de suportar 44 horas semanais, parcamente remuneradas, naquela atmosfera insalu-bre, executando funções consideradas medíocres mesmo entre os funcionários mais insig-nificantes da empresa? Como diarista dispõe de folgas extensas, salário compensador, me-nor comprometimento... O que quero dizer é: está preparado para se entregar de corpo e alma ao exercício de tão degradantes funções?” O homem, que teria no máximo 30 anos e vestia roupas surradas sobre o corpo es-quálido, torceu os lábios ornados por um cavanhaque mal recortado. Os olhos cercados de olheiras escuras moveram-se para algum ponto indefinível do teto alvo, voltando, segundos depois, a fixar o olhar enfastiado do Encarregado de Recursos Humanos. Sorriu ligeira-mente mas, não encontrando entusiasmo em seu interlocutor, retornou à seriedade. Odiava entrevistas de emprego. “Escute” – e sua voz adquiriu novo tom, como aquele usado em reminiscências – “o senhor já esteve desempregado? Digo desempregado no sentido mais abrangente da palavra, totalmente desamparado, desprovido de qualquer recurso? Não, pela sua aparência acredito que não. Mas não me entenda mal, não pretendo, absolutamente, recriminá-lo por isso. O senhor jamais poderia se colocar na situação de cada um dos que aparecem aqui em busca de trabalho. Mas deixe-me dizer algo que talvez poucos tenham dito, por se tratar de uma coisa muito pessoal, difícil de confessar: tenho vivido de sonhos. Sinto-me como se flanasse, como se me fosse negado o direito de pôr os pés no chão. E quando (imagino que durante algum descuido de quem supervisiona meu martírio) consigo por um momento pousar na realidade, é apenas para encará-la como a um monstro invencível. Entende o que quero dizer? Fabrico devaneios onde possuo o que gostaria de possuir, sendo este o único meio possível de possuir o que não possuo. Mas quando me conscientizo da impossibilida-de de possuir qualquer coisa, ou seja, quando ponho os pés no terreno firme e miserável de minha existência atual, então tudo se faz claro, e tal clareza me obscurece. Como conse-qüência, torno-me novamente imponderável, flutuante, fugindo para o refúgio interno no mar calmo de meus desejos realizados apenas como imagens, contentando-me em cultivá-los ali, onde são irrealizáveis, mas inteiramente meus. O egoísmo mais despretensioso e idiota que já houve... compreende? Preciso escapar deste ciclo, voltar a ser matéria fixa definitivamente e parar de me alimentar de fúteis abstrações...”

Page 4: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

4

O Encarregado de Recursos Humanos ouviu pacientemente tudo quanto o homem dissera. Sendo uma pessoa prática, pouco dado a lucubrações psicológicas, não pôde deixar de, a princípio, surpreender-se com a profundidade de tudo aquilo que o candidato ao cargo de limpador de túneis relatara. Mas logo sua mente tornou-se objetiva e sagaz como sem-pre a mantivera, durante os longos anos exercendo seu ofício. Retirou a mão da cabeça, que estivera coçando, e pigarreou discretamente. “Os relatórios dizem que você é esforçado,” – sorriu complacente – “apesar de uma ou outra insubordinação, na maioria das vezes, segundo estas observações aqui, à mar-gem,” – apontou para o fim da página – “justificáveis. Isso é bom. Não queremos ovelhas trabalhando para nós, e sim homens. O fato de questionar seus superiores em determinadas situações significa, ao menos para mim, que pode tomar as rédeas de suas próprias obriga-ções, sem necessidade de permanente observância. Mas não deixe que essa qualidade tor-ne-se perniciosa. Acate as ordens com boa vontade, quando achar que são satisfatórias. Quando não, dirija-se ao superior imediato daquele que as deu. Explique seu ponto de vis-ta, sem desmerecer a razão de quem diverge da sua opinião. Faça entender que seu modo de agir é o mais adequado, afinal, você lida diretamente com o problema. Agindo assim, creio que não terá dificuldades em suas relações de trabalho.” O cavanhaque do homem alargou-se. “Quer dizer que estou contratado?” O Encarregado de Recursos Humanos também sorriu, estendendo-lhe a mão. “Sim. Você começa amanhã.” O homem apertou sua mão com energia, agradecendo repetidas vezes. Ao sair ace-nou, agradecendo novamente, fechando a porta atrás de si. O Encarregado de Recursos Humanos acendeu um cigarro, tossiu e, metódico, retornou à leve, porém enfadonha tarefa de organizar seus memorandos.

Page 5: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

5

Dos cadernos de poesia queimados:

Soneto atônito

Por ser o que sou Sou negação

Síntese do Não Razão que restou.

Por ser o que sou Não almejo ser

O Ser, que ao ter Não tem; só tentou.

Por ser o que sou

E sendo não sendo O Ser que almejou

Em si antevendo Por ser o que sou O Ser não sendo.

Page 6: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

6

Capítulo I

Apresentações

Sim: os dias têm sido muito quentes por aqui. O Sr. Johannes dormiu com a boca aberta, sentado no balde emborcado, e acordou com a língua preta. Seis dias atrás pensan-do em jogar as digitais na caçamba receptiva da latrina e agora suando sob as luzes embal-samadas, nos subterrâneos infernais da Hades Metalúrgica, tendo por companheiros Ed-ward e Louis; além, é claro, do Sr. Johannes.

Edward Eduardus é um sujeito atormentado e puro, que extrai dos bagaços de sua vida coisas que tenta disfarçar de boas. Sorri, e podemos ver que sabe o quanto se engana. “A vida é desse jeito”, costuma dizer. Sua filosofia é a mesma que impulsiona o mundo. “A vida é desse jeito”, e segue a barca. Mas alguns saltam da barca, não é mesmo, Eddie? “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, conta Edward. “Estava ganhando um bom dinheiro, mas certo dia alguém a matou. Deram um tiro em sua mão. A mão esta-va diante do rosto, e a bala a atravessou, atingindo seu olho esquerdo. Morreu ali mesmo, dentro do automóvel, diante de sua casa. A filha pequena a viu.” Levanta os óculos e seca uma lágrima com o polegar. “Alguns saltam da barca, outros são empurrados”, conclui. Mas logo seu rosto volta a ficar iluminado, e sua voz rouca se faz mais audível: “Ei, Louie, ouça: comprei cinco litros daquela pinga!” Louis Bourbonus é bêbado. Ele não gosta de ser; mas não vê outro meio de encarar a existência. Seu mal é amar a linguagem das garrafas: as garrafas falam alto nos botecos, e Louis é freqüentador de todos eles. Mas só os de má reputação. Quando não são, a chegada de Louis muda tudo, pois Louis é a própria má reputação. “Me dá uma”, diz sorrindo ao proprietário do estabelecimento, com o solitário dente remendado acenando da gengiva superior, um sorriso angélico de decaído. E então o dono do bar olha enfezado para Louis, pois não pagou ou poderá não pagar a conta. No dia seguinte chega atrasado e dizendo que dormiu com muitas putas. Com o dinheiro que ganhamos, seria milagre se conseguisse pagar por uma.

Johannes Iwdus é um velho mirrado e calvo, de gênio forte e empedernido, que às vezes dá muitas risadas. Mas só quando alguém se dá mal. O Sr. Johannes é sádico. Nada de terrível nisso; é até divertido. Suas gargalhadas, quando, por exemplo, Louis é humilha-do pelo supervisor por ter chego atrasado naquela manhã, ou por enrolar no serviço, ou simplesmente por ser o que é, são contagiantes. “Hahahaha”, ri o Sr. Johannes: e seu riso é límpido e cândido, como o riso de uma hiena ou de um demônio feliz. Meu nome é Helium Tropius, mas todos me chamam de El. Até minha mãe me chama de El. Se falasse, o cachorro que não possuo também me chamaria de El. É que fa-lar Helium não é nada fácil. Mas não é só meu nome que é difícil: eu também sou. Sou complexo por ser poeta. Não é nada fácil ser um poeta, principalmente quando nada é le-vado a sério ao redor de onde você está. Vejo que as palavras perdem o significado, se desgastam. É preciso renovar o significado das palavras, para que as coisas sejam renova-das também. A renovação parte do centro; e há vários centros, alguns desativados, outros em plena expansão. Os últimos são os artistas em voga, que tornam os temas clichês e a

Page 7: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

7

palavra ordinária. Eles se esbatem por inventar novos truques, esgotando todo o potencial de suas velharias, utilizando de sua antiquada capacidade de iludir o público. Meu pai me disse certa vez que ter lido Nietzsche aos quinze anos fez mal para mi-nha cabeça. Mas as palavras de Zaratustra ressoando em minha mente juvenil foram como um fermento para minha adolescência, inspirando-me a ler e transgredir. Talvez fosse so-bre isso que meu pai falava, pois comecei transgredindo a lei. Adorava histórias policiais, onde sempre torcia para os bandidos. Um bandido bem caracterizado é muito melhor que um mocinho. E se o mocinho é bem caracterizado, o que faz é emprestar características do vilão para se sobressair. Mata, engana e rouba. Não seria Übermensch o anti-herói? Estava acima das leis humanas, olhava para todos com superioridade. E criava para mim a noção equívoca de um arquétipo: o Selvagem Pagão. O Selvagem Pagão me acompanhou durante toda adolescência e parte da idade a-dulta; só agora, passados alguns anos de meu início como poeta, pude fazer dele uma ima-gem clara. Não tem qualquer escrúpulo, pois foi criado entre sardinhas em lata, sem religi-ão, sem regras, sem moral. É feio e se orgulha disso, pela beleza de ser feio e não se impor-tar. “Há belezas que não são belas”, diz, e ufana-se ainda mais pela frase. Como toda per-sonalidade artificial, o Selvagem Pagão muitas vezes volta atrás em suas decisões, sendo condicionado à vontade de sua personalidade hospedeira. Mas às vezes predomina, tornan-do a pessoa de que se utiliza para sua manifestação um tanto quanto revoltada com o sis-tema real. E a subversão está logo ali. Para ser um bom subversivo, a pessoa tem que ser subvertida. Quem subverte muitas vezes é o Selvagem Pagão, surgindo das profundezas inconscientes do alvo ou de um dos que estão próximos dele. O Selvagem Pagão insinuou-se em mim através do Selvagem Pagão que estava em outro cara, um sujeito chamado Al Bollidus. Éramos adolescentes pobres e revoltados com as injustiças da vida, e tínhamos outros afazeres, naquela época. Roubávamos e usávamos drogas, como se fôramos inconseqüentes personagens de velhos filmes americanos sobre rebeldes sem causa. Haviam outros como nós; efetivamente, era uma quadrilha. Frank Per-nus, um rapaz alto e desengonçado, e Joseph Rouberius, mais velho que nós e de família melhor. Rouberius era primo de Bollidus. Organizávamos excursões para invadir locais não habitados, como casas de veraneio e residências afastadas da cidade, cujos moradores estivessem ausentes. Éramos ratos precavidos, e estudávamos muito bem os golpes antes de desferi-los. E nunca fomos pegos, apesar da fama que acabamos adquirindo. Passados tantos anos, vejo que o futuro, com o qual pouco nos importávamos, chegou. Bollidus pas-sou quase dez anos na cadeia. Pernus saiu depois de cumprir quatro anos, mas está na con-dicional. Rouberius trabalha como supervisor na fábrica de enlatados dos ingleses, e eu como limpador de túneis na metalúrgica dos gregos. É óbvio que Rouberius sempre foi o cérebro do grupo. Mas qual a razão desse mergulho em minhas atrocidades passadas? Como ia dizen-do, o transgressor deve, antes de tudo, ser transgredido. Bollidus, que conheci aos quatorze anos, era um forasteiro na ocasião, já pervertido por suas aventuras nos subúrbios da cida-de grande. Estávamos no carnaval, e Bollidus colava estrelinhas de plástico prateadas nas orelhas dos garotos, à guisa de brincos. “Quer uma?”, perguntou. “Quero”, respondi, e dei-xei que ele colasse. “Vamos fazer uma coisa amanhã”, continuou, “uma coisa legal. Gosta-ria de ir?” Olhei para ele desconfiado. “Que vão fazer?”, tornei, e ele sorriu com inocência. “Vamos roubar a fábrica de sapatos”, respondeu, e foi colar uma estrelinha em outro garo-to. Olhei para meus pés, para meus tênis encardidos e gastos. “A que horas vocês vão?”, gritei. “Mais ou menos às onze da noite!”, berrou. “Espere-nos aqui na praça!”

Page 8: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

8

Bem, eu não fui. Tinha medo, e além disso, minha mãe jamais iria deixar que eu saísse de casa àquela hora. Encontrei-o dias depois, e calçava belas botas marrons, de cou-ro cru. “Que houve com você naquele dia?”, interessou-se. “Minha mãe não me deixou sair”, menti. Eu me preocupava que ele me achasse um covarde. “Não teve medo?”, disse, como se adivinhasse meus pensamentos. “Não!”, bradei, “não tenho medo de nada!” Ele riu. “Se você não tem medo, que acha de irmos até as cavernas?” As cavernas ficam ao pé das montanhas, e como a cidade posta-se diante delas significa caminhar durante uns vinte minutos, talvez menos. Mas como é um local ermo e pouco convidativo, senti minha cora-gem esmorecer. “Que faríamos lá?”, questionei. “Tenho um negócio para te dar”, volveu Bollidus. Assenti. Havia alguma coisa em Al Bollidus, talvez seu rosto sincero, uma capa que acobertaria qualquer má intenção. Caminhamos em silêncio mata adentro, com Bollidus na dianteira e eu atrás, cheio de receios. Chegamos às cavernas e, diante de uma abertura irre-gular na rocha, paramos. “Espere-me aqui”, disse ele entrando, “já volto.” Dentro em pou-co saiu, trazendo um pacote e uma lata de meio galão. “Isto é para você”, disse, dando-me o pacote. Abri e havia uma bota igual a sua. Era do meu número e preta, como eu queria. Olhei agradecido para Bollidus. “Como soube?”, consegui dizer. “É a sua cara, garoto!”, exclamou, simplesmente. Havia aberto a lata e aspirava seu conteúdo, como uma pítia. Fiquei curioso para saber o que era aquele bagulho. “É cola de sapateiro. Pegamos na fá-brica.” Fungou mais um pouco. “Quer tentar?” Como não tinha nada a perder, aceitei o convite. Confiava em Bollidus, pois ele instantaneamente se tornara meu melhor amigo. Cheirei o solvente, que me causou náuseas horríveis. “É assim mesmo”, incentivou Bollidus, “depois fica ótimo!” Funguei mais um pouco, e logo notei alguns ruídos que não estavam ali antes, como se surgidos de uma fen-da nas pedras; ou seria uma fresta em minha própria cabeça? “Que barulho é esse?”, per-guntei, meio grogue. “Começou, garoto.” E Bollidus desapareceu. Tudo começou com uma espiral frente a meus olhos, como se algo dentro de mim quisesse me hipnotizar. Sucederam-se rápidos clarões de luzes coloridas, e então formas coloridas, e finalmente, como um quadro que pinta-se a si mesmo, vi um campo muito vas-to e verdejante, que sob o brilho do sol dourado resplandecia como uma planície de esme-raldas. Milhares de pessoas bronzeadas e sadias ocupavam sua extensão, divertindo-se ou falando, correndo pela grama e comendo estranhas frutas. Foi uma visão que durou apenas um segundo, mas jamais esquecerei os matizes lançados pelo sol. Era tudo tão vivo, tão absolutamente real que não pude duvidar de sua existência. Acredito nela até hoje. “Curtiu a loucura?”, inquiriu Bollidus quando voltei a mim. A viagem acaba com um poderoso baque supersônico. “Caramba!”, exclamei. “Posso ir de novo?” Assim nos tornamos amigos. Mas a inserção de Bollidus foi apenas incidental. O que estava tentando explicar é que fui corrompido, tornei-me corrupto depois disso. As pessoas não são absolutamente puras, no início, mas há um divisor de águas... é o Selva-gem Pagão. Bollidus era uma batata podre, e me estragou. E assim, tendo sido infectado, pude me tornar um subversivo, muito tempo depois. Creio que (usando uma metáfora mi-nha) estive fermentando a corrupção, apurando-a, pesando-a, para só depois destilá-la, co-mo faço agora, em forma de poesia. Mas é chato quando um poeta fala de suas teorias lite-rárias. O Poeta Moderno é também um arquétipo, que eu chamaria de Elmolpo, o poeta apedrejado do Satiricon de Petrônio. Quando começava a declamar, Elmolpo perturbava a todos e era logo expulso pelo público. Mas seus poemas cantavam a grandeza do povo ro-mano, sua mitologia emprestada dos gregos, o amor romântico e os feitos de seus gene-

Page 9: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

9

rais... Nada dizia que acrescentasse à realidade, tudo estava ali, a propaganda já pronta de um produto já pronto e consumido até a exaustão... Isso, talvez, enfadasse o auditório, composto em sua maioria de gente grosseira e pouco afeita a longas alocuções. E o peripa-tético era apedrejado pelo povo do local onde cantava suas odes; e creio que não seria erra-do supor que assim surgiram todos os peripatéticos... Não tenho vocação para peripatético. Então, arrumei este serviço. É um trabalho sujo mas é limpo, não preciso lesar ninguém. E adoro contradições. Assim, quando chego em casa todo imundo do dia falo à minha mãe: “Velha, como é duro levar uma vida lim-pa!” “Duro é lavar essa roupa!”, rebate ela, que não gosta de ficar para trás. Eu entro no banheiro, deixando atrás de mim um rastilho de pó que se fosse pólvora proporcionaria um belo fogaréu, em caso de ser aceso. Sou poeta, tenho certeza de ter deixado claro; e sou subversivo, como expliquei. Já há algum tempo, li a “Arte Poética”, de Horácio. Ali, como uma censura, ele dizia: “Se um pintor desejasse juntar

E num só corpo conformar Um cavalo e outros seres

Com o acréscimo de plumas Chegando, através de poderes Escusos, a coisa nenhuma Um peixe escuro, talvez Com corpo bem pouco liso... Não vos causaria riso? Ririam de quem o fez.” Não é assim que estava transcrito, é lógico: eu sou poeta. Eu tento poetizar sempre,

modificar a forma. Mas sempre mantendo a idéia básica. Na tradução, deve ser mantida a idéia inicial. Ela não pode jamais ser sacrificada em favor da forma. Voltando ao assunto, preste atenção no poema. Horácio repreende os surrealistas. A religião grega era surrealis-ta, e Horácio estava cheio disso. Exalta o retorno à realidade, exorta o poeta a ser real, sin-cero, firmar os pés no chão e guiar-se pela objetividade. Mas isso foi Antes de Cristo. Em princípios do Séc. XX, Salvador Dali, o famoso pintor catalão, afirmou: “Eu sou o Surrea-lismo”. E deve ter pintado algo semelhante ao que Horácio descreveu, pois Dali era lou-quíssimo. Mas, ao fim, e para o prazer de Erasmo de Roterdã, todos o aplaudiram. Qual a razão? Havia um surto de objetividade, possivelmente causado pelas grandes guerras, mui-to comuns naqueles períodos. Picasso transgredira a forma. Dali, a idéia. A abstração esta-va em alta, e os malucos floresceram como ervas daninhas. Mas felizmente já surgira, com Freud, a Psicanálise...

Tenho afirmado ser transgressor, mas o que há para transgredir, hoje em dia? Res-posta: a Realidade. Na verdade, nunca houve outro alvo. Apenas mudam as armas. É a mudança dos tempos, a adaptação. A Literatura sempre foi a mais forte das armas. Panfle-tos clandestinos eram impressos às vésperas da Revolução Francesa. Os beats americanos marcaram época através da poesia e da prosa que produziram, escritos que seriam conside-rados heresia na Idade Média mas que não foram totalmente repudiados em sua época... Uma necessidade maior de alienação, que culminou com a adaptação da Literatura aos moldes dadaístas e surrealistas, já perfeitamente incorporados à Pintura, foi agraciada com a publicação de “Trópico de Câncer”, do magistral Henry Miller, lançado na França no

Page 10: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

10

final da década de 20, após ter penado como indigente na América. Seguiu-se “Trópico de Capricórnio”, e a habilidade e criatividade do escritor em desvendar seu emaranhado pes-soal ficaram patentes. Ali, acredito, foram beber posteriormente Burroughs, Ginsberg e todos os outros beats, e também nas referências apresentadas, das quais Miller é abundan-te. A meu ver, Kerouac, que morreu de tanto tomar vinho, é muito parecido com Dostoi-ewski, só que às avessas; Ginsberg, que alucinou com LSD e outras beberagens psicodéli-cas, o supremo dadaísta; e Burroughs... digamos que parece Burroughs. É único! Tomava heroína e criava universos paralelos, onde a realidade pessoal era um camaleão que divertia e ao mesmo tempo chocava, tamanha a incongruência de certas passagens, aliada à crueza de outras. Causou frisson entre os franceses. “Como alguém pode ser tão pouco objetivo, e ainda assim expressar tal volume de coisas?”, devem ter pensado. O certo é que tenho Bur-roughs como meu mentor literário, e peço que não estranhem se, ao virarem a página, topa-rem um peixe com pescoço de cavalo, pernas de avestruz e braços de tiranossauro... O má-ximo que pode acontecer, além da indefectível implantação de um germe subversivo ou de alguma perigosa mensagem subliminar... será uma gargalhada.

Page 11: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

11

Dos cadernos de poesia queimados:

Renúncia ao fogo

Serei para sempre o verme a roer As sobras de meu ser original

Cataplasma de pele morta causticando A viva carne sob o céu do Olimpo

Serei o verme e serei o abutre a roer-me O fígado e a cirrose

Pois roubei o fogo da inteligência eu Mereço a punição eterna

E como pôde um verme querer ser Titã Sim aqui acorrentado ao corpo no alto da Montanha de miolos eu padeço e lamento

E sei que mereço este martírio eu fiz O que não devia

Eu nasci roubei dos deuses o fogo da sabedoria Mas creia-me Zeus eu não fiz por mal

Só queria ver como era estar vivo e pensando...

Mas agora já chega: Não posso mais Manter a chama.

Page 12: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

12

Capítulo II

A Torre A vida é terrível. O trabalho empobrece o Homem. Edward, com seu otimismo, me desgosta. Sou do tipo que não leria o “Cândido”, de Voltaire, apenas pelo subtítulo: “O Otimismo”. Talvez seja até uma crítica ao otimismo, mas não estou interessado. “Não entendo como pode estar tão sorridente a esta hora da manhã, Eddie”, digo consultando o relógio. “São dez pras sete!”, informo sem ser perguntado. A afirmação tem como objetivo servir de extensão para a pergunta que fiz. “Levante cedo, tome um bom café preto, faça trinta flexões e estará pronto para o trabalho mais duro”, responde ele, e sorri os dentes estragados. Seu hálito é de morte. “Sabe, El, o serviço aqui não é tão duro”, diz Edward, tentando me animar enquan-to coloca a máscara. Usamos máscaras de tecido e feltro para evitar que o pó entre em nos-sos pulmões enquanto respiramos nos túneis. São testadas por órgãos competentes do go-verno ou de alguma outra instituição, mas nem por isto são eficientes. A verdade é que sempre saímos cuspindo preto, pois o pó invade os poros da máscara aglutinando-se ao suor e não conseguimos respirar direito; então afrouxamos um pouco os elásticos que prendem a máscara ao rosto e o pó, que já entrava antes, invade a boca e as narinas com força total. Ponho uma máscara também, pego minha pá e partimos juntos para os subter-râneos. “Você diz isso porque é naturalmente feliz, e ficaria contente mesmo que estivesse mergulhado até o pescoço na merda, Eddie”, digo à borda da entrada para os túneis. É um buraco quadrado, com um parapeito de ferro pintado de amarelo e uma escada encoberta de pó, que conduz para a escuridão. Emana eflúvios de fumaça de fuligem. Parece com a boca escancarada do Inferno. “Não devia reclamar”, objeta Edward. “Estamos sendo ne-cessários, além de estarmos ganhando por isso. A vida é desse jeito, El”, arremata, descen-do pela sombria escadaria. O trabalho empobrece o Homem. Tal pensamento não me sai da cabeça, e escrevo-o com os dedos na parede empoeirada do túnel. Dali a pouco, aparece o Sr. Johannes. “Ra-damanto quer falar com todos nós”, diz ele, e some numa nuvem de pó. Radamanto é nosso supervisor, e até que é gente boa, apesar de ser chefe. Seu pro-blema é que é dado a intrigas, e em diversas vezes arrumou confusão entre seus comanda-dos. Gosta de reunir o pessoal e dar grandes reprimendas. Louis é seu prato principal, o qual gosta de saborear diante de todos os outros. “Embriagado de novo? Atrasado de no-vo?” E por aí vai. Louis já nem se importa e, se não é despedido, pode agradecer exclusi-vamente a Radamanto. “Teremos uma visita”, informa ele assim que estamos todos reunidos à sua volta, na sala da Manutenção. É um sujeito jovem, não muito alto, com aquela característica corpo-ral adiposa e flácida dos que mandam, não fazem. “Um pessoal da Grécia, uns acionistas, vêm aqui para ver as condições da fábrica. Planejam investimentos, pois como todos sa-bem, estamos um pouco defasados de maquinário. Toda a Central de Areia deverá ser tro-

Page 13: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

13

cada, misturadores, resfriadores, tudo. Por isso, para que os visitantes não sujem suas rou-pas caras, toda a Torre deverá ser limpa. De alto a baixo.” Radamanto pára um momento, para tomar fôlego. Aproveito a pausa para explicar em que consiste a Torre, e qual a razão do desânimo que transparece na expressão de cada um nós. A Torre é uma soturna estrutura de ferro, de quase trinta metros de altura, cercada de telhas de zinco escurecidas, onde ficam os silos de armazenamento para a areia, o car-vão e parte do pó já utilizado, que retorna em esteiras horizontais e através de elevadores, adaptados com esteiras verticais em cujo corpo prendem-se canecas (como num sistema de rodas d’água), chega ao topo, para então despencar dentro de um reservatório bojudo, gi-gantesco. As esteiras horizontais correm nos túneis, coletando o pó queimado dos moldes de areia já vazados, que são desfeitos no tremulador. O tremulador é uma máquina enorme, com vibradores, que fica na saída da Moldagem, setor onde os moldes são produzidos e vazados com aço incandescente. Mas, voltando à Torre, darei dela uma descrição mais apurada. O conjunto é composto de cinco andares mais vastos, onde há motores ligados a retentores ligados e toda uma confusão de máquinas maiores e fios elétricos em complica-das tramas, formando grossos feixes encobertos de poeira cinzenta. O pó é soberano ali, estando em tudo, até nas mínimas frestas. O motivo é que os elevadores, muito antigos, encontram-se cheios de rombos que jorram nuvens constantes de fuligem finíssima. O pó da Torre é o pior pó da Hades, porque é fino como átomos, chegando a obstruir definitiva-mente os poros, saindo com abundância pelos buracos, quente como as fezes de Hefesto. Além dos primeiros andares, mais acima, onde a maquinaria escasseia, há vários lances de escada, que conduzem ao topo. Os corrimãos acham-se regularmente cobertos pelo pó, que escorre como algum líquido de fácil evaporação, desaparecendo antes de alcançar qualquer coisa. Mangueiras de ar são usadas para soprar o pó, precária maneira de lidar com ele, afinal isso apenas faz com que ele se levante, indo assentar em outro lugar. Deixa as rou-pas, o corpo e até mesmo a alma de quem sopra imundos, pois aglomera-se ao suor como penas de galinha grudam no piche. E acreditem: sua-se muito por lá. “O negócio é o seguinte”, prossegue Radamanto, “os tais acionistas chegam ama-nhã. Como não podemos descuidar da limpeza, peço que trabalhem hoje à noite. Eu sei, é injusto ter de trabalhar assim, ainda mais depois de cumprir sua carga horária normal. Mas as circunstâncias, rapazes, é que são as culpadas. Não faço as circunstâncias, elas surgem independentes de minha vontade. Só faço dar ordens, que recebo de outros. Assim, os que tiverem algo a declarar podem falar, mas já vou avisando: a limpeza da Torre é imprescin-dível, e não haverá concessões quanto a isso.” O Sr. Johannes se adianta. É uma espécie de porta-voz, falando, muitas das vezes, em nome de todos. “Mas Radamanto”, começa ele, “não poderiam contratar diaristas para o serviço? Estaremos mortos ao fim do dia.” “Lamento, Sr. Johannes, mas vocês sabem que o Departamento Pessoal não lida muito bem com a solução imediata dos problemas. Uma solicitação de mão de obra externa leva dias para ser aprovada. A burocracia é cruel. Mas não se preocupem: poderão descan-sar, e até dormir um pouco. Espero-os às dez da noite. O turno acabará às quatro da manhã, e até lá espero que a Torre esteja inteiramente limpa.” “E amanhã?”, interrogou Louis. O semblante de Radamanto nublou, e a voz foi expelida de modos a impor uma ordem. “Amanhã todos aqui, no horário normal.” “Está louco, Radamanto?”, disse Louis, alteando o tom. “Temos negócios para re-solver, vida social para cultivar... e, além disso, não podemos trabalhar tanto! A Segurança do Trabalho afirma que...”

