Essa historia dá um livro

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Este trabalho consiste em uma coletânea de histórias de vida de pessoas com idade igual ou superior a 65 anos. O objetivo geral era, a partir dela, produzir um livro-reportagem que pudesse registrar memórias e considerações quaisquer de indivíduos comuns que, apesar de serem parte fundamental da composição de nosso cotidiano, em geral não são de interesse do jornalismo tradicional. Este, a partir da premissa do ‘extraordinário’, muitas vezes ignora que a realidade é composta muito menos pelo elemento extremo do que por pessoas com histórias e percepções dotadas de alguma singularidade, as quais moldam a visão e impacto de cada sujeito no mundo. Assim, o livro busca dar luz e trazer à tona algumas dessas características presentes em cada entrevistado.

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BIANCA BORTOLON

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sumário

agradecimentos .................................................................................... 9apresentação ......................................................................................... 11

antenor costa filho, 1940 ..................................................................... 15anair bernabé catabriga, 1920 ............................................................ 21edith pacheco vieira, 1949 .................................................................. 29josé shimabuko, 1934 .......................................................................... 35jacyra lyra alvarenga arnone, 1933 e gentil arnone, 1921 ............... 41liz alves amorim, 1935 ......................................................................... 47arlene lucymaire rampazzo schulthais, 1938 .................................... 55edson vieira da fonseca, 1935 ............................................................. 65margarida ferreira de oliveira, 1936 .................................................. 73maria das graças, 1948 ........................................................................ 79italina pin, 1931 e maria das graças, 1948 ........................................ 83italina pin, 1931 ................................................................................... 87

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a todos que fizeram parte deste trabalho, direta ou indiretamente, meu sincero “muito obrigada”. sem os sorrisos, lágrimas e carinho de vo-cês, ele seria pouco ou nada além de palavras no papel.

a meus pais e pão, que tiveram a paciência de ouvir e oferecer todo o suporte necessário durante os quatro anos de graduação, sinto que devo ir além dos agradecimentos formais: meus sinceros parabéns.

agradecimentos

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apresentação

O cérebro é o órgão mais importante do corpo humano. Sem ele, somos meros pedaços de carne: é a partir dele que todas as nos-sas funções e sensações acontecem. Entretanto, em algum momento impreciso da história, houve uma troca subjetiva. Licença poética. As sensações e sentimentos fugiram ao coração, que os acolheu calorosa-mente. Deixou de ser órgão: virou lar.

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Este livro é uma coletânea de histórias que, apesar de perdidas, estão guardadas no mais especial dos lugares: o coração de quem as conta.

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antenor costa filho, 1940

Esses relógios aí são a minha distração. Sou eu que dou corda, sou eu que acerto, sou eu que faço tudo. O dia em que não dou cor-da eles param (risos). Esse cuco era do meu pai, peguei ele todo des-montado e consegui uma pessoa que o restaurasse. Tá funcionando, tá beleza. O oito ali também era. Tenho até aqui o nome do rapaz que restaura, ó. Guardo, né, já que de vez em quando dá algum problema. São dois, pai e filho. O filho é relojoeiro e o pai faz a restauração da madeira. Esse outro aqui deu problema, tem até que resolver.

- Como surgiu seu interesse por relógios?Uma boa pergunta. Por que eu gosto do relógio? Olha, eu sou

apaixonado por eles. Já falei com minha mulher que se um dia nós nos separarmos, eu levo meus relógios (risos). Eles são meus e eu não abro mão. Aliás, sou meio parado em relógio. Se eu tivesse dinheiro, uma coisa teria e que vi no filme uma vez: um camarada abriu uma estante e tinha uma coleção de relógios de pulso. Ele abriu a gaveta, escolheu e botou no pulso. Cada dia um relógio. Eu gostaria de ter esse poder, mas infelizmente não tenho. Mesmo assim tenho três de pulso, mas só uso um. Um reloginho muito vagabundo, chama Condor. Mas é um Condor com caixa de aço, à prova d’água. Não tiro para nada: vou à

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praia, piscina, pescar, mexo dentro d’água, tudo com ele. O único pro-blema que deu foi a cor da circunferência, que era dourada. O dourado já foi e agora é branquinho. Tudo bem. Mas é isso aí.

- Você tem outros hobbies?Pescaria. Pescar.- Você começou a pescar com quantos anos?Bom, aí tem uma história. Quando eu era adolescente, solteiro,

dezessete, dezoito anos, eu fazia caça submarina. Morava com papai e mamãe lá na Praia do Canto. Nas férias, todo santo dia eu e dois ou três amigos saíamos para pescar, para mergulhar. Depois, aos dezeno-ve, vinte anos, aquela coisa, virei caçador. Na realidade, eu gosto do ambiente da natureza. O negócio era ficar lá. Mas um dia proibiram a caçada. Minha espingarda tá lá, guardadinha, lubrificada, cheia de coisa. Registrada, tudo certinho, mas não posso usar. Como não posso mais caçar, virei pescador (risos). O negócio é estar lá no ambiente. Às vezes quando estou pescando vejo alguma coisa que me atrai, paro de pescar e vou ver! Por exemplo, durante muitos anos fiz acampamento selvagem. Você vai, arma a barraca, arma não sei o que, faz o circo todo... é viver dentro daquele ambiente.

Eu tinha um primo que infelizmente já está pescando nas águas lá de cima. A gente pescava muito juntos, no mesmo barco, porque nos entendíamos. De um olhar pro outro e saber o que queria. Isso é muito importante em uma dupla de pescadores, porque aí você não precisa falar ou brigar. É assim, no olhar! Eu lembro o dia que nós saímos para fazer acampamento selvagem sem um guia de pesca – ou seja, a gente fuçava até encontrar o local dos peixes. Uma das formas de encontrar é ir andando até o rio, observando a mata ciliar e tentando ver além dela. Quando você vê um clarão dentro da mata, significa que ali dentro não tem vegetação. Possivelmente uma lagoa. Tá entendendo? O rio naquela região do Mato Grosso, nós viajávamos muito para lá, tem época em que está completamente seco, extremamente raso e tem época que ele sai da caixa – a gente chama de caixa, né, as margens. Ele sai da caixa e vai embora mata adentro. Quando ele volta para a caixa de novo, ele deixa nas depressões a lagoa, que é onde você vai atrás dos peixes prisioneiros.

“Armênio, parece que tem uma lagoa ali, vamos dar uma olhada”. Encostamos o barco e eu fui para dentro do mato. Armênio, meu primo,

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viu uns tucunarés. “Vou tentar pegar esses tucunarés aqui e você vai lá. Qualquer coisa me chama”. Ele ficou lá no barco pescando, amarrado na árvore, e eu fui entrando na mata, procurando... Olha, eu dei com um espetáculo que raramente a gente tem chance de ver.

Veio um bando de tucano, com bicões deeeste tamanho. Era uma fruteira que havia por ali e eles estavam fazendo uma arruaça comendo as frutinhas. Eu parei, sentei e fiquei olhando. Daqui a pouco meu pescoço começa a doer e eu apoiei na árvore. Fiquei com dor nas costas. Deitei e fiquei olhando os tucanos fazendo festa lá em cima! Daí a pouco chega o Armênio: “Ô! Rapaz, você sumiu, fiquei preocupado e vim te procurar”. Até esqueci de avisar. É isso que me atrai nessas pescarias. Eu já vi coisas que você não... não dá para acreditar. Parece uma coisa gozada. Vi até uma chuva de flores!

- Como assim?Na minha época de caçador, a gente ia lá no Cerrado mesmo,

no Mato Grosso, Minas Gerais. Nós estávamos em Minas a essa altura. É a chamada caçada de espera. Era um ritual que nós tínhamos. Saía-mos logo depois do almoço, duas ou três da tarde, um calor de rachar, e nós estávamos procurando uma árvore que chamamos de caraibeira. A caraibeira é parente muito próxima do ipê amarelo, então elas têm a mesma característica: quando dá flor, ela fica toda amarela, as folhas caem e ficam com aquele tronco meio... louco, cheio de flores amarelas que o veado gosta de comer quando caem no chão. Você sobe, empoleira na árvore e espera o veado vir comer a flor para pegar o bicho. Então a gente saía geralmente em três ou quatro pessoas, marcava quem fazia o que, cada um escolhia sua caraibeira e às dez da noite nós descíamos do poleiro e íamos para o carro, o acampamento ou o que for. Vai botar isso tudo na sua história não senão você vai escrever um livro! (risos)

Mas aí tem todo um ritual. Você sai e parte em linha reta, por-que o cerrado é cheio daquelas árvores tortas e tudo muito limpo, com uma vegetação meio amarelada também. Quando você chega na ár-vore, tem que procurar um arbusto qualquer, quebrar o arbusto e bo-tar no pé na árvore com o ramo virado para a direção que você veio, porque quando você desce à noite, está tudo muito escuro e com uma lanterna só você não encontra o caminho, então é preciso marcar o rumo. Logo mais, outro trabalho: subir na árvore. E tudo isso levando

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mochila, roupa de frio – porque com o calor do dia você até esquece que faz frio à noite –, a espingarda, você leva tudo. Sobe na árvore, leva uma rede e lá em cima arruma de forma que fique bem presa. Não pode fazer xixi mais, acabou. Se fizer, o bicho não entra, não adianta (risos). Aí é sentar e ficar esperando. Quando começa a entardecer, que escurece e chega o frio, tem que pegar o casaco e começar a vestir, bo-tar o gorro de lã na cabeça, uma espingarda com lanterna armada por cima do cano e abrir as orelhas, porque o veado é absolutamente sutil. Você não ouve os passos dele: ouve quando ele pisa na folha.

Mas aí, por coincidência, fui para uma caraibeira que eram duas árvores, uma do lado da outra. Eu escolhi a que estava mais fácil de subir, fui lá, amarrei minha rede e sentei. Fiquei me divertindo quando ainda era claro porque no tronco em que eu estava tinha um casal de periquitos, um ninho, e eles ficaram incomodados com minha presen-ça. Iam lá, brigavam comigo, faziam não sei o quê. Eis que da árvore desceu um bando de sofrê. É um pássaro... um pássaro curioso. Ele é todo preto nas costas e o peito, a barriga, é vermelho, mas só quan-do solto na natureza. Eles chamam de corrupião. Quando você bota o corrupião, ou sofrê, na gaiola, o vermelho vira amarelo. Dizem que é porque na gaiola ele não consegue o que come na natureza, que dá cor a ele. No caso lá eles chamam de sofrê, porque quando ele canta parece que está falando “sofrer”.

Mas então, desceu um bando de corrupião! Eles pousaram a um metro, um metro e meio de mim. Fiquei quietinho olhando. Mas era um bando! Tinha mais de cem! E eu vi. Eles chegam no tronquinho da flor, dão uma bicada, cortam a flor, ela cai e eles chupam o mel que tem lá dentro. Agora, imagina cem, oitenta corrupiões cortando aquelas folhinhas! De repente, quando eu vejo, estava chovendo flor! Pensei ‘Gente, cadê minha máquina fotográfica, cadê uma filmadora que eu não tenho para gravar isso?’. A única filmadora que tenho é minha me-mória. Fiz questão de ficar absorvendo bem aquilo porque sabia que não havia outra forma de guardar a imagem. E bem dizendo que eles estavam jogando flor nova no chão, o que acaba chamando o veado (risos). Que era meu objetivo, né!

Mas são essas as coisas que a gente vê na natureza e que aqui na cidade não adianta. Eu já fui naquele zoológico que tem aqui. Você vê

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onça... mas que graça tem ver uma onça presa em uma jaula? Agora vai lá e fica ouvindo a onça do seu lado, como eu fiz. Como é que dor-me? Você em uma barraquinha assim, de lona... O rapaz que estava lá conosco, um senhor na verdade, era ele e um primo meu. Não esse que disse antes, outro. Era onde o Rio das Ervas deságua no São Fran-cisco, lá para cima de Pirapora, esses cantos. O senhor dizia: “Não se preocupa, ela está rosnando é para a lua”. Tudo bem, acho isso ótimo, mas como dorme? Olha... Passei a noite inteira dentro do barraco, de barriga para cima, com a espingarda no peito, dois cartuchos de chum-bo pesados e se ela aparecer... E o pior é que ela para, mas daí a pouco você ouve “rrrau, rrrau, rrrrau”. Desce um sorvete pela coluna, porque você jura que ela tá ali do seu lado! E fica nesse negócio toda a vida. Cada vez que ela rosna você acha que ela está em algum lugar. Mas é o vento, o vento que traz o rosnado dela, o barulho, sei lá. É o som que se ouve diferente.

- Você chegou a se mudar em algum momento ou só viajava?Não, a gente ia lá só para caçar e pescar. Moro no Espírito Santo

desde 1950, mas nasci em Minas. Fiquei dez anos lá. Sou de 1940. Cos-tumo dizer que sou terceira idade e meia (risos). Já estou namorando os setenta e cinco, não é? Como diz um poeta que não me lembro o nome, eu hoje tenho muito mais passado do que futuro. Muito mais lembranças do que projetos. E não quero viver mais setenta e cinco anos não, ô louco!

Mas é isso aí. Uma coisa que tento fazer é escrever um livro contando todas essas histórias. Tenho isso escrito no meu computador, mas... é difícil, às vezes você se perde... Eu escrevo mas a gente fica pre-ocupado: quem é que vai ler essas porcarias todas? Não é todo mundo que tem essa mesma ideia, essa mesma coisa. Então eu... quando estou inspirado, eu sento no computador, pego meu causo e vou escrevendo, escrevendo... Não sei o que vai dar um dia. Mas se eu não publicar nada, quem sabe meus filhos fazem uma obra póstuma? (risos)

Agora, o porquê dos relógios não sei. Eu tenho atração por reló-gio. Eu tenho uma... necessidade de saber as horas. Acordo de madru-gada e acendo a luz só para ver que horas são. Depois durmo outra vez.

Mas agora eu sou todo seu!

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anair bernabé catabriga, 1920

Eu adoro futebol. Dizem meus filhos que eu entendo, mas não entendo muito não. Mas adoro. Aliás, qualquer esporte eu gosto. Só não gosto de tênis. Mas basquete, vôlei... Agora mesmo estava assistin-do, tá passando Estados Unidos e Holanda, campeonato mundial de vôlei feminino. As brasileiras já ganharam três partidas. Jogaram três vezes e foi 3 a 0 em todas. O time masculino, coitado, chegou na final e perdeu. Fiquei com uma pena!

De futebol eu torço pro Vasco da Gama, não sei bem o porquê. Em casa, a gente não tinha rádio nem nada na época. Em 45 mudei para o Rio e gostei do Vasco. Mas eu também gosto de uma porção de times: Fluminense, Santos e Palmeiras. Só não gosto do Flamengo (risos). E meus filhos são todos Flamengo! Menos um, que é botafo-guense, mas os outros acho que são todos flamenguistas.

- Também sou vascaína. Tadinha... Tá ruim, né? Mas tem que acreditar que vai melhorar.- Em relação aos esportes, algum momento especial te marcou? Estive na final da copa em 1950. Olha, esse dia... acho que foi

o dia em que mais vi gente na vida. Foi no Maracanã, né. O Brasil era campeão até com 0 a 0, mas no finalzinho perdeu de 3 a 1. Foi muito

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triste, o pessoal saiu muito triste mesmo. Mas não tinha bagunça naquela época. Agora os jogos são mais violentos, mas antes não era assim. Saiu todo mundo quietinho, muita gente chorando... Muita gente chorando. Os repórteres que estavam falando para a rádio, porque ainda não tinha televisão, estavam chorando também. Eu fiquei logo abaixo de onde eles estavam falando. Não lembro o nome deles, mas lembro que estavam os dois chorando. Eu não cheguei a chorar, mas fiquei triste, né. Eles eram campeões só com 0 a 0 e perderam de 3 a 1, poxa. E todos os jogos do campeonato, o Brasil não perdeu nenhum! Logo no último... E agora foi pior, né (risos). Foi vergonhoso. Nem falo. Mas naquela época não foi como nessa Copa, com um monte de seleções e em vários lugares do país. Era fácil conseguir um ingresso. Meu pai ainda morava no interior do Espírito Santo e foi assistir. Assistiu um monte de jogos. E acabou que o Brasil foi campeão só depois. A primeira vez acho que foi em 58. Não sei em que Estado, em qual nação. Mas o jogador que me marcou foi o Pelé! País pela primeira vez campeão e ele estava jogando com dezesseis anos. E meu pai faleceu na véspera. Vinte e oito de junho. Enterramos ele dia vinte e nove e nesse mesmo dia o Brasil levou o campeonato.

Mas não sou do Rio de Janeiro, não. Nasci em Castelo. Aos de-zessete anos, minha família foi morar no norte de Colatina. Minha irmã, quando casou, foi morar no Rio e eu passei uma temporada na casa dela. Ela morou... até faleceu por lá, foram mais de cinquenta anos. Morreu há dois. Dos nove irmãos só tem eu e a caçula.

Casei em 51, com trinta e um anos. Não sei... aos dezessete na-morei um rapaz, mas não deu certo. Depois fui para o Rio, fiquei um tempo lá, trabalhei com meu cunhado – ele era alfaiate e eu ajudava na costura. O tempo foi passando, passou e casei só com trinta e um. Dia cinco de maio. Ficamos juntos quarenta e dois anos e há vinte e dois sou viúva. Até poucos tempos estava morando sozinha, agora que tem uma moça comigo. Casaram todos os filhos, né. Mas quando o pai faleceu eles já estavam todos casados.

Mas antes dessa moça e do meu marido falecer, morava eu, ele e uma menina. Ela me ajudava e estudava. Formou professora. A gente pagava o salário a ela, mas ela estava aqui como filha. Quando se for-mou, não conseguiu emprego por aqui. Como ela era de Minas, aca-bou voltando para a casa dos pais, porque a prefeitura de lá conseguiu

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algo para ela dar aula. Tá formada, fez faculdade e tudo. É como uma filha, só que está longe. Ela sempre liga e vem aqui nas férias.

- E os filhos biológicos?Tenho cinco filhos. Duas moças e três homens. Você vai até rir... Nove meses e sete dias de casada eu ganhei a primeira filha

(risos). Em menos de cinco anos, ganhei quatro filhos. E criei todos sozinhos, trabalhando muito em casa. A Lúcia, caçula, veio daí sete anos. Pensei que não tinha mais, daí aconteceu. Estava com quarenta e quatro anos já. Tinha dado o berço, as roupas... tive que fazer tudo de novo. Mas imagina antes, criar quatro crianças com menos de cinco anos? São quatro banhos para dar! Mas sempre arrumei tudo. Traba-lhava muito, gostava da casa bagunçada não. Acho que estava melhor que hoje (risos). Agora não aguento mais fazer a faxina sozinha.

- Vamos ver se entendi, então. Você nasceu em Castelo...Nasci em Castelo, na Fazenda do Centro. Os donos eram os pa-

dres, acho que franciscanos. Meus pais nasceram, casaram e tiveram três filhos em Alfredo Chaves. Em algum momento os padres chama-ram ele para morar lá. Não sei como foi, mas os padres começaram a vender dez alqueires de terra para algumas famílias. Meu pai aprovei-tou e comprou. Eu nasci já nesse lugar. Ele trabalhava na roça e minha mãe fazia o serviço de casa. Bom, pelo menos nunca vi ela ir para a roça. Era uma fazenda de escravos lá. Conheci muitos. Agora esque-ci, mas tinha o Nani, o Alfredão, a velha Silvina, que corria atrás das crianças com uma foice (risos). Eu implicava muito com ela... Saí de lá com dezessete anos para morar no norte de Colatina.

