Esquecer Ou Relembrar o Passado

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I Simpósio de Patrimônio Cultural de Santa Catarina - “Patrimônio Cultural: Saberes e Fazeres Partilhados”, Florianópolis, SC, 21 e 22 de novembro de 2013 1 ESQUECER OU RELEMBRAR O PASSADO? O MUSEU DA LOUCURA E AS REFLEXÕES ACERCA DO HOSPITAL COLÔNIA DE BARBACENA ATRAVÉS DOS VEÍCULOS DE COMUNICAÇÃO Lucas Kammer Orsi 1 Resumo: Inaugurado em 1996 na cidade de Barbacena (MG), o Museu da Loucura é considerado pioneiro no Brasil pela sua temática: a loucura. O acervo da instituição abriga fotografias e documentos textuais dos pacientes, mas também objetos museológicos, tais como aparelhos de eletrochoque e de raios-X. Seu objetivo é preservar a história do Hospital Colônia de Barbacena, fundado no início do século XX e considerado um dos maiores manicômios do Brasil. O Hospital é marcado pelo sofrimento e pela impunidade e em seu espaço é criado o Museu, em meio ao cenário dos primórdios da Reforma Psiquiátrica e do surgimento da Luta Antimanicomial como maneira de “fazer justiça” aqueles que foram instituídos como loucos. O presente trabalho tem como objetivos perceber de que maneira os veículos de comunicação criam e promovem a imagem da instituição através da divulgação do Museu, atingindo a grande público, bem como discutir de que maneira o patrimônio pode refletir na maneira como é tratada a loucura nos dias de hoje. Palavras-chave: Loucura, reflexão, patrimônio, memória, sofrimento. Introdução O trabalho que aqui se segue está vinculado ao Programa de Extensão “Arquivos Marginais: Crime e Loucura em Santa Catarina”, pertencente a Universidade do Estado de Santa Catarina e coordenado pela Prof. Dra. Viviane Borges, do qual faço parte. A coordenadora, por sua vez, visitou o museu aqui estudado, e que resultou, em 2012 no capítulo intitulado: “’A nossa sociedade produziu esse tipo de instituição’: O museu da Loucura e seu acervo”, contido no livro “História da saúde e da doença”, lançado no mesmo ano e que a partir dele, surgiu a proposta para esse trabalho. “Um dos fenômenos culturais e políticos mais surpreendentes da atualidade é a emergência da memória como uma das preocupações culturais e políticas centrais das sociedades ocidentais” (HUYSSEN, 2000, p. 9). Essa “sedução pela memória” foi influenciada principalmente pelos grandes acontecimentos do século XX, como as duas grandes guerras ocorridas em 1914-1918 e 1939- 1945, respectivamente. Ademais, houve outros acontecimentos que ocorreram em determinados lugares, mas que geraram repercussão no mundo, como as ditaduras na América 1 Graduando do curso de História da Universidade do Estado de Santa Catarina. E-mail para contato: lucasorsi- [email protected]

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Como escolher o que será rememorado sobre o passado.