Page 14: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

14

“Eu sei perfeitamente o que dizem os seguranças. E também sei muito bem o que você chama de vida social, Louis. Chama ficar encharcando os miolos de cachaça de ‘vida social’? Pois eu prefiro denominar isso de ‘morte social’. Agora ouça bem o que vou dizer: trabalhar, Louis, nunca é demais. Aprenda isso de uma vez.” Radamanto sabia como ser persuasivo. “Então, pessoal, já que estão todos avisados, podem voltar aos seus afazeres. E lembrem-se: está cheio de gente lá fora, sonhando com uma vaga aqui dentro.” Descemos as escadas da Central de Areia cabisbaixos e irritados. “Radamanto é um filho da puta”, rosnou Louis. O Sr. Johannes sorriu; o sadismo era tão forte nele, que mes-mo quando sofria, se alguém sofresse junto, regozijava-se com o tormento alheio. “Louis, você é mesmo um vagabundo incorrigível”, troçou. “Não será tão ruim, apenas temos de soprar com as mangueiras e juntar o pó em pequenos montes. Daí, enchemos os baldes e subimos com eles as escadas, para jogar o pó dentro do silo. Será moleza!” A boca do silo ficava no último andar. Significava subir doze lances com latas às costas, depois de soprar e varrer o pó formando nuvens cegantes, o que representava correr o risco de despencar no vazio ou, o que seria ainda pior, dentro do próprio silo. O Sr. Jo-hannes pertencia à espécie dos sádicos que encaram com naturalidade o sofrimento. Desde que, é claro, não sofresse sozinho. Limpamos os túneis como de costume, amaldiçoando em silêncio os tais acionistas. “Tunnel cleaners also have feelings”, escrevo com o dedo nas paredes do Setor 5. Limpa-dores de túnel também têm sentimentos. Grande coisa. Que são os sentimentos, quando podemos conseguir máquinas novas? Que são os sentimentos, quando tudo pode melhorar? O Progresso é alcançado sem sentimentos. As pessoas devem cultivar seus sentimentos fora das indústrias, onde eles possam se desenvolver. Apenas a dor, a frustração e o tédio são permitidos no interior da Hades Metalúrgica, sentimentos que não deveriam ser consi-derados como tais. Sentimentos que deveriam ser abolidos. Mas estamos tão distantes de Utopia e das Ilhas Afortunadas! No almoço, Edward engoliu rapidamente a comida, saindo esbaforido. O Sr. Johan-nes, que é maledicente como uma velha bruxa, destilou seu veneno: “Lá vai ele! Mas que medo tem da traição!” Edward é casado com uma mulher que, segundo o Sr. Johannes, “daria uma bela meia sola”. Morre de medo de ser traído por ela, deixando-a, como diz, “ao alcance de qualquer gavião”. Eu não botaria minha mão no fogo por ela, mas creio haver um pouco de exagero. Na verdade, está um tanto quanto derrubada. Mas deve ter sido bonita, em sua juventude. Mas não, ela não é uma velha. Acredito que a vida tenha sido impiedosa com a mulher de Edward, e o fato de ser sua esposa já bastaria, ao menos para mim, como justificativa por sua decadência. Após o almoço, saímos do refeitório e subimos a ladeira que leva aos fundos da fábrica. Deitamo-nos nas pedras do calçamento, arrotando e contando piadas sujas, espe-rando que a hora passe. “Conhecem aquela do bêbado que chegou em casa de madruga-da?”, pergunta Louis. Já conhecemos, mas ele conta assim mesmo. “Antes de ir para a ca-ma, dá uma mijada. De manhã, conta maravilhado para a mulher o sonho que teve: Fui até o banheiro, abri a porta e a luz acendeu sozinha. Fiz o que tinha de fazer, fechei a porta e a luz apagou sozinha. Não é uma loucura? A mulher responde: Loucura é mijar na geladeira, e foi o que o você fez!” Ninguém ri e Louis fica emburrado. Já contou a mesma piada umas cento e oitenta vezes, e demora muito para contá-la. “Quando a piada é boa, faz rir, mesmo que já seja conhecida”, resmunga ele. “Tem de ser bem contada”, diz o Sr. Johannes, “senão, mesmo

Page 15: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

15

que a desconheçamos, não provocará risadas. Um bom contador de piadas deve ter, antes de tudo, senso de humor. Que pensa disso, El?” Concordo, sacudindo a cabeça. Estou distante dali. Penso na tradução que estou fazendo de alguns poemas curtos de Catulo, e na forma como pretendo manter a idéia ex-pressa ali. O poema que ocupa meus pensamentos chama-se “Dedução”, e seria assim:

“Lesbia em tudo me circunda Em difamar-me sempre abunda.

Mas me mantém, na vil ilusão De que angariei seu coração. Mais sofro então, ao perceber Que tal e qual é meu sofrer: Pois a maldigo, é bem verdade Por nutrir minha vaidade.”

Não sei... o segundo verso ficou meio esquisito. Não me preocupo com a métrica, mas a sonoridade é essencial... O verso em questão parece passar a idéia de que o injuria-do, na verdade, é o traseiro de Catulo. “Diga, Sr. Johannes”, pergunto ao velho, “acharia isto engraçado?” E recito os dois primeiros versos. O Sr. Johannes explode em gargalha-das, rolando nas pedras e na sujeira do chão, acompanhado por Louis, que quase se urina nas calças. Agora, quem fica magoado sou eu. “Vocês não sabem respeitar o gênio poético”, afirmo despeitado. “Sua poesia é toda assim?”, pergunta o Sr. Johannes, com lágrimas nos olhinhos comprimidos. “Pois se for, meu filho, com toda certeza alcançará a fama; só que como humorista!” E dá uma nova série de gargalhadas, que mesclam-se à sirene estridente que chama os trabalhadores de volta para o batente. “Vamos, o pó nos espera!”, brada o velho sacudindo Louis, que co-meçava a cochilar. “Diabos”, pragueja ele, “logo agora, que eu estava começando a so-nhar!” O dia transcorre sem incidentes. Edward apenas atrasa-se um pouco, depois do al-moço, mas não o suficiente para ser repreendido. “Estava furando o couro, não é, gaiato?”, interroga Radamanto, de brincadeira, com a sutileza de um touro bravo no interior de uma loja de lâmpadas. “Claro!”, responde Edward. “Se eu não cumprir meu dever, quem cum-prirá?” Ajeitando a máscara, parte para o subsolo, onde nós já estamos. Às cinco da tarde, tendo lavado o rosto e os braços, e livrado as roupas de parte da sujeira, batemos cartão e saímos para o ar livre de imposturas que rodeia o exterior da Ha-des Metalúrgica. “Espero todos mais tarde”, lembra, à saída, Radamanto. “Filho da puta”, grunhe Louis, baixinho... só para si.

Page 16: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

16

Dos cadernos de poesia queimados:

Um sonho de morte

Acordo com a cabeça vazia Retalhos de sonho esvoaçando

Revoadas de importâncias anímicas Mas não sou feito de alma.

É carne, olhe

Corte, o sangue jorrará Como cachoeira tinta de dor

Minha vida por ali irá.

Vamos, ampare-me Vil assassino, ou abata-me de vez

Para que minha carne suja Alimente a terra faminta.

Linda ferida, orquídea Viva, intensa, colorida

Sumarenta qual vagina rítmica Gotejando solfejos melados.

Suturas de prata

Apertam os grandes lábios Que ganem, e uivam sangrentos

Lamentos de névoa e saliva.

Acordado; e os pensamentos Lenta e seguramente voltando

Esbarram na deformação de sonho Abrindo os pontos prateados...

Liberam raízes de medo

Na alma sem corpo.

Page 17: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

17

Capítulo III

Incidente na Torre

Acordar de um sono forçado, quase obrigatório e fora de hora com o estardalhaço do despertador faz qualquer um sentir-se deprimido. Eu havia posto para despertar às nove; mas o aparelho devia estar com defeito, pois eram nove e vinte. “Droga”, pensei, e saltei da cama. Vesti a odiada farda cinzenta, comi alguma coisa e saí de casa sem dizer coisa algu-ma. Estava muito amargurado. O Sr. Johannes e Edward já estavam lá quando cheguei. Faltavam quinze para as dez. “Louie, como sempre, vai chegar atrasado. Se vier”, manifestou-se o velho Johannes. Mas foi Edward quem o viu, cambaleando, escorando-se nas paredes e ralando os cotove-los no reboco. “Olhem”, falou apontando em sua direção. “Bebeu, mas veio!” Louis estava no grau. “Ishcuta shó: fish uma canchão linda para ash putash...” E pôs-se a cantar, desafinado e melancólico, extraindo algum riso nervoso de todos os de-mais. Felizmente os supervisores noturnos eram complacentes, ou Louis poderia ter se en-crencado. “Num me chateia não, sheu...”, dizia a qualquer um que o cumprimentasse, fa-zendo feios sinais obscenos com as mãos ou simplesmente distendendo o dedo médio, re-quebrando como uma prostituta e rindo e soluçando até não poder mais.

Nós sabíamos que aquilo seria um inferno. Mas foi bem pior do que esperávamos. Eram dez e cinco quando pegamos as mangueiras de ar, começando o trabalho. E só fomos parar muito tempo depois. Era fundamental que terminássemos a tarefa, custasse o que custasse. Poderia custar nossos empregos, e sabíamos disso com a certeza dos condenados à morte. É duro trabalhar, mas ficar ocioso é ainda mais duro. O pó, como fantasmas no dia do Juízo Final, erguia-se em blocos cambiantes e crescentes ao ser soprado pelo ar comprimido. Calor insuportável em plena madrugada de inverno. Soprar o pó, juntá-lo e transportá-lo escada acima não era algo que pudéssemos chamar de moleza, a não ser que fôssemos uns sádicos filhos da mãe, como o Sr. Johannes. Louis lutava para adquirir equilíbrio. Edward, todo escuro, parecia estar vestindo sombras. Era isso: todos nós vestiríamos sombras na madrugada, e aguardaríamos o sol da manhã para que, enfim, pudéssemos estar nus e aquecidos na esgrima acalorada de seus raios... Mas ainda eram onze da noite, caramba! A madrugada estava distante, tão distante quanto o sol. Resolvi que ia fazer uma roupa de sombras para mim, igualzinha à de Edward. Mergulhei no jato resultante do direcionamento da mangueira, recebendo no rosto uma lufada maciça de pó. Quando a poeira baixou, perguntei a Louis: “Que tal estou?” “Ishtá lindo, uma beleja! Uma beleja, ishtá ouvindo?” Agradeci e continuei carregando baldes escada acima. “Sou uma mula”, pensava, “sou uma mula. Só uma mula. Só uma mula. Uma mula. Uma mula. Mula.” De vez em quando fazia isso, para me abstrair da dolorosa realidade. “Uma mula. Uma mula. Só uma mula. Uma mula. Mula.” O interior da Torre estava, agora, preenchido por massas compac-tas de fuligem cinzenta, uma bruma tão cerrada que não se poderia ver os dedos da mão frente aos olhos. Tropeçando nos degraus, subíamos arfando ao topo da Torre, onde despe-

Page 18: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

18

jávamos o conteúdo dos baldes e voltávamos, cabisbaixos, para enche-los no primeiro, no segundo e nos demais andares inferiores. Edward, que é o rei das idéias, teve uma à meia-noite. Estávamos atrasados com o serviço, e começávamos a nos desesperar. “El”, disse ele, “está vendo aquela talha? Vamos usá-la para subir os baldes, que tal? Assim não vamos sofrer tanto”. Tive que admitir que era uma ótima idéia. Meu ombro começava a descascar pelo contato abrasador com o fundo do balde, pressionando e desbastando a carne como uma marreta desgasta e decompõe a cabeça de um ponteiro. “Temos de falar com o Sr. Johan-nes primeiro, Eddie”, respondi, “mas acho que ele também gostará da idéia.” O Sr. Johannes, por ser mais velho, era considerado como um ancião de aldeia pe-los outros, um verdadeiro Elder; mesmo porque sempre se envolvia, até quando não se fazia necessário. “Sr. Johannes”, comecei, “o Eddie aqui teve uma idéia que facilitará o serviço.” Olhando para Edward, eu disse: “Conte a ele.” Puxando um pigarro do fundo da garganta, Edward explicou: “Estamos demorando muito para subir os baldes nas costas, e com toda certeza não conseguiremos acabar a tem-po. Ali, ao lado do misturador, tem uma talha que está desativada, mas que posso fazer funcionar. Se a ligarmos, será fácil subir os baldes pela corrente. Como é o mais velho de nós, El imaginou que seria razoável se falássemos antes com o senhor...” O Sr. Johannes replicou: “Não sei se Radamanto aprovaria isso... E desde quando é eletricista, Eddie? A ligação é trifásica, e bem complicada para um amador... Você pode acabar pondo fogo na Torre... Não sei não...” O velho ficou quieto e pensativo, coçando o queixo mascarado como quem está para tomar uma grande decisão. Mas eu sabia o que ele estava pensando: “Como não tive essa idéia antes?” Louis se aproximou. Estivera soprando o pó das colunas trançadas de ferro, e ao não ver mais ninguém, descera do terceiro andar. “Que estão discutindo?”, inquiriu. Sua embriaguez amainara. “Eddie teve uma idéia e tanto”, volvi, “e estamos decidindo o que vamos fazer.” Voltando-me para o Sr. Johannes, pressionei: “E então? Já decidiu?” O velho tossiu. “Certo, vocês têm razão. Não vamos acabar mesmo, se continuar-mos assim. Eddie, ligue o troço.” Edward saiu para ligar e posicionar a talha. “Espero que nada saia errado”, resmungou o Sr. Johannes, “mas, se sair, direi que não sabia de nada, que foram vocês que tomaram a iniciativa.” Típico de um velho sádico e covarde. Porém, se tudo desse certo, seria capaz de dizer a Radamanto que fora sua a idéia, pois o velho Johannes era falso, falso como uma nota de três dólares. “Está ligada”, informou Edward ao retornar. “Já podemos começar a subir os bal-des. Quem vai ficar lá em cima, controlando?” Prontifiquei-me a ficar. “Eu também vou”, disse Louis, “para despejar os baldes no silo.” Subimos ao topo da Torre, no local conhecido como Gogó do Diabo. Ali, onde um antigo motor impulsiona o elevador maior (pois o outro vai apenas até o quinto andar), o pó era mais escasso, mas extremamente inconstante. Um simples espirro o faria erguer-se, toldando como um manto a visão deprimente que tínhamos. Sim, pois ali as máquinas eram velhas e vazavam óleo como cadáveres esquecidos no campo de batalha, apodrecendo len-tamente e desaparecendo, encobertas pela poeira, gastas e tristes, rangendo lamentos que trariam lágrimas aos olhos de um sentimental. “Ei!”, gritei para baixo, “Vou descer a corrente!” Começamos a trabalhar com o novo método. Tudo ia bem: eu apertava o botão de subir, os baldes cheios subiam; apertava o botão de descer, os baldes vazios desciam. Louis, animado, virava os baldes na boca escancarada do silo, cantarolando. Consistia num

Page 19: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

19

buraco circular, com cerca de oitenta ou mais centímetros de diâmetro, que cuspia volutas fantasmagóricas de fuligem cada vez que Louis virava um dos baldes. Nesses momentos fechávamos os olhos, pois o pó irrita-os e nos deixa momentaneamente cegos, sendo tam-bém um perigo para as retinas. O calor não era tanto ali, o pó esfriava durante o trajeto e chegava morno até nós. Uma abertura no alto deixava que entrevíssemos as estrelas. “Não é tão mal, não é mesmo?” Louis puxava conversa. “É verdade, até que não está sendo ruim”, respondi. “Mas pode ficar pior: eu poderia começar a cantar.” Louis riu. “Você não estragaria uma bela noite”, disse, fazendo cara de desconsolo. “Sua voz é horrí-vel! Gosta de cantar? Então porque não aprende?” Ri. Que cantava mal eu já sabia. Mas não sabia que não sabia cantar. Cantava den-tro do tempo e do tom; ao menos era o que me diziam os ouvidos. Talvez fosse minha voz, como Louis falara... Mas sou um poeta, e devo cantar. Trovejei:

“Oh, God of Earth and Altar Bow down and hear our cry Our earthlier rulers faulter Our people drift and die The walls of gold entomb us The swords of scorn divide Take not thy thunder from us But take away our pride.” É um poema de G. K. Chesterton, musicado por um conhecido grupo inglês de he-

avy metal. Mas Louis odiou. “Por Deus! Cale-se, El! Suas lamúrias vão acabar derrubando a Torre!” Expressei cantando minha repugnância por seu ignorante repúdio:

“Just a baby in a black abiss No reason for a place like this The walls are cold and souls cry out in pain...” Estava tão entretido em cantar, que não notei que havia posto mal a alça do balde

no gancho ligado à corrente. Quando premi o botão de descer, a alça escapou e o balde, livre no ar, despencou em câmera lenta. Tentei gritar, mas havia um nó atravessado em minha garganta. Apenas observei, impotente, que o incauto Edward se dirigia para a mira cruel que eu imaginava, sua cabeça o alvo mais improvável (pelo amor de Deus!), mas achegando-se, fatalmente, do ponto onde o balde, indiferente, se chocaria. “Ele vai mor-rer”, pensei comigo. Eram, acredito, cerca de doze ou treze metros de altura de onde eu estava até onde se encontrava Edward. O balde plástico, apesar de estar vazio e não ser muito pesado, desenvolveria uma velocidade impressionante no percurso... Talvez alcan-çasse a cabeça de Edward com o peso total de cem quilos ou mais!

Tudo pensei enquanto o balde caía, olhando para baixo, paralisado, de olhos arregalados. Então, um grito. O balde atingira seu objetivo.

Page 20: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

20

Dos cadernos de poesia queimados:

Fala Balaão

“Fala o homem que sonha de olhos abertos... Fala Balaão, e fala aos despertos. Aos que se abstraem em desertos Dos futuros mais que incertos.”

– Fala, Balaão, que te ouvimos

Na placidez sonâmbula dos ouvidos Em meio ao vento te argüimos Entre borrascas e bramidos... Fala, Balaão, que te ouvimos!

– Fala, Balaão, conta do desejo Divino, comunica as vontades

Da divindade, de um secreto ensejo Fictício, tantas falsas veleidades...

Fala, Balaão, conta do desejo!

– Fala, Balaão, nós te escutamos Pois não temos mais a quem ouvir Do fundo dos ouvidos imploramos

Fala, não nos deixe a inquirir... Fala, Balaão, nós te escutamos!

“Fala o homem que sonha de olhos abertos...

Fala Balaão, e fala aos despertos. Aos que tornaram-se desertos Fala Balaão, de olhos abertos. Dos futuros mais que incertos

Com olhos que não estão despertos Fala Balaão aos desertos.”

Page 21: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

21

Capítulo IV

Entre a loucura e a sanidade

Edward levou alguns pontos na cabeça, mas ficou bem. “Espero mesmo que me perdoe, Eddie”, insisti com ele depois. “Tudo bem”, respondeu ele, “felizmente você é incompetente demais para matar alguém.” Estávamos na hora do almoço, e Louis e o Sr. Johannes roncavam. Não havíamos ido embora: com apenas três horas para recompor nos-sas forças, dormimos por ali mesmo. Quer dizer, eles dormiram. Não preguei o olho. “Mas diga-me, como foi no hospital? O que falaram do ferimento?” Eu estava curi-oso, minha consciência me dizia que não havia sido um acidente sem gravidade. “A borda cortante do fundo do balde abriu um talho enorme”, respondeu Edward, “mas não houve maiores danos. Tenho a cabeça dura.” E sorriu, os dentes tortos e saltados cobertos de sar-ro. “Não se preocupe, El. Ficarei bem. Tenho agora uma vagina na cabeça.” O que seria do mundo sem o senso de humor de pessoas como Edward? Um sujeito mais esquentado iria querer brigar, mas lá estava ele, fazendo gozação de si mesmo. “Você é um grande personagem”, declarei, enternecido, “e talvez eu escreva um romance algum dia, não sei, em que será uma das figuras centrais.” “Deixe de sandices”, tornou ele; mas parecia contente. O vento revolvia seus cabe-los, que escapavam das ataduras parecendo pequenos talos de gramínea crescendo em ra-chaduras no cimentado. “Acha mesmo que eu teria substância para compor um persona-gem? Olhe para mim. Sou repulsivo. Nem minha mulher gosta de mim.” “Quando o autor pega alguém de carne e osso para compor um personagem fictí-cio”, falei, “procura aproveitar o melhor ou o pior dele. Se deseja dar um fundo verdadeiro à história, tenta infundir nela o caráter real do modelo que usou. Todos têm qualidades e defeitos, Eddie, e tudo o que o escritor faz é ressaltar esses adjetivos, para assim comunicar uma mensagem ao leitor. Mas não se preocupe: estou muito longe de começar a escrever um livro.” “É uma pena”, lamentou Edward, “pois eu gostaria de me ver pelos seus olhos.” Ficamos em silêncio durante um longo momento. “El”, Edward rompeu a pausa, “que tipo de livro escreveria? Em que tipo de situações colocaria meu personagem, se u-sasse a mim como modelo? Preciso saber, você compreende... sou muito curioso. Desde que era criança. Certa vez, matei um sujeito que ameaçava minha família... Foi na cidade grande, onde as pessoas não se importam com mais nada... Não me orgulho disso, não se-nhor... É uma carga muito pesada para carregar sozinho, muito mais pesada que aquele balde em minha cabeça... Mas era ele ou eu, entende? Não tive opção... O que estou ten-tando dizer é que eu tinha uma curiosidade em saber como se sentia um assassino após o ato... Não era muito claro, é óbvio... Era um sentimento vago e fragmentário... Então con-segui um revólver emprestado e dei cabo do cara... Segui-o pelas vielas escuras da favela, retraindo-me atrás dos postes, esperando o momento certo de agir... Quando vi que tudo estava tranqüilo, corri até ele e descarreguei o tambor, pensando em quanto o sujeito esti-vera errado ao bulir comigo... Depois, voltei pra casa e troquei de roupa, caindo na cama... Tranqüilo... Tive um sonho. Meu filho dizia: ‘Pai, estou orgulhoso de você. Você nos de-

Page 22: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

22

fendeu daquele cara. É assim que um pai deve ser.’ Acordei de madrugada, e fui até o quarto do meu filho... Ele dormia, ressonando, e quis abraçá-lo, para senti-lo o mais pró-ximo possível de mim... Mas não o fiz, sabe... Quer ouvir a razão? Eu estava sujo, El, e não queria manchá-lo com minha imundície...” Jamais poderia imaginar que detrás da capa surrada da personalidade de Edward escondia-se um matador, uma espécie beatífica de assassino, com toda a experiência e consciência do peso de um crime. “Isso que me contou”, indaguei sussurrando, “aconteceu realmente?” Edward olhou-me dentro dos olhos, e depois, baixando o olhar, murmurou: “Sim.” Passeou as mãos pelo pescoço, aturdido como alguém saindo de um transe. Voltou a me fitar, dizendo: “Só peço que não conte a ninguém. Tive de fugir da cidade grande depois disso, os irmãos do sujeito queriam me pegar... Como vê, lucrei muito pouco com a coisa. Sei que poderia ter resolvido o problema de outra maneira, e é isso que me aporri-nha... Mas creio ter feito uma besteira, pois você certamente vai contar isso no livro, não é mesmo?” Sacudi a cabeça afirmativamente. “Sim, Eddie, se algum dia escrever um livro, e se usar você para compor um personagem, com toda certeza precisarei contar tudo isso.” Ed-ward pôs-se aflito. “Mas qual o motivo de expor meu personagem assim, frente ao julga-mento muitas vezes inclemente do leitor?” Sorri, tentando sossegá-lo. “Simplesmente para torná-lo humano, Eddie. Humano, assim como você.” A maldita sirene tocou, acordando o Sr. Johannes e Louis. “Mas que porcaria!”, vociferou o velho. “Justo agora, que ela ia abrir o decote!” Levantamos todos, Louis, Ed-ward, o Sr. Johannes e eu, e descemos pela alameda que conduzia à fabrica. A Hades Me-talúrgica pretende ser uma metáfora para o Inferno, e é justamente isso que está se tornan-do. Todos nós temos crimes a remir aqui. Talvez, em algum canto obscuro do Universo, alguém esteja observando nossos atos. Alguém que, possivelmente, reprova algumas de suas próprias atitudes. Está solitário e vazio como todos nós. E decerto espera também um julgamento, que sobrevirá de instâncias ainda mais superiores. Seria indecente pensar as-sim? Se é, sou indecente, pois penso assim. Cercados pela multidão, estamos sozinhos. As pessoas nos reprovam quando tentamos mudar as coisas, pois não querem mudar nada. Querem tudo como está. Indo e voltando, indo e voltando, sem nunca chegar a lugar al-gum. E então vêm-me à mente aqueles versos místicos de Fernando Pessoa: “Que importa o areal e a morte e a desventura Se com Deus me guardei? É O que eu me sonhei que eterno dura É Esse que regressarei.” Note-se as maiúsculas no meio do terceiro e do último versos. O poeta identifica-se com a divindade, assume uma postura de possível unidade com o ser divino após a morte. Mas é a loucura que fala, a inevitável sublimação do Homem rumo ao céu.

Estamos todos divididos por aqui, entre a loucura e a sanidade. Mas algum dia se-remos todos loucos: um só e unificado louco celestial.

Page 23: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

23

Dos cadernos de poesia queimados:

Um poste

Em cada esquina um poste Em cada poste uma lâmpada

Em cada lâmpada um filamento partido.

Quantas esquinas, quantas lâmpadas! Quantos filamentos partidos!

E eu, que sou um só, sinto-me vário.

Qual a razão de assim me sentir? Olhando meus escritos antigos, reparo Em quanto fui tolo e mesquinho e fútil.

Sou isto, e mais além apenas?

Pretendi ser um filamento em brasa Iluminar a noite escura que é o Homem.

Mas como posso ser humano e iluminar

O que também é humano? Nem mesmo a mim Ilumino. Filamento secionado é a alma.

Apenas fico, na esquina perdida entre Milhões de outras esquinas perdidas

Estacado como poste cuja lâmpada apagou.

E na cidade às escuras que é a Vida Compartilho a ignorância que acumulo

Com postes que ainda nem existem Que talvez nem mesmo existirão.

Page 24: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

24

Capítulo V

O estabelecimento da distância

Embora exerça as funções desprezíveis de limpador de túneis durante a semana, quando consigo uma grana costumo sair para tomar uns tragos com meu amigo Erck Sil-vrus. É um sujeito melancólico e pacato, que gosta de música, cinema e cerveja. Mas não necessariamente nessa ordem. Seus rompantes costumam ocorrer no auge da bebedeira, e apesar de serem raros, são por vezes muito divertidos. Costumamos passar na casa de Ro-bert Hippolitus, o pintor, antes de fazer qualquer coisa. Hippolitus é reservado e cáustico, mas quando se interessa por alguém torna-se quase afetuoso. No sábado telefonei para o Erck. Quando ele atendeu, falei: “Que vai fazer hoje?” Era a senha. A frase percorre os terminais nervosos de meu amigo, e ele quase pode sentir o sabor da cerveja descendo goela abaixo. “Vamos dar uma passada na casa do Hippoli-tus”, responde, “e depois, só Deus sabe.” Apesar de ser músico, Erck planeja tornar-se um artista completo. Escreve um pou-co, pratica com a guitarra, pinta paisagens, assiste filmes antigos e obscuros, lê livros con-siderados artísticos ou imorais... enfim, reúne em si um cabedal que poderá vir a ser útil no futuro. “El, escreva um roteiro de curta-metragem para filmarmos”, propôs-me certo dia. “E quem seriam os atores?”, perguntei. “Nós mesmos, ora!” É um ativista. “Não sei se estaria disposto a representar”, objetei. Ele se zangou. “E prefere ficar nessa pasmaceira? Cinema é arte em movimento, cara! Que conseguiu até agora com toda a sua literatura? Seus poemas são bons, mas e daí? Estão lá, inanimados. Coloque algo no papel e vamos filmar!” “É muito fácil falar”, disse eu. Não tinha apreciado seu tom, parecia que estava tentando diminuir, se não a literatura em geral, ao menos a minha... “E você, que se julga tão capaz, ainda não escreveu seu próprio roteiro? Mas como escreveria? Tenho notado que anda ignorando a importância da literatura. Que seria do teatro e do cinema sem a lite-ratura? Que seria da música sem a literatura? Que seria do artista em geral, que nasce e cresce dentro da primeira forma de arte atemporalmente comunicável, ou seja, a literatura? Não, meu caro! Se quiser ser um artista completo algum dia, tem que respeitar, amar, de-vorar, trepar com a literatura!” Escrevi meu roteiro, e ele escreveu o dele. Ainda não filmamos, nem sei se vamos filmar. Nem sei qual deles vamos filmar se formos filmar. Mas não importa. Segundo Erck, o que importa é a iniciativa. Nós escrevemos os roteiros, não escrevemos? Nos encontramos na velha esquina e partimos para a casa de Hippolitus. A noite estava fria e agradável, o céu limpo e ligeiramente azulado, cheio de estrelas. Caminhamos em silêncio até o centro da cidade, distante não mais de dois quilômetros. Quase todo sá-bado fazíamos a mesma coisa, e poderíamos seguir de olhos fechados que acabaríamos chegando ao Kuriharus. O Kuriharus é um dos maiores supermercados da cidade, encon-trando rival apenas no Tetrus. Não gosto muito do Kuriharus, talvez por ser propriedade de um bando de orientais desconfiados. Mas como o Tetrus fica a uma distância bem maior, sempre compramos cervejas lá.