Ele vendeu o terreno que tínhamos na fazenda, comprou um maior e aí fomos nós. Até hoje, bem... não é do meu pai, (risos) mas é dos meus sobrinhos o terreno. Não tem mais filhos de meus pais, só eu e minha irmã, e ela mora na Glória. Ela tem 90 e eu 94. Eles falam que somos gêmeas. “Vocês são gêmeas?”. Eu não acho tão parecido. Ela parece mais velha do que eu porque trabalhou muito na roça, teve nove filhos... Os últimos foram gêmeos, um casal. Fazem ano amanhã. Ela lutou mais do que eu, sabe. Acho que isso envelhece mais. Mas ela tá bem, tá forte. Fez noventa há poucos tempos. Teve uma festa bacana!

Mas voltando. (risos) Eu posso te falar da situação do Brasil nes-sa época, também. Eu tinha dez anos. O Getúlio Vargas tomou a posse

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do Brasil, né. Nós morávamos na Fazenda do Centro, como te disse, e o pessoal de Castelo foi tomando todos os lugares. O prefeito e as pes-soas, assim, todos fugiram para a Fazenda. Ela era enorme. Era não, né, ainda está lá. Inclusive tenho que visitar, porque ela estava muito ruim e agora foi reformada. A igreja em que fui batizada... estou querendo ver. Da cidade de Castelo até lá demoram quarenta minutos. Mas de carro. Na minha época só andávamos a pé, não tinha carro, estradas... nada. Fui ver um carro só com catorze anos, acho. A vida da gente era assim no interior. Não existia. E quando fui para Colatina era ainda pior, afinal lá era mata. Um vizinho bem longe do outro. E eu adorava, viu. Até hoje gosto. Só não volto para a roça porque já estou há muito tempo fora. Morei cinco anos no Rio e cheguei aqui em Paul em 1956. Casei em 51, no interior de Colatina, e vim para cá em 56.

- Você já pensou em se mudar?Nunca quis mudar de Paul. Meus filhos sempre quiseram que eu

saísse, diziam que comprariam apartamento... Mas não. Me sinto bem aqui. Eu gosto. Os vizinhos quase todos foram embora... ou morreram. Acho que sou a pessoa mais velha. Havia uma aqui, a dona Soraide, ela morreu há seis meses. Tinha noventa e seis anos. Mas olha, mudou muito aqui. Eram poucas casas, mais lá para cima, no morro, era va-zio. As pessoas tinham os lotes e foram fazendo casas. Agora encheu. Estrada aqui era só de barro mesmo. Muito depois que botaram o pa-ralelepípedo e há pouco asfaltaram. Só passava o carro do lixo. E mais para lá tinha o bonde.

Mas eu estava contando da tomada do Brasil por Getúlio Var-gas, não é? Ele não ganhou eleição nem nada, só tomou. Não sei como a gente fala, mas foi tomado, no meu ponto de vista. Isso aconteceu em 1930. Em 32, aconteceu a revolução de São Paulo com o Rio, quando São Paulo quis separar do Brasil e formar um Estado próprio. Durou três meses. Eu estava com um irmão lá e ele foi ferido. Levou uma bala no ombro, mas só de raspão. Ele lutou pelo Rio, estava servindo lá. Antes dele voltar para casa, um dos meus outros irmãos, estava no exército durante o Levante Comunista de 35, em que a Praia Vermelha foi bombardeada. E ainda teve a Guerra, né. A mundial. Nós assis-tíamos muitas coisas tristes. O pessoal italiano, por exemplo, e digo isso porque sou de origem italiana, foi bastante maltratado, os italia-

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nos brasileiros daqui. Não sei o porquê disso... eles estavam aqui, não estavam lá!

Guardo até hoje o retrato dos meus avós, italianos, pais de mi-nha mãe. Foi tirado na Itália, durante a Primeira Guerra. Não sei se você sabe, mas teve a Primeira e só depois a Segunda. Ele foi passear lá e voltou novamente ao Brasil quando a guerra começou. Os filhos eram todos nascidos no Brasil, só os avós são italianos.

E ainda teve 1964, quando o Exército tomou o Brasil. Foi um golpe, né? Eu vejo como um golpe. Nessa época eu já morava aqui em Paul. Meu marido trabalhava ali na Ferro E Aço, ficou com medo e tudo... mas não deu nada não. Começou a trabalhar e ficou lá até o final, até se aposentar.

Já o Getúlio... ele fez muita coisa certa, mas também fez muita coisa errada. Nossa, na época em que ele mandou queimar o café o povo da roça sofreu demais. Mas a gente foi vivendo. Eu era muito criança, e quando criança a gente não bota muito sentido nas coisas. Hoje em dia as crianças são mais... né? São bem diferentes. Eu sempre falo: acho que a gente dormiu, o mundo acabou e veio um novo. Não tem nem semelhança com aquilo que vivi! Nem o pessoal da roça. Tem tempo que não estou indo por causa do meu problema na coluna, mas sempre visitei meus sobrinhos. Mudou bastante. Agora a roça virou quase cidade. Tudo que temos aqui, temos lá. Estudar... todo mundo faz faculdade lá na roça. Tem ônibus que leva e que traz para Cola-tina... Tenho sobrinhas que fazem isso, toda noite. Chegam em casa meia noite. Uma delas até faz aquela medicina de animais... veteriná-ria! Tenho muitos sobrinhos, segundos sobrinhos, (risos) todos fazen-do faculdade. Na minha época existiam só algumas escolas bem ruins e nem tínhamos professora, era só uma pessoa que sabia um pouco e dava aula. Não eram formadas. A roça mudou muito do tempo que a gente morava, viu. Custou muito chegar carro lá. Tudo era só a cavalo. Nós íamos fazer compras, gastávamos três dias.

- Três dias?!É, menina! (risos) Agora é quarenta minutos, mas antes a gente

ia para Colatina fazer compras e demorava três dias. Porque íamos até Marilândia, de lá para Colatina comprar as coisas, de volta para Ma-rilândia e no terceiro dia voltávamos para casa. Viu só a diferença? E

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agora são só quarenta minutos! E todo mundo tem carro por lá. Mu-dou muito. A vida mudou muito.

Mas naquela época... não sei. Eu achava que era melhor. As pes-soas eram mais alegres. Não diziam tanto. Na roça mesmo, disseram que agora já tem até droga. Na minha época a gente nem ouvia dizer dessas coisas. Era um tempo alegre, minha filha. A gente ia para igreja, ia em festa, de um lugar para outro com o cavalo... Passava mata, mata e mais nada. Não tínhamos medo de nada.

Hoje em dia... eu não assisto jornal. É tanta coisa ruim que ve-mos lá, não gosto mais não. Minha televisão agora é só esporte ou re-ligião. Só. Muito difícil ver outra coisa. Só a novela das seis, porque o terço acaba nesse horário.

A minha vida sempre foi a mesma coisa. Eu era moça de interior, sabe. Caseira. Mas minha irmã, a que está viva, não. O baile podia ser longe o que for, ela montava a cavalo e ia. Eu não era muito animada não, mas ela era demais! Gostava muito. Até hoje, na verdade. Há pou-cos tempos ela fez aniversário e dançou. Eu fui embora cedo porque não estava passando muito bem, mas sei que depois do final da festa ela dan-çou a valsa com os nove filhos e todos os netos, e olha que a gente tem um monte! Ela é bisavó de nove e eu só de uma. Neto eu tenho nove, uma bisneta e cinco filhos. Mas só de neto ela tem quase vinte!

Eu fico feliz com isso. Minha felicidade é ver minha família mui-to bem. Foi muito triste quando meus dois filhos tiveram câncer. O segundo tem sessenta e um anos e já foi operado três vezes. A Helena, a mais velha, operou a mama, mas já está tudo bem. Mas ele... Ele já tirou metade do pulmão, foi muito triste. Mas consegui. Com fé em Deus, eu consegui. Agora ele está bem, muito bem mesmo. Acho que Deus me ajudou com as orações, porque ele foi curado.

Eu sempre digo: Jesus me deu muito mais do que eu necessito. Criei meus filhos muito bem. Os meninos não quiseram fazer faculda-de, mas as meninas fizeram. A Lúcia é até professora da Ufes. A outra é boleira, montou uma casa de bolos. Lá em Vila Velha, na Praia da Costa. Ou Itapoã. Ali na Hugo Musso, perto do supermercado Carone. É por ali.

- Já comprei um bolo lá!- Pois é, é minha filha! Ela terminou a faculdade, mas não quis

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trabalhar com isso. Educação Física. Acho que nem chegou a pegar o diploma. Aí casou e fez tudo! Já fez chinelo... tudo que você imagina dessas bobalhadas todas. De tudo ela fez. Depois ainda montou uma lanchonete. Enjoou, ficou um tempo parada e agora montou essa casa de bolos. Ela e a cunhada. Mas agora vão comprar um espaço maior, estão preparando para mudar. E olha: é uma delícia!

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edith pacheco vieira, 1949

Quem não tem um primeiro amor? Ninguém escapa. Bom, eu nasci em João Fratoni, interior de Minas. Fui criada alguns anos no sítio, o que era bem legal, uma vida em que se conhece de tudo um pouco: animais, aves, plantações... Então foi uma vida muito gostosa, que hoje acho que são poucos os que experimentam, porque a maioria fica presa entre quatro paredes.

Alguns anos depois, meu pai decidiu ir para a cidade porque os filhos precisavam de um estudo melhor. Cidade de João Fratoni mes-mo, porque Belo Horizonte eu só fui quando casei. Foi aquela vidinha boa, morando na cidade, tudo é diferente... e aí veio a adolescência.

A adolescência geralmente é um namoro, não é? Foi nessa época que conheci um baianinho. Olha, sabe quando parece que você encon-tra a alma gêmea? Incrível. Eu já estava terminando o segundo grau e trabalhava em um escritório de contabilidade. Ele trabalhava no mer-cadinho da família e meu ônibus passava por lá. Aquilo atraía... engra-çado, né?

Um belo dia ele estava subindo o Exército e eu chegando do serviço. Foi quando nos encontramos, assim, eu passando por ele, pela primeira vez. Menina, que ímã! Que atração. Muito bonito mesmo,

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sabe? Os olhos dele pareciam iguais aos meus. Esse olhar meio safadi-nho (risos). Quer dizer, sou nascida na Igreja Católica, como sempre, e existia aquela festa junina com barraquinhas. Não sei se você já chegou a conhecer isso de igreja, mas tem as barraquinhas, leilões, todas essas coisas. Eu fui com a minha turminha, irmãs, vizinhas... Chego lá e daí a pouco o vejo. Isso já foi praticamente o primeiro encontro. Pedi a uma conhecida dele que nos apresentasse. Mas foi bom, foi bom... foi aquele namoro sem agarro. Namoro hoje em dia é diferente, mas esse foi um namoro em que ninguém se agarrava. Era aquele beijinho tímido só, toque com toque. Mas era algo assim... que é amor realmente. Não é paixão, era amor mesmo. Mas durou pouco. Logo depois os pais dele voltaram para Salvador. Ele chorou muito... eu também. Chorei bas-tante. Ficou uma marca muito profunda.

Mas, como sempre, eu parti para outro namoro. Soube que ele sofreu muito por lá. Por aqui eu também, mas fazer o que? Eu já estava até noiva desse segundo namorado, meu falecido esposo. Estava noiva... Assim, no interior nós temos o costume de ir muito ao cinema. Lá estava eu na fila com meu noivo e, quando olho pra trás... o baianinho. É verda-de! (risos) Mas eu já não estava nem aí, porque estava gostando do meu mesmo, o atual. Mais tarde, outra vez, parece que ele tornou a retornar à cidade querendo retomar o namoro. Mas não tinha mais para ele não. Eu já sabia que tinha acabado. A fila tem que andar, não é? Eu me lembro que sentei no cinema, olhei para trás e ele estava sentado atrás de mim.

Mas é a melhor vida que tem, quando a gente é jovem, ado-lescente... Não é melhor? Fala a verdade! Não tem preocupação, não se pensa no futuro... é o melhor. E quando chega o casamento, pesa mais ainda. Chegam os filhos, as responsabilidades, trabalhar fora. E eu casei nova, com vinte e três anos e meu marido com mais ou menos vinte e cinco.

Ele eu já conheci em uma festinha próxima de casa. Festinha de aniversário. Eu, toda metidinha, só andava de salto (risos). Meu salto imenso! Toda metida... De repente chega ele querendo papo. “Você é a irmã de...?” e ele foi citando, porque eu tinha uma meia dúzinha de irmãos, todos homens. Nesse dia ele me acompanhou até em casa, mas não me interessei não, sabe? Não interessou. No outro dia, saindo do serviço, lá estava ele me esperando. ‘Não quero, vou cortar a volta para

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não ter que encontrar, não quero’. Ele estava com o rostinho todo pi-pocado de espinha, pensei ‘Nunca que beijo esse rosto!’. (risos) A gente quando é mais nova é toda metida a besta. Eu era. Minha colega disse assim: “Não, menina, que é isso?”. Fui convencida e desci para encontrar com ele. Ele me levou até em casa. Todo dia à tardinha ele esperava para me acompanhar até em casa. Daí o namoro foi firmando, foi firman-do... Durou seis anos. Porque ele não tinha futuro certo, estava cons-truindo ainda. Eu também trabalhava, então nós fomos assim até noivar. O melhor da vida. Ah, aproveita bastante... porque é quando você não tem compromisso com nada, ninguém vê o defeito um do outro, tudo é amor... Tudo é maravilhoso quando se é jovem.

Depois me casei e bem, acho que faz quinze anos já que sou evangélica.

- Por quê?Olha, porque aquele lá de cima me chamou. Você quer que eu

conte o sonho?- Claro.É interessante. Porque quando se nasce em um lar, você segue o

regime dos pais. Mas quando se é adulto, você já tem sua preferência. Eu, quando jovem, igreja era só para diversão, a barraquinha, coisas juninas. Religião católica tem muito disso, as procissões... Aquilo tudo não era fé, era diversão. Você segue o que você aprendeu. Quando co-nheci esse rapaz, nós seguíamos aquilo. Casamos na Igreja católica e tivemos meus dois filhos. Mas quanto à minha fé, eu não conhecia esse Deus que é vivo. Conhecia assim, era Deus no céu e a gente na terra. Porque na católica era aquela mania de muita estátua, mas aquilo não é santo. É uma coisa feita pela mão do homem. Pega gesso e barro que você faz jarra, móvel, tudo isso. Agora, Deus em si é diferente. É dife-rente dessa fé que conheci através de meus pais.

Foi assim: meu filho Wander, rapazinho novo, estava estagiando na CST. Jovens, geralmente, são meio complicadinhos. Se a gente for, eles também serão. Ninguém escapa. Você está aventurando, conhe-cendo coisas novas, tudo diferente. E o Wander demonstrava uma ma-neira de ser assim... sofrida. E aquilo machuca a gente. Porque a vida cobra muito dos jovens. Por mais que tenha os pais te encaminhando, você tem algo a mais que te cobra. Não é assim, você que é jovem?

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Ele queria crescer na vida, desenvolver. O pai dele era uma pes-soa boa, porém era um homem que gostava muito de ter os amigos lá fora, então os filhos ficavam sem a presença paterna. Aquilo me pre-ocupava muito. Um belo dia, na CST, um amigo de Wander chamou ele: “Vamos na Igreja Batista?”. Ele me contou: “Mãe, olha, um colega me chamou”. Pensei, ‘Ah, que ótimo!’. Aquilo eu gostei. Gostei mesmo. Porque até então nós não seguíamos a católica.

Wander foi, gostou e olha... Ele estava cursando engenharia me-cânica e eu gostei de ver, porque ele começou a ter um preparo mental melhor. Mas eu não me interessei em ir. Fui duas vezes. Um belo dia, à tardinha, eu estava na janela e ele no sofá assistindo televisão. Ele virou para mim e disse: “Mãe, você sabe que está perdida, sem direção? Ora a Deus e pede uma direção, um caminho”.

Para mim foi Deus que usou ele. Um rapaz jovem, não tinha noção... Escutei aquilo, não respondi e fui deitar. Porque o católico, não estou censurando, mas a Ave Maria, o Pai Nosso, aquele Rosário, aquilo... parece que é decorado. É verdade ou não é? Pega aquilo. É Creio em Deus Pai, Pai Nosso, Ave Maria... E ele falou “Ora a Deus”. Eu não sabia nem o que era orar a Deus. Orar é conversar algo que está dentro de si, desabafar.

Quando fui deitar, conversei com Deus. Isso era final de outubro de 1997. Eu continuei repetindo. Segunda, terça, quarta... Acredito que era quinta à noite quando acordei em um sonho. Eu estava em um quartinho que não era minha casa. A janela era de madeira, com aquela taramela que fecha. Vi a janela aberta e pensei ‘Ih, entrou ladrão aqui’. Levantei e fechei. Quando voltei para a cama, o lençol branquinho, forrado e por cima havia um pacotinho. Era até assim, uma folha de caderno pautada que destacou e dobrou várias vezes. Peguei ela e quando abri havia um raminho verde de oliveira. Não estava amassado ou seco. Verdinho. E aquela caligrafia...! Incrível. Abri e estava escrito assim: “Muitos brasileiros morreram por esta causa. Você poderá ser um deles”. Falou de morte. Mas sabe o que acon-tece? Ele colocou a data para o futuro! 4/11 de 97. O sonho aconteceu dia 27/10 de 97. No sonho eu fiquei apavorada. ‘Estou sendo ameaçada de morte! Preciso procurar alguém para me proteger, me guardar’.

No dia seguinte, levantei, estou na atividade... e de repente veio aquilo. Falando de morte. E ainda com data para o futuro. Fiquei ago-

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niada! Porque pela palavra de Deus, nós morremos para o mundo e renascemos para Deus. O sonho me deixou preocupada, mas não falei para os meninos porque não queria preocupá-los também. Pensei ‘Dia quatro eu não saio na rua! É sinal de coisa ruim!’. Olha, passei acredito que uns quatro ou cinco dias agoniada. Ficava maluca toda vez que vinha o sonho na minha cabeça. Foi um sofrimento terrível.

Resultado: dois de novembro era finados, foi até em um domin-go. ‘Vou pra igreja’. Aquela Igreja Batista da Jair de Andrade, porque era a única que eu conhecia. ‘Vou lá’. Primeira vez. Quando terminou o culto, o pastor, pastor Antônio até, ele fica na porta despedindo das pessoas. Falei com ele: “Pastor, preciso conversar com você”. Ele res-pondeu: “Olha, irmã. Terça feira você vem aqui às duas horas, que é quando eu atendo individualmente”. E aí... terça feira era 4/11 de 97! Tá vendo como Deus preparou tudo?

E eu fui. Conversei com ele, ele orou e tudo. Mas só frequentei umas três semanas. Ali eu não tive verdadeiramente um encontro com Deus. Mas eu sabia que era o chamado. Conversando com uma conheci-da minha, ela comentou que frequentava a Maranata, ali na Moby Dick. “Vamos na minha igreja”. Falei que tudo bem. À noitinha ela me buscou e fomos. Nessa época Wander estava assim, muito sofrido, porque eu invadi um espaçozinho dele. As mães têm mania de invadir os espaços dos filhos. Eu invadi o espacinho dele de garotão e ele ficou indiferente. Mas naquele dia, assisti o culto e, ao final, houve uma revelação: tinha uma senhora lá muito sofrida, passando por um problema sério com o filho. Eu. E foi para mim, eu estava realmente sofrida. Terminou o culto e o pastor se dirigiu a mim. Eu disse “Pastor, isso aí foi pra mim!”. “Eu sei, foi para você”. A partir daquele dia começou a minha caminhada na Igreja Maranata. Até hoje. 17 anos, faço em novembro.