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I Simpsio de Patrimnio Cultural de Santa Catarina - Patrimnio Cultural: Saberes e Fazeres Partilhados, Florianpolis, SC, 21 e 22 de novembro de 2013 1 ESQUECER OU RELEMBRAR O PASSADO? O MUSEU DA LOUCURA E AS REFLEXES ACERCA DO HOSPITAL COLNIA DE BARBACENA ATRAVS DOS VECULOS DE COMUNICAO Lucas Kammer Orsi1 Resumo:Inauguradoem1996nacidadedeBarbacena(MG),oMuseudaLoucuraconsiderado pioneironoBrasilpelasuatemtica:aloucura.Oacervodainstituioabrigafotografiase documentostextuaisdospacientes,mastambmobjetosmuseolgicos,taiscomoaparelhosde eletrochoqueederaios-X.SeuobjetivopreservarahistriadoHospitalColniadeBarbacena, fundadonoinciodosculoXXeconsideradoumdosmaioresmanicmiosdoBrasil.OHospital marcadopelo sofrimento e pelaimpunidade eem seu espao criadoo Museu, emmeio aocenrio dosprimrdiosdaReformaPsiquitricaedosurgimentodaLutaAntimanicomialcomomaneirade fazerjustiaaquelesqueforaminstitudoscomoloucos.Opresentetrabalhotemcomoobjetivos perceberdequemaneiraosveculosdecomunicaocriamepromovemaimagemdainstituio atravsdadivulgaodoMuseu,atingindoagrandepblico,bemcomodiscutirdequemaneirao patrimnio pode refletir na maneira como tratada a loucura nos dias de hoje. Palavras-chave: Loucura, reflexo, patrimnio, memria, sofrimento. Introduo OtrabalhoqueaquisesegueestvinculadoaoProgramadeExtensoArquivos Marginais:CrimeeLoucuraemSantaCatarina,pertencenteaUniversidadedoEstadode SantaCatarinaecoordenadopelaProf.Dra.VivianeBorges,doqualfaoparte.A coordenadora,porsuavez,visitouomuseuaquiestudado,equeresultou,em2012no captulointitulado:Anossasociedadeproduziuessetipodeinstituio:Omuseuda Loucura e seu acervo, contido no livro Histria da sade e da doena, lanado no mesmo ano e que a partir dele, surgiu a proposta para esse trabalho. Umdosfenmenosculturaisepolticosmaissurpreendentesdaatualidadea emergnciadamemriacomoumadaspreocupaesculturaisepolticascentraisdas sociedades ocidentais (HUYSSEN, 2000, p. 9).Essaseduopelamemriafoiinfluenciadaprincipalmentepelosgrandes acontecimentos do sculo XX, como as duas grandes guerras ocorridas em 1914-1918 e 1939-1945,respectivamente.Ademais,houveoutrosacontecimentosqueocorreramem determinados lugares, mas que geraram repercusso no mundo, como as ditaduras na Amrica

1GraduandodocursodeHistriadaUniversidadedoEstadodeSantaCatarina.E-mailparacontato:[email protected] Simpsio de Patrimnio Cultural de Santa Catarina - Patrimnio Cultural: Saberes e Fazeres Partilhados, Florianpolis, SC, 21 e 22 de novembro de 2013 2 Latina,GuerraFria,dentreoutros.Apsaocorrnciadessesfatos,nosetemtanta perspectivademelhorasnofuturo,algoquesetinhaanteriormente.Comoconsequncia, percebe-seatendnciadeguardarqualquertipodevestgioquefaamenoaoquehouve nesse passado, como forma de rememorar as tragdias para que elas no mais ocorram. Uma dasmaneirasencontradasfoiapatrimonializaodeprises,camposdeconcentraoe hospcios,comomaneiraderelembraropassadodolorosocomoapelovocao conjuratria de um nunca mais (JEUDY, 2005, p. 59).O Museu da Loucura parece uma reverberao desse processo, localizado na cidade de Barbacena, em Minas Gerais. Pioneiro na temtica da loucura, o Museu reflete os anos de dor e sofrimento que permearam a histria do Hospital Colnia de Barbacena. Inaugurado em 1903, o hospital foi apontado ao longo de sua histria como o maior manicmio do Brasil. O trabalho que aqui se segue pretendeu ponderar a realizao de uma reflexo acerca do Museu daLoucura,queseencontraemsuafaseinicial,percebendodequemaneiraelemostrado nos veculos de comunicao atualmente. No obstante, decidiu-se analisar de que maneira a imagememitidapelosrecursosmiditicosinfluencianavisoacercadoHospitale