Page 25: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

25

“Quantas latas vai querer?”, pergunta Erck, esperando que eu saque o dinheiro. “Não sei... quantas vai pegar?”, rebato eu. “Acho que vou pegar umas cinco”, responde. “Então quero quatro.” Sempre faço isso, pego uma a menos. Ao fim, imploro que me dê um pouco da sua, pois bebo a minha rapidinho. “Você é um pilantra”, diz ele. Enquanto aguardo a chegada das cervejas, vou até a banca de jornais para ver as novidades. Encontro um Plutarco, o que me deixa surpreso. “Já estão vendendo isso nas bancas?”, interrogo o dono. Ele me interpreta mal. “Se não gosta desse tipo de leitura, não fique folheando”, diz ele, com a cara amarrada. “Muito pelo contrário!”, respondo apon-tando, como se fizesse o comercial do livro. “Veja! São as ‘Vidas Comparadas’, célebres biografias de Alexandre e César!” O homem não parece surpreso. “Vai levar?”, pergunta com enfado. “Vou, está barato”, murmuro, pensando: “Perdoa-o, Plutarco!” Erck chega, e seguimos viagem. “Quanto pagou no livro?”, pergunta, e respondo: “Barato. Assustadoramente barato.” Chegamos à casa de Hippolitus. Batemos na porta. “Quem é?”, faz alguém lá den-tro. “Somos nós”, respondemos. “Nós quem? Não conheço nenhum Nós.” Hippolitus abre a porta e entramos. “Como vão indo?”, e fecha a porta. Está trabalhando em uma tela. “A-trapalhamos?”, preocupa-se Erck, pois respeita muito o momento criativo dos outros. “Não, não, está quase terminado.” Aproximamo-nos para contemplar a obra. Um ser vaporífico, de linhas contrastan-temente duras, parece flanar sobre um prado. Há uma overdose de cores, objetos como violoncelos e mesinhas de centro, borboletas, pássaros, uma confusão visual que assenta muito bem ao estilo psicótico de Hippolitus. “Que acharam?”, e notamos que realmente importa-se com nossa opinião. “Louco!”, respondemos em uníssono. “Legal”, contenta-se o pintor. “Venham, vamos para a cozinha.” Colocamos as cer-vejas na geladeira e sentamos nas cadeiras, tomando as que deixamos de fora. “Estou espe-rando um pessoal”, informa Hippolitus, “que é definitivamente cabeça. São estudantes da cidade grande, meus amigos, muito ligados nessas coisas de arte.” Ouvimos pancadas na porta. “Esperem um pouco”, pede-nos o dono da casa. Ergue-se e caminha na direção da sala, dizendo: “Acho que chegaram.” Eram eles. Hippolitus faz as apresentações: “Pessoal, quero que conheçam meus amigos daqui, Erck Silvrus e El Tropius; Erck, El, estes são Jack Grumus, Peter Vurmus e Andrea Falsetus, meus amigos da cidade grande. Andrea é estudante de Literatura, e já publicou alguma coisa. Grumus e Vurmus são atores itinerantes. Que andam fazendo, ra-pazes?” “O de sempre”, responde Grumus. “Rodando por aí.” Observo Andrea. Ela é belís-sima, com cabelos escuros e longos como as esteiras horizontais da Hades Metalúrgica. Analogia infeliz. Seu rosto, porém, tem algo de sobrenatural, chegando a doer de tanta per-feição. “Será que é inteligente?”, penso comigo; pois assim como o cínico Diógenes, que à luz do dia procurava com sua vela acesa por um homem honesto, procuro uma mulher bo-nita que seja mais do que apenas isso. “El também escreve, Andrea”, diz Hippolitus notando meu interesse. “É poeta.” Ela olha para mim, e seu olhar quase me faz desfalecer. “Poeta, não é?”, e sorri, e seu sorriso é um pedaço roubado do Paraíso. “Sim”, gaguejo, “mas ainda não publiquei coisa alguma.” Ela aproxima-se, e sinto seu perfume. O olor transporta-me para uma dimensão de beleza inenarrável, onde criaturas silfídicas flutuam no espaço atravessadas por soberbos clarões de luz rosada, uma região feminina e sensual onde a pureza não está nas formas, mas em

Page 26: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

26

seu significado. “Publicar não é o mais importante”, encoraja. “O importante é produzir, produzir sempre.” “Oh, silver tree! Oh, shining rivers of the soul!” Não pude evitar pensar nos versos de Langston Hughes. Não que tivessem algo a ver com a situação, mas que outros versos poderiam compará-los? Árvore prateada! Rios reluzentes da alma! Prosaicos e abrangentes versos, descrevendo qualquer coisa de maravi-lhoso, qualquer coisa de fabuloso, qualquer coisa de Andrea Falsetus. Quando ela falava, o ar todo se modificava, havia música, não a música ordinária que se escuta nos bares e nas festas, mas a música que os anjos produzem para ninar os sonhos de Deus. “Andrea, teria a bondade de recitar algum poema de sua autoria para nós?”, provo-ca Hippolitus, “tenho certeza de que El está ansioso por ouvi-la um pouco mais.” Olho para ele entre agradecido e furioso. Agradecido pois quero de todo o coração ouvir qual-quer palavra que venha dela, e furioso por perceber que Hippolitus planeja me expor ao ridículo. Andrea empertiga-se, pondo-se a declamar: “Nas altas montanhas, além das nascentes Onde bebemos nosso original amor Florescem árvores de real fulgor E seus frutos nos farão mais crentes. Portanto sigamos lépidos, meu amado Para lá buscar suas belas flores Deixemos cá estes horrores Estes monstros que nos têm guiado. E lá chegados, nos fartaremos Com as maravilhas prateadas De tais árvores iluminadas E então felizes em crer seremos.” Todos aplaudimos de pé. “O poema é perfeito”, opinei, “precisamente por louvar, não apenas o amor, mas a crença em tal sentimento.” Mas, intimamente, eu me encontrava estupidificado com a similaridade dos temas, na forma como ela condensara o dístico de Hughes, que estava trancado em minha mente, naquele canto vívido e sonoro.

“É verdade”, concordou o dono da casa. “Andrea é ótima poetisa, e tenho certeza de que compôs esse poema agora mesmo. Estou enganado?” Andrea enrubesceu. Eu podia sentir que o plano de Hippolitus para me testar ia de vento em popa. “Para ser sincera”, disse Andrea, “desejei apenas demonstrar um pouco do meu talento. Não creio ter sido tão louvável quanto estão dizendo.”

“Ah, a modéstia, a modéstia! Deixe disso, e colha os louros!” Hippolitus chegara ao ponto. “Que acha, El? Seria capaz de igualá-la? Vamos, não seja tímido! Recite um poema seu, deleite-nos com sua eloquência!”

Golpe sujo! Golpe sujo! Hippolitus me pegara de jeito. “Não sou indicado para re-citais”, tentei me esquivar, “minha poesia é feita para ser lida na solidão dos pensamentos.

Page 27: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

27

Além disso, jamais alcancei tamanha harmonia, e seria vergonhoso para mim estar compe-tindo com tal poetisa, que faria lírico tudo que porventura viesse a pronunciar. Peço que não insistam, pois não fico muito à vontade quando sou constrangido.”

Pude ver nos olhos de Andrea que ela havia se decepcionado comigo. Talvez espe-rasse, como eu, encontrar uma afinidade comum entre nós. Mas eu estragara tudo! A culpa era de Hippolitus, que concluí, tinha também o seu lado sádico. Mas todos não temos? Per-doei-o, pois sempre me tratara bem, sendo um anfitrião incrível.

Erck, que estivera calado, manifestou-se: “Não acredito que você fique acanhado e retraído diante de uma bela mulher, El! Que é isso? Vamos, declame logo um daqueles seus poemas pesados, ou então daqueles idiotas, mas declame algum! Não seja um bunda mole. Conheço você, sei que tem capacidade para compor, assim de estalo. Se continuar com isto, serei obrigado a recitar um dos meus, para que não sejamos considerados uns covardes. Vamos, homem! Abra a boca e mostre o que sabe.”

Era um daqueles rompantes, mas não estava sendo divertido. Erck nunca me havia dito que compunha poemas! Seria uma conspiração? Teriam Erck e Hippolitus combinado tudo aquilo, apenas com o propósito de me humilhar? Levantei da cadeira, oscilando. Toda aquela linda noite apodrecera de repente. Não havia nada de altivo em meus pensamentos. Eu estava seco, seco como um inseto ressequido no canto de um quarto esquecido, em uma casa abandonada há vários séculos. “Se é isso que querem, malditos”, pensei, “aí vai.” Eu deixaria que meu ódio falasse através de mim. Raspando um pigarro da garganta, comecei:

“Aqui, em casa de Hippolitus Sofrendo desta intimidação Tenho ganas de me tornar vilão. Aqui, em casa de Hippolitus Onde outrora houve inspiração Padece minha alma de aflição. Aqui, em casa de Hippolitus Onde o Mal é uma afirmação Desisto de ser um bom cristão. Aqui, em casa de Hippolitus Onde antes se alegrou meu coração Termino por penar igual um cão. Aqui, em casa de Hippolitus Sofrendo os rigores da paixão Desisto de cantar qualquer merda: Entrego-me de vez à solidão.” “Muito significativo!”, bradou Hippolitus, aplaudindo de pé. “Lindo, lindo!” Mas não ouvia mais o que falavam. No momento seguinte, estava lá fora. Percebi

que Erck me seguia; mas corri, mais rápido, e fui embora dali. Estava rubro, sentia-me em brasa. Eu, inconscientemente, havia optado pelo estabelecimento da distância.

Page 28: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

28

Dos cadernos de poesia queimados:

O jogo

Eu sou aquele oriental Que traiu os marcianos Vestido na fina estampa Da moda provinciana.

Não, não me julguem mal! Não, eu não quis aniquilar

Os bosques de concreto E os indecentes currais

Onde ocorrem as mutações

Não, não quis finalizar o dia Não quis contaminar

As tépidas águas do parto Não quis subjugar

O rebento em seu abrigo

Só quis, repito Só quis jogar meu jogo

Quis ir além dos sistemas Flutuar em galáxias distantes

Banhado pela luz dos cometas Meu jogo jogar com dados

Esféricos, previsíveis...

Page 29: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

29

Capítulo VI

Pensamentos de um domingo negro

Domingo é um dia em branco. Vida familiar, churrasco, aguardente, música, televi-são... Cigarros, telefonemas, macarrão, gritos, crianças, o tédio... Mais gritos, risadas, so-bras, cachorros, correrias, futebol... O mal-estar da noite anterior... Recordar a noite anteri-or, lembrar de Andrea Falsetus e dos leões no Coliseu, minha insatisfação com a poesia, minha poesia tão imperfeita, composta de tudo que me sufoca e pressiona... O constrangi-mento da noite anterior... Mas não convém pensar no passado, de forma que levanto da cama e escovo os dentes. São quase dez da manhã.

Tomo café e passo os olhos por uma edição bilíngüe de William Blake, um de meus livros preferidos. O sol brilha lá fora, e sei que estou a um passo da liberdade, se sair. Mas eu não saio. Há um sentimento de vazio me esperando lá fora, o mesmo que há aqui dentro. Na rua, pessoas falam alto e sua conversa me enoja. Prefiro mais os papos alucinados de Blake:

“Não há Progresso sem Contrários. Atração & Repulsão, Razão & Energia, Amor & Ódio são necessários à Existência Humana. Desses Contrários emana o que os religiosos chamam Bem & Mal. Bem é o passivo, que obedece a Razão. Mal é o ativo, que emana da Energia.

Bem é Céu. Mal é Inferno.” Será que realmente importa a Poesia? Um sentimento de vazio dentro deveria ser descrito? E em que lucrariam os leitores ao lerem as agruras psicológicas de um insensato, de um tímido de si mesmo? Um sujeito que envolve sua personalidade de mistério e seus escritos de filosofias remendadas, costuradas com agulha e linha enquanto outros, com modernas máquinas de costura, cosem as notícias e os comentários supérfluos de um tem-po que será lembrado, no futuro, como um degrau apenas na escada em que hoje somos Homens; e amanhã, quem sabe o que nos tornaremos? Seremos amanhã o que somos hoje? Tempora mutantur, nost et mutamur in illis¹... Nossa curta História prova que sim. Houve o progresso das máquinas, o progresso da compreensão do universo, o progresso da lei e da ordem, tudo antes antevisto, previsto, sonhado. Mas as pessoas são iguais, estão ainda sós com seus pensamentos e reúnem-se em bandos para tentar aplacar a solidão. E a multidão de solitários ergue seus lamentos para a estratosfera, e os lamentos são filtrados pelos saté-lites artificiais e devolvidos em forma de códigos de imagem e som aos televisores, que os decodificam, e lá está um solitário sentado na poltrona vendo o resultado decifrado dos lamentos, e são engraçados e tristes, e o solitário ri, ri e chora e ri de novo, como se a vida fosse apenas chorar e rir. E há pensamentos que desaparecem enquanto o solitário assiste TV, pensamentos que são a sua própria vida. E o solitário está tentando escapar de uma situação que é real e não é. É real pois está lá fora, estabelecida, e não há o que fazer para mudá-la. E não é real por não ser aceitável, por haver um anseio maior detrás de sua apa-

Page 30: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

30

rência de repouso, um sentimento jogado às moscas, ignorado, um desejo de ser superior a si mesmo que a aceitação da realidade relega como sem importância, sendo pulverizado muito devagar pelas mandíbulas descarnadas de uma máquina sem nome; e é na margem da estrada para o progresso que o pó desse desejo vai se acumulando, e não há ninguém para retirá-lo de lá com pás de cabo curto e lançá-lo definitivamente às esteiras do esque-cimento. Uma dor me aborrece. A mesma dor que envolve o parto me acomete. Estou em vias de criar algo que nunca foi criado antes, algo que nascerá da dor insuportável de ob-servar o brilho televisivo das figuras sorridentes durante um domingo negro. Frente o apa-relho descargas de vazio atingem o corpo e o corpo ri, ri e chora e torna a rir, como se tudo pudesse ser resumido em rir e chorar, em drama e comédia. Mas a dor que me dói é com-posta de risos e lágrimas, o equilíbrio doloroso de extremos que se tocam e se retraem e nunca mais tocam-se nos mesmos pontos, nunca mais se encontram ali. É a dor da transito-riedade de tudo o que me cerca e de todo o conteúdo da essência que represento. Dessa efervescência de revolta, que volta-se contra si mesma e que consome todo seu potencial tornando-se um pálido reflexo de energia, que é chamado razão, vem a atitude de comuni-car minha insatisfação ao futuro, para o que futuro seja menos malvado com seus filhos. Assim surgem luminares na arte, na verdade renovadores de uma cultura que não quer ser esquecida, não quer ser a mesma e não quer ser modificada. Tudo que acontece dentro de mim é a estagnação da nada atrativa realidade que me cerceia. Se fomos feitos à imagem de deuses, deuses são de carne e osso e mereceriam tan-to respeito quanto nós. Mas nós não nos respeitamos, e quem poderá nos acusar se disser-mos para nós mesmos, na escuridão afônica de nossos pensamentos, que deuses não exis-tem, e que se não existem não merecem respeito, pois afinal se não respeitamos o que exis-te, como iríamos respeitar o inexistente? O mesmo se pode dizer de qualquer outra abstra-ção, como por exemplo, o amor, a amizade, o ideal, a moral e o próprio respeito em si. A morte dos símbolos se aproxima, marcos de pedra à margem da estrada para o progresso indicam as sepulturas onde jazem inúmeras abstrações. Empedernidos corações divagam sobre a utilidade de seus ventrículos, a intensidade de seu fluxo sangüíneo, a sonoridade de seus batimentos cardíacos. E na teia de aranha do progresso milhares de cadáveres de inse-tos lembram às moscas de agora que há um lugar todo especial ali para elas, um carinhoso apertão entre os ferrões aguçados e o olhar mecânico da aranha enquanto toda a substância é sugada, e a carcaça oca ficará lá para lembrar as gerações futuras; mas há a televisão, e o cinema, e a música, e o teatro, e a fome de entregar a existência para o progresso e olhar dentro de seus olhos mecânicos e vibrar, vibrar como um motor que continua vibrando até fundir-se ao grande mecanismo para então nunca mais parar de funcionar, mesmo quando tudo em volta estiver parado. Mas então o velho motor começa a tossir e há alguma coisa errada pois não funciona bem e é só trocar, há motores e mais motores e mais motores, há todo um lote de motores querendo ser eternos pelo curto instante de duração que geralmen-te é a vida inteira de um motor em funcionamento. E lá se vai a carcaça para o quadro de avisos, comunicando o incomunicável através dos resultados dispendiosos inerentes ao progresso. Mas deixem-me dizer mais uma última coisa. No futuro os ferros-velhos estarão cheios de sucata e essas partes desprezadas do maquinário irão se juntar num exército que tomará o poder. Que esta profecia se cumpra, que todos os incompletos do mundo se ajun-tem como esterco e adubem as raízes do pensamento humano. Se para sermos melhores devemos nos tornar como máquinas, deixem que venham a mim as maquininhas! Eu as acolherei, e reservarei para elas simpáticos aposentos em meu palácio de metal. Mas não

Page 31: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

31

pensem que farei isso por simpatizar com elas; ao faze-lo, estarei fazendo pelos rostos hu-manos que carregam, rostos iguais ao meu, eternamente contrariados pela fria banalidade de um domingo negro aprisionado na memória pelos grilhões da mais fútil distração. Cansado de meu vazio interno saio de dentro de meu ser para o vazio exterior de um dia que está no fim. Felizmente a noite chega, tornando clara a realidade da extinção de todas as coisas. A noite, como a morte, serve para dormir. E estou tão cansado de tudo que chego a ansiar pela noite eterna da morte. Mas existe o caminho do progresso para ser tri-lhado, mesmo que tal progresso signifique um retrocesso. É preciso continuar semeando pistas à margem da estrada, para que no reinício do ciclo elas estejam lá e possamos reco-lhe-las, analisá-las e arquivá-las em museus. E no rol das novidades antigas talvez elas figurem, e um visitante observador o bastante poderá notar que há alguma semelhança en-tre o que passou e o que está por vir. Mesmo que o futuro seja de apenas um minuto na imensidão de uma eternidade já bem curta, como a eternidade dos motores que funcionam sem parar nas fábricas, ainda assim somos menores que isso, pois não podemos aceitar que vivamos sem objetivos. Criando ilusões que nos embriagam e tornam suportável o perdurar da angústia que inunda os dias e as noites e tudo mais além disso, a mesclagem das horas, o amálgama da vida correndo e se emendando em partes defeituosas que nos tornam o que somos, máquinas, motores rodopiando em giros tortuosos ao redor de um eixo incerto, en-tregando toda sua potência sem conseguir nada em troca, nem sequer uma revisão esporá-dica, uma engraxada nos rolamentos, uma limpeza. Apenas produzindo, produzindo, e nem mesmo sabendo o que é produzido, se resultados ou soluções ou mais máquinas que pro-duzam, mas qual a razão direta da produção, da própria reprodução? Onde estará a real utilidade do Homem? Na Máquina? Nos Deuses? Onde estará a real razão do Homem, meu Deus? Nos motores? Nas chaminés? Onde estará o real caminho? Na vida? Na morte? Questões são necessárias, mesmo que não tenham solução. As soluções virão trazendo no-vas questões, assim como as soluções do passado trouxeram as questões de agora. E conti-nuará sendo a mesma coisa que sempre foi, e o tédio, o vazio, a infelicidade encontrarão como desafogo a feliz decadência do acefalismo e da devassidão improdutiva. Como ex-plicar o destino do Homem? Não há destino. Não há um olho observando de fora, e não haverá um julgamento. Tudo que haverá será o fim final, o fim que arrematará a intermi-nável seqüência de fins. Cum finis est licitus, etiam media sunt licita²...

Cansado do vazio externo saio dos limites do Universo e vejo que ele é apenas uma bolha de sabão flutuando junto de outras similares, e todas são iguais apesar das diferenças de tamanho e algumas arrebentam enquanto estou olhando e então compreendo que não há peso mesmo em todos os universos juntos, são todos simples bolhas de sabão sopradas por uma criança que não se importa nem um pouco com o que acontece com elas quando ex-plodem; então, qual o motivo de minha preocupação? Que a criança continue soprando, e quando o inevitável ocorrer estaremos todos espalhados por aí, como acontece em geral com o conteúdo das bolhas de sabão quando elas estouram.

¹ “Os tempos mudam, e nós mudamos com eles.” ² “Os fins justificam os meios.”

Page 32: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

32

Dos cadernos de poesia queimados:

Tenso é o dia

“O sono é uma morte incompleta; a morte, um sono perfeito”

Eliphas Levi – A Chave dos Grandes Mistérios

Tenso é o dia, suave A noite, mas não encontro

Repouso jamais.

Dormir é, creio Pausa para organizar

Uma chance de consertar Na ressurreição A Realidade.

Mas nunca acordar É encontrar perfeito O mundo externo.

Nunca é. Acordar, reencontrar

Erros a cometer Ou cometidos já

Sem qualquer possibilidade De remissão para eles.

Não, não ria.

Sou apenas mortal E todos os dias morro

Pois sem morte Não sou completo.

E aí, onde estás

Confortável e preso Que sentes, que espécie

De sensações te assediam Leitor, para que prossigas

Linha a linha, página a página De tua vida virando, inconsciente

Compondo epitáfios mudos?

Page 33: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

33

Capítulo VII

O trabalho dos dias

Segunda-feira. Animado pela triste manhã gelada, saio de casa para mais um dia de trabalho. Na entrada da Hades, encontro o Sr. Johannes. “Como foi o fim de semana?”, interessa-se ele, e digo que foi regular. Vamos ao refeitório, enchemos os copos descartá-veis de café preto e saímos, para esperar a chegada dos outros. Ficamos bebericando o café encostados ao muro sujo do refeitório, perto das caçambas de lixo. Gatos vagabundos revi-ram a sujeira, pescando alguma comida entre as sobras. “Lá vem Éaco”, diz o velho, direcionando a cabeça abaixada para indicar a posição. Éaco é o responsável pela Fusão, setor onde ferro e aço são fundidos. Às vezes pede a Ra-damanto que nos empreste para fazer algum serviço, na maioria dos casos, desagradável. A particularidade é que sempre nos avisa antes. “Quero falar com vocês”, diz ele, e lá vem encrenca. Só fala conosco quando tem algo para fazermos. Quando não, nos ignora total-mente, chegando quase a passar através de nós, sem notar, como se fôssemos espectros ou coisa parecida. Ele acerca-se, pronunciando sua temida frase inicial. “Sim?”, corresponde o Sr. Johannes, solícito. Éaco é seco e azedo como vinagre, e sua palavra conta muito nas famo-sas reuniões (as quais Radamanto adora citar) onde são decididas muitas das questões me-nores da Hades, como por exemplo a dispensa de empregados pouco participativos. É fun-cionário antigo, tendo travado relações com o Sr. Pluto, acionista majoritário e presidente da empresa, quando ele ainda estava no início do negócio. Há um terceiro chefe na área da produção, chamado Minos, que cuida da Moldagem. Radamanto é o encarregado da Re-barba, onde as peças são finalizadas, e temporariamente está cuidando do reaproveitamento e do descarte da areia já usada, pois o último responsável foi transferido para a Elísios. A Elísios é como um departamento em separado da Hades, uma espécie de firma dentro da firma. Ali as peças são usinadas, e o pessoal, ao contrário de nós, usa um bonito uniforme de cor branca. O nosso é cinza e de corte grosseiro, sendo muito parecido com o uniforme usado nas casas de detenção e nos manicômios. “Bem”, começa Éaco, “vocês devem ter notado em que situação se encontram as entradas e saídas do tremulador. Estão entupidas de pó. Preciso de todos lá, para liberar aquelas áreas críticas. Os outros ainda não chegaram?” Olha em volta, e vê Edward, que se aproxima. “Eddie”, diz ele abrindo um sorriso e pegando-o pelo braço. Tem muita intimi-dade com Edward, pois são companheiros de baralho. “Estava dizendo a eles que limpem o tremulador. Ainda não avisei Radamanto, poderia falar com ele? Diga-lhe que as condições são críticas, e que não é bom descuidar. Da última vez precisaram trocar quase todas as molas, que acabaram rachando com a pressão.” “Claro, claro”, diz Edward com seu habitual bom humor, “pode deixar. Falarei com ele”. Éaco se afasta, e o Sr. Johannes volta a ser o que é. “Estão sempre nos sobrecarregan-do, e nem mesmo sabemos ao certo quem cuida do quê”, reclama ele. “Minos, que deveria ser o responsável pelo tremulador (o qual, afinal de contas, é parte da Moldagem), manda-nos limpar o poço dos elevadores na Central de Areia. Radamanto, da Rebarba, ordena que limpemos a Torre. E Éaco, que é da Fusão, quer que limpemos aquelas bocas do Inferno...

Page 34: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

34

Diabos! Tantos chefes, tantos trabalhos! Dia a dia, o serviço aumenta. Sempre há algo mais. Multiplica-se o pó em todos os cantos da Hades. Máquinas antigas, poucos homens, e pó, pó em quantidade, às pencas.” “Radamanto disse que estão para fazer investimentos”, digo eu. “A coisa tende a melhorar.” O Sr. Johannes dá um sorriso amargo. “Você acha mesmo, El? Pois não pense assim. Estou aqui já faz cinco anos, e sempre ouvi a mesma conversa. Está mofada, até.” Louis sai do refeitório, assustando-nos. Não o havíamos visto chegar. “Dormiu lá?”, pergunta o velho, sabendo que o pobre Louis trabalhara domingo. “Quem me dera!”, responde ele, um copo de café entre as mãos. Tem ramela nos olhos amarelados, os cabelos desgrenhados e fios de cobertor na barba por fazer. “Meu quarto é frio como um refrigerador, e o refeitório é quentinho.” Passa o indicador nos olhos, tirando um pouco da ramela, e volta a segurar o copo com ambas as mãos, para aquece-las no calor do café. “Muito trabalho ontem, Louie?” Edward sabe que não, mas pergunta ainda assim. No domingo ninguém trabalha nos túneis, ainda mais estando sozinho. Louis deve ter dor-mido a maior parte do tempo, como um bom morcego. Afinal, é noctívago de nascença. “Não tinha muito serviço não”, e Louis sorri com seu dente único, parecido com a miniatu-ra de um mosaico amarelo. O sorriso quer dizer: “Não fiz nada.” Edward também sorri, como resposta, e o Sr. Johannes comenta: “Se todos os dias fossem domingos, Louie seria o funcionário perfeito. O trabalho dos dias, no entanto, dife-re de dia para dia. É simples questão de oportunismo ou sorte.” Não entendemos o que o velho quer dizer, e nem pensamos a respeito: partimos para os armários, onde guardamos as máscaras e outros apetrechos. Cruzamos com Rada-manto no caminho, e Edward comunica-lhe o pedido de Éaco. “Tudo bem”, concorda ele, “mas na próxima reunião vou levantar essa questão. Vocês foram contratados para cuidar dos túneis, e não acho justo que sejam obrigados a cuidar de outros setores apenas porque seus responsáveis não têm a coragem suficiente para requerer da gerência o aumento de seus efetivos. Estávamos tendo problemas com os túneis, e o que foi que eu fiz? Falei com os Recursos Humanos e exigi a contratação de mais pessoal. E o que fizeram? Contrataram El. Não houve uma melhora significativa no processo de vocês? Pois então: Éaco deveria fazer o mesmo, e também Minos. Mas eles são reprimidos demais, sabem? Morrem de medo que o gerente ache ruim e ralhe com eles. Mas eu não. Estou aqui há apenas quinze anos e, sem querer me gabar, tenho muito mais iniciativa que aqueles dois. São um par de recalcados!” Era sempre assim: quando tínhamos de fazer serviços fora dos túneis, quem mais reclamava era Radamanto. Fazia isso para mostrar que estava do nosso lado, que era dos chefes mais magnânimo, o papai da Trindade. Pegamos as pás e, não tendo outra opção, rumamos para o tremulador. Creio ter iniciado uma descrição do engenho, por alto, em outra passagem, mas agora darei a dimensão precisa de sua importância no processo produ-tivo. Depois de preenchidos com aço líqüido, os moldes saem da Moldagem em trilhos que levam as caixas onde são acondicionados para as entradas do tremulador, onde são lança-dos. O tremulador é um conjunto de tubos adaptados com vibradores, montado sobre molas de aço, com cerca de quatro metros de diâmetro por quase 60 de extensão, que através de caminhos tortuosos leva as peças, liberadas, devido à trepidação durante o percurso, da areia queimada dos moldes. Assim as peças chegam à Rebarba, onde o procedimento ter-mina. Contudo, muito do pó produzido (que deveria ir para os subterrâneos, despencando nas esteiras através dos funis de escoamento) acaba ficando nas entradas e nas saídas, que

Page 35: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

35

têm paredes de alumínio formando intervalos na tubulação que são chamados de pontos de checagem. Os pontos de checagem servem como observatórios, e foram montados para facilitar o acompanhamento das peças pela extensão do conjunto. São em número de três, e medem, em média, cinco por oito metros. É nos pontos de checagem que o pó mais se con-centra, acumulando-se em montes gigantescos aos pés do engenho, comprometendo as molas e acabando por ocupar demasiadamente o reduzido espaço. Limpar as entradas e saídas do tremulador significa trabalhar num local apertado, rastejando sob metal entrela-çado, tendo de tomar cuidado com a cabeça (que pode receber uma eventual pancada, oca-sionada pelo vai e vem da máquina), sob nuvens de fuligem que sufocam pelo calor e pela abundância. Na Hades, dificilmente encontra-se tarefas limpas para serem feitas; mas, quando são extremamente sujas, somos nós que executamos. Trabalhamos um pouco, e uma hora depois eu disse a Edward: “Eddie, que acha de tomarmos um leite na Moldagem? É mais de oito horas, já deve ter chegado.” Ele fingiu que pensava por uma fração de segundo, e respondeu: “Demorou. Louie e o velho podem ir depois.” Avisamos os outros dois e saímos do ponto de checagem. Estávamos pretos. “Estou prestando vestibular para crioulo”, brinquei eu. “E você?” Edward riu, depois imi-tou alguém falando sério, mexendo nos óculos: “Eu não. Sou o professor.” Caí na gargalhada, e estávamos já chegando na Moldagem. Ali há painéis de con-trole limpos e equipamentos modernos, por fazer parte das dependências visíveis da fábri-ca. Homens engravatados, com paletós encobertos por jalecos, portando feições européias e cabelos divididos ao meio e crachás sempre visíveis circulavam muito por ali, olhando para nós como se fôssemos criaturas das sombras, aliás, apenas sombras. E éramos real-mente sombras. Quando lavávamos o rosto, a sombra ficava ao redor dos olhos, e aí pare-cíamos com prostitutas. E então nos considerávamos prostitutas baratas, pois vendíamos por bagatelas nosso tempo e nosso esforço. E os homens de jaleco nos ignoravam, conver-sando e apontando para as máquinas como se as máquinas fossem muito mais importantes. Ao menos, eram mais caras... lá isso eu tinha de concordar. Ás vezes ficávamos olhando para eles, e uma vez peguei Louis olhando e parecia um cachorro triste, como aqueles ca-chorros que passam tamanha tristeza nos olhos que nos entristece também, só de olhar para eles. Cachorros que geralmente estão com fome. Nos aproximamos da garrafa de leite e vemos Minos tomando café preto. “Estão limpando o tremulador?”, perguntou ele. “Já estava na hora. Aquele pó estava quase alcan-çando o teto!” Minos é simpático, apesar de grandalhão. É maior que Éaco, que também é grande, e tem ombros maciços e braços poderosos. Parece um campônio russo de vídeo game. Ao contrário do que possa parecer, come muito pouco, não chegando a um décimo do que regularmente comemos no almoço. Via de regra, devora hortaliças. Minos se afasta, e Edward diz com bigodes de leite: “Sabe por qual razão Minos pediu a Éaco que pedisse a Radamanto que limpássemos o tremulador?” Eu nem mesmo sabia que ele havia pedido que alguém pedisse. “Não”, disse eu, “nem imagino. Talvez Éaco devesse algo a ele.” Edward deu mais um gole no leite, e fez: “Uuh! Quase acertou. É quase isso. É o seguinte: Minos desentendeu-se com Radamanto na última reunião. Éaco me contou tudo, enquanto jogávamos buraco. ‘Vamos dividir os limpadores de túnel’, pro-pôs ele, ‘o velho e El continuarão trabalhando nos subterrâneos, e Eddie e Louie na parte de cima, um nas proximidades da Moldagem e o outro na Central de Areia.’ ‘Está brincan-do?’, objetou Radamanto. ‘Os caras não vão dar conta! Já há muito serviço lá em baixo.’ Então Minos fincou pé e queria que seu ponto de vista fosse respeitado pois era velho na firma, quase trinta anos. Você sabe, quando entrou era praticamente garoto. Aí Radamanto

Page 36: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

36

se ofendeu e disse que apesar de ser mais novo era mais competente e cuspiu na cara de Minos que ele havia tirado férias antecipadas e aí a coisa ficou feia, quase deu briga. Daí Minos, que realmente não gosta de solicitar diaristas para seu setor pois não quer se envol-ver com isso, e que não queria ter de pedir nada a Radamanto depois do desentendimento, vendo que o tremulador precisava de uma limpeza desesperou-se e pediu a Éaco que pedis-se a ele, para evitar a humilhação. Daí Éaco pediu para que eu falasse com Radamanto, mas isso você mesmo viu.” Edward deu mais uma golada, e lançou o copo plástico ao latão de lixo. Devia estar com a goela seca, após ter falado tanto, pois propôs: “Vamos tomar água?” Concordei e nos dirigimos ao bebedouro. Radamanto, que estava passando por ali, nos chamou. “Dei-xem de conversar no expediente, rapazes. Eu não ligo, vocês sabem, mas os outros pegam no meu pé. Funciona assim: sempre que alguém vê vocês batendo papo, o tal filho da mãe vai até o gerente e reclama. Aí o gerente me chama na sala dele e me passa um sabão. Em seguida, pede que eu tome uma providência. Então, o que iniciou com a inocente conversa de vocês vira uma outra conversa, mais hostil, que sou obrigado a ter com vocês na sala da Manutenção. Entenderam?” Entendemos, é lógico. O ponto positivo de Radamanto é que ele explicava muito bem as coisas. Bebemos água apressadamente e voltamos ao trabalho. “Vocês demoraram”, disse azedo o Sr. Johannes. “Onde estavam?” Edward não respondeu. “Bebendo água”, expliquei eu, “Radamanto nos segurou. O senhor sabe, ele é cheio dessas coisas.” O velho se satisfez. “Tudo bem. Ei, Louie, vamos beber leite!”