- O que mudou em você após o chamado?Nossa, houve uma transformação muito grande. Porque eu não

conhecia Deus. Sabia que existia, mas hora que ele me chamou, que eu coloquei meus pés na Maranata... houve uma transformação. Você passa a temer a Deus e evitar as coisas erradas do mundo. Porque o mundo hoje dá convite para tudo. Diversão para todo lado. E você vê que acon-tecem coisas horríveis. Essas boates, a droga, a prostituição... tudo isso está contaminando o mundo de uma maneira muito profunda.

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Meu marido, por exemplo, não era da Maranata. Faleceu dia nove de outubro, há doze anos. Ele pegou a parte em que eu estava na igreja, mas... ele tinha uns amigos de bar, distração. Ele reclamava que eu não ia ao bar com ele. “Meus amigos sempre perguntam o porquê de minha esposa não aparecer”, e eu dizia: “Meu amor, não sou mu-lher de botequim não”. É verdade. Quando você tem sua formação, não adianta que ninguém consegue te induzir. Não consegue.

- Você faz algo especial para a data?Especial não, mas eu faço questão de não perder o dia. Quando

vai chegando novembro eu fico atenta. É maravilhoso ter um encontro assim com Deus, um encontro direto. Cada um tem, não é? Da sua maneira, mas todos têm.

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josé shimabuko, 1934

Sou descendente de japoneses, meus pais que vieram para o Brasil. É porque o Japão passava por uma situação difícil naquela épo-ca, acho que em 1926. O presidente Getúlio Vargas fez uma chamada para substituir os escravos. Eles vieram para melhorar de vida. Era um regime autoritário lá no Japão, então tudo o que você produzia deveria antes passar pelo governo. Pelo documento diz que era em 1926, então foi logo depois da Primeira Guerra, porque ela foi de 1914 a 1918.

Mas eles não sabiam que viriam para a substituição dos escravos. Bom, não contaram para meus pais que eles viriam substituir escravos não. Mas não acho que eles foram enganados. Em nenhum momento o governo os forçou a fazer qualquer tipo de trabalho. Eles gostavam do Brasil, mas a ideia deles era ficar cinco ou dez anos e depois voltar para o Japão... Mas aí explodiu a Segunda Guerra. Na verdade, o único problema que meus pais tiveram foi não conseguir trazer os filhos. Dos que ficaram por lá, dois morreram em combate e uma irmã fugiu, foi para outro lugar mais distante. Para ela foi muito difícil, tinha acho que doze ou treze anos. Ficar sozinha na casa de primo... Não foi muito bom. Mesma coisa: imagina você, criança, seus pais saírem para algum lugar e você ficar na casa de parente? E os parentes parece que não

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cuidaram dela, aí ela fugiu de casa... É uma história complicada. Meus dois irmãos morreram na guerra, lutando pelo Japão. Estamos aí, né...

Mas eu nasci no Brasil, em 1934. Sou o quarto filho. Na minha frente tenho dois irmãos e uma irmã. Não, sou o quinto, desculpa. São dois irmãos e duas irmãs. E não sou o caçula, tem mais uma irmã ain-da. Mas vivo só eu. Ah não, eu e a caçula. Os outros já foram.

- Como foi crescer no Brasil com pais e costumes japoneses?Foi difícil. Peguei os hábitos e costumes dos meus pais, mas é

muito diferente o pessoal daqui. Então, como todos nós estudamos aqui, começamos a seguir os hábitos daqui. Quer dizer, os costumes deles são difíceis de praticar no Brasil. Porque é tudo muito rígido. Tem que obedecer o pai, o filho mais velho é quem sempre manda, a herança sempre fica para o primeiro filho...

Espera um pouquinho que vou trazer o material.

(José reaparece com um tablet e uma dezena de fotos, documen-tos, registros e mapas)

Essa aqui é minha família, lá onde nós morávamos no Japão. Nós não, eles. Deixa eu ver quem é quem. Meu tio, avô, essa aqui é minha mãe, esses dois... ah, não sei todos. Estou meio esquecido (ri-sos). Essa é minha irmã, a mais velha. Acho que esse é meu irmão. Tem esse documento, vê. 27 de julho de 1926, não é isso? Foi quando eles chegaram no Rio de Janeiro. Aqui é o passaporte deles. Do meu pai, na verdade. Da minha mãe não sei onde está.

Mas então, a gente... os filhos ficaram lá. Só veio o casal, meus pais. Quando chegaram aqui, eles vieram trabalhar nessa plantação de tomate, tá vendo? Essa é minha mãe, meu pai e esse deve ser um tio ou amigo que trabalhava junto deles. É o casal. Nessa foto eles já esta-vam morando em São Paulo. Essa outra é em uma plantação de batata. Minha irmã caçula, o mais velho e eu. Meus pais estavam capinando a roça. Aqui já é anos trinta ou quarenta.

- Você trabalha desde bem novo, então.É. Quando eu tinha essa idade já ajudava, porque além das ba-

tatas havia também plantação de legumes, alface. Mas quando eu era jovem, acho que catorze anos, fui estudar em São Paulo. Porque aquilo

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era roça e eu ia para a capital. Então eu estudava lá, mas todo dia ti-nha que voltar. Acordava cinco horas da manhã e voltava seis ou sete horas da noite. Tinha que caminhar oito quilômetros a pé também, de onde morávamos até o lugar do trem que levava à capital. Foi todo esse percurso durante quatro ou cinco anos. Eles trabalhando na roça e eu estudando. Fazia tudo. Naquele tempo era primário e secundário, depois tinha científico que eles chamavam, normal... Estudei na Escola Técnica Getúlio Vargas. O dia inteiro durante quatro anos seguidos. Dias inteiros. Era o sonho de todo governante aqui no Brasil: deixar as crianças o dia inteiro na escola.

- Você acredita que isso seja saudável?Acho que é bom.- Foi bom para você?Foi bom. Por que foi bom? Vou dizer o que é. Foi bom de um

lado e foi bom de outro lado não. Quando você fica confinado, você esquece sua vida de rua. Você tem o ensinamento de dentro de casa e o da escola, mas você aprende mais o da escola por passar mais tempo lá. Pouco tempo com a família... Então no longo tempo, nós começamos a pegar costumes brasileiros, porque só convivíamos com brasileiros. E ela é boa porque você aprendia muita coisa. Mas aí você começa a desviar dos hábitos japoneses. O respeito ao próximo, ser íntegro, al-guma coisa assim. Seriedade. Na escola a gente era muito brincalhão. Tudo era levado na brincadeira. Quando chegava em casa era mais sério. Com o andar do tempo você começa a entrar em atrito com o hábito oriental. Mas o hábito deles é muito bom, do respeito. Acho muito interessante. Eles sempre agradecem as pessoas próximas, ser sério no trabalho... Quando você estava na escola e ficava o dia inteiro, o pessoal mais brincava (risos). Mas no Japão as coisas são mais sérias. E era difícil isso para os meus pais e para mim. Porque nós vivíamos em uma democracia aqui no Brasil, era difícil aprender.

- Mas você viveu o período da ditadura aqui no Brasil, certo?Olha, eu não peguei ditadura, não. Creio que meus pais pega-

ram o governo de Getúlio Vargas aqui mas eles não sentiram muito. Eu, aqui no Brasil, não peguei ditadura. Eles chamam de ditadura mas eu não lembro. Quer dizer, eu já trabalhava. Ninguém me prendeu, chamou minha atenção, eu fazia o que queria, comia o que queria...

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Agora, o que acontecia nessa época que chamavam de ditadura eram os anarquistas. Não gostavam dos anarquistas. Era desses que eles es-tavam atrás. Eu não. Ninguém me falou para não trabalhar, não fazer isso ou aquilo. Então eu digo que não passei por esse período. Falavam muito de ditadura, não sei o que do exército, que os militares tomaram conta... Tomaram conta porque havia muita anarquia! Muita bagunça, quebra-quebra, eles incendiaram o bonde. Então chegou o governo e acabou com todos os partidos políticos. Porque haviam mais de vinte, mas ficaram só dois. Para mim foi muito bom. Eu não tenho, assim, nenhuma reclamação. Para mim não houve ditadura. Aliás, para muita gente trabalhadora, pessoal sério. Ninguém sentiu não.

Estudei dos oito até... vinte anos, mais ou menos. Direto. Formei em técnico industrial, então na época eu trabalhei em muitas empre-sas. Já trabalhei em grupos industriais, na Bosch... Então não, a gente que trabalhava não viu esse negócio de ditadura. Quer dizer, não te-nho reclamação alguma do Brasil. Sempre me receberam bem.

- Então você pode dizer que foi bom crescer no Brasil?Nó, foi muito bom. No Brasil você faz tudo, sabia? No Japão não

tem disso. Por exemplo, vou falar uma coisa mais simples. Lá você não joga nem palito na rua. São todas limpas. Se tiver alguma sujeira, os próprios moradores limpam, como fizeram durante a Copa do Mundo. Não tem faxineira lá. Isso é um dos exemplos. Tenho muitos outros, mas não dá para expressar aqui. Os costumes e hábitos deles são... po-deriam ser copiados por todo mundo. Mas aqui no Brasil existem mui-tas liberdades que poderiam existir lá. Só que a liberdade que o Brasil dá é prejudicial para a nação. O custo é bem alto. Tá vendo aquela mesa branca de plástico? Aqui trabalha uma pessoa. Lá trabalham quatro. Só que não conversam. Você faz isso no Brasil? Não faz. É hábito. Quando você trabalha em uma empresa, você pode ficar com a emoção meio... abalada. Lá, enquanto você não voltar ao normal, você fica em uma sala, como se fosse uma espécie de castigo. Então no Japão ninguém trabalha com as emoções abaladas. É ótimo. A produtividade sempre vai crescendo. É diferente. Ocidental não consegue acostumar não.

- O senhor é casado, certo? Com quantos anos você se casou?Eu casei... boa pergunta essa. Ah, mas já estava bem amadure-

cido. Porque quando se vive do trabalho, não é? Eu também gostava

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muito de trabalhar, não ligava muito para a hora de acabar. Mas não era muito bom para os colegas de trabalho. (risos) Eles ficam brin-cando com você, sabe? Não vale a pena. Não são maus, mas chamam de puxa saco, outros nomes... Aí para não ter atrito você acaba não ficando. Mas minha esposa eu conheci enquanto trabalhava em uma empresa. Ela não é do Brasil, é de Portugal. Eu a achava meio diferente, assim... diferente. (risos) Eles são tudo diferente, modo de viver... São menos organizados. Eu também não sou organizado, mas procuro me organizar. Por conta disso nós temos algumas diferenças, mas a gente acaba se acertando. Acho que o princípio é sempre se posicionar como humano. Humano pode brigar, mas sempre tem que entrar em acordo. E acabou. Só naquele momento e depois viver a vida normal, né. A gente não tem problema de convivência por isso. Estamos casados e temos dois filhos.

- Você criou seus filhos com princípios japoneses?Ah, como nós estamos em um país democrático, eles estão se

cuidando. Se cuidaram, aliás. Porque eu não podia de jeito maneira dar um ensinamento do Japão. Eles não iam aceitar. Então deixei cada um seguir seu caminho. A não ser que eles perguntem alguma coisa, aí a gente ajuda, mas deixa eles... entendeu? Liberdade de escolha. Nun-ca intrometi nesse negócio não. O que você vai fazer, deixa de fazer... Acho que eles têm que seguir cada um seu rumo. Sua mãe, ela não queria que você fosse médica?

- (risos) Acho que ela queria que eu fosse advogada. E agora? O que você é? Então! Jornalista eu acho muito bonito, mas é difícil, não é? Ter que fazer um jornal inteiro e achar motivação. E você pode ver que os políticos não são jornalistas, mas eles bem tentam! (risos) Podem até comandar jornais, mas eles cometem muito erro. E aqui no Brasil é uma coisa engraçada: é liberdade total. Você pode falar errado, certo... a sentença fora de lugar. Mas é normal, né. No Japão, Estados Unidos, outros países aí, eles não aceitam muito esses erros de sentença. Mais rigoroso, né. Aqui no Brasil não. E começa pelos músicos! Mas todo mundo aceita né, porque é bonita a letra... Mas é tudo errado, né? É mais fácil de falar coisa errada que coisa certa. (risos)

Então, deixa eu falar um negócio! Os meus pais, na localidade onde eles se instalaram, eles foram dos primeiros imigrantes. Em 1980

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meu pai já não estava vivo, mas eles nomearam uma rua lá. Eles deram o nome de uma rua para ele. Agora vou localizar essa rua aqui, quer ver?

(Em meio aos diversos papéis, José procura o tablet e, com alguma dificuldade, abre empolgado o aplicativo de mapas)

Tá aqui. É uma avenida. Deixa eu aumentar. É aqui, ó. Enten-deu? Então é algo do qual nós temos orgulho. Um prefeito de lá saber quem a gente foi... Porque nós plantávamos e vendíamos verdura, en-tão todos nos conheciam. E a cidade reconheceu isso. Esse é o nome do meu pai: Meitoko Shimabuko.

Agora vou mostrar outra coisa.

(Atira-se novamente à mesa e, agora, seleciona um grande livro comemorativo dos oitenta anos da Chocolates Garoto)

Trabalhei muito tempo na Garoto, né. Essa foto aqui é quan-do eu entrei na empresa. Aqui no canto. Quando a Garoto começou a crescer. Aí eu vou te mostrar essa de quando eu saí. Do lado do Hel-mut Meyerfreund. O dono da Garoto. Tenho outra coisa aqui, quer ver? Olha só. Na parte de “Agradecimentos”. Olha meu nome aqui. Isso aqui foi quando eles completaram oitenta anos. Quer dizer... Quando eu estava trabalhando em uma empresa de São Paulo, recebi um con-vite para vir aqui. Foi por isso que vim para cá. Isso foi em setenta e... quatro. Quase cinco. Esse aqui do nome eu fiquei até surpreso, porque já tinha saído da empresa. Saí em 86. Em 2009, eles me chamaram e disseram: “Olha só, temos um presente para você”. Cheguei lá e era esse livro contando a história da Garoto.

Pode tirar foto de tudo que você quiser.

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jacyra lyra alvarenga arnone, 1933 gentil arnone, 1921

Gentil: Se é minha idade eu falo logo: doze anos. (risos)Jacyra: Neném, não pode falar bobagem, ela está gravando para

o trabalho.Gentil: Nove e três não é doze?Jacyra: Diz ele que tem doze anos. É porque são noventa e três

anos, nove com três dá doze.Gentil: Não tá errado!- É uma boa perspectiva. Como vocês se conheceram?Gentil: Nos conhecemos no baile, não é?Jacyra: Conhecemos lá em Viana. Gentil: É, no baile, em Viana.Jacyra: Ele é de Minas Gerais e nós nos conhecemos em Viana.

Ele veio para trabalhar e aí a gente se conheceu. Foi até no dia da mi-nha formatura... Eu estava no colégio e, quando voltei, ele já conhecia papai, que o convidou para a festa.

- Quando você conheceu o pai, já conhecia a filha?Gentil: Não.Jacyra: Eu estava no internato, né. Estudei em um internato, en-

tão não tinha como. A gente se conheceu na festa bem assim: ele me

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perguntou por uma prima dele que estudava no mesmo colégio que eu. Aí começou. Mas não aconteceu nada. Depois de muito que nos reencontramos. Uns dois meses depois, não é?

Gentil: Mais ou menos, uns dois meses. Jacyra: É. E aí pronto! Nos conhecemos, ficamos juntos por três

anos entre namoro e noivado e depois... casamos! São cinquenta e oito anos de casados. Já vai fazer cinquenta e nove. É muito tempo... É uma vida! (risos)

- Vocês casaram com que idade?Jacyra: Eu tinha vinte e dois e ele trinta e cinco. E três, aliás.

Trinta e três. Doze anos de diferença. Tive filho no mesmo ano. A gente casou em janeiro e no fim do ano tive filho.

(Jacyra levanta e busca um porta-retratos. Na foto, ambos bem ar-rumados se entreolham e juntam as mãos. Ao fundo está o mar e uma ilha)

Jacyra: Essa foto aí eu gosto demais. Foi lá no Morro do Moreno. Quando fiz cinquenta anos de casado.

Gentil: Foto de cinquenta anos.Jacyra: Gostei demais dessa foto. - Você estava elegante!Jacyra: Tinha que estar, né! Cinquenta anos não é pra qualquer um

(risos). Foi muito boa essa festa, viu. Adorei. Gentil: Quando inteirar cem vamos fazer festa outra vez. Vai ser

quando inteirar cem! Jacyra: Ele vive falando isso. Em janeiro agora vamos completar

cinquenta e nove de casado. - A próxima festa é aos sessenta anos de casado?Jacyra: Não sei... Vamos pensar. Gentil: Quando tiver cem anos.Jacyra: Ele diz que quando ele completar cem anos de idade, ele faz. Gentil: Sabe o que eu vou fazer? Uma farra lá em cima no terra-

ço. Vai todo mundo pra lá! Você também!- Obrigada, espero ansiosa! Agora... Como manter relaciona-

mento após tantos anos?Gentil: Briga, conserta a briga.

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Jacyra: A gente sempre viveu bem. É tranquilo. Nunca tivemos problema nem nada, então... Foi vivendo, vivendo e a convivência... e passaram-se os anos. O tempo passou e estamos aí até hoje. Graças a Deus nunca teve problema na nossa vida não. Cinquenta e nove anos.

Gentil: Agora é um para o outro, né. Se eu já gostava antes, ago-ra tem que gostar mais.

Jacyra: Mas você sabe de uma coisa? Geralmente acontecem esses problemas de criação de filhos... Não tivemos problema nesse ponto. As crianças até que foram mais tranquilas. O Juarez era mais levadinho, mas era... não era levado de fazer briga nem nada, só leva-dinho mesmo.

- Mas vocês trabalhavam?Jacyra: Sempre trabalhei. Ele era pedreiro. Gentil: Trabalhava na Praia do Canto. Jacyra: Ele trabalhava longe, sempre. Trabalhava longe e mui-

to, porque era serviço pesado. Então naquela época foi muito difícil, ainda mais que não tínhamos empregada. Eu era professora no Naides Brandão, vinte e sete anos, além dos dois anos no interior. Lá, eu tra-balhava com todas as turmas, porque era de primeira a quarta série em um mesmo lugar. Quando cheguei aqui entrei para a alfabetização. Aposentei alfabetizando. E meus filhos aprenderam comigo! Quando chegaram no colégio todos já sabiam ler. Nunca pegaram em uma car-tilha. Penha lia qualquer livro quando entrou na escola. Todos eles! Aprenderam em casa. Posso dizer que são trigêmeos, porque nasce-ram um colado no outro. Criei, mas foi muito difícil. Teve um ano que passaram doze pessoas para tomar conta. Ficava um mês e ia embora, porque ninguém queria cuidar de três nenéns. Eles eram muito peque-nos, todos na mamadeira. Gentil trabalhava por contra própria, então meio dia ele parava, vinha para casa e ficava com os meninos enquanto eu ia para o colégio.