desmistificao do conceito de loucura que est presente na sociedade de hoje. PrimeirasconcepesdeloucuranoBrasil:perodocolonial,imperialeacriaodo Hospital de Barbacena DuranteoperodocolonialeimperialnoBrasilnohaviaassistnciaparaosloucos. Dependendo de sua condio social as alternativas para o louco se resumiam em perambular pelas ruas, sem rumo; receber cuidados em domiclio, ou ser encaminhado para o estrangeiro (PEREIRA,2011,p.19).Emcasosmaisgraves,sendoaquelesconsideradosdesordeiros, erampresosnascadeias.AprimeirainstituioparatratardessasquestesfoioHospital Pedro II, criado em 1852 pelo prprio imperador da poca, D. Pedro II. Cerca de cinquenta anos depois, no estado de Minas Gerais, devido a grande demanda porumespaoparaabrigarosalienados,comeou-seapensarnaconstruodeuma instituio que atendesse esses sujeitos. Com essa proposta, no dia 12 de outubro de 1903 foi criadaaAssistnciaaosalienadosdoEstadodeMinasGerais,nacidadedeBarbacena.No entanto,comopassardotempo,aAssistnciaficouconhecidacomoHospitalColniade Barbacena.Noentanto,comoseguiaomodeloemquehaviaoficinasdetrabalhoecolnia agrcola, a Assistncia acabou ficando conhecida como Hospital Colnia de Barbacena. I Simpsio de Patrimnio Cultural de Santa Catarina - Patrimnio Cultural: Saberes e Fazeres Partilhados, Florianpolis, SC, 21 e 22 de novembro de 2013 3 Nos primeiros anos de funcionamento, o hospital era reconhecido pelo seu tratamento humanitrio aos pacientes, mesmo pelo fato de no haver profissionais especializados na rea, problemaesterecorrenteemtodooBrasil.Sque,comopassardotempo,onmerode pacientes que adentrava a instituio era to grande, que no foi na mesma proporo que os recursosdisponveis.Logo,passouaserummerodepsitohumano,sendoquegrandeparte dospacientesnotinhadiagnsticodeloucura.Eramepilpticos,homossexuais,prostitutas, pessoas,quedealgumamaneirasetornaramincmodasparaalgumcommaispoder. Meninasgrvidaspelospatres,esposasconfinadasparaomaridomorarcomoamante,ou atmesmopessoastmidas.Comoconsequncia,osproblemascomearamasurgir,dentre eles leitos insuficientes, escassez e precariedade dos recursos, o que acabou resultando numa mudana quanto ao tratamento dos pacientes.Apartirdisso,tornou-sealgodesumanoeempoucotempoacidadedeBarbacena passou a ser tachada de Cidade dos Loucos. Sniacresceusozinhano hospital.Foi vtimadetodos os tipos deviolao. Sofreu agresso fsica, tomava choques dirios, ficou trancada em cela mida sem um nico cobertorparaseaquecer(...).Deixadasemgua,muitasvezes,elabebiaaprpria urinaparamatarasede.Tomavabanhodemergulhonabanheiracomfezes,uma espciedecastigoimpostoapessoasque,comoSnia,noseenquadravams regras (ARBEX, 2013, p. 51). OsmtodosutilizadoscomorecursosteraputicosaolongodahistriadeBarbacena foramextremamentedolorososparaospacientes,queaindahojeguardammarcasdesse perodo. Um deles era a utilizao de aparelhos de eletrochoque em sesses, onde o principal intuitoeraconterospacientes.Almdisso,outromtodoutilizadocomorepresliaa lobotomia,queconsistiaemumapsicocirurgiaondeocorriaaaberturadeorifciosnaparte sagitaldocrnio,pararetiradadasfibrasnervosasdessaregiodocrebro.Aexecuo transformavapacientesagressivosempessoascalmaseapticas.importanteressaltarque medidascomooeletrochoqueealobotomiaocorriamtambmemoutrasinstituies brasileiras, no se restringindo apenas a Barbacena. Fomeesedeeramsensaespermanentesnolocalondeoesgotoquecortavaos pavilheserafontedegua.Nemtodostinhamestmagoparasealimentaremde bichos,masosanosnoColniaconsumiamosltimosvestgiosdehumanidade (ARBEX, 2013, p. 48). O prprio cotidiano dos pacientes um fator que gerava sofrimento. As condies que eleseramobrigadosavivereramprecrias,sendoqueosrecursosnocorrespondiam quantidadedepacientes.Algunsfuncionrioschegaramaquestionarofuncionamentodo I Simpsio de Patrimnio Cultural de Santa Catarina - Patrimnio Cultural: Saberes e Fazeres Partilhados, Florianpolis, SC, 21 e 22 de novembro de 2013 4 Hospital,masateoriaeugenista,quesustentavaaideiadelimpezasocial,davaaoHospital seguranaejustificavaoqueocorriaentrequatroparedes.Livrarasociedadedaescria, desfazendo-sedela,deprefernciaemlocalqueavistanopudessealcanar.