Eles foram, deixando-nos a sós. “Não gosto desse velho”, resmungou Edward. “É uma cobra.” “Cobra?” Não havia entendido. “Um alcagüete”, esclareceu ele. “Dedo-duro. Ele finge que é santo, mas a mim não engana. Sei de tudo que acontece na Hades.” Era verdade, Edward talvez estivesse certo. Havia notado a má índole do velho, sabia que ele era inteiramente capaz de ser um canalha desse naipe. Os dedo-duros costumam entregar seus companheiros, pensando, com suas cabeças de vento, que assim seguram seus empre-gos. E em geral dá certo, pois a coisa é institucionalizada. Supervisores fazem fama assim, chegando até a diretoria. O próprio gerente havia trabalhado na área de produção, décadas atrás. Mas eu ainda não conseguira aceitar que um velho como o Sr. Johannes, que apesar de demonstrar seu sadismo natural era um sujeito boa-praça, pudesse dedurar a mim, ao Louis e ao Edward, seus companheiros de pena. Sim, pois trabalhar ali era como cumprir trabalhos forçados por pura opção. E como subiria na firma? Era ignorante, quase um anal-fabeto. Que ambições poderia ainda manter? Velho e leviano, prestando atenção apenas nas coisas mais pequenas da vida. Era difícil aceitar que uma velha carcaça como aquela pudesse conceber algum futuro na Hades Metalúrgica. Edward, apesar de julgá-lo bem, sofria de paranóia. “Não acredito muito”, afirmei. “O velho é meio filho da mãe, mas não teria cora-gem de fazer isso. O alcagüete é uma forma de vida que está entre a ameba e o protozoá-rio.” Edward estranhou. “O que são isso?”, perguntou, e não pude evitar o riso. “Isso são criaturas do tamanho dos grãos de pó que há no Gogó do Diabo. Bem pequenos, microscó-picos.” Ele entendeu. “Ah, micróbios! Sei muito bem o que são micróbios. Causam doen-ças. Doenças como o desemprego, por exemplo.” Gostei bastante da analogia. “Eddie, vo-cê é impagável”, e bati em seu ombro. Louis e o velho retornavam.

Page 37: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

37

Dos cadernos de poesia queimados:

O idólatra

Sou idólatra. Escuta, Ó Deus!

Sou idólatra.

Sou idólatra, sou idólatra Idolatro minha essência, sou idólatra

Idolatro minha vida, minha morte Sou idólatra.

Mas como a idolatria

É algo inerente ao ser humano Não sou culpado. Sou idólatra

Mas não sou culpado!

Ouviste isto, Ó Deus? Estou me absolvendo. Rezarei

Mil poemas de minha lavra E estarei de novo puro. De novo puro!

Puro para a lama, puro Para a orgia, puro para

Novamente me espojar na poeira Que sou. Sou idólatra

Idólatra do pó que sou.

E Tu, Ó Deus, que não permites Imagens que de Ti façam idéia

Não fazes idéia da imagem Que de Ti faço. E queres, ainda assim

Que eu Te adore? Supremo Tolo!

Não adorarei uma imagem que não possa Ser imaginada! Não adorarei uma consciência

Livre de substância! Nada há de puro Nas consciências sem um corpo!

Dizem que Te fizeste Carne, e cá desceste

E morreste, ascendeste, aí estás Entretido com a mudança que causaste.

Que mudança? Ainda sou idólatra

Page 38: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

38

Meu vizinho é idólatra, meus amigos O cachorro que não tenho é idólatra Os pássaros, as moscas, os vermes!

Pois todos idolatram a matéria, e não há

O que idolatrar afora isso. E quem não idolatra Está morto! Está morto como um ídolo Que não é mais que uma idéia antiga

Pegando poeira. Pegando poeira, compreende?

Continuarei a idolatrar minha essência E não juntarei poeira, não

Até que esteja morto. E depois Que importará para mim a poeira?

Como Tu, Ó Deus, serei consciência

Sem corpo. Consciência no papel Se papéis restarem. Do contrário

Terei sido apenas o idólatra que idolatrou A banalidade de idolatrar a banalidade.

Page 39: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

39

Capítulo VIII

Da arte dos palhaços

Depois do almoço, Radamanto nos reuniu e comunicou: “Quando for quase duas da tarde, digamos, quando estiver faltando dez minutos, quero que vão ao banheiro e dêem uma boa lavada na cara. Haverá uma palestra no Centro de Treinamento, e dei um jeito de encaixar vocês no grupo. É coisa sem importância, sobre saúde ou coisa parecida. Ficarão uma hora sentados, assistindo as momices dos dois palhaços que contrataram para divertir os chefes. São cômicos que chamaram de fora para representar um texto relacionado com o tema da palestra, alguma espécie de ‘peça burlesca e didática’, como informou o gerente. Sei lá. Só sei que eu não vou. Não sou muito ligado em circo. Vão, e depois me contem o que aconteceu.” Ficamos contentes. Uma hora inteira sem trabalhar parecia um sonho impossível dentro da Hades. Mas então Radamanto dava um jeito e zum, a coisa acontecia, o imprová-vel tornava-se para as duas horas da tarde. Uma animação produtiva nos acometeu no tremulador (resultado indiscutível do bom humor que o informe causou em nós), e acabamos de limpar tudo bem antes das duas. Era uma e vinte. “Temos meia hora”, o Sr. Johannes avisa. Quer dizer que devemos arran-jar algo para fazer. “Vamos para os túneis”, propõe Louis, que acha que não há melhor lugar para se proteger dos olhares indiscretos dos supervisores. E tem razão. Nenhum su-pervisor desceria aos subterrâneos, nem mesmo se dobrassem seu salário. De modos que seguimos em fila indiana, pás nos ombros, como espingardas, atravessando entre os res-pingos de aço incandescente que corriam pelo chão, furiosos, fugindo de dentro de enor-mes panelas que saíam da Fusão. Os fornos borbulhavam respingos também, lançando-os a distâncias fenomenais no espaço, parecendo nervosos vulcões artificiais ou curiosas esfin-ges flamantes com as bocarras escancaradas, alimentadas com pequenas pirâmides de ferro gusa, cujas migalhas ardentes vomitam quando engasgadas. Descemos os degraus para os túneis e nos separamos. Eu e Louis nos dirigimos para o lugar que apelidei de Letes (o rio do esquecimento); pois ali, às vezes, puxávamos algumas sonecas. É um espaço de três metros quadrados, onde por uma saída de ar pode-mos divisar um pouco da luz do sol que aparece filtrada e gasta após ter atravessado tantas estruturas escuras e empoeiradas. Localiza-se na junção entre o setor 4 e o setor 5, onde um dos conjuntos de esteiras impulsionadas por roletes recebem o pó do tremulador através dos funis de escoamento, despejando-o em outras esteiras que, seguindo em sentido diver-so, levam-no de volta à Central de Areia, onde parte dele é aproveitado e parte descartado. O processo é comparável à coprofagia, onde o sujeito engole seu próprio excremento. Mas, em se tratando da Hades, isso era normal. Sentados no chão poeirento, nos reclinamos junto às paredes do Letes, cerrando confortavelmente os olhos. Embalados pelo ruído pouco melódico dos motores, deixáva-mos muitas vezes os pensamentos abandonarem o estado comum de vigília e sobrevoarem o campo dos sonhos, vislumbrando paisagens irreais que costumamos encerrar no cofre do espírito. Mas não podíamos dormir, Louis e eu, pois dispúnhamos de pouco tempo. Então, para que não caíssemos no sono, resolvi entabular uma conversação.

Page 40: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

40

“Louie”, comecei, “que tipo de palestra será essa que vão dar? Será que vão permi-tir que falemos, que formulemos questões?” Ele virou a cabeça de onde estava e, com sua voz monótona e lenta, disse: “Acho que eu, mesmo que pudesse, não falaria nada. Nada do que eu poderia dizer mudaria o que já é.” Uma posição realista, mas conformista demais. “Não concordo a longo prazo”, opus. “As coisas podem não mudar imediatamente: mas o coração das pessoas é maleável, como a argila. Se você umedece-la um pouco, e tiver paci-ência, dará a forma que quiser a ela.” Louis ficou interessado. “E que líquido amoleceria o coração das pessoas?” Pensei um pouco. “Todo bêbado tem o coração mole, não tem?” Ele concordou, pois entendia bem do assunto. O coração embriagado entrega tudo que tem aos amigos, e mesmo a desconhecidos simpáticos. O bêbado conta detalhes íntimos de sua vida a qualquer um, empresta dinheiro, paga bebidas e depois se arrepende, quando está sóbrio. Se as pessoas estivessem em constante estado de embriaguez, seriam sempre generosas. “Deve-se embriagar o coração das pessoas primeiro”, tentei explicar para Louis, “fazer com que suas palavras deixem-nas entorpecidas. Aí, quando as idéias que suas palavras passarem a crescer dentro delas, agirão, não de acordo com sua vontade, mas conforme o germe de sua compreensão. Cada idéia concebida germina de forma diversa, Louie, e há várias interpretações e reações, que variam de pessoa para pessoa.” Louis estava um pouco confuso. “Nossa”, exclamou ele, “você devia dar aulas, El!” Olhei para o relógio de pulso, e fiz notar que faltavam quinze minutos para as duas. “Vamos subir?”, convidei, e Louis retrucou: “Vamos chamar os outros antes.” Encontramos Edward e o Sr. Johannes, que estavam no Setor 7, e subimos para o ar livre de nossa prisão. No banheiro, enquanto tirávamos as camisas e sacudíamos os cabelos e limpávamos os olhos cheios de pó, fazíamos piadas uns com os outros. Edward, que usa óculos grossos, tirou-os e os pôs na beirada da pia, para lavar o rosto. Sem que ele perce-besse, peguei-os e os enfiei no bolso da calça, continuando a me lavar na pia ao lado. Ob-servei que ele terminava, e fiquei aguardando o momento em que perceberia que os óculos não estavam mais onde deixara. Mas ficou tateando o local, e então percebi que era quase um cego sem os óculos. Instantaneamente me arrependi de ter feito a brincadeira. “Aqui estão”, e entreguei-os a ele. “Desculpe-me senhor, não sabia que era uma toupeira.” Todos riram, inclusive Edward. Mas eu não gostara do que fizera. Sentia-me inva-sivo e cruel. “Ei, Eddie, não me leve a mal. Não podia imaginar que seu caso fosse grave.” Ele riu. “Não se preocupe, El”, animou-me, “às vezes até me aproveito disso. É bom poder não enxergar a cifra nos recibos de pagamento.” Entendi a vantagem. Acrescentei: “Tem razão. Além disso, não vê a cara feia dos credores. A menos que queira!” Chegando ao Centro de Treinamento, arrumamos umas cadeiras na terceira fila. O espetáculo ia começar, as pessoas se acomodavam e trocavam impressões, interessadas em saber como seria aquilo. O tema seria: “O stress e as relações de trabalho”. Algum tipo de emissário aparece, trajando roupas esquisitas, recitando em falsete: “Cá encenaremos, nes-ta tarde, a curiosa relação entre um patrão esclarecido e seu amigo funcionário. O funcio-nário é um pouco tolo, mas verão que suas questões ao patrão amigo têm um fundo de ra-zão. O patrão a tudo esclarece, sendo compreensivo com a ignorância de seu empregado mais querido. E assim, falarão do stress, o vilão de nossa história. Peço a todos que pres-tem bastante atenção aos diálogos, e divirtam-se!”

A cortina é erguida, e vemos que o cenário é composto de uma escrivaninha velha, com um pequeno busto em bronze de Napoleão sobre uma pilha de papéis. Sentado numa cadeira está um sujeito alto e esguio, vestindo paletó muito apertado e uma gravata lon-guíssima, que joga nas costas o tempo todo. Seus pés apoiam-se na escrivaninha, as pernas

Page 41: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

41

erguidas, a cadeira reclinando para trás com o peso, escorada na parede. A impressão pas-sada é de relaxamento. A seu lado, de pé, está um gordo baixote vestindo roupas caracterís-ticas de operário. Traz na mão esquerda uma chave inglesa, que fica brandindo no ar, como se fosse uma espada. Ambos trazem os rostos pintados. O alto, de feições aristocráticas, usa uma peruca ruiva engomada dividida ao meio, bigode artificial negro e o rosto branco enfeitado com cores leves, como rosa e amarelo. O gordo usa uma peruca preta desgrenha-da, cavanhaque felpudo torto e cores mais fortes no rosto, como o vermelho e o roxo.

O patrão olha tranqüilamente para o funcionário, que parece muito atarefado em sa-cudir a chave, e indaga: “Quanto tempo faz que está aí?” O gordo, sem deixar de fazer o que está fazendo, volta a cabeça para o palhaço chefe, dizendo: “Duas horas, já. Será que devo parar?” O palhaço chefe levanta-se, chega mais próximo dele e diz: “Mas é claro. Você deveria estar evitando o stress.” O gordo pára, embasbacado. Depois, afirma: “Eu não faço essas coisas aqui. Se fizesse, me mandaria embora.” O patrão ri. “Então você não sabe o que é stress? Significa pressão, e relaciona-se com as obrigações que temos de cumprir regularmente, e também com outras, às quais ainda não nos acostumamos inteira-mente. Digamos que, usando você como exemplo, eu lhe peça para coçar minhas costas... Não é um serviço com o qual está familiarizado; ou é?” O empregado benze-se: “Deus me livre! Se pedisse isso, eu mesmo me demitiria, patrão!” O chefe sacode os braços erguidos, exclamando: “Exatamente!” Mais contido, explica: “O stress é o sentimento de pressão que faz você acabar tomando decisões erradas. Se um sujeito xingasse você, o que faria?” O gordo pensa por algum tempo, uma mão no queixo, a outra atrás do cotovelo. Então seu rosto fica iluminado, e responde: “Xingo ele!” O chefe acha graça. “Mas imagine que o cara é enorme e te dá um murro no olho. Você terá um olho roxo e a culpa será do stress, que te fez xingar o grandalhão. O stress pode ser benéfico, há pessoas que usam o potenci-al de seu stress para tomar decisões com mais rapidez. O próprio trabalho às vezes exige de nós um certo nível de stress, que vem do comprometimento do funcionário para com a empresa; mas não é desse tipo de stress que quero falar. É do stress que te fez xingar em resposta que vamos tratar aqui.” O empregado solta um riso tolo. “Se fosse um sujeito grande eu não xingava ele não, ia embora quieto. Pensa que sou tonto?” O chefe é categó-rico: “Não, você não entendeu! Aquilo era apenas hipotético!” O gordo faz cara de esclare-cido. “Ah, isso eu sei muito bem o que é! Uma vez, vi um montão deles!” O patrão estra-nha. “Como? Viu um monte de hipotéticos? Onde?” O funcionário diz: “No zoológico.” E o chefe, desanimado: “Não seriam, por acaso, hipopótamos?” O funcionário nega com gi-ros de cabeça. “Eu estava falando dos filhotes, patrão!”

Quase toda platéia riu; mas devo confessar que aquilo começava a me enfadar. De-sejei estar nos túneis, fazendo o serviço, ao invés de estar ali, perdendo meu tempo com aquela besteira. O teatro seguiu, com o chefe palhaço tentando explicar para o funcionário palhaço que o stress podia causar complicações cardíacas, discussões, acidentes e uma gama de outras tragédias, ao que o outro sempre respondia com gracinhas e disparates. Olhei para o Sr. Johannes. Estava dormindo, e Louis também. O chefe dirigia-se ao públi-co: “Não posso suportar tamanha ignorância! Algum de vocês teria uma pergunta menos idiota? Se tiver, terei prazer em responder. Este meu funcionário é um relapso, e só o man-tenho comigo por sermos amigos de infância. De outra forma, já o teria dispensado! Mas, como podem perceber, domino meu stress...” Ninguém parecia disposto a perguntar coisa alguma, e eu já estava começando a ficar estressado de tanto falarem em stress. O Sr. Johannes e Louis dormiam como galinhas em seus poleiros. Ergui-me e perguntei: “Excesso de sono pode causar stress?” O chefe

Page 42: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

42

palhaço fitou-me, e percebi um brilho estranho em seu olhar. “Boa pergunta!”, gritou ele. “Excesso de sono causando stress, devo ter algo parecido em meus relatórios... Espere um momento.” Afastou-se para a escrivaninha, onde pôs-se a mexer nos papéis que estavam sob o busto de Napoleão. Pegando um deles, voltou dizendo: “Sabia que estava lá! Bem... como se chama mesmo?” Eu continuava ali, de pé. “El”, respondi. “El Tropius.” O chefe palhaço amassou o papel e o jogou para o lado. “Ah, El, é claro! Eu havia me esquecido... O que havia perguntado mesmo?” Estressante. “Sobre muito sono e stress”, disse rapidamente, e me sentei. “Sim!”, o chefe berrou, “Isso mesmo! Sono e stress, sono e stress... não sei. Mas diga: como lida com o seu stress, meu caro?” Eu fazia uma pergunta e ele respondia com outra. O palhaço, com suas palhaçadas, queria me envolver em todo aquele esquema circense. “Procuro não ficar falando muito em stress”, respondi. “Contornar o problema não é a melhor forma de resolve-lo, meu amigo. Note, por exemplo, meu excepcional funcionário.” Apontou o esta-fermo, que havia sentado na cadeira e brincava com os papéis, fazendo aviõezinhos que displicentemente lançava para o alto, observando feliz as voltas que faziam no ar. “Entende o que eu quero dizer? Ele ignora todas as regras da boa conduta, não dispõe de meios inte-lectuais para entendê-las e nem procura aprender. Está sempre brincando, e só dá ouvidos aos berros. Quer ver?” E voltando-se, gritou enérgico: “Funcionário!” O gordo quase caiu na cadeira. Veio correndo e parou ao lado do chefe, como um cão ensinado. “Sim, pa-trão?”, murmurou com solicitude. O chefe palhaço respondeu: “Nada não. Pode voltar ao que estava fazendo.” E voltando para mim: “Viu? É uma besta movida a stress. Um dia desses terá um ataque cardíaco, ou se envolverá em alguma discussão violenta, ou então eu mesmo darei cabo dele. Não sabe lidar com seu stress, nem quer aprender. Agora, volto a perguntar: que faz para aplacar o seu stress?” Começava a melhorar. O chefe sabia improvisar, e apesar de normalmente não a-preciar muito despertar a atenção dos outros sobre minha pessoa, sentia-me disposto a par-ticipar daquela encenação. “Costumo escrever”, tornei, “despejar no papel minhas frustra-ções. Acha uma boa maneira de controlar o stress?” O palhaço abriu os braços, parecendo extremamente satisfeito com a resposta. “É um poeta! Que raro, um poeta, um poeta!” Faz gestos para seu funcionário palhaço, que se aproximou timidamente. “Funcionário, já viu um poeta?”, fala, apontando para onde eu estou. “Isso aí é um poeta? Pensei que os poetas só existissem nos livros!” Parte da platéia riu; a outra acordou. O Sr. Johannes e Louis abriram os olhos, as-sustados, e fingiram que prestavam atenção. E eu também repentinamente acordara, e en-fim percebera que os dois palhaços eram Grumus e Vurmus, os atores itinerantes conheci-dos em casa de Hippolitus. Grumus era o mais esperto, e Vurmus fazia o papel do imbecil. Lembrei-me do vexame daquela noite, e um princípio de rubor agitou-se em meu rosto... Mas pensei: “Aqui são apenas palhaços, estão descaracterizados; assim como eu sou aqui apenas um limpador de túneis. Não somos nossas reais pessoas.” De forma que os inter-rompi: “Com licença”, atalhei, “poderia responder uma última questão? Acha que poesia causa stress?” Uma pergunta cuja resposta é óbvia; e foi aquela que Grumus, o chefe pa-lhaço, devolveu: “A poesia é fruto de uma maneira muito particular de aliviar o stress, a maneira poética. A poesia é uma espécie de solução momentânea para grandes problemas, na maioria das vezes, maiores que nós. Como problemas existenciais. Quando o poeta lan-ça seus poemas ao papel, encarcera ali os seus problemas. Estão ali, como um cálculo qua-se solucionado. Ele tenta explicar para si próprio o modo mais indicado de se relacionar com o mundo. E ao faze-lo, deixa para trás a marca das pegadas, dos passos que seguiu

Page 43: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

43

para viver... É tão bonito, não é mesmo, funcionário?” Vurmus faz cara de choro. “Sim, patrão. E é também a coisa mais linda que o senhor já disse nesse mundo inteiro...” Gru-mus o repreende: “Não adianta me bajular, funcionário, não darei aquele aumento que me pediu. Tem sido um vagabundo. Vamos logo, incompetente, volte ao trabalho!” Vurmus sai chutando o ar, gingando o corpo com as mãos unidas frente ao traseiro. Vai até a escrivaninha e pega a chave inglesa, que ali deixara, e volta a esgrimi-la, impon-do na expressão um convincente aspecto de enfado. “Poeta, que tal se declamasse um po-ema para a platéia?”, diz então Grumus, o chefe palhaço, sem parecer se importar com o que acontecera na casa do pintor. Sentira-me muito mal após aquela noite, pensando na atitude indelicada que cometera ao sair sem me despedir de ninguém, daquela forma in-tempestiva.

“É claro!”, concordei, pois pretendia me aproveitar da despersonalização para tentar remediar a má impressão que causara, ao menos nos dois atores. “Recitarei um soneto de certo poeta português caolho, um tal de Camões, que fala de como esse mesmo poeta enca-rou o stress da morte de sua amada, e de como aliviou-se de sua inconformidade para com o fato. O soneto é assim: Alma minha gentil que te partiste Tão cedo desta vida descontente Repousa lá no céu eternamente E viva eu cá na terra sempre triste. Se lá no assento etéreo onde subiste Memória desta vida se consente Não te esqueças daquele amor ardente Que já nos olhos meus tão puro viste. E se vires que possa merecer-te Alguma coisa a dor que me ficou Da mágoa sem remédio de perder-te Roga a Deus que teus anos encurtou

Que tão cedo de cá me leve a ver-te Quão cedo de meus olhos te levou.”

Não declamara muito bem, mas Grumus puxou as palmas da platéia e então tudo ficou animado, até Vurmus largou da chave inglesa para aplaudir. “Obrigado, senhor poeta, foi muito esclarecedor”, disse o chefe palhaço, preparando-se para atender à próxima ques-tão. E a palestra cênica prosseguiu, sem contar com minha direta intromissão.

Page 44: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

44

Dos cadernos de poesia queimados:

Sonetos fatais I

O sofrer é o esperma Que fecunda o pensamento

Do Poeta. Esta enferma Maneira de ser alimento.

Enferma forma de ver

Poeta, que a tudo observa Servo da Palavra. Conter Em si fatalismo de erva.

O fatalismo das flores

Que cortadas, se reservam Ao frio vazio dos vasos.

E mortas mantêm suas cores Levando a sentimentos rasos

Os tolos que as observam.

II

Dizem que, após cortadas As flores vivem ainda

Se em água mergulhadas. É mentira. Tudo finda

Após o corte da faca. Separadas das raízes A Tristeza as ataca:

Apenas parecem felizes.

E o vaso, que as sustém É como corpo que prende

A alma, e a mantém

Segura. Nada entende Dos desejos que ela tem Das raízes que pretende.

Page 45: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

45

Capítulo IX

Espetáculos do pó Depois da palestra, retornamos ao trabalho. O resto do dia decorreu facilmente, e às cinco horas saímos todos para aproveitar as sobras do dia. Uma aura negra podia ser vista a certa distância, toldando a feia imagem da Hades. Espetáculos de pó envolvem os antigos barracões, tornando-os o palco perfeito para tragédias, comédias e solilóquios existenciais. Sentia-me como o ator cujo papel exige demais de sua técnica. A vida é o mais longo papel que um ator pode interpretar, e todos nos tornamos atores vivendo e desenvolvendo uma técnica para isso. A técnica de viver, como qualquer outra técnica, exige de quem a pratica a maior entrega possível. Só assim torna-se apurada, fazendo de quem a desenvolve um mestre. Mas eu era apenas um aprendiz. A cada dia, mais e mais coisas somavam-se às coi-sas que eu ia catando pelo caminho, sempre atento, para um dia delas fazer uso. Coisas que o vulgo acha desinteressantes, como o fato de o pôr do sol ser maravilhoso, o meio anel esplendoroso da Via Láctea durante uma noite estrelada, o lirismo de um velho motor em funcionamento gemendo dentro da penumbra, no calor calmante dos túneis de uma meta-lúrgica em ruínas. Impressões apenas, mas impressões captadas pelo que normalmente chama-se alma, a essência particular de cada ser. A linguagem da alma, dizem alguns, é a poesia. É através da poesia que apreendo o mundo e devolvo minha compreensão, plena-mente compreensível para mim, mas muitas vezes difícil para outros seres humanos. A linguagem da poesia é uma forma cifrada de expressar o que sente a alma. Se a alma de quem lê não vibrar de acordo com a alma de quem escreveu, a luz não se estabelecerá e a compreensão não será alcançada. Certos poetas, para se fazerem entender melhor, sacrifi-cam a idéia pela forma. Significa falar diretamente aos desejos do leitor, sem querer ex-pressar, digamos, uma noção melancólica; pois a melancolia, como todos os sentimentos considerados negativos, fala à alma e desperta nela ela mesma. Explicando melhor: faz a alma consciente de si, pois todos ficamos melancólicos quando pensamos na morte, imagi-no; então lembramos que possuímos uma alma e de sua pretensa imortalidade. Mas deixemos desse papo de poesia, e prestemos mais atenção nas pessoas. Obser-vemos meu amigo Alexander Lisandrus. Lisandrus, que exerce as funções de pintor de paredes, alimenta o sonho de ser escultor. Tem alguns trabalhos em madeira no seu currí-culo, que guarda em sua casa com veneração, mas queixa-se da pouca aceitação de sua arte. “As pessoas elogiam, dizem que é bonito e tudo, mas quando ofereço-me para con-feccionar uma cópia, e comunico meu preço, acham caro e se afastam da idéia.” Desilude-se. “A arte é supérflua.” E não produz por um bom tempo. Erck e eu vamos sempre à casa de Lisandrus, que é meu vizinho. Lá discutimos sobre os rumos da Música, da Literatura, da Pintura, do Cinema e demais áreas do conhe-cimento artístico. Não que sejamos cultos como ratos de biblioteca, ou como aqueles estu-dantes bitolados em decorar livros inteiros. Mas expomos nossas opiniões uns para os ou-tros e sempre respeitamos nossas diferenças, como deve ser entre amigos. São oito da noite quando escuto chamarem lá fora, no portão. Estou em casa, enfia-do em meu casulo. Saio para ver quem é e dou de frente com Erck e Lisandrus, que pare-cem dispostos a me desentocar. “El, vamos lá em casa”, diz Lisandrus. “Erck trouxe um

Page 46: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

46

filme para assistirmos, e podemos comprar uma cervejinha.” Não fico muito animado, mas aprovo a idéia. “Tudo bem. Esperem que vou pôr um casaco.” Saio e vamos até o bar, onde encontramos Louis. “El, que surpresa!”, espanta-se ele, pois sabe que não costumo freqüentar bares durante a semana. Há um leve empecilho nesse encontro: meus amigos de fora não simpatizam muito com meus amigos de dentro da Hades... É que os sujeitos da Hades, aparentemente, desistiram de qualquer dignidade hu-mana, expondo-se da forma que são aos olhos do público, ou seja, com toda carga que im-plica estar comendo da banda podre da vida. E os de fora, vendo a realidade de miséria que se desprende deles, achavam-nos desagradáveis, como uma pessoa sadia vê com repugnân-cia alguém atacado de lepra. Não posso deixar de concordar com os de fora, assim como também não posso criticar o modo de ser dos que estão dentro; afinal, faço parte das duas realidades. Eu sei dos rigores a que somos submetidos dentro dos limites da Hades, conhe-ço as razões que levam uma pessoa à ruína social. Eu sei da luta que é ter de ostentar uma personalidade séria, que passe confiança à sociedade. E nessa corda bamba estou eu, equi-librando-me entre dois abismos. O da direita é o buraco da personalização da realidade exterior, a total aceitação da realidade externa de quem vive. A pessoa torna-se superficial, divagando sobre os temas mais corriqueiros e banais da atualidade. O da esquerda, o mais profundo, é o caminho da personalização interna, quando vive-se a realidade de seu pró-prio interior, criando uma personalidade tridimensional, mais definida. São pessoas que debatem sobre assuntos polêmicos, que causam impressões autênticas, divergentes da rea-lidade comum. Como as personalidades de meus amigos de fora da Hades. Louis, com seu dentinho amarelado brilhando na luz mortiça do boteco, pede mais uma cachaça ao dono do bar. Erck espera o proprietário atender Louis, e depois pede a ele que empreste seis garrafas cheias de cerveja. Rubrus, o dono, já nos conhece faz tempo. Pega as cervejas e as entrega a Erck, tendo antes acondicionado-as em uma sacola plástica. Erck pega e paga, e nós íamos saindo quando Louis me barrou, empurrando o copo de pin-ga : “Espere aí, El! Não vai dar uma beiçada no Gole?” Louis pegou a mania de chamar aguardente de Gole com seus amigos bêbados, que são maioria em suas relações. Pelo menos, no que diz respeito às suas horas de folga. De maneira que peguei o copo, para não ser indelicado, e dei uma golada de acordo. Despedi-me de Louis, que sorriu com seu dente, pequenina lápide feita de marfim ordinário, posta-da como um antípoda por se achar enfiada de ponta cabeça em suas depressivas gengivas superiores. Lisandrus diria depois: “Como pôde beber no mesmo copo que aquele sujeito?” Eu olharia para ele e responderia: “Você não beberia no meu?” Entramos nos domínios de Lisandrus e subimos a escadinha que leva até o terraço, onde fica a casa. Entramos e a primeira coisa que fazemos é abrir uma das cervejas e pro-videnciar alguns copos limpos. Sentamos no sofá da sala, e Erck pôs a fita no aparelho. “É um filme da extinta Iugoslávia”, informa ele. “O nome é Undergroud.” Começamos a ver o filme, que logo de início me pareceu maluco. Há uma cena, onde um tratador de zoológico é surpreendido no serviço por um bombardeio aéreo, que me interessou muito. Agarrado a um chimpanzé, corre desesperado entre o estouro das bombas caindo, vendo animais serem mortos. Mas o diretor deixa claro no início da se-qüência que os animais pressentiam a tragédia, pois os mostra acuados em suas jaulas, e um alarido de rugidos e chiados de todos os bichos assusta o tratador antes do ataque. O tratador não compreende a mensagem, mas o silvo dos aviões soltando as bombas deixa isso patente pouco depois. Há takes comoventes de macacos agindo de forma quase huma-na em meio à morte, animais desesperados em suas jaulas, tentando desesperadamente es-

Page 47: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

47

capar, e a imagem marcante de um cisne ferido junto a um leão assustado, que faz pensar em irmãos de desventura sofrendo unidos.