- Ambos tiveram participação ativa na criação dos filhos, então.Jacyra: Muito ativa.Gentil: Graças a Deus. Até hoje! Tem que ajudar, senão um dos

dois quebra a cabeça.Jacyra: O Juarez, meu filho, era tão levado que às vezes eu arran-

java uma pessoa para ficar aqui e quando chegava em casa ele contava:

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“Mãe, ó, fulana bateu na Penha. Você pode prestar atenção que ela bate na Penha”. Eu dizia: “Menino, para de fofoca! É difícil arranjar pessoa. Se ela for embora, a gente faz o que?”. Sabe o que ele respondia? “Papai fica”! Ele queria mais que o pai ficasse em casa...

Gentil: Sei que não foi fácil... Mas foi bom. Hoje, com quase sessenta anos, eles ainda dão bença. Bença mãe, bença pai! É uma sen-sação de dever cumprido.

Jacyra: É, sim. Agradeço a Deus todo dia, sabe. Porque foram criados com sacrifício. E estamos cheios de netos, bisnetos. A casa dia de domingo fica cheia! Vem todo mundo pra cá.

Gentil: É muita história. Eu tenho prazer em dizer a minha ida-de, enquanto os outros escondem. Noventa e três anos.

Jacyra: E a cabeça está boa, o importante é isso. Envelhecer não quer dizer nada. Pior quando você fica sem noção das coisas... isso que é triste. O único problema dele é um desgaste no quadril. Acabou a cartilagem, então ele fica com a perna dura e andando bem devagari-nho. Mas o resto... Tá todo excelente.

- Vocês se consideram um casal romântico?Jacyra: Eu sou! Sempre fui (risos).Gentil: Somos sim. Jacyra: Ele sempre me dá flores! Aniversário, dia dos namora-

dos, tudo isso.Gentil: Todo aniversário, data especial dela, tudo. Jacyra: Até hoje! É importante manter esses hábitos. O casamen-

to só atura se for assim. Se você começar a esquecer um do outro, não tem como dar certo. Eu digo que é preciso ter tolerância. Paciência. O que precisa é isso. Gostar um do outro – e muito. Continuar. Conser-var aquele amor, aquela amizade... para poder dar certo. Senão não dá. A gente tem que esquecer um pouquinho de alguma coisa, deixar de lado. Hoje em dia o que está acontecendo com os casais é que não há paciência. Qualquer coisinha tá chutando o balde, não é? Não pode.

Gentil: Um tem que entender o outro.Jacyra: É, tem que acabar entendendo. Deu algum aborrecimen-

tozinho? Fazer de tudo para limpar os panos depois. Passou a raiva? Vai lá, dá uma conversinha outra vez. Isso aí é o importante em um casamento, eu acho. Hoje em dia é muito diferente. Eu acho!

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Gentil: Tá tudo diferente. Muito. Jacyra: Porque, antigamente, existia um pouco mais de respeito pe-

las pessoas, um pelo outro. Hoje em dia tudo está muito largado. As pes-soas se soltam muito, demais, e depois aquilo já não tem mais graça. Sabe como é? Quando casa, já está mais que... não é? Não tem mais graça. Eu acho. Antigamente... não digo que seja diferente, existia tudo que existia hoje. Mas... as pessoas eram mais tolerantes. O respeito era maior. Um respeitava o outro. Você vê hoje que as pessoas namoram e se por acaso não der certo e acabar, vem a vingança, mata o outro. Isso é um absurdo.

Gentil: Hoje tudo faz medo. Tanto namorar quanto casar, todo os dois faz medo.

Jacyra: Hoje em dia tá fazendo medo. As pessoas estão mais so-zinhas por causa disso.

Gentil: Solteiro em casa tá muito certo. Tem que ficar inteiro mesmo. Tem que ficar em casa com os pais... Esperar o dia. Sacrificar a vida para casar hoje e largar amanhã? Quer namorar, só namora!

Jacyra: As pessoas pensam assim ó, ‘Eu vou casar, se não der certo separo’. Se já for pensando assim não dá certo mesmo.

Gentil: Hoje a coisa é assim.Jacyra: O que tá acontecendo é isso. Antigamente, muita coisa

era como hoje, mas havia mais respeito. O casamento era levado mais a sério. Hoje em dia está muito largado o negócio, não é? Namora hoje, amanhã já estão casados. Namorado já não é mais namorado, é um namorido (risos).

Gentil: É.Jacyra: É por isso que não tá dando certo relacionamento. No

meu tempo, namorar era bom. Namorava, sentia falta... hoje em dia não. Então pronto. Não tem graça mais a vida. Vai casar para que?

Gentil: Quando casa não acha graça mais em nada... Isso é coisa do Bichinho futucando os dois! Para fazer as coisas errado! (risos)

Jacyra: Nós, por exemplo, tivemos três anos entre namoro e o noivado.

Gentil: E conversar também era uma vez por semana.Jacyra: É verdade! Porque era longe. Gentil: Tudo era longe. Eu morava longe dela, não dava para

falar todo dia não. Ela morava em viana e eu em Jucu.

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Jacyra: Ele começou em Jucu depois veio para cá. Eu sou de Via-na, minha família é toda de lá.

- Como foi decidido “é hora de casar”?Jacyra: (risos) Decidiu assim, né... Já eram três anos, “Vamos mar-

car a data”’ e ficou em janeiro. O pedido foi lá em casa. Tudo nos con-forme! Papai era muito rígido, exigia as coisas. Lá em casa fomos criadas assim. Ele era uma pessoa maravilhosa meu pai, não era de encostar um dedo em ninguém. Mas ele só olhava para você e.... bom, bastava.

- Você ficou nervoso, Gentil?Gentil: Acho que fiquei, né.Jacyra: Ficou nervoso pra caramba!Gentil: Comecei a tomar um guaranazinho lá, rir... foi só na

hora de ir embora. “Vou pedir sua filha em casamento, Seu Perciliano!” (risos) Ele ficou igual um fantasma. Falei “Ih”!

Jacyra: Ele não falou nada, ficou sério. Mas no dia em que me casei meu pai chorou tanto... A festa foi em Viana. Lá era assim, nós fa-zíamos civil e religioso tudo no mesmo dia. E era aquelas festas de roça mesmo, do interior. Fazia aqueles bailezinhos.

Gentil: Ela estava muito bonita. Quando vi ela chegando, falei “Será que é ‘ocê mesmo?” (risos)

- Ele foi seu único namorado?Jacyra: Sim. Namorou e casou. Já esse aí? Que nada. É ruim,

hein! Eu na verdade tive uma paquerinha, mas foi muito rápida... Papai não queria o namoro.

Gentil: Meus namoros antes eram de dois só. (risos) Jacyra: Esse aí era um vira folha! Depois sossegou.- Quer dizer que o senhor era um garanhão, Gentil?Gentil: Eu não era não, mas também não rejeitava parada.- O que vocês mais gostam um no outro?Jacyra: Eu sempre gostei dele. Sempre foi tranquilo, foi legal,

nunca foi uma pessoa de exigir muito, mais compreensivo... A gente sempre viveu um para o outro, entendeu? Dividia todos os problemas e felicidades. Por isso que a gente vive. É por isso que a gente vive bem.

Gentil: Nela...? Tudo!

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liz alves amorim, 1935

Essa vida minha... ali é o resultado!

(Aponta para o porta-retratos posicionado em uma mesa. Na foto, seus filhos e a esposa)

Fui uma pessoa que começou a trabalhar muito cedo. Nós éra-mos... não, éramos não, somos treze irmãos. Aliás, hoje são onze, fale-ceram dois. Meu pai era dono de uma fazenda lá em Itambé, na Bahia, perto de Vitória da Conquista. Por ser o mais velho dos homens, ele entregou tudo para mim, eu que resolvia as coisas. Trabalhei à frente de tudo até que um dia falei: “Ah, meu pai, agora vou ficar por conta própria”.

Minha paixão eram os caminhões. Eu tinha que ter um cami-nhão e eu trabalhava com esse objetivo. Era um sonho. Toda vez que via um caminhão passar com aquela carga alta, ficava ‘Eu ia ainda vou fazer esse negócio’. Fui trabalhando, trabalhando, até um dia chamar meu pai. “Pai, eu vou comprar um caminhão”. “Ah, ‘cê tá brincando”. Falei: “Vou! Senão eu não vivo em paz comigo”. Resultado? Ele me aju-dou e comprei um caminhão!

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Fui trabalhar com o caminhão. Passei a ser caminhoneiro. Fo-ram oito anos rodando na pista. Dessa época tem um negócio que não esqueço nunca. A gente, os caminhoneiros, a gente geralmente dorme muito em posto, não é? Eu estacionei meu caminhão, fui tomar banho, café... Quando voltei, estava lá um caminhão do lado do meu e nós começamos a conversar, eu e o motorista. Ele disse: “Rapaz, você acre-dita que minha bateria”... você sabe o que é uma bateria de caminhão, não é? “Botei minha bateria e ela não tá virando meu caminhão desde manhã cedo”. “Não, mas amanhã a gente dá um jeito nisso aí rapaz”. Conversamos um tempão e fui dormir. Quando foi lá tantas horas que não sei, ele levantou... Olha, pra você ver a maldade do ser humano! A bateria fica na parte de baixo. Ele levantou, tirou a bateria ruim dele, tirou a minha, trocou, botou no dele e vazou. Vi quando ele saiu. Ele estava do meu lado, mas eu nem imaginava...

Quando levantei e rodei a chave, “nhe nhe nhem” e nada. Eu tinha uma lâmpada e resolvi ir lá olhar a bateria... Não era minha ba-teria. E os cabos tudo folgado. Acho que não deu tempo dele ajeitar os cabos e deixou meio aberto. Ah, vou te dizer uma coisa! Não acredito que um sujeito tenha coragem de fazer isso. Não acredito que o ser hu-mano tem vontade de fazer isso. Toda vez que passo num posto lembro dessa bateria. Tive que comprar uma nova se quisesse viajar.

Mas aí... Eu já tinha me casado, tinha três ou quatro filhos e ser caminhoneiro começou a ficar muito contramão para mim. Despre-zando a família, né? Aí um dia chamei Lizete e falei: “Vou sair desse ne-gócio de caminhão. Viajar para muito longe não está dando certo não, muito cansativo”. Às vezes chegava em casa meia noite e todos estavam dormindo. Cinco horas da manhã já estava na estrada de novo. Saía e deixava todo mundo dormindo. Não via os filhos. Chegou uma época em que eu estava sentado com Lizete e, por exemplo, se algum quisesse ir ao cinema, nunca me pedia. Pediam para a mãe, por costume. Eu era um hóspede em minha própria casa. Já tinha rodado muito, então tornei a falar com Lizete: “Sabe de uma coisa? Vou parar com isso”. E nisso aí só aumentando o número de filhos! (risos)

Mas foi uma luta, vou te dizer. Depois que me cansei de rodar com o caminhão na pista, fiquei com ele trabalhando por perto. Mas eu tinha um tio que era fazendeiro. Um grande fazendeiro, aliás. Ele só ficava me

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chamando para tomar conta da fazenda e tal, tal... Aí um dia eu fui. Fui parar em Belém do Pará. Você só via onça e macaco. Às vezes

quando eu chegava lá estava aquele pessoal derrubando madeira, tra-tor botando em cima de caminhão. Eu ficava assim “Meu Deus, eu não mereço isso não!” (risos) Menina, era um negócio... Longe da família, porque deixei eles em Conquista para experimentar isso aí. Mas foi dife-rente, né, uma oportunidade. Pelo que ele me oferecia... Eu dizia a Lizete: “Quero é ver se daqui dois três anos eu não volto bem de vida!”. Porque ele me ofereceu um negócio muito vantajoso. Mas quando cheguei lá não era nada do que ele havia dito. Nada! Ah não... E ali trabalhei, viu. Ave Maria, gosto nem de lembrar do Pará. Tenho um filho que mora lá, mas depois que saí de lá nunca mais fui. E nem vou! Ele que venha para cá. Tenho trauma do Pará, trauma daquele lugar. E não tem nada a ver, não é? Mas a gente fica com aquilo na cabeça, não tem jeito.

Um dia não aguentei e chamei Osmar, o dono da fazenda, e fa-lei: “Olha, eu vou embora, não aguento mais ficar aqui”. “Não, rapaz, vou buscar sua família e tal”. “Não, eu vou parar com isso”. Resultado: acertei com ele, vim-me embora, vendi o caminhão, comprei um carro menor e fui trabalhar com leite em Vitória da Conquista, transportan-do leite. Aí foi tudo uma maravilha, né. Comprei uma casa, estava jun-to da família.... Trabalhei acho que onze anos transportando leite para a Nestlé em Itambé. Depois pensei: “Ah, enjoei de carregar leite. Vou procurar um negócio para mim”. Fui parar em Salvador. Lá, acho que fiquei quatro ou cinco anos vendendo banana. Melhor negócio que fiz! Formei filho, aluguei um apartamento pertinho da Fonte Nova... Che-guei só com um caminhão e todo mundo em cima! Nós éramos igual cigano. Minha mulher também. “Quer ir pra...” “Vambora!”. Nunca vi!

Graças a Deus arranjei uma mulher que... Deus me livre. Como uma mulher tem influência na vida de homem, não é? Até hoje! Tudo, tudo o que você pensar na casa, na família, ela quem resolve. Eu não tenho talão de cheque, não tenho cartão, nada. Tudo é com Lizete, ela resolve. Tudo! Além dos problemas de filho, de doença, de neto... Ela tá assim, só na frente. Uma pessoa que... me ajudou demais. Até hoje me ajuda muito.

Antes dela namorei muito. Eu era bonito, bonito! Não sei onde estão as fotografias, mas todo mundo dizia isso.

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- O senhor é bonito até hoje, seu Liz.Obrigado. Mas estou em extinção! (risos) Antes de Lizete, não

tive ninguém que me fizesse querer casar. Parece que a gente pensava assim ‘A minha não é essa, a minha não é essa’. Até que chegou. Isso aí para mim é tudo na minha vida, essa mulher. Você nem imagina. São umas coisas que a gente nem devia falar, mas você nem imagina. A união que existe entre a gente...

É minha prima carnal. A mãe dela é irmã de minha mãe. Mas ape-sar de ser parente, a mãe dela eu conheci muito pouco. Eles moravam em Itabuna e a gente em Itambé. Aí meu sogro, não sei porque cargas d’água, achou de morar em Itambé também. Foi aí! Porque eu não conhecia Lize-te. Quando eles chegaram, ela menina, eu menino. A casa era bem grande, com quartos enormes, três ou quatro camas. Como deitávamos cedo, batí-amos papo e tal... E nossas camas eram uma do lado da outra. A gente dava a mão, ficava conversando... e dormia de mãos dadas.

Quando chega mamãe...! Ela tinha mania de olhar os filhos de noite, né. Chega lá e vê a gente de mãos dadas. “Ah, esses cabras... me pagam!”. No outro dia, sem falar nada com ninguém, ela tirou minha cama desse quarto e botou em outro. “Liz, você vai dormir nesse quar-to agora”. “Ué, mãe! Mas por quê? Vou nada”. “Ah, vai sim!”. E eu fui, né. Depois que ela veio me dizer o porquê. A gente começou a na-morar menino ainda, nem... Eu fico com esse negócio do meu sogro e meu pai... Ave Maria, eles lutaram tanto para ver se a gente acabava com esse casamento. Meu irmão era médico, botava na cabeça de todo mundo: “Não deixa! Não deixa! Ele vai ter problema com os filhos!”. Que nada... Nunca tive problema com os filhos!

O nascimento do meu primeiro filho foi um negócio... Foi um espetáculo, justamente por causa do parentesco. Quando ela ficou grá-vida, eu conversava com ela: “Ô Lizete, você tá preparada para...”. “Dei-xa de besteira, Liz. Tenho fé em Deus”. No dia em que ela começou a sentir, a gente morava em Itambé e um amigo meu nos levou até Conquista. Ah, menina...! Quando chegamos no hospital, Lizete com dor, pensei ‘Ah meu Deus, que que vem aí’. E o médico perguntou se eu queria assistir... Mas é claro! Assisti o parto todinho! Normal. Nunca teve assim o menor problema. Faz tudo, anda... caminha igual uma louca! Não tá na praia só se for doença ou chuva. Quando estou deso-

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cupado vou com ela. É uma guerreira, você precisa de ver.Isso para mim foi algo que me marcou demais. Aliás, o nasci-

mento de todos, não é? Todos os sete a gente ficava na expectativa. “Meu Deus do céu, e se der problema, Lizete? Tanto que seu pai falou...”. Mas parece que Deus disse: “Não, vou te ajudar”. Essa foi a maior expectativa que tive na vida, foi o nascimento dos meus filhos. Perfeitos.

- Mas como era a relação entre você e seu sogro?Nós continuamos mesmo assim. A gente saía escondido, ela saía

à noite para ir à igreja quando na verdade a gente tinha encontro mar-cado... Tudo assim, rápido. E ele sempre naquela coisa de proibir. Até o dia em que ele chamou meu pai e disse: “Olha, sabe de uma coisa? Se eles quiserem casar, não vou me incomodar mais. Eu vou deixar. Se houver problema, a gente procura resolver de outra maneira”. Aí sim ele tornou meu amigo! Uma vez ele disse para Lizete que ia para Vitória da Conquista, mas na verdade ele saiu para ver se eu ia para a casa dele escondido. Quando passou um tempo que o ônibus saiu, ele ao invés de ir para Conquista voltou para a casa. Chegando lá, eu estava na porta, conversando com ela. Ô meu Deus, quando eu vi... Lizete tinha um medo dele! Mas era uma pessoa tão boa, incrível. Ele gostava muito de beber. Bebia demais, tinha perdido a mulher... Lizete ficou sem mãe com três ou quatro anos. Mãe dela fez uma operação na bexiga, recebeu alta, foi ao sanitário de casa, sentou... e morreu. Nunca vi um trem daquele! Ele casou com outra e não conseguia ter filho homem. Dizia “Enquanto não tiver um filho homem, não paro de ter filho!”. Foram quatro com a mãe de Lizete, todas mulheres. Aí com a outra foi, e foi, e foi... Quando chegou no décimo terceiro veio homem! “Agora eu paro”. Doze filhas!

- E entre você e seu pai?Ah, senta que tem história! (risos) Quando a gente era rapaz, a

fazenda de meu pai era distante ainda de Itambé, seis quilômetros. A gente tirava o leite, mas depois arrumava tudo e ia para Itambé. Era cinema, festa, carnaval... tudo a gente participava. Nascido e criado naquele lugar, todo mundo nos conhecia. Aí uma vez a gente estava brincando de carnaval até umas quatro da manhã. Chamei meu irmão mais novo e disse: “Ei, tá na hora de ir embora tirar o leite”. Porque tinha que tirar! Porque meu pai fazia tudo por nós, mas a obrigação

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era em primeiro lugar. “Tá na hora? Então vambora!”. Andamos. Seis quilômetros andando à noite. Ele não tinha carro... Tinha um jipe, mas não dava para dirigir, porque a gente bebia no carnaval, tomava lança perfume... fazia uma bagunça assim (risos). Na estrada assim, no meio da estrada, antigamente havia um córrego. Mas ele estava seco, com uma areia branquinha, a gente naquele sono... Parece uma tentação. Eu falei: “Ô Lauro, vamos tirar um cochilo aqui, rapaz, que eu tô que não ‘guen-to”. “Vambora”. Menina, deitamos naquela areia... Mas foi só deitar que dormi! Aquilo foi cinco horas, seis horas, sete horas e a gente lá ainda. Aí apareceu um cara montado. Eu fico rindo só de lembrar! Ele conhecia a gente e papai. Falou assim: “Ué. Parece que tem dois morto ali!”. Era a gente que tava “rrronc”. (risos)

Menina, isso... A gente tinha que tirar o leite para fazer requei-jão, essas coisas tudo... E tinha que mandar o leite para a rua também. Como não chegamos, o leite também não chegou. Meu pai ficou preo-cupado e foi atrás. Quando ele chegou no meio da estrada, encontrou esse conhecido. “Ô Julio, seus meninos estavam dormindo lá no cór-rego, na areia”. Disse: “Dormindo?”. “Eles deitaram e garraram lá, mas agora já levantaram e foram tirar o leite”. Aí meu pai voltou. Quando a gente chegou para contar essa história... Hunf. Foi aquela coisa. Meu pai era um homem que não batia em ninguém, não fazia nada. Agora quando ele olhasse daquele jeito... Sai de baixo.