(ARBEX, 2013, p. 26) Outro fato que ocorria em Barbacena era a venda de cadveres para as faculdades de Medicina ali prximas. Mudanas na Psiquiatria Brasileira: Reforma Psiquitrica e o Museu da Loucura A situao comeou a se modificar a partir do final da dcada de 1970. J em 1961, foi mostrado pela imprensa um trabalho do fotgrafo Luiz Alfredo Ferreira, publicado na revista OCruzeiro,ondetraziaimagensdosbastidoresdeBarbacena,mostrandoumambiente hostil e perturbador. Tais imagens deram origem ao livro Colnia: uma trajetria silenciosa, organizado pelo psiquiatra Jairo Furtado Toledo. Mas foi realmente no final daquela dcada, em meio ao final da ditadura e inicio da abertura poltica, que essas denncias comearam a vircommaisfrequncia,causandomaiorimpactonapopulao.Nesseperodoopas procurou livrar-se dos fantasmas da ditadura, como maneira de reconquistar os direitos civis e ademocracia.ConformeVivianeBorges(2012,p.126),aloucurasetornoutambmum fantasmaaserexpurgado,eissoocorreugraasagrandedivulgaodessasreportagens-denncia,ondesemostravaointerioreocotidianonoapenasdeBarbacena,masdas instituies psiquitricas espalhadas pelo pas. O trabalho de Luiz Alfredo Ferreira no foi o nico a expor a situao de Barbacena. A partir da entrada de jornalistas no interior das instituies ao longo do Brasil, veio-se a tona ocotidianodosinternados,sendoqueMinasGeraisadquiriurepercussonacional.Outro jornalistafoiHiramFirmino,quepublicounoJornalEstadodeMinasumasriede reportagensintituladasNosPoresdaLoucura,mostrandoarealidadedeinstituies psiquitricasmineirascomooHospitalGalbaVelosoeoHospitalColniadeBarbacena. Poucotempodepois,HlcioRatton,documentarista,lanouEmNomedaRazo documentrionoqualexpedemaneiracrua,mostrandoascelas,oeletrochoque,anudeze ascicatrizesdelobotomia.Essespublicadosaolongodadcadacausaramgrandeimpactoe rebulio na populao brasileira. DepoisdeassistiraodocumentrioemumCongresso,opsiquiatraitalianoFranco BasagliavisitouoHospitaldeBarbacenaeocomparoucomumcampodeconcentrao nazista.ConsideradoumdospercussoresdaReformaPsiquitricabrasileira,avisitade I Simpsio de Patrimnio Cultural de Santa Catarina - Patrimnio Cultural: Saberes e Fazeres Partilhados, Florianpolis, SC, 21 e 22 de novembro de 2013 5 BasagliatrouxerepercussointernacionalcidadedeBarbacena.Efoiatravsdessas denncias que se comeou a pensar em mudanas, dentre elas, o Movimento Nacional da Luta Antimanicomial,quemaistardedariaorigemaReformaPsiquitricaBrasileira.Foinesse momentoquecomearamaentrarprofissionaisespecializadosnareapsiquitrica,como objetivodeapagaropassadoqueumdiaforatocruelesofrido.Noobstante,surgiram melhorias,dentreelasomovimentodapsiquiatriacomunitriaeomodelodascomunidades teraputicas. Ambas procuravam resgatar o processo teraputico a partir da transformao da dinmica institucional (SOARES, apud. BORGES, 2012, p. 128), bem como procurar inserir o paciente de volta a sociedade. Os primeiros indcios de uma Reforma Psiquitrica no Brasil comeam no final da dcada de setenta e se solidificam at os dias de hoje.Durante o III Congresso Mineiro de Psiquiatria, em 1979, foi realizado uma exposio comfotografiaserecursosaudiovisuais,contandoaassistnciapsiquitrica,bemcomo diversasreportagensreferentespsiquiatriaemtodaMinasGerias,coletadasaolongodos