“E morará o lobo com o cordeiro, e o leopardo com o cabrito se deitará; E o filho do leão e a nédia ovelha viverão juntos, e um menino os guiará.”

Palavras de Isaías, um velho profeta. Como alcança longitude o pensamento huma-

no, como atinge paragens remotas sua alucinada perspicácia! Lá estava eu, apreciando o espetáculo do pó que se erguia enquanto o pobre tratador, que sofre de um certo retarda-mento mental, guia o filhote de macaco através do caos, ambos observando toda aquela destruição sem revolta, apenas com medo. O filme é a história de uma família que se es-conde num porão durante a invasão alemã. Só saem de lá depois que a Iugoslávia já aca-bou, de forma que ocorrem casamentos, nascimentos, mortes e tudo que se relaciona com a vida humana naquele subterrâneo, adaptado para hospedar muitas pessoas. Um inescrupu-loso tira proveito de seus ocupantes, que devido a situação fabricam armas para combater os inimigos. Todos pensam que lá fora continua a guerra, pois foram tolhidos de qualquer informação sobre as condições externas pelo bandido, que ganhará muito dinheiro venden-do as armas feitas por eles no mercado negro. É uma metáfora sobre a desinformação, e dos lucros que dá aos que a impõem; assim penso eu. Assistimos o filme todo, e meio embriagados pela cerveja começamos a discutir sobre a possibilidade de produzirmos um curta-metragem. Erck nunca abandonava uma idéia; apenas a guardava no refrigerador, como fazemos quando queremos que uma bebida fique logo fria. E para ele estava no ponto, pois dizia: “Creio que podemos usar seu roteiro, El; o meu não ficou muito bom, acho que sou muito crítico com meu trabalho. O seu está mais simples, e a idéia é mais aplicável. Usou uma linguagem mais corrente também, com frases que podemos pronunciar naturalmente. Poderíamos encená-lo aqui, na casa do Li-sandrus, que permite uma boa ambientação. Mas para isso você precisaria fazer umas mu-danças, como transferir a ação para este local. E teria de encaixar o Lisandrus, que está fora da primeira versão... Não poderia escrever um novo roteiro, baseado na idéia anterior? A-cho que seria mais simples...” Eu havia despertado para a idéia. Tinha quase tudo já engendrado na mente, pois me achava entusiasmado com a criatividade do diretor do filme que víramos. O roteiro antigo do qual Erck falava era uma transa psicodélica um tanto surrealista sobre dois per-sonagens que tomam chás alucinógenos de cogumelo e beladona, tendo delírios visuais que seriam expressos pelos diálogos despropositados dos dois. Poderia ambientá-lo sem pro-blemas ali, e encaixar Lisandrus dentro do fácil papel de dono da casa, que receberia os dois loucos e se juntaria a eles nas beberagens. Só precisaríamos de uma câmera, mas isso Erck disse que arranjava. E Lisandrus aprovou e tudo ficou decidido: eu escreveria o rotei-ro e filmaríamos o curta-metragem, nem que fosse a última coisa que fizéssemos. Nos des-pedimos de Lisandrus e saímos para a noite. Na esquina, Erck despediu-se de mim, lembrando: “Não se esqueça do roteiro!” Acenei , dizendo: “Vou modificá-lo agora mesmo!” E voltei para casa.

Page 48: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

48

Dos cadernos de poesia queimados:

Um mero detalhe

Ele chegou de riquixá Um mero detalhe, um

Sorriso num canto Pagou ao chinês, acenou

Com a mão para o alto como se afogasse Então ajeitou sua mala às costas

E embarcou no navio que aguardava no porto (um soberbo galeão espanhol)

E das amuradas coalhadas de gente cinzenta Destacando-se com o lenço de prata trêmula

Lembrou das noites opacas Quando em mórbidos ares

O luar oprimia.

Não mais aquele pútrido despertar Da insônia insolente, no leito

Dolente e coalhado de pesadelos Pulgas brotando memórias ínferas.

O capitão

Elegante espectro trajando vermelho Saudou sem sotaque o saudável cigano Tolhendo a aba do quepe cristalizado.

– Desculpe doutor

Mas não compreendo o linguajar insulano E todos aqueles convivas cinzentos no convés

E essa decoração fora de moda, e esses Grumetes esqueléticos vomitando no mar

Enjoados de singrar impassíveis procelas...

Um mero detalhe, um sorriso num canto E fria matéria mofando ali

Junto das cascas de batata e outras Atividades mundanas, comer os sobrolhos

De outrem, não finja surpresa... A viagem começa onde o fixo termina.

Em triunfo, entre a carga, canhões

Disparando e a abordagem sorrateira Piratas com punhais entredentes e facas

Page 49: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

49

Saltando de proa a popa tal qual dançarinos Um circo, um cerco, um rico mercado

E barricas de melaço tombando O ouro, o brilho do ouro nos olhos

E as arcas repletas de barras Com a efígie da Rainha.

Atravessado pela cimitarra turca Em terras estrangeiras agonizar

– Céus! E nem sou clandestino...

Certamente esta não é A minha guerra, estou

Totalmente deslocado aqui, mas Morro e a morte é apenas uma

E todas ao meu redor.

E o negro de tapa-olhos No alto, no cesto da gávea No ninho do corvo, com

O olho bom preso na luneta E bem atrasado, porém ainda posso Ouvi-lo gritar na linguagem maruja:

– Ei-la! É terra! Terra à vista!...

Page 50: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

50

Capítulo X

Metamorfoseando roteiros

Chegando em casa, peguei um de meus cadernos surrados e procurei páginas em branco para começar a trabalhar no roteiro. Procurando o texto antigo, pus-me a analisar onde encaixaria Lisandrus ali, como usaria as características de seu quintal e demais de-pendências de sua casa para ambientar as cenas, como os personagens agiriam; mas em pouco tempo amassava os papéis antigos e decidia escrever algo diferente, transformando apenas a idéia básica em outra coisa. Imaginei um texto humorístico e segui um raciocínio de comediante, que tenta despertar risadas com a simplicidade do tema. Comecei poucos minutos depois das dez da noite; e quando os ponteiros aproximavam-se da meia-noite, tinha concluído. Ficara engraçado, com situações inusitadas e um final surpreendente. Pelo menos me pareceu assim; mas, para não torturar o leitor, que talvez fique curioso imagi-nando o teor de minha composição, transcrevo-a na íntegra logo abaixo:

Herdeiros do Estramônio

Cena 1: quintal / tarde O personagem 1 está sentado na escada. Parece desanimado. Com uma das mãos impor-tuna formigas que passeiam pelos degraus. Ouvem-se pancadas no portão. Personagem 1 (erguendo-se e indo em direção ao portão): Quem é? Não há resposta. O personagem 1 abre o portão, algo ressabiado. Personagem 1 (fechando a cara): Ah, é você. Personagem 2 (sorrindo): Sim. Esperava alguém? Personagem 1: Esperava. E não era você. Personagem 2: Nossa, que recepção! Mas veja o que eu trouxe... (tira uma garrafa do bolso do casaco) Personagem 1 (interessado): O que é? Personagem 2: Digamos que seja minha nova invenção. Vai revolucionar o mercado! Personagem 1: É bebida? Personagem 2: Não apenas bebida! Mas como me tratou mal... (finge que vai embora) Personagem 1: Ei, espere aí! (puxa o personagem 2 para dentro e fecha o portão) Personagem 2 (rindo): Calma! Só estava brincando! Personagem 1 (sério): Certo. Então, diz logo: o que é? Personagem 2: É uma mistura de xarope, plantas e cogumelos. Ainda não experimentei, mas acho que ficou bem forte. Personagem 1 (rindo): Você é louco mesmo! Personagem 2: E aí, vamos beber? Personagem 1: Vamos.

Page 51: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

51

O personagem 2 tira a rolha e toma um longo trago. Passa a garrafa para o personagem 1, que também dá um bom gole. Personagem 1: Puta merda! Que gosto ruim! (faz cara feia, devolvendo a garrafa) Personagem 2 (dá outro gole e oferece a garrafa): Quer mais? Personagem 1: Quero. Esvaziam a garrafa, jogando-a no gramado. Rindo, sobem os degraus, dirigindo-se para o interior da casa. Fade out.

Cena 2: sala / crepúsculo Os dois estão sentados no sofá, com cara de imbecis. Gesticulam sem olhar um para o outro, como se fizessem sinais para fantasmas. Personagem 2 (olhando a janela): Acho que tem alguém gritando. Personagem 1: São as lagartas. Personagem 2: Não, não são as lagartas. Acho que é alguém. Personagem 1: Lá fora? Personagem 2: É. Do outro lado do muro. O personagem 1 levanta-se do sofá, saindo do cômodo. Personagem 2 (falando sozinho): É difícil abafar o ruído sem usar as mãos... Passam-se alguns segundos. O personagem 1 retorna, acompanhado do personagem 3. Personagem 3 (nervoso): Eu sabia! Personagem 2 (calmo): Mesmo? Então nos conte. Personagem 1: Trouxe alguma coisa? Personagem 3: O de sempre. Tira uma garrafa do bolso do casaco, pondo-a sobre a mesinha de centro. O personagem 2 adianta-se na poltrona, olhando para a garrafa com expressão de espanto. Personagem 2 (apontando): Como conseguiu colocá-los aí dentro? Personagem 3 (voltando-se): O quê? Personagem 2: Os chimpanzés. Personagem 3 (indignado): Vocês já estão viajando? Droga, porque não me esperaram? Personagem 1 (indiferente): Você não vinha. Personagem 2 (idem): Não vinha. Personagem 3: Mas marcamos para a noite! Personagem 2: A noite veio. Personagem 1: Você não. Personagem 3 (mudando de tom): Vou tomar um gole. Querem?

Page 52: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

52

O personagem 3 pega a garrafa, abre e bebe quase a metade. Personagem 3 (pestanejando): Neste aqui eu caprichei! Personagem 1: É chá? Personagem 3: Beladona. Personagem 1 (estendendo a mão): Me dá um pouco. Personagem 2 (idem): Também quero. O personagem 3 entrega a garrafa ao personagem 1. Fade out.

Cena 3: área - quintal / noite Sentados em cadeiras ao redor da mesa, os três observam a parede. Música clássica (Ha-endel) tocando muito alto. Repentinamente, o som acaba. Personagem 1: Que aconteceu? Personagem 3: O rádio morreu. Personagem 2: Vamos sepultá-lo. Personagem 1: Acabou o CD. O personagem 1 levanta-se da cadeira e entra na casa. Personagem 2 (apontando a parede): Já reparou? A pele está descascando. Personagem 3: É, a situação está feia. O personagem 1 retorna. Escutam-se os primeiros acordes de Bach. Personagem 3 (para personagem 1): Ei, veja só. (aponta a parede) Está se desfazendo. Personagem 1 (espantado): Nossa! Personagem 2 (penalizado): É muita pressão. Personagem 1 (acusando): E vocês não fazem nada? Personagem 3: Não podemos. Personagem 2: Estamos de mãos atadas. Personagem 1 (resignado): Não creio. Mas já que o processo está em andamento, vamos observar. Eles olham mais um pouco. Personagem 2: Está saindo uma folhinha. Personagem 1 (procurando): Aonde? Personagem 2 (apontando): Ali, entre os seios. Personagem 3 (olhando): Seios? Nem tinha reparado. Personagem 2 (para personagem 1): São iguaizinhos aos da sua mulher, não são? Personagem 1 (surpreso): Que mulher? Personagem 3: Sua esposa!

Page 53: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

53

Personagem 1: Eu tenho uma esposa? O personagem 1 fica pensativo por um momento. Depois, ergue-se rapidamente da cadei-ra, com um olhar assustado. Personagem 1 (berrando): Porra, minha mulher já está para chegar! Vocês têm que ir em-bora! Personagem 3 (preocupado): Ela é muito brava? Personagem 2 (atrevido): Ela é bonita? O personagem 1 pega-os pelos colarinhos, levando-os arrastados até o portão. Personagem 1 (com firmeza): Saiam! Personagem 3 (tristemente): Pelo menos abra o portão. O personagem 1 abre o portão. Os dois saem. Personagem 1 (gritando): E não voltem mais aqui! O personagem 1 fecha o portão, soltando um suspiro de alívio. Personagem 1: Só assim para me livrar deles! Imagine só, acharem que eu sou casado! Dá alguns passos na direção da casa, interrompidos por novas pancadas no portão. Personagem 1 (voltando-se): Quem é? Voz feminina vinda de fora: Ora, deixe de brincadeiras! Sou eu! Close no rosto surpreendido do personagem 1. Fade out. Guardei o texto reescrito dentro do velho caderno e fui dormir. Logo teria de estar de pé, para um novo dia de trabalho na Hades. Mas não pensava nisso. Em minha mente, retalhos das cenas sendo filmadas esvoaçavam: Lisandrus como personagem 1, interpre-tando-o perfeitamente, eu como personagem 2, me esforçando, e Erck um verdadeiro La-wrence Olivier no terceiro papel. Ele se propusera a cuidar da parte técnica do roteiro, di-vidindo-o em takes e estudando pequenas mudanças nos diálogos, como faz o diretor du-rante as filmagens. Daria tudo certo, eu tinha a mais absoluta convicção. Mas uma dúvida surgiu, e me atormentava no leito: quem filmaria? Era necessário encontrar um cinegrafista, e parecia que ninguém havia pensado nisso. Fiquei matutando, e não conseguia mais ferrar no sono. “Erck já deve ter alguém em vista”, tentava acalmar meus nervos. Mas apesar de todos os meus argumentos, aquela dúvida me infernizou até altas horas da madrugada. Era uma pedra, como já dissera um certo poeta concretista. Uma pedra no caminho; ou, vendo por outro ângulo, uma pedra no sapato.

Page 54: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

54

Dos cadernos de poesia queimados:

Estando escrito

Um Romeu sem Julieta Um Dâmocles sem espada.

Um aleijado sem muleta Um lavrador sem enxada.

Sente-se assim sem a pena

Quem da pena uso faz. Sente a alma pequena Nada mais o satisfaz.

Expressar-se na linguagem

É como o pó espanar. O falar é uma miragem Que pouco pode durar.

Por isso é que se escreve: É ao tempo um desafio.

E por mais que seja breve É ao papel que me confio.

Page 55: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

55

Capítulo XI

Sine metu Dei, sine fiducia...

Cada um de nós tem a sua maneira particular de encarar os horrores da própria exis-tência. Dentro da Hades, os horrores são tão horrorosos que acabamos nos acostumando com eles, e a partir daí qualquer horror que possa horrorizar a existência deixa de ter im-portância, pois se o horror da existência pode ser aliado ao horror de uma vida operária de horrores, como em nossos casos de limpadores de túneis, o horror em si acaba se tornando algo quase enfadonho, como acontece com crianças que assustam-se no início vendo fil-mes de terror e depois, quando já estão mais crescidas, assistem aos mesmos filmes garga-lhando durante as cenas em que antes escondiam o rosto nas almofadas. Assim, passavam-se os dias e cada vez mais nos tornávamos duros, talvez não inteiramente; mas uma coura-ça externa nos envolvia, tornando-nos como tartarugas, defendidos pela insensibilidade com que inconscientemente envolvíamos nossos espíritos, como um corpo estranho que o organismo enquista com o propósito de isolá-lo, mantê-lo inativo e afastado do que real-mente importa: o prosseguir da vida. O Sr. Johannes, sendo o mais velho na função, desenvolvera o sadismo como forma de autodefesa; seu coração era um casarão abandonado às teias de aranha. Externamente parecia divertir-se com as desgraças alheias, mas eu concluíra que nas entranhas de seu cérebro pouco usado haviam várias personalidades malévolas assistindo ao que acontecia no exterior, todas sentadas em suas cadeiras, como num teatro, vendo através de seus olhos a realidade ocorrendo lá fora, como num palco. E só quando percebia que todos os demô-nios dentro de si batiam palmas e assobiavam, eufóricos, só então o velho se soltava, e gargalhava como um possesso. Sim, alguém se dera muito mal e seus duendes maléficos aprovavam o despertar de seu bom humor. O Sr. Johannes expulsara os inquilinos de seu coração, mas hospedava milhares de odiosos leprechauns nas maranhas de seus pervertidos miolos. Louis e Edward eram mais autênticos. Louis, sendo bêbado, anestesiava-se beben-do. “Beber é viver”, diz, e puxando a garrafinha de pinga que sempre traz no bolso esquer-do das calças, como um segundo coração, dá um beijo molhado no Gole e recita o conhe-cido ditado de sua autoria: “O mesmo vento que ergue a saia das moças joga areia nos o-lhos.” Ri seu riso idiotizado de alcoólatra e depois volta a ficar triste, pois a tristeza é o que há de mais substancial nos bêbados. Já Edward, que parece ser uma pessoa livre de pro-blemas existenciais, carrega dentro de si toda uma carga de desilusões com a vida, com-primidas dentro dele como pólvora no interior de uma granada. Sendo o filho bastardo da relação ilícita entre um patrão e sua empregada, foi posteriormente renegado pelo pai, que além disso deixou que sua mãe morresse na miséria. Sua mulher expressa para todos seu desânimo para com o marido, que chama de ‘irresponsável’. E Edward é justamente isso, e ninguém melhor que sua esposa para dizer. A não ser, é claro, os credores, que montam campana na porta da Hades para pegá-lo. Mas ele é muito safo, e dá a volta pelos fundos da Hades seguindo conselhos de sua intuição, que o ajuda muito nessas situações. Nunca um credor viu Edward saindo do trabalho, e acredito que não verá tão cedo. “A vida é des-se jeito”, repete sempre. Ao menos a sua é assim; e é assim que Edward parece apreciá-la.

Page 56: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

56

Quanto a mim, que estava na Hades havia apenas uma semana e meia (apesar de já ter trabalhado ali antes, esporadicamente), começava já a adquirir uma crosta, que me afas-tava de meu sentimentalismo (que cultivei em outros tempos), o qual seria funesto, se não mortal, a um limpador de túneis regular. Como ser sensível, se as mãos perdiam o tato no contato diário da pressão com o cabo maldito da pá, desenvolvendo calos doloridos, a prin-cípio, e depois grossos e duros e mortos pedaços de pele que aparentavam ser da mesma natureza das esporas que vemos nos pés de velhos galos de briga? Não, e se eu continuasse a ser poeta seria o poeta mais insensível de todos, o mais indelicado e cruel dos palradores de filosofias bizarras e dos prestidigitadores da palavra escrita. Eu escreveria poemas que falassem de meu vazio interior, que eu considerava provocado pelo vazio exterior, por to-dos aqueles vazios juntos que unidos formavam a imensidão do Zero Absoluto. O zero é a personificação do conjunto vazio, e um conjunto cheio de conjuntos vazios não deixa de ser um imenso conjunto de vazios juntos, que em álgebra ou em qualquer outra ciência será encarado com uma só interpretação: vazio, é claro. Assim me parecia o mundo, às vezes. Mas também olhava para os lados e via pessoas com seus filhos na rua, e eram pessoas aparentemente felizes e xingavam e sorriam e pagavam suas contas, mantendo créditos e moradias e construindo uma vida à qual eu mesmo me negava. E sentia raiva dessas pesso-as fúteis que se entregavam corajosamente ao trabalho e tiravam proveito disso, vendo crescerem seus filhos e seus abdomens e sua conta bancária enquanto ao redor formigavam os miseráveis, e todos aqueles prósperos filhos da puta chegavam quase a pisar sobre seus semelhantes na rua e depois diziam que amavam seus filhos e suas esposas e seus amigos mais próximos. E o sentimento ao qual davam tanto valor para mim era o vazio, assim co-mo meu sentimento de ódio ao vê-los felizes me revoltava e me preenchia de sombrias idéias que nada mais eram que a materialização de meu próprio vazio. E assim seguiam os dias, e a conseqüência direta de meu raciocínio encaminhava-me inexoravelmente para um desgosto existencial que não poderia jamais culminar em algo de bom. Mas deixemos de lado meu antigo ressentimento para com a sociedade e tratemos de assuntos mais práticos. Logo cedo, Radamanto nos avisou que naquele dia teríamos de aliviar o poço dos elevadores. Há dois, sendo um deles próximo do resfriador e o outro, o mais extenso, na saída da Central de Areia. Os elevadores são montados com intervalos quadrados, de aproximadamente dois metros, que encaixam-se uns aos outros formando colunas ocas, no interior das quais correm esteiras verticais adaptadas com canecas que levam o pó para passeios nos recônditos da Torre e cuja necessidade ainda estou longe de compreender. Mas o fundamental é saber que ao pé das colunas há poços, com a profundi-dade de três metros ou mais, que devido aos furos nas paredes enchem-se até a borda de poeira, e é preciso esvaziá-los pois senão os motores que impulsionam as esteiras verticais dos elevadores com as canecas acabam soterrados e travam, causando um pandemônio de paradas na produção pelas quais sempre somos responsabilizados. “Vamos buscar a talha”, diz Edward. “Está lá no jateador, uns técnicos estavam usando ontem para levantar umas peças de reposição.” Localizei um carrinho de mão e nos dirigimos para o jateador, uma máquina que se parece com a donzela de ferro, um instru-mento medieval de tortura. A semelhança vem das duas portas que abrem-se lateralmente, uma oposta à outra, e também pelo que ocorre em seu interior. Ao invés dos espinhos, dos quais a donzela era repleta, o jateador lança uma infinidade de granalhas, reduzídissimas esferas de aço impulsionadas pneumaticamente, com o intuito de livrar as peças dos res-quícios de areia dos moldes, que escapam do tremulador por estarem compactados demais. As peças entram escuras, acondicionadas em varais circulares de ferro montados em níveis,

Page 57: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

57

e saem brilhando depois de uma sessão de jateamento. Conta-se que certa vez um sujeito acidentalmente ficou preso ali, durante o funcionamento, e que seus gritos causaram arre-pios e desmaios em alguns funcionários. Fechadas as portas, não há como reverter o pro-cesso. Tiveram de recolher as partículas do infeliz com pinças, pois elas obstruíram alguns dos orifícios lançadores de granalhas. Mas não acreditei muito na conversa, que me foi contada por um cara com fama de mistificador. Descemos a talha com dificuldade, a pusemos no carrinho e voltamos para a Cen-tral. Os outros dois já haviam retirado a tampa do primeiro poço, uma grossa chapa de aço que precisa de vários homens para ser erguida. “Ei, deviam ter nos esperado”, protestei, “com a talha ergueríamos mais facilmente!” Mas o velho retrucou: “De esperar cansou-se um burro.” Certo, Sr. Johannes, sofra; sofra, seu velho sadomasoquista. Mas deixe Louis fora disso. Não force as pessoas a agirem estupidamente como você. O trabalho consistia em encher os baldes de poeira, prender sua alças aos ganchos da corrente conectada na talha e subi-los, premindo os botões correspondentes. O com a seta marcada para cima subia; o da seta indicando o contrário descia. Nada mais simples; porém, como já acontecera na Torre, acidentes podiam ocorrer por falta de atenção. Era preciso tomar cuidado. Uma vez subidos os baldes, despejava-se o pó no carrinho de mão e o mesmo era empurrado até uma caçamba que, graças ao auxílio de uma tábua que permi-tia ao veículo subir até uma altura nivelada com a borda, era enchida com o dejeto dos po-ços. Aí era só esperar que um caminhão retirasse a caçamba e pusesse outra no lugar. Eu e Louis ficamos no fundo do poço, com o Sr. Johannes controlando a talha e Edward levan-do o carrinho. As laterais do elevador têm fendas de dez centímetros de largura que cortam-no em intervalos, cuja utilidade é questionável. Uma faixa de lona é posta ali, para evitar que o pó que circula no interior do elevador saia por ali. Mas a tal lona sempre está rompida, e pas-sar quinze minutos no poço do elevador eqüivale a penar uma eternidade de horrores no Inferno. Quente como um vulcão, com jatos escaldantes escapando das frestas laterais e o desejo de estar em qualquer lugar, menos ali. Não costumamos ficar mais de quinze minu-tos naquele maldito pedaço de subsolo, e se Einstein foi brilhante teorizando a respeito da relatividade, devia ter passado uma semana inteira lá dentro para conferir de perto sua teo-ria. Os minutos arrastam-se no fundo do poço do elevador, e cada segundo é marcado pela indignação e pelo desespero. Mas ao fim de muito pensar no assunto conclui-se que não adianta nada pensar, e esvazia-se o poço entre impropérios e indecências que escapam dos lábios sem que a isto se dê a menor importância. “Louie”, grito eu (pois o barulho é ensurdecedor), “esta merda está cheia demais! Aqueles filhos da mãe deveriam ter nos convocado antes para o serviço!” Louis passa a mão pela testa, tirando o suor emplastado de fuligem com uma expressão de supremo de-sânimo no rosto mascarado, onde apenas os olhos irritados são visíveis. “Eles esperam que a coisa fique insustentável”, berra em resposta, “e depois é só chamar os idiotas para uma boa sauna! Mas é muito saudável, sabia?” Louis dá mais algumas pazadas, enchendo os baldes devagar, como é de seu feitio, e eu ajeito as alças nos ganchos da corrente. Os bal-des sobem e o velho lança os vazios de volta para nós, que os enchemos, e o ciclo se esten-de até que alcancemos o fundo cimentado do poço. Calculo que, de um só poço, possam sair dez toneladas de pó. É um serviço ‘brutal’, como costuma dizer o velho Johannes. Passados os quinze minutos, saímos do poço subindo pelos degraus enferrujados afixados nas paredes encardidas. Enchemos, talvez, um milhão e meio de baldes. Mas é tudo uma questão de relatividade, e sei que se for olhar o interior da caçamba ficarei de-

Page 58: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

58

cepcionado com o pouco pó que verei ali. Olhando de cima para o fundo poço, ao contrá-rio, reparo que está do mesmo jeito. “Não há como vencer o maldito pó”, murmuro, e vou até o bebedouro tirar a poeira da goela com um bom gole d’água. Edward vem comigo e enchemos os copos descartáveis, bebendo o líquido magnífi-co quase aos trancos, tamanha a sede. O calor circunda a Hades, como uma imposição am-biental. Para onde quer que olhemos o fogo é um destaque alaranjado, seja nos caldeirões da Fusão, seja nas redondezas das moldadoras, seja nos rostos afogueados dos operários que trabalham diretamente com o aço fundido. Todo um esquema de despersonalização humana, e para quê? Para que os patrões possam enriquecer, para que os aviões voem pelo céu, para que os ônibus carreguem cada vez mais gente de cá para lá, para que os estudan-tes ricos de faculdade possuam seus carros esporte, para que as garotas fiquem loucas por eles. Enquanto isso, nas metalúrgicas, milhares de pessoas perdem momentos importantes de suas vidas, que poderiam aproveitar olhando a grama crescer, se quisessem, mas que desperdiçam de uma forma ainda mais estúpida, forçados que são a manter o grande siste-ma capitalista. Qual seria a saída? Pensem, filhos do progresso, pensem com suas cabeças estofadas de números e fórmulas. “El”, diz Edward após três copos cheios, “que acha dos evangélicos? Ontem à tarde passou lá em casa uma turma desses beatos, e queriam insistentemente pregar-me a verda-de. ‘A verdade é que não tenho dinheiro’, disse a eles, ‘não adianta perderem seu tempo comigo’. ‘Sua alma está em perigo’, retrucaram, ‘e preocupa-se com coisas materiais e insignificantes?’ Eu ri na cara deles. ‘Sim, e com coisas como alimentos e roupas decentes, para que meu filho não precise mendigar todo esfarrapado por aí.’ ‘Infâmia!’, gritaram então. ‘Deus jamais deixaria um filho seu morrer à míngua!’ Tive de discordar. ‘Vocês não assistem televisão?’, perguntei, e eles disseram: ‘Não, nosso Pai não permite que nos per-camos nas coisas deste mundo.’ Fui malcriado: ‘Pois então, se estão tão descontentes, de-veriam arrumar um lugar melhor para ir.’ Disseram que eu blasfemava contra Deus, que seria condenado a ficar queimando eternamente no Inferno. Aí eu fiquei louco. Xinguei-os de filhos da puta, e acrescentei: ‘Se Deus me tivesse dado um centímetro quadrado de terra neste mundo, eu o veria com outros olhos. Mas como não tenho onde cair morto, não per-mito que uns descarados como vocês me digam o que é certo e o que é errado. E saiam já do meu quintal, antes que eu os escalde com a água que estou fervendo para o café!’ Eles caíram fora e entrei em casa, e minha mulher quis saber o que era que eu estava gritando lá fora. ‘Uns crentes filhos da puta’, afirmei, ‘mas já devem estar a cinco quadras daqui.’ Mi-nha mulher quis saber como. ‘Ora, eu mesmo os expulsei!’ E mostrei orgulhosamente meu bíceps. Ela ficou encantada e fomos para o quarto. Meu filho não estava em casa, El, e a-proveitamos... Vou te dizer uma coisa: demos a melhor trepada de nossas vidas.” Quase estourei de rir, correndo o risco de morrer engasgado com água, pois Edward nem esperara que eu terminasse para contar o seu feito. Algum tempo depois encontrei a frase perfeita para a situação, num velho livro de latim que descobri na parca biblioteca do pai do Erck: “Sine metu Dei, sine fiducia, cum concupiscentia”. Ou seja: Sem temer a Deus, sem fé... e concupiscente!