Teve uma vez, ó ‘procê ver, teve uma vez. Só quem fazia a feira lá de casa era eu e ele. Ele comprava e eu carregava do mercado para casa. Assim, pertinho. Um dia ele comprou umas bananas da terra, mas cada banana da terra imensa! Ele comprou, botou dentro do saco e tá lá pagando o homem. Peguei uma banana daquela do homem e botei dentro do saco. ‘Procê ver que tentação. Botei dentro do saco. Ele não viu, o homem não viu, ninguém viu. Mas quando chegou lá em casa, eu e meu irmão mais novo éramos igual carne e unha. Falei assim: “Ô Lauro. Eu peguei uma banana do seu Antônio lá no mercado e botei no saco”. Nisso, enquanto eu falava, meu pai passa por trás e diz: “Você fez o que?”. Olha... fico arrepiado só de pensar. “Pega a banana”. Fui lá, peguei a banana. “Bora lá na feira. Você chega e fala assim ‘Ó, seu Antônio, vim trazer a banana do senhor que eu peguei’. Mas você vai fazer assim!”. Minha nossa. Para falar com esse homem, amigo da

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gente e tudo... Mas peguei a banana e falei. Ele disse “Nada, meu filho!”. Papai olhou e foi firme: “Não senhor. Você vai deixar a banana aí”.

Então era um homem assim... Meu pai é um espelho do tama-nho do Maracanã. Um homem tão correto, tão direito... Ele sempre falava: “Vocês têm que falar pouco para errar pouco”. Sempre conver-sava com a gente. Ele tinha cada coisa, cada frase. Tinha uma confiança assim que tudo na fazenda era comigo! Era com ele e depois comigo. Ele era uma pessoa que... Nunca vi daquele jeito não.

(silêncio)Aquilo da banana foi pior que uma surra. Antes tivesse me bati-

do lá em casa. Toda vez que eu olhava para o homem, dono da banana, eu sentia como se ele falasse: “Ali o ladrão”.

Por isso que eu sempre digo pros meus filhos: quando a gente acha que a pessoa confia na gente, temos que fazer de tudo... fazer de tudo para não deixar aquilo ir água abaixo. Ele tinha uma fé em mim... Uma vez ele viu lá uma cerca quebrada. Chegou em casa e disse: “Liz, tal lugar, assim, assim, tem uma cerca quebrada. Você chama o Antô-nio – o empregado – , vai lá e fecha. Conserta lá”. Peguei a ferramenta, cheguei lá, consertei tudo... Lá em casa era bem grande e tinha uma varanda. Cheguei com o negócio no ombro e ele: “Consertou, Liz?”. “Consertei, pai”. Vou saindo e ouvi ele falar com minha mãe assim, como se eu tivesse ouvindo ele agora: “Ô Laura”, minha mãe se chama-va Laura, “Laura. Esse menino vai ser um homem de verdade”.

Eu ouvi mas fiz que não ouvi. Mas não esqueço disso nunca. Então é por isso que eu... Tudo depois disso para cá, tudo que meu pai pedia eu só fazia assim, com perfeição, com coragem. Ensinava meus irmãos como meu pai era. E a gente, um elogio desses... hm.

(silêncio)Mas vai, pergunta alguma coisa aí!- Tudo bem (risos). Você passou por diversos lugares e agora

está em Vitória. Como veio parar aqui?Eu já tinha dois filhos aqui em Vitória. Sempre ligavam: “Pai-

nho, vem pra cá”. Eu tinha vontade de vir pra Vitória já, mas tinha um medo de não dar certo... Mas vim. Comecei a mexer com leite nova-mente, transportando para um laticínio daqui. Fiquei por aí transpor-tando leite até que um dia falei com Lizete: “Sabe de uma coisa? Vou

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fazer queijo!”. Esse negócio de transportar leite para os outros a gente morre de trabalhar e não ganha nada. O laticínio que eu trabalhava acabou fechando, né, daí eu chamei o chefe e falei: “Rapaz, vamos fa-zer queijo para nós dois?”. “Vambora!”. Eu estava com um dinheiro na mão, arrumei um ponto para fazer queijo... Resultado, treze anos se passaram. Treze anos que eu fabrico esses queijos que você vê. De repente virei microempresário! Pela vontade dos meus filhos a gente expandia o negócio, mas não quero que cresça muito não, sabe? Não sei se estou errado, mas falei com eles: “Se a gente tiver um negócio pe-queno, organizado e rentável, é melhor que ficar se matando”. A gente não tem empregado. Se for para crescer, a primeira coisa que vem é o empregado, é a mão de obra. Você sabe que empregado não é fácil... Aí fica só nós mesmo. Agora eu estou saindo do queijo. Estou passando para eles dois, meus filhos. Tudo mais ou menos encaminhado, o que eu tinha de fazer já fiz. Vou ficar uns dois ou três meses igual jacaré: de olho. Mas eles são demais! Não fazem melhor que eu, (risos) mas fazem bem o queijo. Se eu falar que faço melhor eles reclamam: “Que nada, painho, faz nada!”. Mas é assim. Então agora estou passando para eles e vou viver o resto da minha vida. Praia, passear, tudo que posso. Cuidar da saúde não, porque isso aí, graças a Deus... Todo mundo comenta da minha saúde. Você acredita que eu nunca tomei uma injeção? Acredi-ta? Nunca tomei injeção que não anestesia de dentista e vacina. Mas doença? Eu nunca sentei em cama de hospital!

Então eu sou assim hoje. Não peço nada a Deus, só faço agra-decer o que já fez por mim. Já está bom demais. Já morro tranquilo. (risos)

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arlene lucymaire rampazzo schulthais, 1938

Posso dizer o ano em que nasci? Foi em 1938. Nasci no dia 26 de junho de 1938. Então tenho setenta e seis anos. Minha infância foi muito boa. Foi naquela época em que a gente podia brincar com as amigas, de boneca... Minha casa tinha quintal, então a gente brincava ali. Não existia o perigo de hoje. Foi uma infância muito boa.

Quando comecei a estudar foi no Carmo, Colégio Nossa Senho-ra Auxiliadora. Eu morava no final da Graciano Neves, em Vitória, ali no centro. Antigamente era assim: primeira à quarta série, depois fazíamos admissão, que era o quinto ano, e aí que a gente entrava no curso ginasial. No Carmo mesmo eu fiz o curso ginasial e depois o curso normal. Durante todo esse período eu estudei no Carmo, que era um colégio de freiras. Todo ano nós tínhamos um retiro de três dias, que íamos só para rezar. Rezar o terço, fazer oração... Só que eu gostava muito de falar, não conseguia ficar parada. Todo mundo ficava meio quieto, prestando atenção e eu às vezes cutucava o colega... Ô meu Deus! (risos) Então eu tenho boas lembranças, porque também as irmãs viam que minha brincadeira era ingênua, espontânea. É que eu não podia ficar muito quieta mesmo, eu era meio agitadinha.

Segui com o curso normal e escolhi uma cadeira. Naquela época

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existia o curso de ingresso para professores, lá na escola Maria Ortiz. A gente fazia uma prova escrita e depois oral. Em um salão, com uma mesa bem grande, ficavam todas as pessoas que se inscreveram nesse curso de ingresso. Eles iam chamando por classificação. Eu consegui uma escola rural, no interior de Santa Leopoldina. Como essa escola era de acesso muito difícil, eu tinha alguém para me atravessar em uma canoa, no rio Santa Maria, até o outro lado para poder dar aula nessa escola. O nome dela eu não esqueço, mas era um nome tão feio que vou me reservar o direito de só falar depois (risos). Pois é. Depois fui trabalhar no grupo Santa Leopoldina, tudo dando aula. Era para os primeiros, alfabetizando, mas eu falava primeira série. Eu fiquei alguns anos lá até que teve um concurso de remoção. Era assim: conforme os alunos eram aprovados, o professor recebia uma classificação também. Eu fui para o concurso e, conforme minha classificação, escolhi um lugar que se chama Suíça, município de Santa Leopoldina também. O nome é Suíça porque o pessoal que fundou a cidade veio como imi-grante de lá. Não sei se é imigrante, é assim o nome?

- Sim, são imigrantes.Então é isso, imigrantes. Eles foram desbravando aquelas matas

e botaram o nome de Suíça porque eram de lá, mas não eram da Suíça cidade. Devia ser daqueles interiores bem... que não arranjavam mais trabalho, porque a terra não era produtiva... Por isso eles eram aventu-reiros, não é? Acho que queriam se lançar e vieram. Mas então. Eu dei aula nessa escola, que era singular da Suíça e pertencia a Santa Leopol-dina. Eu ia dar aula nessa escolinha rural e ficava hospedada na casa do fazendeiro, porque eles me davam alimentação e dormida. Nas férias eu ia para a fazenda do meu pai, em Santa Leopoldina também, mas mais na baixada, sabe? Chamava “Fazenda Nova Coimbra”. Por que Nova Coimbra? Porque dizem que foram os portugueses, descenden-tes da minha mãe, que começaram com tudo e ela recebeu de herança dos pais. Era da minha mãe, mas como eles eram casados, com comu-nhão de bens... Então todos falavam “Ah, a fazenda do seu Rampazzo”. Mas então, eu ia para a Suíça e esse fazendeiro tinha um motorista....

- Esse fazendeiro era como o prefeito da cidade?Não, ele era o dono da fazenda. A escola ficava próxima da casa

dele e eu ficava lá hospedada. Mas eles nunca cobraram nada porque

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tinham posse, condições. Em outros lugares eles davam casa para a professora e tudo. Mas elas tinham que comprar, né, porque era pro-priedade dos lavradores. Já o fazendeiro não, porque ele tinha con-dições. E esse fazendeiro era muito bom porque a gente dava aula de segunda a sábado até onze horas e ele mandava me levar. Dei aula muitos anos na Suíça até que, não sei o ano, conheci o filho do fazen-deiro. Nessa época, os fazendeiros botavam os filhos para estudar no Rio, nessas capitais grandes, mas o conheci foi na igreja mesmo. Eu ia porque quem dava aula de catecismo para os alunos da escola e ou-tros meninos da região era a professora. Então eu dava a aula em uma igrejinha lá. Tem até hoje, muito bem conservada, estilo até... europeu eles falavam. Europeu. Todo domingo, quando eu dava aula, tinha que estar na igreja às sete horas, porque o catecismo era de sete às nove e depois começava a reza, como eles falavam. Eram aquelas orações... Como é mesmo? Eles falavam reza, mas agora esqueci. Não era uma missa e sim o próprio pessoal de lá ou a professora quem começava as orações ou o terço. E era muito engraçado. Tinha duas fileiras de bancos, uma aqui e outra lá. Duas. Na do lado direito ficavam todos os homens, mesmo os que fossem casados, e do esquerdo todas as mulhe-res. Eu achei isso muito interessante na época. Por exemplo, se eu era noiva, meu noivo não ficava perto de mim.

Portanto, nesses dias faziam-se as orações e uma vez por mês o padre ia celebrar a missa, porque antigamente havia falta de padres e eles se dividiam por várias localidades de Santa Leopoldina. Pois é. Então lá eu conheci o Oswaldo, meu esposo. Quer dizer, nós não... Nós só nos conhecemos. Depois de um tempo ele veio novamente para a casa dos pais e eu ainda estava dando aulas por lá. Aí sim nos conhece-mos. E começamos a namorar (risos). Pois é. Depois nos casamos em Vitória, porque meu pai tinha uma casa lá. Na Igreja de São Gonçalo, não sei se você conhece. Por incrível que pareça eu nem sei o ano, já esqueci. Sei que sou viúva há treze. Fiquei casada quarenta e um anos mais ou menos, mas não lembro a data.

Mas ficamos um tempo nessas idas e vindas dele. Porque ele es-tudava no Rio e depois passou a estudar na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Não sei se existe ainda, mas ele passou a estudar lá. É no estado do Rio de Janeiro, mas não na cidade. Meu marido devia ter

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quantos anos quando estava lá? Porque ele era novo ainda, faleceu com sessenta e quatro anos... Faleceu dia dez de fevereiro de 2001. Faleceu.

Nos casamos quando ele veio definitivamente do Rio. O dia do meu casamento foi maravilhoso. Eu era a única filha, né. Tinha um irmão... Tenho um irmão, aliás, que é seis anos mais velho, mas eu era a única mulher. Então minha mãe fez um casamento maravilho... E o meu vestido? Tinha aquela cauda super longa! E a festa foi maravilho-sa, com todos aqueles negócios enfeitados, docinhos... Coisas assim. Ela arranjou uma pessoa que fizesse o bolo, então ficou daqueles de não sei quantos andares. E quando partiu o bolo, tinha uma coisa lá que saía pétalas de rosa! Ah... É uma coisa que me lembro muito bem...

Mas quando ele veio foi para trabalhar na barragem da Suíça, na construção. Trabalhava com os alemães, eles quem estavam fazen-do as torres de eletricidade. Eram uns alemães da AEG, mas não sei a significação. Facilitava porque ele também falava alemão, né. Ele era descendente de alemão e eu de italiano, mas ele falava muito bem a língua e com esse emprego foi só aprimorando. Eu vim para Vitória e fui dar aula na Casa do Menino, ali em São Torquato. Existia essa es-cola, eram aqueles meninos que eles pegavam, às vezes sem as mães... Eram internos, ficavam lá. Almoçavam, dormiam... Nem sei se existe ainda. E aí pronto. Fui morar em Vitória e fiquei lá por muitos anos, porque acabou que nessa história da barragem meu marido foi convi-dado para ir à Alemanha junto desses engenheiros. Eles falavam que Oswaldo era muito inteligente, mas ele não era engenheiro. Eu não sei direito no que ele formou, nós éramos solteiros na época, foi depois muito tempo que começamos... ah, a namorar, ter assim mais... Eu não perguntava nada. Sei que depois ele se formou em Direito, mas aí já éramos casados.

Depois ele começou a trabalhar na Escelsa e por lá ficou muitos anos. Edifício Ouro Verde, onde eram os escritórios da Escelsa. Não sei qual... Não sei o que ele fazia. Depois teve o convite de trabalhar na Con-favi, companhia de ferro e aço, em Jardim América. Foi lá e trabalhou até aposentar, porque quando a Ferro E Aço foi privatizada ele teve que aposentar. Lá ele fazia trabalho de tradutor e intérprete, de alemão e in-glês. Então todos esses... fornos? É forno? Da Ferro E Aço. Eles faziam aqueles... fornos, pode ser. Eu tenho essa dúvida, porque faz muitos anos

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que a gente não fala sobre, sabe? As peças desmontadas chegavam da Alemanha ou outro país e era ele quem precisava fazer a tradução.

Deixa eu fazer um parêntese? Eu me lembro que ele ficava muito preocupado, conversava comigo, porque eram todos termos técnicos. Ele sabia falar e escrever o alemão muito bem, mas termos técnicos... Eu só sei que no final ele deu certo, porque sempre após a montagem havia uma festa. Eles botavam para funcionar aquelas turbinas, aquelas coisas da Ferro E Aço. Eu nunca entrei lá dentro, lá onde era... Sei que quando a gente passava por fora dava para ver aquelas barras de ferro, todas em brasa! Não sei mesmo... Sabe o que é? Naquela época eu já estava com meus filhos, nem me interessava muito em saber. Tinha que trabalhar, ir para casa ver os filhos... Então assim, foi um tempo de muita dificuldade, tanto financeiramente quanto de tempo, porque a gente não tinha tempo para tudo.

Pior que eu não me lembro das datas... Eu teria que olhar as pas-tas. Eu tenho várias pastas com essas coisas dele registradas. Comprei umas caixas de plástico bem grandes e tenho todas as pastas dentro. Mas o caso é que ir lá procurar...

- Você parece bastante organizada.É, (risos) eu tenho tudo nas pastinhas. Não sei se é pela idade,

falta de atenção, ou se não estou mais interessada nesse assunto... Só sei das pastas. Por exemplo, eu tenho outro lugar com outras pastas, só com imposto de renda, contas e tal. Tenho aquelas porque eles podem, assim, me pedir alguma coisa. Aí eu já sei que ela está em pasta tal que está em certa gaveta. Agora coisas muito antigas já estão guardadas nas caixas, que ficam lá dentro.

- Porque você escolheu ser professora?Porque naquela época a maioria das mulheres tinha que ser pro-

fessora, já que a professora dava aula em um período e depois ficava em casa. Uma minoria fazia o clássico ou científico. Eram duas opções depois do ginasial. Não sei se tem mais disso. Só sei que o científico... Não sei se tinha mais anos ou... termos de dificuldade. Só acho que era melhor. Quem fizesse científico poderia fazer um curso para engenha-ria, medicina, entendeu? Agora o clássico não me lembro mais.

Mas eu escolhi ser professora porque pensei na fazenda do meu pai, que não tinha professora lá, então pensei que poderia dar aula lá.

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Mas na época eu achava isso porque não sabia que existia esse con-curso de ingresso. Não sabia, eu era nova e não havia ninguém para me informar sobre. Na própria escola em que eu estudava, era quase automático, porque era o que mais... Todo mundo formava. Se você encontrar pessoas da minha idade, claro que vai esbarrar com pessoas que são assim, médicos, dentistas... Mas mais professoras.

Foram vinte e cinco anos na sala de aula, mas nem sempre alfa-betização. Fui professora de segunda, terceira, quarta série... Mas de-pois que fiz o curso superior, porque eu fiz pedagogia lá na Ufes, fiz uma especialização em supervisão educacional. Aí pude ser professora para séries mais avançadas. Fui dar aula no Instituto de Educação. Nes-sa época, existia o curso de formação de professora, então eu poderia dar aula lá. Eu tinha a carteirinha do Ministério da Educação. Tenho até hoje, aliás. Ela dava o direito de lecionar a parte das didáticas, co-municação e expressão, que hoje é só português, e estudos sociais. E ciências, mas aí já era outro professor. Ciências... Não sei se é ciências naturais que eles falavam. Eu não sei, não me lembro mais. Mas tam-bém já faz muitos anos. (risos)

Quando eu passei no vestibular da Ufes... Nossa, foi muito feliz. Foi o vestibular mais difícil da época, muito concorrido. Foi uma sur-presa, nunca pensei que seria colocada nos três primeiros lugares para pedagogia. Nunca imaginava! Eu trabalhava e estudava à noite. Depois que meus filhos iam dormir, aí que ficava tudo quieto e eu conseguia estudar. Era assim. Aos sábados, como morávamos no centro, Oswaldo ia ao parque Moscoso e eu ficava estudando. Fazia uma coisa ou outra na cozinha mas sempre estudando. Foi uma batalha muito grande.

E foi gratificante ter passado. Agora... em contrapartida, hoje eu fico pensando ‘Por que todo esse sacrifício?’. Sabe por quê? Sabe quanto eu ganho? Com curso superior, que naquela época você preci-sava entrar até sete e quinze da manhã, porque o professor não deixava entrar? Que ficava reprovada por falta se você faltasse muito aquelas primeiras aulas? Foi muito difícil. Eu morava no final da Graciano Ne-ves e precisava pegar o ônibus atrás dos Correios para chegar na Ufes a tempo da aula de sete horas. E para que eu fiz esse sacrifício? Eu pensei que fazendo curso superior eu ganharia melhor, porque na época saiu a lei 5692, uma lei que iria promover os professores a ganhar mais.

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E olha, sinceramente? Acho que eles nem lembram que os pro-fessores existem. As políticas deles são outras. Não acho que melhore. Já estou desiludida com a educação. Vamos ver os governantes, né. Ao longo dos anos não melhorou. Melhorou um pouquinho depois que fiz a faculdade, mas não valeu a pena. Os anos todos, o esforço... Não valeu.

- Que tipo de professora você era? Oh, eu até me arrependo de ter sido aquela professora que co-

brava muito. Não estou me vangloriando não, mas eu fazia de tudo para que meus alunos aprendessem. E ficava mais do que meu horário! Aqueles que quisessem apender e ficar mais uma hora, eu ficava. Não era recuperação, mas eu ajudava nas dificuldades que meus alunos ti-nham. Era como uma aula de reforço, mas sem ganhar nada por isso.

- Então você se definiria como dedicada, porém rígida?Rígida. (risos) Fui muito rígida com meus filhos também, por

isso que hoje eles são até meio...(silêncio)Muita rigidez não pode. Tem que ter um pouco de carinho, não

é? Mas eu tinha carinho quando dava aula para primeira, segunda sé-rie. Só que depois eu dei aula para moças. Rapaz também, que faziam o curso normal. Então, aí, se eu não... impusesse minha autoridade, vamos dizer assim, se eu brincasse muito, sorrisse muito, no meu en-tender eles não iriam me respeitar.

Mas eu tratava muito bem. Então quando alguém queria algo, perguntar alguma coisa, era só levantar a mão, porque aquela época as pessoas levantavam a mão. Eu pedia licença aos outros para atender quem levantasse a mão. Se pudesse, no momento, esclarecer a dúvida da pessoa, eu esclareceria. Mas também existiam muitos inteligentes naquela época, então se a pergunta fosse muito difícil e eu não soubes-se responder na hora, eu conversava direitinho, anotava e fazia uma pesquisa. Ao mesmo tempo em que eu ia ensinar, eu ia aprender. Dar aula é um eterno aprendizado.

- Você se lembra de algum aluno em especial?Muito! Bernardo! Ah, mas ele era demais. Muito levado! Muito

inteligente, mas não era estudioso. Ele, olha... Ele nunca ficava sentado. Fui com muito carinho e colocava ele na minha cadeira, porque eu nunca fui professora de ficar sentada e sim fazendo voltas pelas cartei-

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ras, né. E o Bernardo se sentia muito bem quando eu falava: “Ó, Ber-nardo. Quando começarem a falar muito, você bate na mesa!”. Aí fui conquistando o menino. Depois de muitos e muitos anos, nossa mãe!, encontrei com ele um dia lá na Glória. Mais de cinquenta anos ele deve ter. Ah, mas ele me abraçou tanto! “Minha professora, minha professo-ra!”. Eu disse: “É, você está lembrado dos castigos que eu te dava?”. Aí nós rimos, sabe? Ele falou: “Mas eu sempre falo, professora, que o que eu aprendi, aprendi com a senhora”. Porque tinha muita coisa, sabe. Muitos problemas. E eles tinham muita dificuldade. Mas eu sempre procurei fazer o que fosse possível para mim.

Mas o Bernardo era muito levado! Muito engraçado também. Ele ficava mexendo com os outros, não ficava quieto. Eu pegava ele, com todo carinho, “Vamos lá, senta, meu filho”, eu dizia. “Fica quie-tinho, você já sabe fazer isso desse e desse jeito?”, e ele: “Já!”. Pegava o caderno e me mostrava, empolgado. Ele sempre era o primeiro a ter-minar a tarefa. Os outros eram muito... cada um dentro do seu limite, não é? Vagarosos...

- E um momento que te marcou?Olha...Meu pai faleceu em um ano, não sei qual, mas tem ano-

tado aí. Um ano e dois meses depois faleceu minha mãe. Um ano e seis meses depois, meu esposo. Vinte e três dias depois da morte dele, eu entrei em uma cirurgia de câncer de mama. Descobri logo depois do falecimento do meu esposo, mas a mamografia fiz antes. Meu gen-ro, que é médico, fez o exame e no resultado apareceu. Uma coisinha. Ele entrou em contato com o doutor Roberto Lima, grande cirurgião de mama. Então... mas graças a Deus não precisei tirar a mama, fiz o quadrante.

Mas eu penso assim, sempre falo para os meus filhos: a vida da gente é uma caminhada. Você plantando bem ou mal, lá na frente você vai colher aquilo que plantou. Semente boa ou ruim, né, aí não sei. Cuidei do meu pai, da minha mãe e do meu esposo. Eu me dediquei integralmente a eles. Minha mãe ficou acamada por dez anos. A gente pegava ela no colo, botava na cadeira de rodas para dar um passeiozi-nho no calçadão... Meu pai faleceu com noventa e sete anos e minha mãe, como eu disse, um ano e dois meses depois dele, com noventa e três. Meu esposo, um ano e sete meses depois com sessenta e quatro. E

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ele que me ajudou tanto a cuidar do meu pai... Dava banho, colocava na cadeira de rodas... Eu arrumava ele todo bonitinho, de boné. Pesso-al que me conhecia, “Nossa, Arlene, seu pai tá passeando lá no calça-dão tão alinhadinho!”. Eu tinha aquele prazer, sabe? E aí meu esposo passeava com ele.

Vê se eu podia imaginar que ia perder os três em praticamente três anos? No total, foram doze anos que cuidei. Meu pai, minha mãe e meu esposo. Ele morreu por consequência de câncer de próstata. Mas sofreu muito... Ficou paraplégico. Fiquei com muita depressão. Tive sim. Mas logo fui ao médico, ele receitou um remedinho... As meninas sempre vinham para dar uma volta, ou então eu mesma ia caminhar pelo calçadão. Com o remédio e atividade assim, né, eu fiquei bem. Mas eu nunca esqueço. As coisas para a gente... A ferida fecha mas a cicatriz fica, não é?

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edson vieira da fonseca, 1935

Olha, minha infância não poderia ter sido melhor. Meus pa-rentes moravam todos em Cachoeiro de Itapemirim: minhas primas, tios, meu irmão na época morava lá, hoje é falecido... Foi uma infância gostosa. De colégio, entendeu, você tinha muita receptividade no co-légio. Estudei na Escola Técnica do Comércio em Cachoeiro, formei contador... Foi tudo uma sequência boa.

Fui para Colatina com vinte anos. Trabalhava em uma firma em Cachoeiro e ela abriu filial lá. Como eu já tinha prática no trabalho, o sócio falou: “Vamos levar o Edson que ele vai me fazer falta”. E lá fiquei N tempos. Depois... Acho que fiquei vinte e cinco anos em Colatina. Depois me transferi para Vila Velha. É que meu pai veio morar aqui. Eu pensei ‘Quer saber de uma coisa? Trabalho por trabalho, trabalho em Vila Velha’. Transferi para cá e graças a Deus fui muito bem. A es-colha foi muito boa.

Minha escolha de Cachoeiro para Colatina foi excelente. Porque eu cresci, né. Patrão me deu mais chance, um ano depois que estava em Colatina me passou para sócio, naturalmente a remuneração foi melhor... E criei a família, casei lá. Minha mulher é colatinense. Foi ótimo. (risos)

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- Como vocês se conheceram? Ah minha filha, foi interessante. Eu me lembro como se fosse

hoje. Foi em uma festa de Colatina, dia de Colatina. Eu estava assim, na beira da pracinha, quando ela passou em cima da caminhonete do irmão dela, ela e mais cinco garotas. Ela foi a mais assanhadinha e ace-nou para mim! Deu adeusinho. Devolvi isso para ela e pensei ‘Poxa...’. Peguei o ônibus e fui para São Silvano atrás dela, mas não encontrei. Muita gente, festa... Falei ‘Vou ter que encontrar aquela garota’. Um belo dia, estava eu passeando na praça de Colatina quando a vi. ‘Ah, agora vou cercá-la’. (risos) Acabou que o cercado fui eu!

Mas foi maravilhoso, uma época maravilhosa. Minha vida toda foi boa, não tem fase assim... ruim, não. Fiquei anos no mesmo em-prego, saí porque quis fazer meu negócio, deu tudo certo, casei, essas coisas. Eu casei com... Namorei um ano, noivei um ano e no final no noivado casei. Demorei dois anos para me encrencar. (risos) Mas valeu a pena, não poderia ser melhor escolha.

Olha, minha vida foi tão boa que não consigo destacar um mo-mento especial. Foi uma sequência, não é? Trabalhava lá, vim para cá, comecei a trabalhar para mim. Então foi uma sequência de trabalho. Cresci, criei família, adquiri bens... É isso. Não tem algo especial... Foi crescimento pelo trabalho. A gente, ainda rapazinho, passa a ter uma família e pensa melhor, né. Em progresso, crescer, dar o melhor pos-sível, trabalhar o máximo que puder. Foi isso que fiz. E graças a Deus não me arrependo um segundo.

- Como era a relação com seus pais?Melhor não poderia ser. Eles me amavam demais e eu amei eles

demais. Duas peças na minha vida que... foram primordiais para mi-nha evolução no trabalho, social, demonstrar honestidade, não prati-car o errado. Meu pai foi excelente. Um homem assim... Meu pai era boa índole na menor coisa. Ele não aceitava um... gesto errado. Cor-rigia na hora e fazia questão que a pessoa não repetisse aquilo. Cresci assim e passei isso para meus filhos. Foi meu projeto. Como foi bom para mim, obviamente seria bom para eles. Meu filho Paulino foi cria-do assim e minha filha Paulete a mesma coisa. Sempre usando a ver-dade como ponto principal. Mentira não entra no cardápio de jeito nenhum! Nunca tolerei mentira. Por mais errado que a pessoa faça,

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tem que se apresentar como errado. “Eu errei, me desculpe, me perdoe, tal, tal, tal”. Se apresentar como errado, mas nunca mentir. Não adianta cobrir um erro em cima de outro erro. A pior coisa que existe é a gente perder a confiança... Principalmente com filho! Com estranho você... Ah, vai para a China e acabou. Mas com filho você está ali do lado. Se não tiver confiança no filho, vai ter com quem? Esse é o problema.

Um conselho que passo sempre é encarar a vida com a realidade ao invés da fantasia. Se puder ter uma coisa, que tenha. Se quiser ter um carro, tenha. Se não puder, não compra! Quer dizer, só fui comprar um carro aos trinta e cinco anos de idade. Primeiro adquiri minha casa para morar. Os outros não. Ganhou dinheiro? Primeira coisa que faz é comprar um carrinho, né. “Vrrrrummm”. Eu? Primeira coisa que fiz foi investir numa casa. Esposa, filhos, conseguia viajar, não havia co-brança de aluguel, nada disso. Estava ali tranquilo. Só depois adquiri um carro. É uma sequência lógica.

Mas nunca sacrificar a família. Deixar o estudo dos filhos porque tem q ue comprar um carro? Nada disso. Eles primeiro. A família em primeiro lugar. Minha visão sempre foi a família. Esposa, meus filhos... Hoje, aqui em casa, moram minha filha e minha esposa. Meu filho vive nos Estados Unidos, trabalha e tem família. Há quatorze anos já. Ele tem uma firma de limpeza de piscina. Limpa as piscinas e fatura uma notinha boa, viu? Não dá para ficar rico, mas tem todo o conforto possível. Não é como muito brasileiro que vai para lá e ora trabalha ora não. Aconteceu quando ele foi para lá. Foi solteiro... Mas agora não. Estabilizou. É dele. Desse ponto, meus dois filhos estão bem de vida. É despreocupante. Não me preocupo mais com eles, mas precisando estamos aí. Felizmente não é o caso. Paulete trabalha bem, Paulino trabalha bem...

- Paulete e Paulo?Paulino é meu filho e Paulete é minha filha. Os dois trabalham

bem e estão com muita saúde, praticam esporte. Graças a Deus.- E você, pratica esportes?Eu não! Meu esporte é trabalhar. Saía de casa às cinco da manhã

e voltava às seis, sete horas da noite. Um esporte bom mesmo! E tudo de ônibus, muitos anos eu peguei. Levantava cedo justamente para pe-gar o ônibus vazio e não ir em pé. Ô esporte! Hoje ainda é assim, não é?

- É, também pratico esse esporte...

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E que esporte, não é? (risos) Faz parte, faz parte. Um tempo de-pois arranjei um carrinho, um jipinho... A gente vai crescendo e me-lhorando, né. Mas antes eu tive a ideia de ter uma casa para morar. Pa-gar aluguel é um dinheirinho desgramado. Todo mês sumia o dinheiro e eu pensava ‘Poxa vida’. Eu sabia que a prestação de casa era mais ou menos o valor do aluguel, então pensei ‘Não, vou partir para a cons-trução’. Juntei um dinheirinho e comprei um lote. Esse aqui mesmo. Uma coisa interessante! Foi o seguinte: Eu trabalhava como vendedor, visitando os bares. Saí ali no final da rua e um cidadão me chamou. Seu Antônio. Passou a ser meu vizinho. “Ih, rapaz... Tá abafado?”. Dívida a gente vê pelos olhos. “Rapaz, não sei o que vou fazer da minha vida. Estou precisando pagar uma conta aqui e não sei onde vou arranjar o dinheiro”. Eu falei: “Ih, rapaz. A situação está feia mesmo”. Para você ver como são as coisas! Ele disse: “Rapaz, eu tenho um lote ali, nessa rua mesmo. Lote bom, trezentos metros quadrados, ofereço barato e ninguém compra o raio do lote”. E eu ia viajar. Eu ia! Eu viajava de ambulante. Tinha um caminhão. Falei: “Você tem um lote?”. “É, nessa rua aqui mesmo”. Manobrei, “Me mostra o lote”.

Trezentos metros quadrados, planinho... ‘Poxa vida. Vou cons-truir minha casa’, veio logo na minha mente. “Ô seu Antônio, seguinte. Não moro aqui, estava de passagem porque estava vendendo bebida. Mas essa ruazinha sua parece boa. Só de residente, não é?”. “Não, aqui todo mundo é residente! Não tem proprietário alugando. E são gente excelente”. Ele me mostrou e eu disse “Antônio. O senhor falou que está apertado”. “Tô arrochadíssimo! Preciso arranjar três mil reais para acertar, senão o cara me protesta”. Fui direto. “Quanto você quer no lote?”. “Não posso vender por menos de seis mil não. Já rejeitei dez mil no lote, não sabia que ia me apertar... Pensei que ia construir uma casa e fiquei com ele. Mas agora quero vender”. Eu disse assim: “Qual o menor preço que você pode fazer para mim?”. “Faço por seis mil reais. Abaixo quatro mil mas quero o dinheiro hoje”. Ponderei com ele: “Olha, vamos fazer o seguinte. Eu estava indo viajar agora, saindo daqui. O que posso fazer é te dar três mil agora, você abafa seu proble-ma e quando eu voltar te dou os outros três para o senhor passar em algum cartório para meu nome. O senhor me dá um recibo de que está recebendo três mil adiantado”. O cara ficou... “Ô graças a Deus!”. O lote

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era maravilho e eu pensando em construir em casa! Ele fez o recibo, assinou e fui viajar. Onde chegava eu mostrava o lote, todo orgulhoso! Não tinha que fazer nada... Mas fui pensando ‘Será que ele vai lembrar de vender o lote?’. Quando voltei, falei: “Seu Antônio?”. Ele, na mesma hora: “Vamos pro cartório passar para seu nome!”. Foi ele e a esposa, passou e eu paguei os outros três mil. Ele falou para pagar em trinta dias, mas ele estava precisando, né? Meu dinheiro estava no banco, eu tinha que pagar mesmo... Quando estávamos no cartório, falei: “Toma aqui seus três mil”. “Uai, vai me pagar agora?” e prontamente: “Vou”. Bláu! Passou para meu nome e registrou na hora. Aí peguei esse lote aqui. Sou feliz aqui. E eu quem construí esse barraco.

Engraçado como na vida da gente tudo encaixa certinho. Com-prei o lote, logo, o dinheiro foi para o espaço. Mas vi na televisão uma propaganda de financiamento para quem tinha lote. ‘Olha! Vou cor-rendo nesse lugar aí’. (risos) Levei a escritura e disse: “Olha, estou preci-sando de dinheiro para construir”. E felizmente, minha filha, deu tudo certinho. Em seis meses minha casinha estava pronta. Foi rápido! E eu estava doido para sair do aluguel. Pior coisa do mundo é aluguel! Quem não pode, tudo bem, está certo, tem que pagar... Mas eu tive minha casinha. Ah, outra coisinha. Na época eu não tinha experiência, então fiz a base para dois andares, não três. Mas alugo embaixo, di-nheirinho entra mensal. É tudo assim: você tem que fazer as coisas na hora certa. Apareceu? Bláu!

E vamos vivendo. Hoje sou aposentado, graças a Deus. Traba-lhei dez anos com uma empresa e vinte e quatro em outra. Já aposen-tado, resolvi trabalhar para mim. Deu cem por cento certo. Porque a gente não tendo dívida, não pagando aluguel, não pagando nada... O que fizer é dinheiro. Eu trabalhava com bebidas, cresci minha vida toda com bebidas. Comprava e vendia, comprava e vendia... E fazia isso para os outros. Aí, um viajante da Martine & Rossi me disse...

- O que é isso?Vermute, Martine & Rossi, conhece não?- Não...Já vi que você não bebe! (risos) Ele falou assim: “Você é a alma

desse seu negócio. Por que não bota para você?”. “Tá bom, mas eu não tenho nada e tal...”. “Você não vai comprar duzentas caixas, você com-

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pra vinte caixas. Eu vendo para você, te conheço. Abre o negócio para você, rapaz. Uma firmazinha. Tenho uma gama de produtos aqui, aí você compra um pouquinho de cada. Só não pode apertar!”. Foi a mi-nha sorte: abri minha firma.

E olha como as coisas são. Como elas fluem! Acabei de abrir a firma e chegou um cara: “Ô Edson. Você trabalhou na firma tal, assim, assim? Eu tenho um depósito, fabrico aguardente. Estou com tantos mil litros lá e não sei vender! Não sei onde coloco o produto de jeito ne-nhum. Não consigo vender, seu Edson. Estou com cinco mil litros lá”. E eu cheio de coisa... Achei tudo que eu queria. “Mas você não tem rótulo, nada? Seguinte, vamos fazer uma parceria. Se você confiar em mim...”. “Não, claro! Já fiz algumas pesquisas”. “Então é o seguinte. Vou mandar fazer os rótulos, ele vai ser meu e você vai engarrafar para mim. Botar em litro, caixa de doze litros, e trazer para mim. Na proporção que eu vender, te pago. O lucro é meu, lógico. Se você aceitar...”. “Não, pelo amor de Deus, já tô dentro! Quando você quer?”. Disse para quando estivesse pronto, ele me mandasse. Sem pressa. No dia seguinte, cheguei em casa e estavam aqui cem caixas! ‘Que isso, o cara já mandou!’. (risos) A fama de honesto é bom por isso. O cara tinha confiança. E a cachaça era boa mes-mo, excelente. Mandei fazer o rótulo chamado Boazinha. Rótulo meu, né. Olha... como eu ganhei dinheiro, menina! Chegava na Glória com a garrafa, um litro de cachaça aberto. “Ó, essa cachaça aqui é boa!”. “Ah, nhe nhe nhe, eu compro de fulano de tal”. “Você vai comprar de mim, ô cacete! Não compra outras coisas de mim? Leva a cachaça também. Prova aí!”. Cinco e meia, seis horas, quando os pinguços estão no boteco, chegava eu com o litrão e eles diziam: “Nossa, que cachaça boa!”. O dono do bar pedia cinco caixas. Batia dez. Nunca entrego o que o freguês pe-dir, porque aí ele não podia comprar de outro. O negócio é não deixar comprar do concorrente. “Ô seu fí da puta, eu pedi cinco!”. “Vem cá, afundou o chão aí? Estragou, quebrou alguma coisa? Não. Então! Você tem que me pagar mesmo, tanto faz cinco ou dez”.