Page 59: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

59

Dos cadernos de poesia queimados:

O Veículo

O gemido dos fios elétricos Atravessados pelos ventos

Cortava o ar da noite escura.

Um garoto solitário Cercado pelos espíritos do ar

Questionava e brincava Com a morte.

Em suas mãos o Veículo

Distração para uns Distorção para outros

Poder para ele.

Poder para visualizar A tudo como ao Todo Sentimentos invisíveis Causas e causadores.

O Veículo, qual vimaana¹

Fazia-o sobrepujar A capacidade de seus olhos

Pois via e comprovava A realidade dos mitos.

E estava feliz, apesar Do preço altíssimo

Que ao sair do Veículo Pagaria pela viagem.

¹ Engenhos celestiais utilizados pelos deuses da mitologia hindu, descritos no Mahabharata, um relatório de guerras ocorridas há milhares de anos, que além disso dá informações sobre as armas usadas e dos impres-sionantes efeitos de sua destruição. Diz ali que as vimaanas voavam a alturas incríveis e arremessavam terríveis projéteis, tendo sido empregadas nas batalhas divinas para dizimar populações inteiras.

Page 60: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

60

Capítulo XII

Professores de alienação Falar de alucinações pode ser considerado como minha especialidade. Tive uma adolescência repleta de intoxicações, vislumbres e problemas relativos a isso, pois tudo que pudesse inebriar e estivesse ao meu alcance seria como um convite que eu jamais recusari-a. Bollidus, Pernus e Rouberius foram meus professores, indicando-me o caminho tortuoso da insanidade. Mas mergulhei muito mais profundo naquelas águas turvas, tendo superado meus mestres, saindo de lá depois de muitos anos com a mente corrompida e clara de um clérigo profano. Usamos solventes, xaropes, comprimidos, benzina, todo um arsenal de misturas químicas e perigosas. Bollidus chegou a defecar sangue, e Rouberius foi internado em várias clínicas de desintoxicação. Nunca tive problemas sérios com os abusos, mas recordo de uma vez que estávamos na praça, mexendo com as meninas, e sem qualquer aviso um bando de macacos começou a gritar e a se agitar nas árvores. “De onde vieram tantos macacos?”, inquiri Bollidus, que me olhou com estranheza. “Do que está falando?”, e então percebi que aqueles macacos não existiam, eram fruto de minha imaginação as-sombrada por delírios. Os macacos continuaram gritando, e me acompanharam enquanto eu corria para casa. Depois que deixei de integrar o grupo de delinqüentes juvenis, aos dezessete ou dezoito anos, parti para a cidade grande e lá tudo continuou. Solventes como os usados na cola de sapateiro provocavam em mim viagens vívidas, as quais foram minhas únicas companheiras naquele gigantesco deserto. Os delírios incluíam encontros com Deus e de-mais entidades do panteão cósmico, como Vishnu, Ahura Mazda, Zeus, Odin, alienígenas, intraterrenos, sátiros, gnomos, elfos e duendes. Quedava paranóico com as conspirações que ocorriam em planetas girando em torno de outros astros, enquanto eu estava ali, sem saber de nada, e ninguém me avisava dos perigos que corria devido a isso. Em outras pala-vras, estava ficando pirado. Um dia meu pai chegou em casa e eu apreciava o Juízo Final da janela do apartamento. “Que é isso que está cheirando”, disse meu pai, e respondi vaci-lante: “Ah, está falando disto aqui? É só o meu comunicador!” Fui despachado de volta para minha cidadezinha, onde minha mãe teve de lidar com o problema. E era um problema. Eu descobrira que plantas como a beladona e cogu-melos podiam resultar nos mesmos efeitos que eu obtinha com solventes e outros produtos químicos, com a vantagem de serem naturais e não precisar de dinheiro para conseguí-los. Bastava ir no mato e localizar os ingredientes certos. Experimentei a beladona, que deixa o usuário temporariamente vesgo e impossibilitado de ler uma simples sentença de um só período. O cogumelo me causou aflições existenciais terríveis, e cheguei a pensar que o melhor caminho era mesmo o cemitério sob sua influência auto-conscientizadora. Testei outras plantas, que escolhia pela forma das flores e das folhas, sem qualquer orientação científica, e os resultados eram vômitos, diarréias ou coisa nenhuma. De modos que voltei a usar a cola de sapateiro, que na época chamava de Veículo, e me ocultei por mais alguns anos nos porões de minha loucura. Faço essa retrospectiva para esclarecer o leitor, que talvez entenda pouco do assun-to. Mas alerto que usar o próprio corpo como cobaia do cérebro é um risco estúpido. Não que a vida do leitor ou de qualquer outro ser seja importantíssima, pois acho que transcendi

Page 61: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

61

a hipocrisia humanista de me considerar a pérola do Universo. Mas aos que se atiram de cabeça nas profundezas opacas da experimentação, dando um mergulho insensato na ema-ranhada composição de sua essência, deixo este aviso: não pensem que irão gostar do que encontrarão por lá, pois o que o inconsciente mantém escondido da consciência muitas vezes não é nada agradável. Eu sei, pois caí de cabeça em minhas neuroses e tive de lidar com isso depois. Mas fiz o que fiz pelo bem da Literatura, pois tenho certeza de que não escreveria este relato e nem mesmo uma redação de escola se não fosse pelo encontro que tive em mim. Portanto, acho que posso dizer que no meu caso particular houve um bom motivo para as doidices cometidas na adolescência, e muito tempo depois dela. Hoje não preciso de veículos para expandir minha imaginação, pois aprendi a técnica de voar estan-do no chão e acordado. Não tenho sonhos e acho que não é importante sonhar: afinal, a imaginação pode alcançar distâncias muito maiores quando é bem dirigida. E escrevo qua-se tudo que penso, desde que compreendi que é melhor uma abstração concretizada que a concretização de uma abstração. Sei que parece ser a mesma coisa: mas do alto de minha experiência posso afirmar que não são. Pois então: Erck gostou do roteiro, e disse que não me preocupasse com o cinegra-fista. Já tinha o cara certo, que aliás era o dono da câmera que usaríamos. Seu nome: Fer-mino Fermentus. O pai de Fermentus viera dos Andes no lombo de um condor. Nada de estranho nisso, pois há muitos condores nos Andes. Era um descendente direto de Atahual-pa, o último dos soberanos Incas, e orgulhoso como todos os de sua raça. Mas Fermentus esquecera completamente de suas origens, e ninguém poderia culpá-lo. Os espanhóis havi-am dizimado a cultura de seu povo, apoiados pela Igreja Católica, e apenas escombros res-tavam da ancestral civilização. Tiahuanaco, Sacsayhuaman, fortalezas em ruínas... Quando os viracochas chegaram, estragaram com tudo. Sei muito bem que as fortificações a que me refiro já eram resquícios inexplicáveis na época da invasão, pois nem mesmo os patrí-cios souberam informar aos espanhóis quem havia deixado aqueles colossos espalhados por ali... Porém, com o massacre dos índios e de toda a sua cultura, muito do conhecimento antigo foi perdido, pois os padres em seu fervor religioso queimaram inumeráveis códices que talvez pudessem esclarecer o mistério... Mas deixemos a mágoa de lado e voltemos a falar de Fermentus. É um sujeito mo-reno de cabelos escuros e lisos que aprecia muito as mulheres. Envolve-se em casos amo-rosos com a mesma facilidade que os descarta, sendo contudo muito apreciado pelas chi-cas. Mas andava meio caído ultimamente, e Erck me informou de que aceitara o convite sem titubear. E assim estávamos a um passo de concretizar o curta-metragem, pois tínha-mos tudo de que necessitávamos: o roteiro, os atores, a locação, a câmera, o cinegrafista, o diretor, os vídeos para edição dos takes e a vontade de executar o projeto. Então surgiu a dúvida: quem faria a última fala? Era uma voz feminina. “Podemos imitar uma mulher afinando nossa voz”, propôs Erck, mas achei que não daria certo. “Va-mos pedir para uma de nossas mães”, foi a idéia de Lisandrus. Mas seria difícil envolver nossas mães no projeto, pois todas elas eram mais velhas e tinham vozes correspondentes com suas respectivas idades. “Pensem”, disse eu, “o espectador não cairá nessa. Precisa-mos de uma voz mais condizente com o status de mulher do Lisandrus. Deve ser jovem”, concluí. E ficamos um longo tempo pensando naquele problema, e não chegávamos a con-clusão alguma apesar de nossos acalorados debates. Foi Fermentus que surgiu com a solução. “Precisam de uma mulher? Só de uma? Posso conseguir quantas quiserem. Só querem uma? Tudo bem, vou arranjar.” E arranjou. Dolores era sua prima, e aceitou de bom grado participar. Só que ficou um pouco decep-

Page 62: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

62

cionada quando soube que não ia aparecer, que só queríamos sua voz gravada em uma fita cassete. “Não daria para reescrever o roteiro, para que eu também pudesse aparecer?” De-mos a ela o roteiro para que lesse e entendesse de uma vez que nós não éramos machistas, apenas queríamos dar um toque a mais com sua participação, um toque todo especial, e que na próxima eu escreveria um papel todo maravilhoso só para ela. “Você jura?”, e eu jurei por Deus e por todos os santos, e só aí Dolores se conformou. Marcamos as filmagens para o fim de semana. Era bom para mim ter outros afaze-res além da poesia e da limpeza de túneis. Às vezes caía num marasmo total e aliava-me a Ogry, irmão mais novo de Erck, em suas intermináveis criancices. Havia um abismo sepa-rando Ogry de Erck, um abismo composto de divergências a respeito de tudo. Erck é in-trospectivo e racional; Ogry é extrovertido e age por instinto. Erck gosta de jazz outros ritmos malucos; Ogry prefere ouvir death metal e coisas do gênero. Erck lê livros de filo-sofia e romances psicológicos; Ogry apela para livros policiais e de ficção científica, onde pessoas nascem e morrem sem qualquer motivo ou significado maior para sua existência. Mas tenho de reconhecer que Ogry é muito mais divertido que Erck, e essa talvez seja a característica que me atrai nele. É animado e cheio de projetos banais, como comprar gar-rafas de vinho e se embriagar no sótão de sua casa observando os caminhões que passam na rodovia. E é dado a crises imensas de depressão, onde questiona todos os atos passados de sua vida. E conta casos improváveis com a naturalidade de um mentiroso profissional, e acaba convencendo qualquer um de que o sol na realidade é gelado. E organiza grandes reuniões onde faz churrascos e chama todos os amigos para assistir filmes, e os filmes que apresenta são sempre de terror ou fantasia. E quando durmo em sua casa aos fins de sema-na passamos a madrugada inteira jogando vídeo game e os jogos que jogamos ninguém quer jogar, pois são jogos difíceis e obscuros que tomam a vida inteira do jogador. Pensan-do melhor é até bom ser amigo dos dois, e retiro o que disse antes a respeito das criancices de Ogry. Ogry é um bom sujeito e um bom amigo, apesar de me chatear de vez em quando, e creio que nossa amizade, apesar de não andar muito bem, é sincera. É curioso reparar nos extremos representados pelos dois irmãos. Tendo saído do mesmo lugar, são como água e azeite. Erck seria o azeite, que é mais denso e tempera saladas. Ogry seria como a água, que é corriqueira, mas indispensável para a vida. E ambas as coisas são necessárias para que não fiquemos indispostos e tristes pela falta que faz uma saladinha temperada com um bom azeite, ou um simples copo cheio de água gelada quando estamos sedentos e definha-mos ao sol. Ainda é quarta-feira. Mal posso esperar pelo sábado, quando iniciaremos as filma-gens. O trabalho na Hades consome lentamente minhas forças, e tento imaginar um futuro melhor para mim. Não quero apodrecer naqueles túneis, quero alçar um vôo altíssimo em direção ao sucesso. Todos temos ambições, muitas das vezes, frívolas e egoístas. Mas co-mo podemos evitar, abandonados que estamos neste curral celeste? A Terra é um enorme viveiro onde a raça humana procria, seguindo o lema judaico: Crescei e multiplicai-vos. Serviremos de alimento para os deuses, no futuro? Como professores de alienação, os diri-gentes da mídia envolvem-nos com seus esquemas de valores, já defasados e bolorentos. Devemos estar atentos, evitando cair em todas as suas conversas fiadas. Um percentual de fantasia não faz mal a ninguém; mas bem que poderia ter alguém cuidando um pouquinho melhor disso tudo...

Page 63: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

63

Dos cadernos de poesia queimados:

Passando

Na calma da noite enrolando um cigarro No papel finíssimo onde futuramente

Escreverei meu testamento em nicotina Legando ao mundo meu surrado estudo

Sobre as atuais condições da velha juventude Na conjuntura contemporânea da antigüidade.

Ah, quantos nós e fímbrias e resquícios

No pálido espojar no pó da estrada Seremos todos mitos um belo dia

E falarão de nós assim como falamos De quem falamos no pretérito agora.

Seremos o pó onde o futuro descambará

O petróleo a mover as ferrugens de amanhã O asfalto a recobrir incertamente

O advir de estradas em outros níveis.

Em matéria de matéria somos tão completos Contendo todo o Universo num soluço

Que explode em consistência e consciência Ao darmos conta de nossas esperanças.

Tão passageiro, este mundo!

Por um segundo, fui iluminado E vi, não sem algum desgosto

Tudo que existe na imensidão do espaço Flutuando, numa piscadela

E assentando Imóvel.

Page 64: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

64

Capítulo XIII

Filmando o impossível

Era sexta-feira, e sairíamos mais cedo. O Sr. Johannes havia comunicado Radaman-to de que Louis lhe contara que Edward estava enrolando, dormindo lá no Letes. Era mes-mo um velho dedo-duro e filho da mãe, como o próprio Edward me advertira naquele outro dia. Resolvi que tomaria mais cuidado com ele. Quatro horas da tarde. Batemos cartão e saímos da Hades. “Até segunda!”, diz o velho mexeriqueiro para todos, como é de seu costume. Mas Edward não responde. Está furioso. No caminho para casa (pois moramos próximos um do outro) conta que Radaman-to pensa em fazer algumas mudanças, o que lhe dissera após a habitual repreensão. “Ra-damanto me encheu o saco na sala da Manutenção e depois abrandou, falando em carros e motocicletas. É um cara legal, mas informou que as coisas estão para mudar na Hades. Só espero que não me demitam.” Tranqüilizo-o, dizendo que Radamanto simpatiza demais com ele para ferrá-lo. “Que seria de nós sem você ali”, massageio seu ego, “que é o fun-cionário mais falador e que tem o melhor papo? Sem você, morreríamos de tédio. Rada-manto jamais o despediria, Eddie! Onde iria arranjar outro como você?” Despedi-me dele na esquina do açougue, e prossegui até minha casa. O sábado es-tava chegando, e eu me encontrava eufórico para começar as filmagens. Liguei para o Erck, e marcamos de nos encontrar num boteco para tomarmos uma ou duas cervejas e conversarmos mais a respeito do projeto. “Fermentus também vai”, disse ao telefone, “e vai levar a câmera para darmos uma olhada.” Ficou acertado que nos encontraríamos no bar do Alencarus, às sete horas, e que eu pagaria a conta. Após tomar um banho (eu telefonara todo sujo, e minha mãe perdera as estribeiras com minha pouca consideração, dizendo: “Sabe o trabalho que dá manter esse chão lim-po?”), vesti uma roupa apropriada para a ocasião e consultei o relógio: faltavam ainda quinze para as cinco. Peguei um livro para ler enquanto esperava, um livro que eu já havia lido umas cinqüenta vezes. Mas era muito bom, e a passagem que eu lia fornecia-me algum ânimo para aguardar o lento perpassar dos minutos: “Mas, pelo que pude descobrir, os Yahoos parecem ser os mais indisciplináveis de todos os animais, pois sua capacidade não vai além de puxar ou carregar pesos. Sou, to-davia, de opinião que esse defeito nasce principalmente de um natural perverso e obstina-do. São astutos, maldosos, traiçoeiros e vingativos, vigorosos e resistentes, mas covardes e, pelo tanto, insolentes, abjetos e cruéis. Observa-se que os de cabelos vermelhos, de am-bos os sexos, são mais malignos do que os outros, e, sem embargo, em muito os sobrele-vam no vigor e na atividade.” As Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift. Eu amava aquele livro, e principalmen-te aquela última parte: Viagem ao País dos Houyhnhnms. É uma das partes mais profundas da obra, e como tudo que é profundo, a mais ignorada. Nunca assisti um filme ou mesmo um desenho em que fosse reproduzida. Não posso afirmar com toda certeza que tal não tenha sido feito; mas, se não tiver, a razão seria mais do que óbvia: é humilhante, quase impossível para nosso ufanismo filmar cavalos agindo como humanos e humanos agindo

Page 65: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

65

como cavalos. Sim, pois os Yahoos são apresentados como sendo humanos primitivos, usados como bestas de carga na terra dos Houyhnhnms, cavalos inteligentes que possuíam boa cultura e falavam uma língua própria; a qual Gulliver aprende (chegando a dar detalhes sobre o idioma, que seria parecido com o alemão, “só que mais gracioso e expressivo”), após ter sido adotado por um dos cavalos, que se tornaria a partir de então seu amo, profes-sor, amigo e defensor. Retornando à Inglaterra, o médico aventureiro adquire dois cavalos, com os quais desenvolve laços mais duradouros e afetuosos que com os seres de sua espé-cie (tendo inclusive de se esforçar para acostumar-se ao convívio com sua própria família, pois pegara nojo pelo gênero humano). E finaliza dizendo que os cavalos seriam muito mais racionais que o Homem, o que não deixa de ser uma idéia muito original... Quase eqüina, diria em bom houyhnhnmnês. O tempo passou rápido em companhia de Gulliver, que com sua afiada perspicácia e sua ironia implacável quase me faz perder a hora. Saio de casa com dez minutos de van-tagem para as sete, e pelo caminho habitual chego até o bar do Alencarus. Descrever o bar seria pura perda de tempo, por em tudo aparentar ser um boteco comum. Mas não é. O bar do Alencarus é o bar mais barulhento do mundo, pois Alencarus é surdo como uma porta. É um senhor já de uma certa idade, de cabelos brancos, que joga bilhar com uma freqüên-cia anormal e às vezes parece fingir que não está ouvindo; no fundo, creio eu, para não ter de abandonar seu jogo pelo meio. “Dá azar”, diz ele; mas na verdade acho que morre de medo de ser roubado. Para conseguir uma bebida, a pessoa tem de gritar mais alto que uma sirene da polícia, e às vezes nem isso dá certo. Uma vez um freguês perdeu a paciência. “Alencarus, seu velho filho da puta, volte ao maldito balcão e me sirva a porra de uma ca-chaça!”, berrou, a boca praticamente colada ao ouvido do velhinho, cuspindo rios de saliva na lateral de sua face enrugada. Alencarus errou a tacada, perdendo a jogada... Mas não errou a cabeça do sujeito com o taco, e ele nunca mais foi visto circulando por ali. Uma música monótona, chamada Hall of Mirrors, de um obscuro grupo progressis-ta alemão chamado Kraftwerk, dizia que “os artistas vivem no espelho entre os ecos de si mesmos” quando entrei no boteco. Aquilo só podia ser coisa do Erck. Realmente, sentado a um canto repleto de caixas de bebida, tendo ao lado uma cerveja já aberta e um copo pela metade, divisei meu amigo. Acenou amigavelmente, um cigarro fumaçando entre os dedos, enquanto o refrão estelar insistia: “Even the greatest stars Change themselves in the lookin’ glass...” Peguei um copo detrás do balcão e sentei-me. “Como conseguiu essa cerveja?”, perguntei a Erck, pois Alencarus jogava uma partida. “E mais; que música é essa? Não combina nem um pouco com o ambiente, ou antes, o ambiente é que não combina com a música... entende o que estou tentando dizer?” Concordou com a cabeça. “É um tanto cós-mica demais para o Alencarus, não é? Pois é assim mesmo que eu gosto, quando destoa. É uma seleção e tanto, você verá.” Realmente, após Hall of Mirrors veio Orion, do Metalli-ca, outro som alienígena; uma balada interplanetária que sufocaria qualquer cristão. Porém os outros freqüentadores do bar começaram a reclamar, e Alencarus tirou o CD. Entregan-do-o a Erck, disse: “Desculpe, rapaz, mas a maioria vence.” A música popular repovoou o ar estagnado do boteco, invadindo com suas notas desgastadas nossos pobres ouvidos. Mas Erck não se abateu. “Um dia as pessoas saberão compreender a boa música. Até lá, contentemo-nos com as sobras do populacho.” Conten-

Page 66: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

66

temo-nos com as sobras do populacho? O que teria dado em Erck? “Ei, amigo, está doen-te? Nunca o vi tão resignado”, provoquei-o; mas ele mudou de assunto: “Fermentus está atrasado.” Notando seu desinteresse pelo som ambiente, redargüi: “Não acha que Lisan-drus também deveria estar aqui? Afinal, o assunto é tanto dele quanto nosso.” Erck ficou sério. “Era justamente sobre ele que queria falar com você, El. Vou direto ao ponto: Não acho que Lisandrus seja capaz de encarnar o personagem.” Para mim foi uma surpresa, pois Lisandrus parecera tão animado, e saíra-se tão bem no teste que Erck impusera! Ao contrário de mim, que acabei me retraindo todo. “Você deveria estar mais preocupado co-migo”, disse a ele, “o tímido aqui sou eu.” Erck encheu seu copo e o meu, dando uma go-lada profunda, e logo em seguida respondeu: “Olhe, não é uma questão de preferência ou perseguição, mas acho que Lisandrus é inconstante demais para um projeto tão longo. Tal-vez você não imagine o trabalho que dá produzir um curta-metragem, mas estive estudando a respeito. Significa, em nosso caso, vários finais de semana filmando, pois não podemos abandonar nossos afazeres habituais. Lisandrus é gente boa, mas se tivéssemos de utilizar, como teremos, sua casa durante vários fins de semana, não acha que ele acabaria desistindo e pondo-nos realmente para fora, como está ao fim do roteiro?” Achei engraçado. “Poderíamos filmar isso!”, e voltando meu olhar para a entrada do bar, notei que Fermentus chegava. Trazia um pacote. “E aí, pessoal!”, cumprimentou-nos jovialmente, ajeitando uma cadeira para sentar. Desembrulhando o volume, mostrou seu conteúdo. “Aqui está a câmera.” E acondicionando-a ao pulso, demonstrou como fun-cionava. “Já filmei muita coisa com ela, mas nunca fiz edição de coisa alguma. Sabe como editar em VHS?”, perguntou a Erck, que volveu: “Não sei, mas vamos tentar.” Notei que Erck parecia estar impondo obstáculos ao projeto. “O que há, Erck? Não está mais anima-do com a coisa? Onde foi parar seu entusiasmo?” Ele olhou de Fermentus para mim e de-pois voltou a olhar Fermentus, encheu o copo de cerveja e tomou um longo gole. “Certo, vou me abrir com vocês. A verdade é que estou um tanto quanto ressentido com o fato de El ter me colocado no roteiro apenas no meio da segunda cena. Quero contracenar mais, entendem? Quero mais falas. Quero aparecer mais.” Então era isso? “Mas veja”, comecei, “não seria bom que tivesse mais tempo livre durante a filmagem? Achei que, como diretor, seria indicado que tivesse um tempo menor em cena, do qual poderia dispor para dirigir-nos melhor. Nunca ouviu falar em Alfred Hit-chcock? Ele fazia inexpressivas e curtíssimas aparições em seus filmes; você, ao contrário, fará uma expressiva participação em seu próprio filme curtíssimo.” Ele não quis deixar patente, mas empolgou-se. Eu sabia mesmo como massagear egos. “Certo, então!”, exclamou Erck alçando seu copo. “Façamos um brinde ao curta, e que milhões de olhos o possam ver!” Erguemos nossos copos, que esparramaram cerveja pela mesa toda. “Um brinde também aos desmiolados!”, propôs Fermentus e, para não fi-car de fora, complementei: “E aos que ousam filmar o impossível!” Bebemos outras cervejas, e fiz questão de pagar a conta. Em outro caso agiria dife-rente, pois em geral sou unha de fome. Mas aquela noite tinha sido especial, e o dia que a seguiria prometia ser ainda mais. Na tarde do dia seguinte começariam as filmagens de “Herdeiros do Estramônio”, um curta já premiado. Premiado por nós.

Page 67: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

67

Dos cadernos de poesia queimados:

Morte musa minha

A lira não importa; não quero cantar Quero gritar da forma mais muda possível

Quero quebrar as amarras do soneto E sepultar de vez a velha Poesia.

Não; não me guiarei pela Beleza

A crueza do pensamento subjetivo Será a escura musa que a mente minha Assediará em tormentosa caminhada.

A matemática dos versos está morta

E a sonoridade melódica abolida Filosofia sombria, seja minha guia

Na estrada negra que é a vida.

Parindo sentimentos inspirados na dor Contínua e atroz concepção

Aborte o Poeta; renasça o amargo Profeta De desafinada harpa e longínquos olhos.

Sim, o coração espetado na Realidade Insatisfação regurgitando da garganta

A pena afiada, selvagem espada Vertendo sangue entre brancas linhas.

Morte, musa minha, minha morte

Aniquile o que sou, pois sou contrário Da estúpida importância que não tenho.

Morte, minha musa, morte minha

Morra em mim a vazia Poesia Até caótico e triunfal Renascimento.

Page 68: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

68

Capítulo XIV

Episódio com Aurum

Seria uma desfaçatez se não citasse meu irmãos aqui. São quatro: Aurum, Argen-tum, Plumbeum e Iordane; que saiu diferente, pois é uma garota. Aurum trabalha na área administrativa do Tetrus, o supermercado onde Erck e eu não compramos cerveja quando vamos ao Hippolitus. Aurum já foi muito amigo de Erck, em outros tempos. Hoje nem se vêem, suas vidas tomaram outros rumos. Erck resguarda um sentimento de mágoa para com Aurum, e por ser extremamente reservado evita tocar no assunto. Argentum trabalha na fábrica dos franceses, e estamos sem nos falar devido algumas picuinhas. Plumbeum mora na cidade grande e está cursando faculdade, pois pretende tornar-se um químico. Quando terminar o curso, vamos fazer ouro com o auxílio do Livro das Figuras Hieroglífi-cas de Nicolas Flamel. Iordane está namorando um tatuador, um cara muito bem humorado chamado Richard Pictorius. Pretende casar-se com ele, e no começo do caso ninguém em casa aceitou. “Um tatuador, minha filha!”, protestou minha mãe. “Esses tipos não têm ne-nhuma responsabilidade, e além de tudo são loucos, cheios de pinturas no corpo!” Mas com o passar do tempo todos acabaram aceitando o relacionamento, pois Richard é muito simpático, sendo já rotineiro encontrá-lo em casa.

Aurum é casado, e vive em uma casa confortável no centro da cidade. Tem um ca-sal de crianças adoráveis e uma mulher dedicada ao lar. Leva a vida normal de um servo do Comércio, entregando horas intermináveis de sua vida ao mais ávido dos vilões capitalis-tas. Com isso, perde pouco a pouco a intimidade com sua família, e uma gama de outros problemas fazem fantasmagóricas aparições em seu lar, sugestionando sua mulher e as crianças com o descontentamento de sua ausência. Já houveram boatos de separação; o menino, mais novo, recusa-se a falar; e a menina, tímida e desconfiada, não consegue se despregar da mãe. Mas Aurum é sincero quando diz que ama a família, apesar de reiterar dizendo que ama o Tetrus com a mesma intensidade. São artimanhas que usa para sugesti-onar a si mesmo, pois é muito difícil conciliar o trabalho e a família. Ambos exigem de-mais e têm suas compensações. A família entrega seu amor incondicionalmente, mas só quando o trabalho o permite; um sujeito que ganha mal perde gradualmente o amor e o respeito no seio de sua família. Na verdade não existe amor incondicional, e sim o falso condicionamento dessa instituição. Mas não, não estou querendo dizer que a família é uma falsidade. Nós é que somos condicionados a isso, ou seja, a não enxergar racionalmente o funcionamento normal de um círculo familiar.

No sábado de manhã Aurum telefonou e convidou-nos para almoçar em sua casa. “Venham”, pediu a minha mãe, “eu mesmo vou preparar uma bela macarronada ao sugo.” Minha mãe e eu fomos, pois Argentum odeia reuniões de família. Argentum odeia quase tudo; uma das coisas que mais gosta de fazer é odiar. Iordane estava com Richard, e apai-xonados não sentem fome. De modos que só mesmo nós dois fomos.

Aurum nos recebeu no portão de sua casa com o entusiasmo de sempre. “Olá, famí-lia!” É o oposto de mim. Gordo e forte como um urso, alto e sorridente. Minha cunhada é bem bonita, e seus filhos são o máximo. Apesar de todos os problemas que enfrentam, há muita paz em seu lar, e sinto-me tranqüilo quando lá estou. Entramos, e imediatamente Aurum providencia uma taça, que põe em minhas mãos e enche com vinho. “Experimente

Page 69: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

69

isto, El”, diz, “e fale-me se não é o vinho mais gostoso que já provou em suas andanças como cachaceiro.” Tomo um golinho, e mantenho sobre a língua por algum tempo. Engu-lo, e Aurum, ansioso, pergunta: “E então?” Carrego em minha expressão de satisfação. “Bom”, digo estalando o palato, mas ele não se satisfaz. “Maravilhoso, pronto!”; só aí ele fica contente. “Fui eu quem sugeri a compra”, informa, “tendo conseguido três paletes a um preço quase irrisório. O fornecedor ficou tão agradecido que me presenteou com uma caixa. Todos nós lucramos; inclusive você, que tomará um bom porre de vinho hoje.”