- Estratégia, não é? Lógico! Se deixar coisa demais, ele fala para o concorrente: “Ó,

tô cheio de cachaça, não quero mais”. Só que a cachaça era muito boa. Excelente, pura. Não sei se existe ainda, aposentei. Deve ter, o cara tem alambique em São Roque. Mas menina... de cem caixas passou para

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duzentas. Outra vantagem: assistência. O cara me telefonava em qual-quer horário: “Edson, nhe nhe nhe” e eu levava.

Com o aumento do comércio comecei a comprar outros pro-dutos. Comprava dez caixas de Martine, dez de Cinzano, Jurubeba...

- Jurureba? (risos)Jurubeba, Leão do Norte. Você realmente não bebe! É excelente.

Nunca tinha pensado em outras coisas, só vendia cachaça. Até que um dono de bar perguntou o porquê. “Ah, não vendo porque não tenho”. “Pô, mas você poderia comprar e revender. Preciso de Jurubeba Leão do Norte. Não acho em lugar nenhum!”. Agora olha só como são as coisas! (risos) Fui para Campo Grande... Como é seu nome mesmo? Bianca? Estou espichando o negócio não, né?

- Não, pode continuar. Tá bom! Fui lá. Cheguei em um armazém... Mais ou menos

cento e cinquenta caixas de Jurubeba Leão do Norte. Pensei comigo ‘Porra... Vou faturar um dinheirinho nesse negócio!’. (risos) Pergun-tei: “E essa Jurubeba aí?”. “Excelente, mas não vende uma só caixa. Tenho umas cento e cinquenta compradas e não vendo”. Disse assim: “Ô rapaz... Vamos fazer o seguinte. Traz para mim. Vou comprar. Não vou apanhar daqui porque não tenho lugar para botar. Eu pago vinte caixas. Na hora que vender, pago mais vinte. Mas ó, tem um de-talhe: eu saio para vender, depois chego aqui e não tem mais. Como fica?”. “Não, é cento e cinquenta sua. Você comprou, você leva”. Ne-gócio fechado!

Que fartura, menina! Faturei... “Você quem tem Jurubeba?” “Teeenho. Quantas caixas?”. Bláu! O cara ficou besta. “O idiota do meu vendedor não vendeu uma caixa”. “Eu tenho minha freguesia, pô, que que é!”. Olha, mas ganhei um dinheirão! São coisas que quem está no ramo enxerga na hora. E ainda era final de ano, joinha, joinha...

Depois resolvi importar para mim. Comprava as encalhadas do comércio ali na Vila Rubim. Aquelas que estavam com teia de aranha e tudo! “Ô rapaz, essa aí não vende?”. “Tá ruim de vender... Se o senhor quiser faço até um precinho melhor”. Era muito mais barato! Estava encalhada, né, então o dono estava doido que saísse. Pá, pá, acabava aquilo. E depois eles ainda queriam que eu vendesse outra coisa! (risos) O armazém deles acabava servindo para mim, entendeu? E assim foi a

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vida. Ganhei um dinheirinho bom mesmo, viu. Tudo você tem que se dispor a fazer.

O problema é o seguinte: você quer vender? Tem que trabalhar com o melhor. “É bom?”. “É”. Entendeu? Essa cachaça aqui é boa. Se o cara experimentasse e fosse boa mesmo, acabou o negócio. Agora, se você enganar o freguês já era. A credibilidade vai para o espaço. Se você falar que é bom, precisa ser bom mesmo. Credibilidade e hones-tidade. Com isso, eles não compram com nenhum outro. Você passa a ter o nome na praça. E o meu, graças a Deus, foi o melhor possível.

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margarida ferreira de oliveira, 1936

Comigo tudo aconteceu quando eu era nova. Trabalhei nova, minha mãe ficou viúva quando eu era nova, casei nova.

Comecei a trabalhar com o quê? Treze anos? Por aí. Era aque-la vida sacrificada. Morava em Vila Velha, acordava cedo, pegava o bonde de cinco e meia da manhã para uma fábrica de bebidas na En-seada do Suá. A gente tinha uma vida agitada, não era igual o tempo de vocês, mais folgado. Minha vida sempre foi trabalhar, trabalhar... Quando terminava, dia de sábado, eu chegava em casa, tomava ba-nho, ia para a igreja e dela voltava para casa. Porque nunca fui assim de festa. Sempre fui caseira. E continuei caseira mesmo depois de casar, com vinte anos.

E olha, sou muito católica. Muito mesmo. Não perco um dia de missa. Pode estar chovendo, a rua pode estar cheia, mas não perco a igreja. Triste de mim se não for Deus, minha filha. E sou muito apega-da com Nossa Senhora. Olha, eu sempre desço para assistir a Procissão dos Homens, da Festa da Penha. É uma emoção quando ela passa ali atrás. Mas quando termina, posso dormir uma hora da manhã, mas às cinco e meia estou de pé fazendo o café e me arrumando para a igreja. Nossa, não perco mesmo. Sou muito religiosa, graças a Deus.

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Eu tinha uma loucura de sabe... ser irmã de caridade. Quase fui, mas mamãe não deixou. Firmino, o padre diretor na época, foi lá em casa pedir a permissão dela. Mas o Convento era lá em São Paulo e ela não deixou. “Não quero que ela vá, a outra filha já vai separar”. Eu que-ria, viu... mas ela não deixou. Eu não pensava em casar, nunca pensava. Minha vida era assim, só procurar a igreja. Solteira eu não saía de casa. Não gostava de sair, de festa, essas coisas. Sempre fui caseira. Só saía mesmo para trabalhar e para a igreja.

Mamãe ficou viúva quando eu tinha seis anos, acho. Nós somos em quatro mulheres e três homens. Ela ainda criou mais três dos ou-tros, três sobrinhos. Ela foi muito trabalhadeira, sabe. Muito honesta com as coisas. Correta. Meu marido também, mesma coisa. Eu falo assim para as pessoas: sempre trabalhar, ganhar dinheiro suado para Deus abençoar. Honestidade. Não mexer nas coisas dos outros. A gen-te tem que ser assim, tem que pegar a coisa que é nossa. Porque Deus... às vezes fregueses meus falam assim: “Ah, vou mexer nisso aqui, Fula-no não está vendo”. Mas Deus tá vendo. Em todos os lugares. Então as pessoas nunca devem mexer nas coisas dos outros, levantar falso dos outros.

Foi o que mamãe ensinou. Fomos criados sem pai, eu não lem-bro do meu pai. Quando ele morreu eu era muito nova, não lembro dele. Então foi ela quem ensinou tudo. Ela falava assim: “Quando vocês forem na casa dos outros, onde ouvir uma conversa, não traga para fora. Lá fica. Se vocês já estiverem jantados, de café tomado e alguém oferecer comida, não peguem”. E foi assim que criei minhas duas filhas, mesma coisa. Com elas eu fazia assim: pessoal chamava para festinhas de aniversário, eu pegava elas, dava banho, arrumava e dava a janta. Aí chegou um dia e me perguntaram: “Poxa, Margarida, por que as me-ninas não podem comer docinho?”. Meu costume, né. O pai também. Mexer em nada de ninguém. Do jeito que fui criada, criei elas.

Uma vez entrei na venda, logo quando cheguei aqui na Glória, eu avisava: “Olha, papai deu dinheiro para mamãe comprar isso aqui. Temos pouco dinheiro, então vocês não vão pedir nada. E tem uma coisa: não mexam em nada, porque a gente tem que mexer naquilo que é da gente e só”. Aí elas entravam na venda com as mãozinhas todas para trás. Chegou o dia que o moço perguntou: “Dona Margarida, por

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que quando as meninas aparecem com a senhora elas botam as mão-zinhas para trás?”, e eu respondi assim: “Eu recomendo para elas em casa”. E elas entravam mesmo! Obedeciam. Mas hoje, minha filha... é difícil. Nossa mãe do céu.

Hoje eu trabalho aqui no bar, sou dona. Não gosto, assim, que às vezes as pessoas ficam falando troço que não deve. Onde tem mulher a gente tem que ter mais respeito do que onde tem homem. A pessoa às vezes quer falar uma besteira e aproveita que é mulher, acha que pode falar, mas aqui não é assim não. Não gosto quando as pessoas falam isso.

Mas sou dona há muitos anos já. Meu marido quem abriu. Abriu, mas depois sofreu o acidente dele e alugou. Acabou não dando muito certo, o rapaz não pagava direito e ele pediu para que eu e minha filha Miriam, que havia separado, continuássemos o negócio. Até hoje. É le-gal, né? A gente vai lidando, até quando Deus quiser. Quando Ele não quiser, a gente aluga de novo. Está nas mãos dEle. Ele quem sabe resol-ver, então Ele quem resolva. É por isso que sempre gosto de pedir para celebrar uma missa para um amigo, amiga, neto... O que Ele faz tá bem feito. Estou sempre perto dos meus netos, sou muito próxima deles. Nós moramos todos juntos. Miriam mora na casa em cima do bar e eu na da frente. É café, é tudo lá em casa. É uma proximidade boa. Eles obedecem muito. Quando o menino chega da faculdade, o Leoni, é tudo vó pra lá, vó pra cá. “Vai com Deus, Deus te acompanhe”, eu falo. Peço muito a Deus para acompanhar ele, porque do jeito que está... Quando eu mudei para essa Glória aqui, há cinquenta anos, era tudo casa velha! A minha também. Mas a gente conseguiu. Morávamos no final da rua, tínhamos uma quitanda... Tudo quanto era verdura, tudo nós vendíamos. O di-nheiro sempre foi suado. Meu marido falava que o exemplo da casa são os pais, e deu certo para nós. Agora estamos aqui, com o bar.

- Você comentou que seu marido sofreu um acidente.Ele teve um acidente e ficou na cadeira de rodas. Caiu da mar-

quise. Foi tirar... O pedreiro fez um serviço mal feito, diz meu marido que estava mal feito. Sei lá, não entendo. Sei que ele foi tirar e sofreu o acidente. Ficou na cadeira de rodas por vinte e três anos. E eu fiquei cuidando dele todo esse tempo. Foi para São Paulo, operou lá... mas voltou e continuou na cadeira. Quando ele passou mal mesmo, ficou no hospital, o médico de São Paulo veio para cá e disse que se ele pe-

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gasse uma certa bactéria, remédio algum que cortava. E foi verdade. Aí morreu. Faz catorze anos e quatro meses que ele faleceu.

Depois que ele morreu, eu tive muito mais responsabilidade. Muito mesmo. Porque tudo primeiro é Deus, mas depois sou eu. Fazer isso, fazer aquilo... Elas ajudam, mas depende mais é de mim. Deus levou ele e ficou eu.

Mas olha, ele ficou vinte e três anos na cadeira de rodas, mas tinha uma cabeça boa. Tudo o que ele ia fazer, combinava comigo antes. E hoje... eu acho assim, porque não tem mais ele... Agora é Deus e eu. Só isso. Nos-sa, sinto saudades demais... Demais. Eu sinto falta dele, demais da conta. “Nega”, ele me chamava de Nega, “vou fazer isso assim, assim e assim”. Pegava e falava: “Ah, Nega, aluguei aquele ponto para Fulano, mas eu sei lá, me arrependi”, e eu falava: “Ele não assinou nem nada ainda, Nego!”. Mas ele respondeu: “Não. Palavra minha não vai atrás. O que der certo e der errado, já aluguei e está feito”. Era tudo assim. Era uma pessoa muito boa, sabe, muito boa mesmo. Nunca foi de... Ó, em comparação. Você podia ser um rapaz, uma pessoa. Ele nunca chegou perguntando: “Nega, quem é aquele moço que tá falando com você?”. Nunca. E eu a mesma coisa com ele. Ele confiava muito em mim e eu confiava muito nele.

Ele não tinha usura de nada. Às vezes eu ia ao Perim fazer com-pras, voltava e ele estava sentado na cadeira da área. Mostrava a nota e ele falava assim: “Nega, o dinheiro não deu?” “Deu sim, e ainda so-brou”. Eu tentava entregar o troco, mas ele era assim: “Não, não quero nem saber. Se deu, bem, se não deu pega mais dinheiro e compra”. Era bem assim.

Foram quarenta anos de casado. Quarenta e quatro. Se ele es-tivesse vivo agora, estaria inteirando em junho. Eu casei era vinte e quatro de junho. Seriam sessenta anos de casamento. Mas a gente tem que confiar em Deus. Ele sabe o que faz. Eu quero uma coisa, eu pen-so, converso com Deus. Antes era com ele, né, com meu marido. Mas agora tem que conversar com Ele.

(silêncio)É, minha filha. É triste, nossa mãe do céu. A gente estar junto de

uma pessoa e Deus levar. Coitado... Às vezes ele falava assim: “No meu acidente, eu poderia ter morrido para não te dar tanto trabalho, Nega” e eu respondia prontamente: “Que nada, Nego, trabalho nenhum”. Ele

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foi uma pessoa tão boa, sabe? Para tudo, para mim, as meninas... De vez em quando eu mando celebrar missa pra ele. Domingo passado eu mandei. Não esqueço não. Sempre peço a ele, seja lá onde ele estiver, para me ajudar, me dar muito saúde. Até o final, quando Deus tiver de me levar. A gente tá vivo agora mas não sabe depois, né.

(silêncio)Que triste minha filha, vou te contar. Mas Deus... a gente vai

frente e atrás do que Deus faz. Não podemos desmanchar o que ele faz, não é? E o que vivemos foi muito bom. Às vezes ele chegava e fa-lava: “Nega, vamos para tal lugar”, e eu falava: “Ah, mas não estou com vontade de ir”. Ele não ia. E era sempre assim. Tudo que as meninas queriam ele dava. Nunca negou nada a elas.

Uma vida, vou te contar... Eu tenho muita coisa dele. Às vezes de noite eu fico pensando... Por que você acha que eu fico aqui no bar? Se eu ficar lá em cima, parece que estou vendo ele. Sentado na cadeira, deitado na cama. Ele ficava conversando... ficava assistindo televisão e quando queria me contar de alguma coisa que estava passando, gri-tava: “Nega, corre aqui!”, e eu já pensava que ele estava passando mal. Nossa... é triste demais perder uma pessoa. Nossa mãe. Muitos anos você conviveu junto. E ele foi meu primeiro namorado. Com meu pri-meiro namorado, eu casei. Legal à beça...

Sei lá, sei lá... Tem horas que eu fico pensando, nossa. Parece uma coisa assim, um sonho. Dia desses um senhor falou: “Nossa, dona Margarida, a história da senhora dá um livro”. Uma pessoa falou! Um freguês meu. Respondi: “É, meu filho, eu sofri”. Mas onde ele estiver, está em um lugar muito bom. Ele gostava muito de ajudar os outros. Dá um livro mesmo... Eu tive o que muita gente procura.

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maria das graças, 1948

Fui nascida, criada e até hoje estou em Vila Velha. Não morei fora. Sair daqui para morar lá fora? Não. Sempre em Vila Velha. As coi-sas que aconteceram no passado, dez anos, trinta anos atrás, eu lembro tudinho. Como era e como é agora.

- Existe algum local que você considere especial? Lá onde agora é a Marinha. Foi um lugar muito bom. Quem

dera o que aconteceu para trás fosse agora.Eu era menina nova. Justamente ali eu acompanhei a família

dos Nogueira. Eles me criaram ali. Minha mãe trabalhou na casa da família Nogueira – que hoje em dia não existe mais, não tem ninguém mais vivo. Então lá foi um lugar que marcou muito a minha vida. Por-que eles me criaram mesmo, né, por bem dizer. Eu chamei de avô, de tio. Fui muito bem criada naquela casa. Não tenho mais contato, mas quem dera tivesse... Morreram todos. Quem dera.

Com uns catorze anos comecei a trabalhar. Mesmo com dez, ainda com os Nogueira, eu juntava minhas colegas e íamos vender su-ruru. Minha vida era muito precária com a criação da minha mãe, então nós saíamos de casa e íamos para a maré tirar sururu e marisco. Onde é a Terceira Ponte, sabe? Antes ali era tudo maré. Nós pegávamos

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o sururu e íamos até Paul vender. Minha vida foi um precário muito sério, por isso vendia. Para poder ganhar dinheiro e ajudar minha mãe a comprar umas coisas para dentro de casa. São quatro irmãs e, como eu era a mais velha, era eu quem precisava sair de casa para ajudar.

Mas com 14 anos eu saí de casa de vez para trabalhar fora. Mas tudo na casa de conhecido, não era casa de gente estranha não. Saí da aba de minha mãe e fui trabalhar como babá. Trabalhei só em casa de gente conhecida, de família mesmo, sabe? Nessa casa foi onde me criei também. A pessoa até já morreu. Morava aqui na rua Dom Pedro II. Lá que fui ser babá, tomando conta do menino deles. Hoje em dia ele é casado. Fui a primeira babá dele, mas hoje em dia não o vejo mais. Não sei onde mora. E a mãe dele só tinha ele de filho. O segundo ela teve só quando depois que saí de lá, então não cheguei a conhecer o outro.

Fui casada, sou viúva. Casei em 71. 71? Não. 1961. Nem lembro com quantos anos, acho que com vinte. Casei nova. Minha primeira fi-lha está com quarenta e poucos anos, a Cassilda. Meu marido e eu nos conhecemos em um baile. Antigamente aconteciam bailes nas casas, e eu gostava muito. Foi na casa... Não lembro como foi, só que... Pala-vra. Foi com palavra. É assim que começa. Ele quem chegou em mim. Daquele jeito que acontece, não é, quando a pessoa quer te conhecer. Ainda é assim. Casei grávida, nem sei quanto tempo depois. Agora assim eu não lembro.

Ele morreu dia... em janeiro de 2009. É, foi em 2009 que ele morreu. Estava doente, bebia muito, fumava muito... aí foi agravando. Primeiro foi uma pneumonia. Ele foi para a Maternidade, internou lá e melhorou. Foi embora. Quando chegou, estava bom de saúde, estava tudo bem. Mas começou a beber de novo, fumar de novo e não teve jeito, teve uma recaída. E quando isso aconteceu, nós estávamos com um filho em casa. Hoje ele está casado, tem filho e mora em Jardim Botânico. Mas na época ele ainda estava para casar. Quando aconteceu a cerimônia, meu marido já estava doente. Só deu tempo de assistir ao casamento antes da doença agravar.

Ele ficou um bocado de tempo internado na Santa Casa. Foi lá que não aguentou e faleceu. Mas antes disso ele trabalhava. Sempre trabalhou pela Prefeitura, mas ele conseguiu se aposentar. Foi depois da aposentadoria que veio essa maratona toda. Veio a doença... Bom,

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foi esperado. Mas ele deixou os filhos todos grandes, todos homens. Não deixou filho pequeno.

Hoje em dia eu e meus filhos vivemos bem. Graças a Deus não tem esse negócio tratar um, tratar outro. Trato todo mundo igual. Em casa temos aquela união muito boa, tanto por parte dos meus filhos quanto dos meus netos. Tenho neto que trabalha, que mora comigo desde novinho. Meu marido era pai e avô. Ele chamava o avô de pai, porque nós criamos ele juntos. A mãe também, mas assim... Criamos ele e agora vai fazer vinte anos em janeiro. Nunca apanhou da nossa mão. Então nós temos aquela união de família, e é bom. Nos damos muito bem.

Agora vou te falar... Eu tenho um filho que bebe. Ele trabalha no Perim. É um bom filho, mas é ruim quando bebe porque ele fica ignorante. Mas eu levo tudo na paciência. Eu peço muito ao meu Deus, ‘Senhor, dai-me forças para levar tudo na paciência’. Porque eu não posso falar: “Não, chega. Você vai embora”. Não... Se eu falar isso, ama-nhã me arrependo de ter tocado ele de casa. Eu não quero isso. Eu criei esse menino, botei ele no mundo. Não posso fazer como certas mães fazem, que deixam os filhos. Ah, não. Ele graças a Deus só bebe, não fuma maconha nem nada. Mas o negócio é que ele bebe e fica... passa para a ignorância. Xinga. Às vezes os irmãos falam: “Mamãe, a senhora tem que dar bronca nele”. Mas eu levo tudo na paciência. Não gosto, não sou aquela mãe de brigar, de xingar. É tudo na calma. E eles não gostam, falam que eu preciso dar um basta nisso tudo. É assim que eles fazem. Mas fora a bebida, eu sei que ele é uma boa pessoa. Trabalha. Mesmo quando bebe, nunca perdeu um dia de serviço. Ele tem a obri-gação do serviço.

E é assim, essa é minha família. Apesar de tudo, tem aquela união da família em casa. Eu prezo bastante por isso. Pelo respeito. Eu respeito muito para poder ter respeito. É assim.

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italina pin, 1931 maria das graças, 1948

Italina: Ô, Maria, fala assim, ó. Fala que seu marido te maltratou muito. Tem que falar!

Maria: Preciso contar disso também?- O que você quiser.Maria: Se não quiser, não precisa, né? Então não. Deixa só o

certo mesmo...Italina: Só o tempo dirá o que é certo. Pode falar que não tem

problema.Maria: Por que você não dá entrevista, Italina? Hein? Por que

você não faz também?Italina: Não, só você hoje.Maria: Aproveita que ela está aqui e faz hoje também.Italina: Eu não, só outro dia. Mas eu falo tudo!Maria: Ah, você eu sei que fala! (risos)Italina: Por que você não conta assim pra ela: eu tava lá no mor-

ro, Roseane me conheceu e trouxe até aqui... que já tem trinta anos que você está aqui comigo. Foi no morro, coitada. Fala que foi no dentista, colocou os dentes... Tem que falar tudo, ô Maria!

Maria: Ah, não vou falar tudo não, Italina. Já falei a metade.

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Italina: Vai tomar banho, fala tudo

**

- Como é a relação de vocês?Maria: Aí, Italina. Aqui nós briga...Italina: É cada briga, menina, a gente enrola, enrola, vai pra lá,

pra cá e acaba na rua. (risos)Maria: De vez em quando a gente discute. Para falar a verdade,

eu quem discuto com ela. Ela também fala algumas asneiras, mas de-pois estamos a mesma coisa de antes.

Italina: Nós somos como duas irmãs, Bianca.Maria: É.Italina: Igual duas irmãs.Maria: Aqui em casa não tem esse negócio não, nós brigamos,

eu brigo com ela...Italina: Tem manhã que eu acordo, Bianca, eu penso que é mi-

nha mãe quem está na cozinha. Acho sim. Considero ela quase minha mãe. É família.

Maria: É. É família. Italina: Que coisa, meu Deus do céu.Maria: Quando cheguei aqui, todos os filhos de Italina eram sol-

teiros. Fui no casamento da Sandra, da Nádia...Italina: Do Luiz Carlos também.Maria: Só não fui no da Rose. Não deu para ir. Não lembro o

motivo. O do Luiz Carlos foi naquela chuva... mas no casamento dele eu chorei. Pra você ver, eu chorei no casamento dele.... Cheguei aqui quando ele era mais novo. E eu gosto, ele chega aqui e me abraça.... Você precisava ver Luiz Carlos, minha nossa. Chega aqui e me abraça na cozinha. Nossa, têm muito amor por mim. E eu por eles também.

- Uma família grande, não é?Maria: De vez em quando trazemos um agradozinho para Ita-

lina, entendeu. Não sei. Sou uma pessoa que gosta de agradar a todos, Bianca. Eu agrado. Sou uma pessoa muito calma e muito dada. Sou dada com qualquer um. Não importa aonde for, eu tenho que levar uma lembrancinha ou algo para comer. Não sei chegar na casa de al-

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guém de mãos vazias. Sou muito agradável com as pessoas. Mas minha mãe também foi assim. Mamãe todo mundo gostava dela! Até Italina. Ela chegava aqui com pouco e saía com muito. Italina sempre agrada-va ela com algo. Então, eu sei lá, acho que aprendi com minha mãe. E muita gente fala que pareço com ela. Minhas filhas sempre dizem: “Mas a senhora também, os outros andam muito nas suas costas!”, mas eu não... Eu tenho muita paciência, Bianca. Não sou daquelas pessoas que dizem ‘não’. Ah, não. Sou muito dada. Não sei se pode ser um pro-blema... Acho que não. Não sei.

Mas aqui também é assim. Sempre trago uma lembrancinha para Rose - e ela também sempre me dá, quem mais dá é a Rose! Da Nádia... De vez em quando Sandra traz algo. Aqui a família é unida. Tem aquela união. É a família que aconteceu, graças a Deus. Cheguei há trinta anos e estou aqui até a data de hoje. E vou levando assim, até quando quiser. Enquanto Italina estiver viva, eu estarei aqui. Que Deus dê muita vida e saúde a ela, para ela melhorar. Porque é o que eu digo, Bianca. Algum dia irei construir minha casa. E o dia que eu estiver pronta, vou levar Italina lá.

Italina: Oba! Maria: Sai pra lá, Italina. (risos)

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italina pin, 1931

Vou começar dos meus tempos de solteira. Comecei a trabalhar com sete anos - botava um caixote perto do fogão para poder subir, me-xia nas panelas e fazia a polenta. Cresci e comecei a pegar café no pé. Muito café. Sabia muito da roça. Pegava muita cana, banana... Levantava cedo para poder fazer a garrafa de café matinal. Depois tomava um pou-co com broa e íamos todos pra roça. Na hora do almoço, meu pai toca-va o sino. Aquela coisa, é sino mesmo... Aquela coisa de boi – muuuu, comprido... ah, deixa sino. Chegava o sábado, nós limpávamos tudo com água e esfregávamos com areia. Tomávamos banho para ficar bem arru-madinhos. E no domingo era dia de missa. Todo domingo.

Lá em casa éramos cinco irmãs e dois irmãos. Um a cobra mor-deu. Eu tinha treze anos quando Atílio foi picado. Era muito bonito, faria dezesseis anos, todo alegre, cantando e assoviando em cima da pedra. E mamãe falou assim: “Atílio, enquanto eu cato vagem de feijão, você fica aí vigiando os porcos para não pisarem no milho!”, no que ele respondeu: “Tá bom”, todo feliz enquanto ela saía. Ficou todo alegre... Quem não obedece acontece coisa ruim. Ele não obedeceu minha mãe.

Assim que ela saiu, ele pegou um machado e fugiu com um ami-go, Antônio Picuim, atrás de mel de abelha. Foi na planta caçar o mel.

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Foi aí que Atílio pisou em um monte de folha de palmito. A cobra esta-va embaixo. Ai, Jesus. Quando a cobra botou a cabeça pra fora, pegou o pé dele! No calcanhar, na mesma hora. Lá não tinha médico, não tinha estrada, não tinha nada. Se ao menos tivesse médico... Mas não. Fize-ram banho, tudo, mas nada valeu. Ah, meu coração de Jesus, quando foi meia noite... Antes dele falecer, disse para minha mãe que a cobra que o mordeu era igual a uma que ela havia matado antes. Quando ele falou isso, pronto. Mamãe danou-se a chorar. “Pronto, meu filho está morto. É isso mesmo, Atílio?”. Daí a pouco morreu. Que coisa triste, né. Mas ela chorou, viu. Chorou, chorou... E juntou tanta gente lá em casa. Tanta gente! Mal cabia no quintal.

Depois fiquei grande e comecei a namorar. Namorar não, paque-rar. Tinha muito rapaz querendo paquerar comigo. É muito rapaz, não era pouco não. Silvínio Delpran queria me roubar. Disse que venderia a farmácia dele caso eu saísse – homem casado, hein. Queria me carregar.

Tirei o primeiro lugar da Moça Bonita, lá em Patrimônio do Ouro. Silvínio Delpran, ele quem escolheu, ele era o farmacêutico, su-biu no palco e falou assim: “Eu vou falar agora qual a moça mais bonita de todas aqui de Patrimônio! Vamos ver quem é!” Ele olhou pra mim e gritou: “Italina Pin!”. Nossa senhora... E todo mundo bateu palma. Fi-quei com a maior vergonha. Silvínio Delpran era casado, tinha mulher e queria que eu fosse embora com ele. Paulo Calabres, casado. Queria que eu fosse embora com ele. Queria namorar comigo.

Depois do Paulo, comecei a namorar o Zeca Piassi – José Piassi. Mas não gostei dele não. Larguei pra lá. Ah. Não gostei porque ele tra-zia balas no bolso e ficava chupando e conversando ao mesmo tempo... Não gostei dele não. Terminei com ele. E foi aí que comecei a namorar com o Barles.

Calma, Barles? Não. Comecei a namorar Valter Casagrande, fazendeiro. Mas não quis também porque enxerguei que ele era um fazendeiro e não me queria de verdade. Depois dele, namorei Zílio Du-riguetto. Mesmo problema. Minha mãe falou “Italina, ele é de Castelo, da cidade. Você é da roça”. Então obedeci minha mãe e larguei ele pra lá. Aí, sim, foi quando conheci o Barles.

Namorei quatro anos. Quatro anos... caramba. Não casei por-que, assim. Esse Zílio Duriguetto era de Castelo, mas trabalhava como

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dentista em Patrimônio. Como não era de lá, ficava hospedado na casa de Nila Vanelli. Ele saía do trabalho sempre às dez horas. E em baixo de casa morava minha prima, Genoveva Pin, e ela sempre esperava quan-do ele passasse por lá. E ele ficava, entrava na casa dela e comia bolo. Chegava na casa de Nila Vanelli às duas. E ela pensava que ele estava era na minha casa até essa hora.

Ela espalhou a conversa para o Pedro Borini e minha outra pri-ma, Julieta Pin. Falou que eu era mulher do Zílio. “Nossa senhora, ele fica na casa dela até às duas horas. Ah, mas é mulher dele!”. Pronto. Um dia Nestor Barles, meu namorado, foi ajudar Pedro Borini a matar um boi. Matou e jantou por aqueles cantos mesmo. Conversando, tocou no meu nome e Pedro disse que eu era mulher do Zílio. Eu não era! Mas ele acreditou. O Nestor pensava que eu fosse.

Ele me perguntou: “Italina, quero saber se você é moça, sim ou não”. Falei: “Claro! Homem que não sou!”. Mas eu não sabia dessa his-tória. Ele bem podia ter me falado... Mas ô Bianca, fiquei com tanta rai-va dele. Pensava assim: “Peraí, você me paga”. Terminamos. Foi quando conheci o Zé Bortolon...

Quando Nestor soube que eu ia casar, ele veio me falar: “Italina, assim, assim, assim... as coisas que a Julieta e o Pedro disseram...”. “E você foi na conversa deles? Fica com eles agora, então. Casa com a Julieta e o Pedro”. Mas ele fez assim ó: suou! “Italina, não fala isso não, eu não sou culpado não...” “Você é culpado sim por não ter me falado antes” “Mas eu, Italina... eu venho aqui, trago um animal, te levo até Vargem Alta na casa do Zé Altoé... você só precisa levar a certidão. Eu trato de tudo e nós casamos”. Vê se faço isso com meus pais? Eu falei: “Nem morta!”. Logo com Zé Bortolon, um homem tão direito, tão le-gal? Fazer isso nada. Eu não quis. E ele se arrependeu muito.

Um dia eu estava na casa da cunhada de minha irmã Angelina Pin. Eram cinco horas da tarde. Ele passou a cavalo, com a cabeça bai-xa. Soltou a rédea do animal, cabeça ainda baixa... Estava chorando. Não me viu não. Nunca pensaria que eu estivesse lá, né. Deu até pena. “Vê, Dona Maria, como Nestor tá... coitado”, no que ela respondeu: “Minha filha, quem deve a Deus paga ao Diabo”.

Depois, Bianca, cheguei em casa... sei lá. Bateu uma tristeza. Quase larguei o Zé Bortolon. Minha mãe viu que eu estava triste. Eu

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chorava, ia debaixo da casa para chorar e ninguém ver. Mas ela des-confiou. Uma semana antes do casamento, ela entrou no meu quarto e falou: “Italina. Eu só vou falar uma coisa. Se você casa, que seja com quem você goste. Não vá atrás de conversa. Você gosta de Nestor? Case com ele. Gosta do Zé? Case com o Zé. Faz como você quiser”. Mas falei: “Pior, mamãe, é que minha roupa está toda na casa dele.” “Mas não tem problema a roupa estar lá. Ele devolve ou fica com ela, não tem proble-ma”. Então procurei o Nestor.

Ele veio até mim e disse: “Italina, vou te levar e nós vamos ca-sar”. “Nestor”, eu falei, “a roupa! Minha! Enxoval!”. Duas malas cheias de roupas, todas bordadas. Eu vou deixar lá? Não tenho coragem de deixar minha roupa lá. Ele falou: “Oh. Você vem comigo. A roupa fica com ele”.

Viu, que coisa? Que romance, né? Que romance, gente.Eu falei: “Ah, Nestor. Vou chorar, vou me arrepender, mas não

vou fazer isso não”. Por causa dos meus pais. Eles adoravam o Zé Bor-tolon. E ficava feio... a roupa estava toda lá. Vê se eu ia fazer isso? Mas você sabe, no meu casamento, quando despedi de minha mãe, dona Ernesta Prestes, ela disse para ele: “Ó, José. Não maltrata ela não. Trata dela bem”. Minha mãe gostava muito dele.

Eu fui chorando até Cachoeiro. Da minha casa, passa Patrimô-nio, passa Cachoeiro da Prata, a fazenda dos Pinon, uma mata... E José perguntava: “Italina, por que você está chorando tanto?” e respondi: “Ah, José, estou chorando porque deixei meu pai e minha mãe, e gosto muito deles”. “Ué, todo mundo deixa pai, deixa mãe. Não é só você não”. Ficava quieta. Paramos em Castelo, almoçamos e subimos no trem para Cachoeiro. Chegando lá, estava chorando ainda.

Ah Deus, que vida triste. Estava chorando.Já em Cachoeiro, jantamos e fomos dormir. De manhã cedo ele

foi à missa. E fechou a porta com chave. Trancou-me no quarto. Medo que eu fugisse. (risos) Êta romance. Esse foi um romance viu...Nossa Senhora da Penha. Quando ele chegou, perguntei: “Por que você fe-chou a porta?” “Ué, você estava dormindo, vou deixar a porta aberta?” “Te conheço”, falei, “Te conheço, José”. Ele começou a rir.

Passou a lua de mel e fomos morar na casa da mãe dele e lá fi-camos mais ou menos um ano. Tivemos nossa primeira filha, a Nádia.

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Muito linda. O irmão dele, quando foi nos visitar, falou assim: “José, pelo amor de Deus, não fica nesse buraco aqui não. Arranjo uma casa para você, em Vitória, e mandarei a carta. Coitada dessa menina. E ainda vem mais! Não é só ela. Tem que estudar em Vitória, porque de lá seus filhos saem formados. Agora aqui? Vai fazer o que, nesse mato?”

Graças a Deus o Gentil abriu a cabeça dele. Nós embalamos to-das as coisas e o Rafael Pancotti nos trouxe para Vitória. Ao chegar aqui, nasceu a Sandra, a Roseane e o Luiz Carlos. Foi uma luta. Eles cresceram e eu tomei conta dos meus filhos, lavava a roupa, fazia tudo em casa. Todos ganharam bolsa escolar. Todos bem estudados, bem encaminhados, com a graça de Deus.

E se eu tivesse ido atrás do Barles, da fraqueza, estaria ainda lá na roça, com filhas no meio do café. Não teriam estudado, não teriam nada. Então, Bianca, sinto-me feliz pelos meus filhos. Que estão estu-dados, cada um com seu emprego bom.

Mas a minha vida foi uma vida... sei lá. Foi uma vida de traba-lhar e chorar. Mas fazer o quê?

Você já gosta do seu namorado desde o início, não é? Mas eu, já no começo, já... Tinha tanto rapaz que me queria, Bianca. O Paulo Calabres, que era lindo... Nossa Senhora da Penha! Que homem lindo! Ele falou: “Italina, eu vendo o sítio”. Ah, e o Zidório Júnior! Eu esqueci de te falar! Nossa Senhora da Penha. Ele era fazendeiro. Meu Deus, que bonito! Bianca, Bianca... Mas isso, do Zidório Júnior, eu já estava casada e com filhos. E ele também, casado com filhos. Nós nos encontramos em Castelo, em um restaurante. Estávamos eu e Marli, filha da minha irmã. Ele disse: “Italina, se você quiser...” e a Marli estava conversando com outro rapaz, porque eles queriam que nós dormíssemos na pensão onde eles estavam hospedados. Eu falei: “Vê lá se vou dormir na pensão com você, tá ficando doido?” “Italina, olha... vamos fazer assim. Vendo toda a minha fazenda. Debaixo dos panos. Deixo a mulher sem nada. Pego todo o dinheiro e nós vamos embora”. Cada homem, né? Mas era bonito, viu? Lindo! Ah, meu Deus, eu queria fazer aquilo. Mas depois... Não tive coragem não. Eu, confiar nele? Sei lá. Aí me dá um pé na bunda, como fez com a mulher dele? Mas ele me amava! Zidório Júnior...

Porque o Zé Bortolon... Ele era bonito, mas não era carinhoso. O homem não era carinhoso... Até o fim, quando morreu. Não sei o

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porquê. Se ele fosse carinhoso... Acho que gostaria dele. Mas nunca foi carinhoso.

- Você gostaria de ter feito algo diferente?(Silêncio)Ah, não. Como aconteceu, aconteceu. Fazer diferente... não fa-

ria, não. Não faria porque ninguém viria morar em Vitória. Eu pensava em instruir meus filhos. Pensava em porcaria de homem não (risos). A gente pensa mais nos filhos, você verá quando casar também. Você pensa nos filhos.

(Silêncio)E quando eu era solteira? Era danada para subir pedras. Nos-

sa, igual cabrito! Toda pedra eu subia. Mas subia mesmo, de verdade. Cada pedra enorme! Você dava um grito e ecoava. Ai, que barato...!

Casamento não precisa de pressa... Não tenha pressa para casar não...

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Universidade Federal do Espírito SantoVitória - ES, 2015

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