Agradeci, mas disse que não poderia beber muito. “Quê?”, indignou-se. “Nunca ouvi tamanha bobagem! É claro que vai beber, ao menos, umas duas garrafas.” Expliquei a ele meus compromissos cinematográficos. “Ah, você e o Erck estão pensando em fazer um filme, é? E como anda ele?” Dei um resumo das atividades que havíamos mantido em con-junto nos últimos tempos, e Aurum sacudiu-se todo, desolado. “Quer dizer que ainda estão nessa vida de jogar fora o dinheiro que têm pelos bares? Quando irão crescer? Há muito mais em viver do que apenas seguir os desejos. Veja eu: lutei por uma condição, e agora estou aqui, bebendo este excelente vinho italiano na casa que eu mesmo construí, cercado por minha família; e note que nem tive de pagar pelo vinho! Entendeu? Abre-se mão de alguns desejos no início, para se aproveitar de forma mais conveniente depois. Eu era co-mo vocês antes, quando era parceiro de copo do Erck. E se continuasse sendo o que era, acha que teria o que tenho agora? Jamais! Eu seria um pé rapado, sem mulher, sem filhos, sem casa, sem futuro. Mas hoje tenho o que tenho, pois batalhei e renunciei aos prazeres da noite.”

Ele tinha razão. Aurum começara de baixo no Tetrus, ensacando mercadorias no caixa. Galgara os degraus do sucesso, passando de embalador a repositor, de repositor a supervisor, de supervisor a encarregado de compras. Ganhava um bom salário e era muito respeitado pelos patrões. Mas sofrera uma série de pequenas humilhações no começo, e lembro-me de que certa vez dissera a minha mãe: “Não agüento mais, eles me tratam como um cão naquele maldito mercado. Vou sair, mãe, vou sair.” Mas engolira o orgulho e segu-rara o emprego. Agora sim, tinha motivos para se orgulhar. A obstinação é sempre recom-pensada. Eu, ao contrário, nunca fora obstinado. Minha determinação era frágil como um castelo de cartas, que um leve sopro de brisa desmorona.

Minha mãe ajudava a nora na cozinha. Estávamos na sala, e Aurum enchia minha taça com mais e mais vinho. “Tome, o vinho tem virtudes medicinais”, dizia animado, “beba uma garrafa por dia e jamais terá doenças. Beba duas e não morrerá!” Estávamos ficando bêbados, e seu nariz começava a avermelhar. Fica embriagado com facilidade, e então seu papo vai abrandando e deixa de ser um pregador de sermões’. “El”, gargareja, “como anda com seus escritos? Não conseguiu ainda achar alguém para publicar aquelas suas maluquices?” Digo que o mercado editorial é uma goela escancarada que vomita tudo que não seja banal. “Você tem mania de se achar um gênio”, ralha ele, “não vê o que acon-tece com esses caras malucos? Sua arte só é reconhecida séculos depois de suas mortes. Van Gogh foi um deles. Morreu pedindo esmola, e depois leiloaram seus quadros a preços exorbitantes.” Levanta-se e vai para a cozinha, pegar mais vinho. Quando volta, respondo: “Mas ele tinha prazer em sua arte, e é isso que importa” Aurum solta um riso desafinado. “Prazer no tormento? Eu pensei que fosse inteligente, El, mas vejo que é um tolo. Pensa que o ajudarei? Acho que as pessoas devem crescer por si mesmas. Não comprarei um po-ema seu, como o irmão de Van Gogh fez. Eu não o auxiliarei quando estiver louco e de-samparado. Tenho uma família agora. Sei que seu emprego na Hades não durará muito. Sou seu amigo e seu irmão, e é por isso que digo o que estou dizendo. Você pode até pen-

Page 70: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

70

sar que sou cruel e desumano, mas pense comigo: nada de lucrativo há na arte! É só um engodo que leva muitos como você a jogar fora a real chance de crescer e de ser alguém. Noites de bebedeira, irresponsabilidade, desilusões, drogas: é disso que compõe-se a vida do artista. Dos artistas marginais, estou dizendo. Quer saber o que é um artista? Artista é aquele que consegue viver de sua arte. Você não passa de um reles limpador de túneis, e nem mesmo isso conseguirá manter!”

Foi um golpe duro em meu parco orgulho. Sempre me considerei um verme, até fa-zia questão do epíteto; mas aquilo era o fim. Meu irmão embriagado me desfolhava como uma alface e jogava as folhas no liqüidificador, triturando tudo o que eu era e reduzindo a uma pasta meus sonhos de grandeza. Ele dissera a verdade, a verdade nua e crua e indige-rível. Estava entalada em minha garganta, começava a me sufocar. Um rubor violento e trepidante como uma erupção vulcânica me acometeu, e quase desfaleci. Vendo meu esta-do, Aurum tentou me amparar, mas afastei-me dele, bradando: “Desencosta, seu filho da puta!”

Ele ficou preocupado, e pediu desculpas. “Acho que me excedi, El. Me perdoe.” Mas era a minha vez. Eu estava possesso, o pacote em minha garganta rompera-se. Havia uma infinidade de despeito lá dentro: “Acha que sua vida é mais importante que a minha só por ganhar vinho de graça? Acha que por ter constituído família é mais do que eu? Filhos qualquer idiota faz! Seria capaz de compor um poema? Não comporia um, nem que sua vida dependesse disso! E sabe qual a razão? Você é um imbecil, Aurum, um imbecil super-ficial! Nunca lê nada que não venha com números! Só os números importam, não é? Di-nheiro, dinheiro! Nunca se cansa? E nem mesmo lida com o seu próprio! Cuidando dos lucros do patrão como um cão amestrado! E o que recebe? Percentuais ínfimos, pode acre-ditar! Acha que tem grande coisa? Pois para mim, o que possui é nada! Mil vezes morrer na miséria, como Van Gogh, mas ser algo além de um cão fiel abanando o rabo! Ter pen-samentos próprios, e não imposições gananciosas de máquina registradora! Ser original, coisa que você jamais será! Tem uma família? Pois você não a aproveita! Tem uma casa? Pois não a conhece! Tem um bom emprego? Pois ele está devorando você, é uma besta insaciável que só vai parar quando não restar nada! Onde está seu espírito? Onde o deixou, Aurum? Trancafiado nos cofres do Tetrus? Mas é tão pequeno! É quase microscópico! Qual o motivo de guardá-lo lá? Guarde-o no bolso, junto das suas moedinhas! É o lugar mais indicado para algo tão sem valor!”

Só então me calei. Bebi um pouco de vinho, e tornei a olhar para Aurum. Ele tinha lágrimas nos olhos, e eu também. Estávamos chorando, dois homens barbados e bêbados chorando como crianças. As mulheres nos observavam, do corredor, tendo cada uma ao colo um dos filhos assustados de Aurum. Eu havia gritado tudo aquilo, gritado como um louco dentro da casa de meu irmão, estourado com ele, reduzido toda sua existência a coisa alguma diante de sua família. Eu não prestava.

“Vou embora”, murmurei, “acho que sou mesmo um idiota.” Mas Aurum não me deixou sair. “Fique, El”, disse enxugando os olhos, “não se importe com isso. Ambos dis-semos a verdade. A verdade é dolorosa, e é por ser tão dolorosa que a evitamos. Mas nós somos irmãos, e essas coisas são comuns... Só irmãos seriam capazes de magoar tanto uns aos outros.” Almocei lá. Mas o clima estava tão pesado que nem mesmo esperei pelo cafe-zinho, saindo envergonhado dali, insignificante como uma pulga.

Page 71: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

71

Dos cadernos de poesia queimados:

Olhos de carcaça

Vagos ventos varrem a cordilheira Noite negra crivada de estrelas Céu noturno de nuvens cingido Olhos ausentes do mundo a ver.

Que enxergam na paisagem sombria?

Que espécie de escura verdade Podem visualizar na soturna

E fria Realidade que os cerca?

Olhos moribundos de carcaça Que a cada minuto estremece Com a idéia já tão arraigada

E que tão presente se faz.

A cada minuto a certeza cresce E morre um pouquinho mais

O corpo já falecido Que ainda não morreu.

Olhos aflitos de carcaça

A mirar o céu vazio de respostas Não indaguem mais... Não enxerguem mais...

Cerrem-se, olhos filósofos

No negror interno encontrarão A única e definitiva resposta O último e decisivo clarão.

Page 72: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

72

Capítulo XV

Pérolas, porcos e ambições Cheguei na casa de Lisandrus bem antes do combinado. Gritei no portão uma vez, gritei outra, e enfim ele veio atender. Em algumas ocasiões, quando não queria ver nin-guém, costumava ignorar os gritos, como o intrépido soldado que não importa-se com a dor de seus ferimentos e segue em frente. Mas Lisandrus não era valente, era apenas um covarde tímido e frustrado, que envergonhava-se de si mesmo e assim evitava contatos diretos com seus semelhantes. Mas julgava-se uma pérola, dizendo: “Muitos daqueles que vêm aqui são descartáveis, entende, El? Não estou falando de você, é claro, mas a maioria que aparece em minha casa vem apenas para gastar o meu tempo. Não têm assuntos inte-ressantes, como você e o Erck, apenas idéias vazias de pessoas levianas. Por isso os ignoro, e não venho atender quando gritam.” Eu, no entanto, já tinha estado berrando ali, em ou-tros dias, durante um longo tempo sem que ele me atendesse, e sabia que na realidade Li-sandrus não fazia aquilo pelas razões que atestava. Fazia-o por sentir-se melhor sozinho na solidão da casa, protegido e comodamente inerte em sua fortaleza. “Veio cedo”, lamentou, “os outros ainda não chegaram.” Percebi que não estava tão animado quanto no início, e havia olheiras profundas como trincheiras ao redor de seus olhos. Usava drogas pesadas, sendo realmente inconstante, como objetara Erck em nossa conversa no Alencarus, devido a isso. Drogas corporais apenas, que traziam ao corpo sen-sações de prazer que eram seguidas de desconforto e depressão profunda. Por isso Lisan-drus não atendia aos gritos, pois não queria dividir sua carga com ninguém, não queria que soubessem que estava drogado. E muitas das vezes dividir a carga significava dividir a droga, e não faria isso por quem quer que fosse. “Eu batalho para manter meus vícios”, devia pensar, “e não darei um grão de minha droga a qualquer um desses oportunistas fi-lhos da mãe.” E trancava-se em sua redoma protetora, fazendo-se de surdo, agindo da mesma forma que Alencarus quando joga sinuca. “Tive uma discussão horrível com meu irmão”, disse a ele depois de entrar, “não sei se estarei disposto, com bom humor suficiente para filmar. Aurum me humilhou de-mais, e acabei gritando uma série de injúrias em sua casa. Ele não aceita que eu seja poeta, diz que é pura perda de tempo. Diz que a arte só é arte quando dá dinheiro. Quando não, é lixo, simples produto de mentes vazias que imaginam serem profundas. Tenho de reconhe-cer que ele está certo, ao menos vendo o lado prático da questão. Mas o poeta nasce poeta, e quando vai contra o que é penso que torna-se ainda mais infeliz.” Lisandrus raciocinou um pouco. “Acho que Aurum está certo”, disse após algum tempo, “não só no lado prático. Você se irritou pois ele disse a verdade. Viu quantas esculturas já fiz? Não consegui vender nenhuma ainda. São feias? São caras? Fui eu quem as fez, e nem mesmo sei responder a isso. Sei apenas faze-las. As pessoas não sabem apreciar a arte, e tampouco nós, os artistas, sabemos seu valor. Talvez o valor venha após morrermos... É tão injusto, não é? Um perí-odo na História do Homem, em que o artista viveu, valoriza a sua arte. Uma circunstância na vida particular do artista valoriza a sua arte. Mas a própria arte não é valorizada pelo que é, e você pode notar por alguns quadros de péssimo gosto que o valor deles está em quem o pintou. É arte aquilo? Não, não é. A vida de quem o pintou é que foi artística, e graças a isso aquela porcaria é reconhecida. Assim, estamos todos nas mãos de críticos,

Page 73: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

73

que fazem a arte ser o que é. ‘É bom’, dizem eles, e todos admiram, mesmo que seja ape-nas merda colorida, como um maluco andou fazendo. Ouviu essa? O cara comia beterraba para conseguir vermelho, brócolos para o verde, milho para o amarelo. E com essas cores básicas conseguia outras, misturando suas fezes na paleta como um pintor profissional. Não cheguei a ver os quadros, mas deviam exalar mau cheiro, não acha? Pois então, a arte é isso: excremento colorido.” Em meio ao meu desgosto, não pude deixar de rir. Ri amargamente, e depois disse: “O meu caso é ainda mais difícil, pois lido com o abstrato. A pintura abstrata, por exemplo, pode ser vista, o que é mais cômodo para os que não têm imaginação. O abstrativismo na literatura é mais difícil de ser aceito, pois não está claro, depende de visualização interna. Depende de imaginação, e a imaginação está morrendo no Homem Moderno. Podemos nos considerar dinossauros, Lisandrus. Temos imaginação, e fazemos alguma coisa com ela. Os que vierem no futuro não precisarão de imaginação, pois tudo já terá sido imaginado. A Tecnologia é uma desgraça para o Homem, extrai dele sua capacidade criativa e torna-o um modelo solitário de boneco, multiplicado aos bilhões. ‘Todos são iguais’, diz a Tecno-logia. E a voz da Tecnologia é a voz de Deus no Gênesis da Bíblia do Progresso, que está sendo escrita enquanto estamos aqui. E nós estaremos de fora, pois não haverá lugar para pensadores na nova ordem das coisas.” Lisandrus passou a mão por seus cabelos ondulados e desgrenhados, jogando-os para trás. “Quer um café?”, perguntou, olhando para o relógio de parede. Olhei também. Era quase cinco da tarde. “Aceito”, respondi. Ele trouxe uma xícara fumegante, e acendi um cigarro. “Tenho aí um pouco do veneno”, informou pouco depois. Era assim que se referia à droga. “Ainda temos tempo, os outros só chegam cinco e meia.” Lisandrus jamais dividia seu veneno com os outros. Fumávamos marijuana ás vezes, mas a química guarda-va só para si. “Que deu em você?”, estranhei, e ele respondeu: “Essa conversa me deixou deprimido, e estou precisando usar. Se não quiser, melhor para mim.” Disse a ele que usa-ria só um pouquinho, não muito. Foi buscar. Usamos e logo uma onda artificial de animação encobriu todas as minhas frustra-ções. “Que maravilha”, falei a Lisandrus, que já preparava uma segunda dose. “Essa é mui-to boa”, confidenciou, “veio lá da cidade grande. Um amigo meu foi lá buscar.” Usamos mais, e as sensações seguiam-se umas às outras, como um carrossel onde crianças alegres passavam, repetindo-se, berrando no êxtase da satisfação infantil. Usamos tudo, e em pou-cos minutos as crianças do carrossel tornaram-se velhos mendigos que se lamentavam e vomitavam devido aos giros infindáveis do brinquedo. Sim, a droga é fugaz. Em quinze minutos estivemos no Paraíso e descêramos ao Inferno, um tempo que faria inveja a Dante Alighieri. Particularidade do veneno: o Inferno da droga não é quente, é frio como o Pólo Norte. Sentem-se calafrios no período que se segue ao ápice do bem-estar. Quando Fer-mentus e Erck gritaram do portão, estávamos no auge da sensação de frio causada pelo uso do veneno. Lisandrus ergueu-se da poltrona, pálido como uma vela apagada, e foi atendê-los. Tenho certeza de que, se eu não estivesse ali, ele não abriria o portão. E não podia culpá-lo. A paranóia do veneno é avassaladora, tornando o usuário frágil por dentro, como se a psique fora realmente uma fraca borboleta, que qualquer ventinho arrasta e prega ao radia-dor de um caminhão. E esse caminhão é a Realidade, e o usuário morre de medo de ser levado a ficar grudado para sempre em seu radiador. Eu entendia Lisandrus agora, entendia muito bem suas razões, apesar de serem as razões mais pouco razoáveis para alguém que ainda não usou o veneno.

Page 74: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

74

Erck e Fermentus apareceram, acompanhados de Lisandrus. Erck sentou-se ao meu lado enquanto Fermentus desembrulhava o pacote onde estava a câmera. “Você está suan-do, El”, sussurrou Erck, “Que andaram fazendo?” Minha testa achava-se coberta de gotícu-las gélidas. “Usamos o veneno”, balbuciei, apontando para os resquícios sobre a mesinha de centro. Erck ficou indignado. “Mas que falta de profissionalismo! Quer dizer que temos um projeto sério para realizar e vocês ficam aí, seus porras, se enchendo de drogas?” Eu sabia que ia dar confusão. A crítica não se dirigia apenas a mim, mas também a Lisandrus. Lembrei-me de Lisandrus dizendo, certa vez, quando eu quis lhe dar conselhos para que abandonasse a droga: “Não aceito admoestações de meu pai ou de minha mãe; acha que ouviria conselhos de um merda qualquer?” Eu ficara magoado com ele durante semanas, e evitara cruzar meu caminho com o seu durante um bom tempo. Agora Erck estava agindo justamente da forma menos indicada com relação a Lisandrus. Fermentus embrulhava a câmera, pressentindo um terremoto. A realização do curta-metragem terminaria ali, bem antes de começar. Lisandrus agrediu Erck com um soco no olho. Erck ergueu-se do chão, mas Lisan-drus aplicou-lhe uma rasteira, e ele caiu sobre a mesinha de centro, esmagando-a. O cená-rio da segunda cena ia sendo destruído. Fermentus pegou sua câmera e caiu fora, pulando o muro. Ao tentar ajudar Erck, levei um violento soco no estômago, que me fez dobrar com as mãos na barriga. Lisandrus chutava Erck nas costelas, com uma selvageria sem prece-dentes. Peguei a televisão com ambas as mãos e lancei em Lisandrus, que foi atingido no pescoço. O aparelho desabou e arrebentou-se todo no piso da sala, com um ruído de esti-lhaçamento, espalhando densa neblina pelo cômodo. Lisandrus caiu, desacordado, e puxei Erck pelas axilas até o lado de fora. Estava muito ferido, com um corte profundo na têmpo-ra esquerda. Precisava tirá-lo de lá. Quando Lisandrus se recuperasse, seria o fim. Voltei para o interior da casa, procurando as chaves. Precisava abrir o portão, pois Erck não pare-cia ser capaz de pular o muro naquelas condições. Encontrei-as em cima da mesa, e ampa-rei meu amigo até o portão. Então ouvimos um grito concentrado de ódio... Lisandrus a-cordara. “Porcos!”, berrava ele, “porcos malditos! Que fizeram com minha casa? Porcos do Inferno, malditos!” Eu tremia com o molho de chaves na mão, não conseguia encontrar o buraco da fechadura. Quando finalmente enfiei a chave e a girei, desaferrolhando o portão, Lisandrus já saía da casa. Seus olhos ensandecidos sugeriam desejos de assassinato. De-sesperado, abri o portão e Erck, que já se sentia melhor, saiu em desabalada carreira. Eu o segui, deixando Lisandrus para trás.

O caso só não foi parar na delegacia porque Lisandrus não pensou em dar queixa. Afinal, fora ele que provocara tudo, e poderia se dar mal caso abrisse o bico. Erck resolveu esquecer do assunto, mas ficou aborrecido e me culpou pelo fato. “Se não tivesse chegado mais cedo”, disse, após eu ter-lhe contado como chegáramos àquilo, “Lisandrus não teria usado aquela merda, e não teria feito o que fez.” Eu discordei. “Não é justo que me culpe pelo ocorrido.” E apelei para sua razão: “Seria como culpar sua mãe pela coisa toda: afinal, se não tivesse nascido, não teria de passar por isso.” Mas ele não se conformou. “Chamou-nos de porcos; mas porcos são animais, não têm ambições.” Alisou a têmpora ferida. “É-ramos pérolas em sua casa, El, mas ele nos tratou como porcos. Como porcos, animais sem qualquer ambição.”

Page 75: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

75

Dos cadernos de poesia queimados:

Enterro

Entregue de forma despudorada Ao coveiro

Que pestanejou Com dentes que eram lápides

E pisoteou pétalas De gerânio

Procurando “a maldita pá” Nada dizia Ali inerte

Fixo como um prego dobrado fundo na madeira Estava morto

Morto como sempre quis Morto como no sonho

Morto como um crustáceo espetado Na ponta de um galho seco

Cujos olhos vidrados nada informam Cujos olhos entorpecidos pela morte

Apenas clarões de solfejos mudos exalam A morte triunfante ao redor, e dentro

Como parasita instalando raízes E o pensamento, o último rompante de razão

Ainda lá Preso, engaiolado

Na carcaça que logo logo Principiaria a feder

O pensamento gélido pela morte O importante fardo enigmático para a resolução

De todos os problemas colocados ali durante O processo intrincado e dolorido

De seguir adiante e chegar À questão definitiva:

“Com que roupa Devo ir?”

Page 76: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

76

Capítulo XVI

De olhos fechados “Tudo que começa errado, acaba dando errado.” Esta deve ser uma das leis funda-mentais de Murphy. Após o fim de semana catastrófico, estar na Hades era quase um alí-vio, longe dos problemas relacionados com o fracasso das filmagens. Lisandrus jamais voltaria a falar comigo, Erck julgava-me responsável pela coisa toda e eu não dormia bem, estava quebrado por dentro e por fora. A pancada no abdômen ainda doía, como um refle-xo da dor que eu sentia pelo distanciamento de todos os meus amigos mais chegados. Esta-va lá, mínima, mas ainda se manifestava quando eu me abaixava para recolher o pó com a pá. Edward notou meu desânimo, perguntando: “Que aconteceu? Está com uma cara... En-charcou o caneco com querosene ontem?” Sorri ligeiramente. Ele pensava que eu havia bebido, e por isso sofria de algum desconforto gástrico. “Levei uma porrada”, respondi, “de um amigo que ficou louco. Estávamos planejando produzir um filme, mas tudo acabou em pancadaria.” Edward, ao contrário do que eu esperava, mostrou-se solidário. Eu imaginava que ele fosse achar graça; mas com uma expressão de desconsolo no rosto, diz: “Os caras cer-tos para se fazer as coisas geralmente não estão disponíveis. É difícil associar-se aos outros em grandes projetos, pois na maioria das vezes fica-se dependente dessas pessoas. Uma vez eu e alguns conhecidos decidimos comprar um terreno juntos. Planejávamos construir um prédio, onde nossas famílias iriam morar, cada uma num andar. Era uma forma de es-capar do aluguel, uma forma muito inteligente, diga-se de passagem. Foi lá na cidade grande, eu estava ganhando um bom dinheiro trabalhando com telefonia e era viável para mim, na ocasião. Queria tirar minha família da favela. Mas nem bem começáramos a cons-truir e surgiram as divergências: ‘Ficarei no térreo’, dizia um dos associados, e outro retru-cava: ‘Não, o térreo será meu’. Não havíamos assentado um único tijolo quando vendemos o terreno e dividimos o dinheiro.” Edward era um cara vivido, parecia que tinha um comentário a respeito de tudo. Sua aparência despojada de encantos seria comparável a de um diamante bruto, ainda não lapidado, que guarda em si um brilho oculto e não imaginado. Ao contrário das pedras pre-ciosas, no entanto, a lapidação da vida podia agir obscurecendo esse brilho interno, tornan-do a pessoa vazia por dentro e por fora. Mas parecia não ter prejudicado tanto sua essência, pois apesar dos tombos que aparentava ter levado, Edward era quase ingênuo em relação as pessoas. Tratava a todos com deferência, fossem mendigos ou milionários. E acreditava nelas, emprestando dinheiro e outras coisas de valor que nem sempre eram devolvidas. “Que aproveitem!”, dizia, “Posso trabalhar e conseguir mais. Não será isso que vai me der-rubar.” Eu admirava sua inocência e otimismo, mas não podia deixar de pensar que era um grande trouxa. Porém, jamais pensei em tirar partido desse seu defeito: mantinha distância de sua generosidade. Estávamos na Calha, um gigantesco vibrador de forma côncava que recebe o pó da superfície e o impulsiona através de solavancos para diante, em direção da seqüência de esteiras. Ocupa todo um setor, o 4, e mede aproximadamente sete metros de comprimento. O pó inundara todo o conjunto de túneis durante uma pane no fim de semana, e estávamos sobrecarregados por um quantidade incomum de serviço. O pó na Calha provém direta-

Page 77: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

77

mente das moldadoras, sendo praticamente vaporizado. Bafejos quentes cozinhavam-nos lentamente, trazendo junto partículas ácidas que pareciam carcomer a carne do rosto. En-xugávamos a testa com a manga da camisa e olhávamos para o tecido, esperando encontrar a pele solta ali. Mas era apenas uma impressão causada pelo calor. “Estamos ferrados para limpar tudo isso”, diz Edward mudando de assunto. “O ve-lho e Louis estão no Setor 2, que ameaça parar, os motores estão trabalhando na areia. Po-diam ter chamado diaristas para nos auxiliar, mas Radamanto não foi avisado a tempo e agora estamos fodidos, pois não viriam antes do meio da semana. Aqueles desgraçados dos Recursos Humanos movem-se como lesmas.” Pouco antes do almoço o Sr. Johannes apareceu na Calha e informou que o Setor 1 ia acabar parando. “Se não limparmos logo ali, com certeza os motores vão arrebentar. Radamanto achou melhor que deixássemos o almoço para depois, quando toda aquela área estiver mais aliviada, e pegássemos firme na limpeza dos roletes. Estão acabando aqui?” Concordamos desanimados. Ficar sem comer no horário após tanto trabalho e ainda ter de suar no Setor 1 para liberar os motores seria considerado um crime por pessoas mais esper-tas. Mas nós, que estávamos envolvidos por tudo aquilo, éramos apenas peões num jogo de xadrez em que não havia regras, apenas peões e rainhas. As rainhas perseguiam os peões e era peões contra rainhas, e os peões não tinham a mínima chance, eram devorados sem dó pelas rainhas famintas. Decidimos que iríamos imediatamente para o Setor 1, aliviaríamos os malditos roletes e depois comeríamos. O Setor 1 está praticamente colado à Central de Areia, e consiste em uma rampa por onde uma esteira sobe até o primeiro elevador, o mais baixo. Dali o pó é dividido, uma parte passando pelo resfriador e atingindo o segundo elevador, que leva ao silo, e a outra sendo encaminhada através de tubulações para um caminhão, que a transportará e descarta-rá no local apropriado. Na parte mais baixa da rampa ficam os motores, que se encontra-vam encobertos por uma montanha gigantesca de pó. “Meu Deus!”, exclama Edward ao ver a quantidade de poeira. “Mesmo que ficás-semos até o jantar, duvido que conseguiríamos!” Ainda mais desanimados, começamos a trabalhar. Mergulhamos a pá na montanha, tirando migalhas de pó que lançamos na esteira, repetidamente, repetidamente, repetidamente. E a montanha vai diminuindo, lentamente, e o barulho dos motores encobre o ronco de nossos estômagos vazios, e a certa altura nem percebemos mais que estamos com fome, somos máquinas, máquinas não têm fome, má-quinas são máquinas, são máquinas, são máquinas, SÃO MÁQUINAS. Louis desmaia so-bre o monte de pó. Então percebemos que não somos máquinas, o encanto é quebrado e vamos ajudá-lo. Ele está bem, apenas um pouco fraco, e Edward vai buscar água para dar-mos a ele. Ele bebe um pouco e voltamos a trabalhar. Próximo das duas e meia da tarde, acabamos. Estamos sujos e pretos como blocos animados de carvão. Vamos ao banheiro e nos lavamos, indo desolados para o refeitório, onde sabemos que as sobras frias do almoço nos aguardam. Comemos a comida rançosa e depois nos instalamos à sombra das árvores. Mas um supervisor nos manda embora dali, pois estamos enfeando a vista. Radamanto quer que façamos apenas meia hora de almoço, de modo que já está quase na hora de voltarmos para os túneis. Partimos para os Setores 5, 6 e 7. O pó encobre tudo, tudo. Arrastamo-nos pelos corredores abarrotados amaldiçoando deuses e demônios, supervisores e operários. Quem quer que tenha sido responsável por aquilo, queimaria no Inferno; não tínhamos dúvidas. Dividimo-nos. O Sr. Johannes e Louis cuidarão do Setor 7, que é o maior, enquanto Edward pegará o 6. Eu ficarei no 5, onde as esteiras passam a quase dois metros do chão. É

Page 78: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

78

mais sofrido, mas estando próximo do Letes poderia tomar algum ar. Comecei a dar paza-das, pazadas, pazadas, e de vez em quando parava e olhava para a quantidade de pó que ainda restava. Eram dezenas de toneladas espalhadas pelos túneis, cargas e mais cargas, milhões de pás cheias que deveriam ser lançadas por mim, apenas eu. Trabalhei durante meia hora, imagino, e fui até o Letes respirar. Sentei-me e fechei os olhos, imaginando estar no alto da serra, com lindos passarinhos trinando em meus ouvidos, e o ar fresco, quase tão fresco quanto o ar que sai dos condicionadores de ar. Eu trabalhara em escritó-rios antes, e que saudades sentia dos condicionadores de ar! Mulheres bem arrumadas e maquiadas passando com papéis e máquinas inofensivas e silenciosas, como copiadoras e impressoras e computadores, e condicionadores de ar, os condicionadores de ar! Que esta-va fazendo ali, naquele Inferno? Que diabos tinha feito para merecer aquela punição? De que crimes era culpado, meu Deus? De olhos fechados revia todos os meus atos passados, meus erros e vaciladas, minhas maiores e menores burradas. E não conseguia atinar para um motivo que justificasse aquele suplício, eu errara, é claro, mas quem não erra? Se todos os que tivessem errado como eu estivessem ali, seria muito mais fácil esvaziar do pó aque-les túneis. Mas não, estávamos somente nós quatro sofrendo aquelas misérias, somente nós quatro carregados de pecados que deviam remontar a outras existências passadas, todos acumulados e selados e já determinados para serem cobrados naquela vida, e que vida! Que vida louca! De olhos fechados eu julgava todos os meus atos e chegava à conclusão de que fora injustiçado, não só eu, mas também Edward e Louis e até mesmo o Sr. Johannes, aquele velho sádico e filho da puta. Tendo de lidar com o fim da Literatura e de tudo que valorizava no mundo lá fora, a morte da Poesia e de todos os sonhos de qualquer coisa que não fosse uma máquina funcionando, funcionando, funcionando enquanto o óleo vai se esvaindo pelas frinchas e o óleo é o sangue, o sangue de mártires como nós que suávamos sangue e sofríamos como idiotas para manter todo aquele esquema moderno. De olhos fe-chados desejei estar morto para não precisar pensar em quanto era miserável e infeliz e minúsculo na palma da mão de Moloch, e antecipava o momento em que o mesmo Moloch me esmagaria, a mim e ao Edward e ao Louis e ao Sr. Johannes, aquele velho sádico e ma-soquista, que talvez adorasse ser esmigalhado. De olhos fechados imaginando um mundo diferente, onde todos fossem respeitados não por sua semelhanças mas por suas diferenças, e onde não houvesse máquinas controlando outras máquinas controlando outras máquinas, todo um mundo de máquinas sem outra lei que não fosse produzir mais e mais máquinas. Um mundo de paz e tranqüilidade, como o mundo de meus olhos fechados imaginando um mundo onde os olhos se fechassem para o dinheiro e se abrissem para a importância daque-le mundo de olhos fechados, aquele mundo interno que significava muito mais que tudo que poderíamos juntar neste planeta tão passageiro e tão sem-vergonha. De olhos fechados para a Hades Metalúrgica não podia ver que estava sendo observado, e não podia imaginar que era dedurado por um filho da puta de um velho sádico e que os três encarregados reu-niam-se e desciam as escadarias para os túneis, indo para o Letes e vendo um cara sentado em horário de serviço de olhos fechados, parecendo estar dormindo. E quando abro meus olhos lá estão Radamanto, Éaco e Minos, a fitar-me com rostos carregados entre a surpresa e a indignação e o desprezo, como juizes que julgam silenciosamente um réu que já não consegue mais conjeturar sobre qual crime terá cometido, ou mesmo sobre a punição que poderá aguardar.

Page 79: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

79

Dos cadernos de poesia queimados:

Canino

Nas ruas úmidas de chuva Repicam gotas que agonizam

Explodindo estilhaços de asfalto Gastando as vias de fato.

Chuva que molha os sapatos

Causando frieiras nos pés Assegurando um resfriado Coriza e espirros e tosse.

Troveja o céu, coriscos Gotas de baba celeste Onde ir? Engrossando

Ruído em telhas de zinco.

Nas ruas úmidas de chuva Triplicam as águas que encharcam Paletós imundos e engordurados

Vestindo bonecos de miséria.

Tento fumar na tempestade. Excelente visão, cão molhado

Pingando no cimentado As moléstias da alma!

Mendigos sob marquises gotejantes Embriagados de aguardente e chuva

Soluçam e tremem, sozinhos Em bandos de solidão.

Miseráveis tormentos de carne

Que como telas de Goya espicaçam Todo alheio conforto

Oriundo dos guarda-chuvas que passam.

Carteiras de couro estufadas Cartões de crédito e apresentação Um dos que nada devem eu sou:

Negros, sou cinza.

Nada possuo sob esta chuva

Page 80: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

80

Lavado pela enxurrada imunda Assombrado pelo clarão dos relâmpagos

E vivo, e pronto, e próximo.

Próximo do estio, perco-me Encontro-me no deserto de areias negras Nada de mares, apenas o pó das línguas

E o som esfaimado da multidão.

Unido outra vez à manada Negros, sou cinza e empalideço

Lentamente, claramente Entrego-me nas mãos do Tempo.

Como um cão encharcado

Como um cão humano livrando-se Da água da chuva em seus pêlos

Agito-me.

Page 81: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

81

Capítulo XVII

Conselhos de Ogry Radamanto não me demitiu, mas exagerou no castigo. “Discutimos seu caso, eu, Éaco e Minos, e chegamos à conclusão de que não podemos mais confiar em você. A partir de amanhã, trabalhará no Colosso, que anda com problemas de retenção. Quero ver aquela área limpa todos os dias. Assim poderei estar sempre de olho em você.” O Colosso fica na Rebarba, e começa onde o tremulador acaba. É uma plataforma baixa e larga, de doze me-tros de extensão, onde as peças são recolhidas por operários que as livram dos canais por onde o aço liqüido vaza quando ainda nos moldes. Os canais (que são chamados assim mas na realidade não passam do resultado concreto de seu preenchimento) são levados pelas rampas vibrantes que ficam no centro da plataforma até seu extremo, onde são colhidos em caixas para reaproveitamento. Posteriormente são levados para a Fusão, onde serão derre-tidos e novamente vazados. O importante é saber que o Colosso tem uma esteira que corre ao fundo, recolhendo o pó que cai da plataforma. Devido ao péssimo estado de conserva-ção, entretanto, muito do pó insiste em vazar sem cair na esteira, indo parar no chão. A plataforma tem menos de um metro de altura, sendo a coisa tão mal planejada que para limpar o sujeito tem de ficar de joelhos entre os ferros atravessados da estrutura, e acertar os vãos com a pá é um trabalho difícil. Apesar de ser algo externo, fora dos túneis e portan-to livre de seu calor infernal, toda minha anterior liberdade terminaria ali, pois Radamanto é o chefe do setor e com toda certeza não me daria sossego. Eu não estava nem um pouco contente. Edward contou-me ter visto o velho Johannes subir para a superfície e que correra atrás dele, pressentindo que o velho planejava algo de ruim. Vira quando chamara Rada-manto e gesticulara febrilmente, dando a impressão de estar furioso. “Deve ter me visto sentado, de olhos fechados, e pensou que eu dormia. Daí foi correndo contar a Radaman-to”, concluí. “Sim, só pode ser isso! Eu te falei que o velho era alcagüete, não falei?” Ed-ward estava certo, sempre estivera. Mas eu não imaginava que o velho sádico chegasse aonde chegou. Dava-lhe cigarros, trazia café para ele, e o desgraçado entregava minha ca-beça de bandeja a Radamanto. Eu queria esfolá-lo, e fazer de seu couro um saco de areia para dar pancadas enquanto mijasse em seus olhos. Depois do expediente fui para casa, tomei um banho e disse a minha mãe: “Acho que vou sair do emprego.” Ela não gostou da idéia, e retrucou: “Se sair, quem acha que vai alimentá-lo? Estou velha, tenho problemas no joelho e não posso mais trabalhar. Iordane ganha pouco na fábrica de gaze, e Argentum, como você bem sabe, está brigado com você e nunca dá grande coisa. Dependemos de seu salário, El, para comer. Se sair, como vamos pagar as contas?” Ela estava certa. Se saísse da Hades, tinha poucas chances de encontrar outro emprego. Que faria então? Roubaria? Eu roubara na juventude, mas agora, aos trinta anos, era muito tarde para recomeçar. Além disso, nunca fora um bom ladrão. Roubava roupas e comida, nada mais. Eu precisava pensar. Pus uma roupa e fui até a casa do Erck. Ele não estava, tinha saído com alguém. Vi Ogry e o chamei. Ele aproximou-se de mim, dizendo: “O Erck está chateadíssimo com você. Que fizeram? Está com um ferimento horrível na cabeça, mas não quis falar sobre o assunto. Foi você que bateu nele, El? Pois se foi, prepare-se; terei de aplicar-lhe um corre-

Page 82: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

82

tivo!” E mostrou os punhos. Disse a ele que não havia sido eu, e sim um maluco que o Erck ofendera. Acrescentei que tinha tentado ajudá-lo, mas que apanhara também. “Mas quem é o cara?”, quis saber Ogry. “Diga, que daremos um jeito de pegá-lo!” Tentei faze-lo ver que, de alguma forma, tínhamos merecido aquilo, e que era melhor deixar as coisas como estavam. Ogry relutou, mas acabou aceitando. “Venha, vamos entrar e tomar alguma coisa.” Nos fundos do quintal há um velho tonel cheio de cachaça, dos tempos que a mãe de meus amigos possuía um bar. Ogry ado-rava ficar tomando a pinga daquele barril, que mistura com refrigerante e sorve como se fosse caldo. Ogry tem dezenove anos, mas bebe cachaça como alguém calejado pelo vício. O problema é que quando bebe fica insuportável, aporrinhando qualquer um com suas conversas. Ele foi até o tonel com uma caneca, grande o bastante para conter meio litro, encheu-a até a borda e voltou, dizendo: “Não tenho mais refrigerante, teremos de tomar essa pinga assim mesmo: pura.” Dei um gole na cachaça e senti os olhos saltarem das órbitas. Aquela bebida estava ali já havia uns quatro ou cinco anos, e o sabor era de álcool embolorado. “Como consegue beber isso?”, perguntei, e Ogry virou a caneca na goela: “Assim.” Eu já havia visto até fantasmas naquele quintal de tanto tomar daquela pinga; e isso fazia dois anos, mais ou menos. O que veria agora? Todos os demônios do Inferno? Contei a Ogry minhas preocupações e minhas desventuras na Hades. Foi um bom ouvinte, passando a maior parte do tempo bebendo e não me interrompendo com perguntas a todo momento. Acabamos de esvaziar a caneca, e ele foi buscar mais. Sob o efeito da pinga, estávamos começando a imaginar desvarios. “El”, propôs Ogry quando voltou com mais bebida, “vamos agarrar esse velho e arrancar suas orelhas. Podemos pôr máscaras e dar um jeito de pegá-lo em algum canto escuro e faze-lo sofrer por sua língua grande. Que acha? Daríamos nele uma bela sova, e depois diríamos: ‘Isto é por ser um maldito dela-tor.’” Gostei da idéia, mas apenas como idéia. “Seria irrealizável”, tornei, “afinal, o velho sacaria na hora que tem alguma coisa a ver comigo. Mas, mudando o rumo da conversa, acha que devo sair do emprego?” Ogry pensou um pouco, dando dois goles na pinga. “Sim. E acho que depois disso poderíamos muito bem pegar aquele velho e faze-lo pagar.” Tomamos mais uns tragos, rindo e contando casos variados, sem falar mais no que poderíamos fazer com o Sr. Johannes. Eu decidira que ia mesmo sair, não conseguiria o-lhar para a cara do velho sem pensar em enche-la de bordoadas. Era melhor evitar esse tipo de conflitos; além disso, trabalhar sozinho no Colosso não seria nada fácil. Despedi-me de Ogry, e quase caí na escada que levava ao portão. Estava bêbado como um gambá. Não sei o real significado da idéia, nunca vi um gambá bebendo, mas de alguma maneira sentia-me como um gambá. Mas não por estar bêbado. Sentia-me como um gambá pois estava exalando mau cheiro, um mau cheiro que vinha de meu orgulho ferido. Eu estava apodrecendo, era só isso. Todo mundo uma hora tem que apodrecer, e o orgulho ferido é o princípio de tudo. Aquele velho ferira meu orgulho, expondo-me ao ri-dículo; eu fora julgado, condenado e executado. Ogry estava certo: eu devia mesmo sair da Hades. Meu tempo ali acabara, era só uma questão de esperar pacientemente pelo fim. Mas eu não ia esperar. Não, eu não iria deixar que brincassem comigo, como um gato brinca com o rato que capturou antes de massacrá-lo. “Amanhã peço demissão!”, gritei no meio da rua. Um cão me ouviu, latindo em resposta.

Page 83: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

83

Dos cadernos de poesia queimados:

Grumos de dor

Grumos de dor no silêncio Do quarto que coalha a luz

Da lâmpada que causa sombras Das paredes que me obscurecem...

Grumos de dor no silêncio Da vida resumida a nada...

Queria ser uma atitude drástica Tomada talvez por Deus – mas sei Que não tenho respeito por isto...

Só que me encolho como verme

No fundo furibundo comigo Na teia de meu intestino...

Qual é meu destino?

Respondam os porcos na pocilga O gado que vai para o abate

E os pássaros na alça de mira...

Vou para o túmulo, amigos! E lá, onde a grama cresce

Ao contrário, divertirei chineses Serei bufão na corte da Morte Vassalo de mestre Mistral...

Vamos, vento, vamos! Espalhe minhas cinzas

Sobre as cinzas de meus iguais!

Entre os pares, entre os pares!

Mas nunca houve significativas Semelhanças entre os solilóquios...

Mortos não falam, e quando falam É apenas para aborrecer... Grumos

De dor no silêncio das tumbas Zombando dos vivos e de suas

Mortes preconcebidas.

Page 84: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

84

Capítulo XVIII

O Colosso estava sedento

Sem falar com ninguém, dirigi-me a Radamanto e comuniquei-lhe a minha decisão. “Tem certeza?”, inquiriu, as sobrancelhas encurvadas como vírgulas. “É claro que tenho”, respondi, “acha que poderia encarar aquele velho sem socá-lo? Sei muito bem que foi ele que me delatou. Não poderei conviver com isso, entende? Vê-lo e saber que foi ele o dedo-duro e não poder manifestar meu ressentimento, ter de engolir o ódio que sinto... Não, é melhor que eu vá embora.” Radamanto ficou pensativo um momento; depois sacudiu a cabeça, dizendo: “Tudo bem, verei o que faço. Por agora, venha comigo. O Colosso está afundando na areia.” Acompanhei-o através da fábrica, e atravessando os setores chame-jantes chegamos ao Colosso. Havia acontecido alguma espécie de pane ali; tudo estava parado, e os homens estavam encostados na estrutura. “Que houve?”, perguntou Radamanto a um dos operários. O homem informou que os motores estacaram, e que o rolete principal travara devido ao grande volume de pó que encobrira a esteira. “E ninguém pôde aliviar a esteira?”, quis saber Radamanto. O homem ficou aborrecido. “Não fomos contratados para cuidar da limpeza. Se quer que limpemos, despeça-nos e depois contrate-nos como faxineiros!” Radamanto olhou para mim. “Vê a petulância desses sujeitos? E agora você pede demissão. Estou perdido para lidar com tudo sozinho! Faça-me um favor, El: pegue sua pá, ajude-me a aliviar o rolete e a desenterrar aquela esteira.” Ele arranjou uma pá e começamos a trabalhar. Nunca havia visto Radamanto fazendo aquele tipo de serviço, e ele não estava se saindo muito bem. Suava abundantemente, e a barriga saliente o atrapalhava quando se agachava para enfiar a pá entre os ferros, buscando o pó. “Fazia tempo que não trabalhava com isso”, reclamou comigo, “estou destreinado.” Eu duvidei que já o houvesse feito. Suas mãos eram lisas, finas como as de uma dona de casa. “Você pega o jeito”, encorajei, e em meia hora tínhamos descoberto a esteira. “Vou mandar girar a chave”, disse Radamanto, “Fique aqui vendo se funciona.” Ele saiu e esperei, mas nada aconteceu. “Acho que vamos ter de limpar o rolete também”, disse Radamanto após retornar. “Ali, está vendo? Onde há o contato do rolete com o lado interno da esteira. Está cheio de pó ali, e acho que por isso não está querendo rodar. Está travado.” Vi onde ele indicava, e retruquei: “E quem vai enfiar a mão ali? É um perigo! Se a coisa rodar, arranca o braço do sujeito.” Radamanto afiançou-me que não, que haviam cortado a energia. “Faça isso, El. Você é mais magro, pode alcançar.” Mostrou-me que não podia, metendo-se entre o emaranhado de ferro e esticando o braço ao máximo. “Vê? Não alcanço. Por favor, El, me ajude. Não tenha medo. Nada irá lhe acontecer. Tem a minha palavra.” Relutante, acedi. Enfiei-me entre os ferros que sustém a plataforma, e com a mão direita comecei a tirar o pó da interseção do rolete com a esteira. Afastei o pó para os la-dos, varrendo-o com os dedos, afastando-o do rolete o mais que podia. Quando fui empur-rá-lo para o lado oposto, porém, tendo o braço atravessado de fora a fora na parte interna da esteira, Radamanto gritou: “Como está indo aí?” Girei a cabeça para responder que es-tava acabando, mas então senti um tranco violento puxando-me pelo ombro, e um baque estrondoso que lançou-me de encontro aos ferros. Atônito, caído entre os ferros trançados,

Page 85: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

85

percebi que o rolete girava. Então notei alguma coisa dançando entre o pó que a esteira em funcionamento revoluteava, algo branco e comprido, que me pareceu ser uma cobra. A coisa bailou um pouco mais e parou e vi então que tinha algo como dedos em uma de suas extremidades. Era ela mesma, era a minha mão direita que ali estava, separada de mim. Meu braço fora extraído do ombro junto com a clavícula e a omoplata, arrancando o músculo peitoral direito e grande parte da carne das costas. O sangue jorrava, e com a mão esquerda tentei faze-lo parar, mas a lesão era tão feia que pude ver meus pulmões a-través das costelas. Radamanto me arrastava pelo pó, tirando-me de baixo das ferragens. Não sentia dor; a surpresa de ver meu braço separado do corpo tinha sido o maior de todos os choques. “Homem ferido!”, Radamanto berrava, “Tragam uma maca!” Fui posto sobre uma padiola e levado para uma caminhonete. “O Colosso estava sedento”, ouvi alguém dizer no caminho. Mas pouco importava. Eu sentia que o sangue corria pelo assoalho do veículo, quente. Que o Colosso bebesse o quanto quisesse. Que todos se fartassem. Via tudo esclarecido agora. Minha visão embaralhava-se, como uma TV sem sintonia, e imagens surgiam em meio à estática, como ligeiros fantasmas de curta duração. Vi Andrea Falsetus, que dizia: “O importante é produzir sempre.” Ela desapare-ceu, sendo substituída por Erck, que gritava: “Não seja um bunda mole! Não somos por-cos, temos ambições!” E Hippolitus aplaudia: “Lindo, lindo!” Houve mais imagens e sons, entrechocando-se, e Grumus batia palmas entre elas, dizendo: “Obrigado, senhor poeta”, e Vurmus perguntava: “Isso aí é um poeta?”, e eu sorri e pensei: “É claro que é, seu palha-ço!”, mas ele se transformou em minha mãe, e ela me olhava tristemente e dizia: “Você está manchando o chão que limpei, El. Não sabe o trabalho que dá limpar tudo isso?” Sen-ti-me um péssimo filho olhando para o assoalho todo sujo, e então minha mãe se foi e Au-rum falava: “Você pensa que é Van Gogh?” Mandei-o à merda, mas lá estava Ogry em seu lugar e Ogry dizia: “Quem machucou o Erck?”, mas logo era Lisandrus, e Lisandrus re-clamava comigo que queria outro aparelho de TV. E Iordane e Argentum e até Plumbeum estavam lá, e todos falavam juntos e eu não entendia nada do que diziam. E também Ra-damanto, Éaco e Minos me olhavam, cada um com um martelo na mão, e o abominável Sr. Johannes apontava para mim, dizendo: “De esperar cansou-se um burro!” E Edward vinha e enterrava o velho com sua pá na poeira, e o velho gritava enquanto Louis afirmava que não havia entendido nada. E eu também não entendia o que estavam fazendo todos eles ali na caminhonete, como conseguiam caber todos lá dentro, afinal era daquelas pequenas e no máximo cinco ou seis pessoas poderiam estar ali comigo. E percebi que estivera delirando o tempo todo, estava sozinho e deitado naquela maca sobre meu próprio sangue e a cami-nhonete seguia para o hospital. Ao chegar, fui encaminhado para a Emergência. Dezenas de vultos circulavam ao meu redor, tentando deter a hemorragia, e me envolveram em panos e berravam, mas eu estava triste pois havia perdido o braço com que escrevia, justamente o braço com que es-crevia. Um velho vestido de branco mas com a cara igual à do Sr. Johannes aproximou-se com uma seringa, e tentei gritar para que o desgraçado fosse embora mas não consegui, a voz não saía. E vi que não adiantava mais tentar prolongar aquilo, eu não era mais um poe-ta e sim um homem que morria. Não me considerava mais um gênio, pois mesmo que de-sejasse com todas as minhas forças não haveria qualquer genialidade naquilo. E a morte já não me parecia tão ruim quanto eu antes pensara. Apenas um tantinho dramática... dramá-tica demais para o meu gosto.

Page 86: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

86

Dos cadernos de poesia queimados:

Auto-retrato no Limbo

“Eu sou a chaga e o punhal Sou o rosto e a bofetada Roda e carne lacerada

Carrasco e vítima, afinal...”

Charles Baudelaire – O heautontimorumenos*

I - O superficial

O queixo pequeno Acessório do pouco caráter

Oculto por uma instável camada De barba rala.

O nariz grande Chave que abre

Os portais da loucura Sem giros de maçaneta.

O cabelo em desalinho

Como um ninho É um ninho de idéias

Sem ovos.

Olhos atentos Engolem visões

Absorvem imagens Tragam realidade.

As orelhas são mimos

Gloriosamente esculpidos Em cartilagem barata: Arquitetura ofegante.

E a boca, que sofre

Gengivites esporádicas Não se abre de todo Temendo moscas.

* Carrasco de si mesmo.

Page 87: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

87

II - Em face do abismo

As mãos são tetraplégicas Os braços, feixes finos De músculos carentes Trancados em pele.

Os pêlos na pele

Como capim se alastram Cobrindo a extensão

Que mínima se move.

Sangue de meu sangue Em sangue se contradiz Terra moldada, argila

Porosa substância seca.

Flácidos, membros moles Sugando o ar lentamente

O Criador falido Decretou a extinção.

As mãos são tetraplégicas

Agem como mortas Os pulsos silenciosos

Como sínfises delirantes.

O conjunto é um caos Criativo

A cria recria O Criador sem crê-lo.

A cria recria o Criador sem crê-lo A cria recria o Criador sem vê-lo A cria recria o Criador sem sê-lo

A cria recria: é um apelo.

“Fiz de meu corpo uma alternativa obra! É arte de vanguarda, admirem O resultado de anos de abusos

Ao milagre movente!”

Há parasitas sob os cabelos Ovos de vermes obstruindo poros Caspa despencando como neve Sobre os hirtos ossudos ombros.

Page 88: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

88

Os ossos doendo Dizendo que algo

Está errado: Estão cansados.

O Criador

Tem o poder O poder para curar

Todas as anomalias.

“O Criador sou eu! O Criador sou eu! Eu crio, eu recrio

E continuo Incriado.”

III - O íntimo

Há porém algo além Do tutano no osso Do sangue na veia

Da aparência na fera.

É uma força que bafeja As paredes celulares

Com o ânimo dos mártires Renasce dos carvões.

Como a Fênix, das fezes

Brota, regurgitada Das entranhas estranhas

Do pó na garganta, estala.

Sempre o velho ressurgir O parco entretenimento

Das tardes e manhãs singulares Que repetem-se em relógios.

E há uma pena, o padecer Um pergaminho estático O paroxismo mórbido

Em delatar-se.

Debruçado sobre papel Intimista feito um ego

Mãos tetraplégicas bradam:

Page 89: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

89

“Senhores, eis minha alma!”

IV - Os ossos

Eu sei que vou Ficar

Eu sei que vou ficar Aqui para sempre.

Um repouso para os ossos

No túmulo da vida Repouso para ossos cansados Gastos ossos desarticulados

Movendo A carne A alma

O verme.

Eu sei que vou Ficar parado Ficar parado

Aqui para sempre.

Emagrecer ao máximo Dissolver até

O limite, e ficar Parado aqui para sempre.

Viver no túmulo do corpo

Sofrer a morte lenta do corpo O descanso da vida, parado

Aqui para sempre.

V - A ausência

Não estou aqui Eu sou

Não estou Aqui

Faz favor abram

As persianas Deixem entrar Alguma luz.

Page 90: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

90

Eu não Estou aqui Aqui sou

Não

Faz favor abram Meu coração Deixem sair Alguma luz.

Não, eu

Não estou Eu não sou

Aqui

Faz favor abram Abram tudo Abram tudo O que há.

Não aqui Eu não Sou eu Aqui

Faz favor abram

A porta louca O nariz está

Sob o capacho.

Não sou aqui Eu que Não sou

Eu

Faz favor abram Quero entrar Aqui não sou

Em mim.

Aqui sou Não há Eu sou Não há

Faz favor abram Tudo faz favor

Page 91: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

91

Ficar aqui dentro É ficar fora.

VI - O desejo

Tal dissolução É união

Tal retração É distensão.

Virtuose da pobreza

Que do lixo se levanta Para ser o que contraria

Executar o indevido.

Unidos Corpo, espírito

Na miséria Estendida.

“Minha pele será mármore ou terra Meus braços se abrirão como a cruz

Meus olhos, como holofotes Iluminarão montanhas e vales.

“Um aeroplano de carne híbrida

Torturado por ventos gelados Sobrevoando as esquinas da fúria Nas cidades vazias de corações.

“Arrebentarei meu corpo nos picos

Cobertos de névoa e despudor Explodirei em fagulhas de dor

E meu fim será eterno no Limbo!

VII - Intermezzo

Baixem a espada no túmulo Culminem-na com terra

Dissolva, metal sangrento Paus e pedras outra vez.

Frutos nas árvores

A procura pelas respostas Bailam no vento, amigos Com sílabas de veneno.

Page 92: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

92

Antropomorfo celestial

Luzir adamantino És caos; és síntese

De objetivo abstrair.

Sensatos são os loucos Maravilhosos ébrios

Cheios de tato: Aspergem seus hiatos.

Angariar metáforas

É obrigação dos poetas Os fatos, todos eles

São meros fomentos.

Fermentem, homens de gênio As palavras jamais pronunciadas

Espalhem-nas pelas pradarias, colinas Nos vales e praças cimentadas dos corações.

VIII - A velhice

Rugas amigas Velhice

Sabedoria Somos todos antigos.

Somos todos antigos

Somos todos Antigos

Objetos carnais.

Envelhecer é fenecer Sem glória

Esquecer quem somos Um prêmio reles.

Quem foi que

Cobriu-nos os olhos Com vozes escuras

Neste Limbo insano?

Quem foi que Roubou-nos dos anos

De inocência feliz

Page 93: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

93

Para este exílio?

Oblívio, abre teu seio! Agora sei que sou muitos E, por ser tantos, eu sei

Que sou nada.

IX - O Nada

O Nada ocupa espaço enorme Nada pode contê-lo

Não há como detê-lo Nada que o transforme.

O Nada é o Nada é o Nada

Um ciclo que não muda Adversidade sem ajuda Deserto de água parada.

E flutuando na corrente vazia

Corpos e mais corpos arrastados Para longe da luz do dia

Inertes, em casulos pesados

Sonham a vida, na fria Condição de anulados.

X - A prece

Dai-me, Ó Criador, mais Do que tenho Do que sou Do que fui.

Eu fui, Ó Criador Criador também Eu criei o nada

Que sou.

Dai-me, Ó Criador, mais Do que o nada

Que tenho Que sou.

Page 94: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

94

XI - O fim e o ser

No Limbo o ser não mais importa. O sol não brota da montanha O mugido do gado é pálido

Seu leite nervoso e estagnado.

No Limbo o ser não mais importa. O sangue congestiona as veias

O cérebro é peso para papel A alma um terno de funeral.

No Limbo o ser não mais importa.

Os jornais anunciam esterco A tinta apodrece em canetas

A celulose é o prato principal.

No Limbo o ser não mais importa. Os cigarros fumam-se As bebidas bebem-se

O delírio é coisa comum.

No Limbo o ser não mais importa. A carne já não se esfacela Não há esfarelar de idéias

E Fim escreve-se com terra.

Page 95: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

95

Epílogo:

Uma pira literária

Ó amigos, não sois desconhecedores dos males antigos Vós que os sofrestes, um deus dará fim também a estes.

Virgílio – A Eneida

Logo faria uma semana que o homem do cavanhaque se fora. Encaixotando seus livros, mãe e irmã atarefadas abriam um a um, procurando fotos, possíveis bilhetes ou es-critos que ele por acaso tivesse enfiado entre as páginas, como costumava fazer. A irmã encontrou uma foto dentro de um Hemingway, tirada num bar, onde o homem aparecia mais jovem, com feições de idiota, tendo um cigarro entre os lábios e uma garrafa de tequi-la na mão. Ao lado estava seu amigo mais próximo. A garota mostrou a fotografia para a mãe, que comentou: “Ele não tinha mesmo jeito.” A irmã sorriu tristemente. Arrastaram as caixas com os livros para fora da casa. As roupas já haviam sido dis-tribuídas; agora, os livros. Um veículo da prefeitura viria buscá-los e os levaria para a bi-blioteca local. Os cadernos de poesia estavam amontoados a um canto da sala, empilhados ali pela irmã. “Será que a biblioteca se interessaria por eles?”, perguntou à mãe, que negou em silêncio, meneando a cabeça. “Acho que deveríamos queimá-los”, disse enfim. E pen-sou: “Se estiver no céu, a fumaça o alcançará; do contrário, as cinzas poderão chegar até ele.” Tal pensamento causou-lhe imensa tristeza. Armaram uma fogueira no quintal. A irmã foi pegar os cadernos, e ao ver as fagu-lhas lembrou-se de um filme antigo, onde gregos queimavam em piras seus companheiros mortos em batalha. Mas unicamente pensamentos seriam queimados ali, pensamentos que jamais seriam conhecidos. Página a página, os poemas foram sendo lançados ao fogo. A madeira gemia enquanto crepitava, as chamas lambiam as folhas, consumindo-as rapida-mente. Vestindo luto por dentro, as duas mulheres agiam como crianças que alimentam fogueiras de junho com folhas velhas de cadernos usados em períodos escolares já passa-dos. Mas havia apenas pensamentos naquelas páginas amareladas, pensamentos que não faziam mais qualquer sentido. Quem os pensara já não existia. Terminaram de lançar o último maço de encontro ao fogo, e observaram enquanto tudo era consumido. No entanto, uma das folhas elevou-se no vapor da fogueira, parcial-mente devorada, mas ainda intacta quanto ao conteúdo escrito. Flutuou no ar por alguns segundos, tombando, logo em seguida, ao pé das duas mulheres. A irmã abaixou-se e a apanhou. Era um poeminha enigmático e bobo, que falava a respeito de uma caneta que se acaba. Devia ter sido escrito com ela, pois os dois últimos versos haviam sido escavados no papel e quase não havia tinta nos sulcos, como se o homem tivesse usado a caneta já seca para completá-los. Chamava-se “O fim”. A irmã embolou o papel e o lançou de volta ao fogo, onde ele terminou de queimar.

Page 96: Estadela na Hadesstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3089474.pdf · 2011-07-12 · “Minha irmã era traficante de drogas na cidade grande”, ... um sorriso angélico de decaído.

96

Dos cadernos de poesia queimados:

O fim

O A beirando o O acentuado agudamente Caminhou pela linha torta

Em branco de sua Vida.

O A berrando entre o I e o E

Morreu junto ao grito De agonia final

Da caneta acabando.

Essênios do sono ensinando Os provérbios mais tolos...

Produzido em maio de 2005