anos.Em1987,foirealizadaumanovaexposio,dessaveznoPalciodasArtesemBelo Horizontecomfotos,objetos,reportagenseinstrumentossobreoantigoHospitalde Barbacena.Pormeiodessaexposioquesurgemasprimeirasnegociaesparaacriao deumainstituiomuseolgicaqueretratasseahistriadoHospitalColniadeBarbacena. SurgeoMuseudaLoucura,oqualfoifinalizadoapenasem1996,quandoaFundao HospitalardoEstadodeMinasGerais,atravsdoCentroHospitalarPsiquitricode BarbacenaCHPBfirmouconvniocomaPrefeituraMunicipaldeBarbacena,atravsda FundaoMunicipaldeCulturaFUNDAC,viabilizandosuafundao.Talprojetoestava inseridonumgrandeplanoderevitalizaoculturaldacidade,chamadoProjetoMemria Viva,tendocomoobjetivocriarumroteiroculturaletursticoemBarbacena, patrimonializandoumpassadodolorosoquemarcainexoravelmenteacidadedosloucos (BORGES, 2012, p. 132). A instituio abriga um acervo variado de objetos, divididos em trs salas. Conforme Borges(2012,p.134),numaprimeira,temosdocumentosdepoca,comolivrosefichas registrandoa entrada depacientes na poca.O visitante, ao adentrar essasala, tem noo de como se dava os registros dos pacientes na poca, bem como o funcionamento da instituio. Emumasegundasala,temosasfotografias,imagensquemostramapartearquitetnicado hospital, retratando os eventos que ali ocorriam. Grande parte dessas imagens da dcada de 1990, onde atravs do preto e branco, retratam os pacientes, mas sem angstia ou sofrimento. Noentanto,perceptvelnaanalisedetaisimagensosanosdeconfinamentonafisionomia I Simpsio de Patrimnio Cultural de Santa Catarina - Patrimnio Cultural: Saberes e Fazeres Partilhados, Florianpolis, SC, 21 e 22 de novembro de 2013 6 dospacientes.Detalforma,ovisitantetemachancedeverdequemaneiraosofrimento refletido na vida dos internos. E a ltima sala, abriga equipamentos e objetos utilizados pelo hospital.Podemoscitarosaparelhosdeeletrochoque,deraio-X,bemcomoequipamentos paramedicao,medidoresdepressoarterial,uniformesdospacientesedosfuncionrios, entre outros. Ademais, h uma sala separada, que retrata o ambiente onde ocorria a prtica da lobotomia, j comentada anteriormente. Acervo do Museu: iniciativas, impactos e reflexes Afimdeconserv-losnamemriaemanteralembranadacatstrofe,uma comunidadepodetomaradecisodeerigirummonumento,comosefazparaossoldados mortosnocampodehonra(JEUDY,2005,p.57).AiniciativadaconstruodoMuseuda LoucuraseadequaaideiapropostaporHenri-PierreJeudy.AsvitimasdeBarbacenaforam um objeto de um sacrifcio, sendo que ao lembra-las, a comunidade ao redor tem o objetivo de modificar-se, criando um sentimento de justia pelo que aconteceu no passado. Aosetornaracervo,qualquerobjetopassaporumareconfiguraodesentidos. Tornar-se bem cultural de um museu no ir anular as suas funes em que ele um dia serviu, mas passa a adquirir outra conotao: a de objeto histrico. Ou seja, ele passa a fazer parte de umepisdiohistrico.FranciscoRgisdiscuteaexistnciadehistrianosobjetos.Segundo ele o objeto tratado como indcio de traos culturais que sero interpretados no contexto da exposio do museu (...) (RAMOS, 2004, p. 22). Logo, como foi dito anteriormente, o objeto remeteaumacultura,aummomento.Nosdiasatuais,tem-sedebatidoopapeleducativo dos museus, sendo que para eles, o objeto deixa de ter a celebrao de personagens, e passa a serconsideradocomoumafontedereflexocrtica.Almdisso,qualquerobjetodeum museu tem uma histria. Essa histria est relacionada a sua procedncia, os seus usos e a sua trajetria. E o visitante que vai ao museu e se depara com um objeto, vai comear a imaginar atrajetriadele.Ospontoselencadosanteriormenteirosurgirnamentedovisitante.Ea partirdisso,surgiroquestescomo:Paraqueerausado?Comofoipararali?Seuusoera benfico ou no? Francisco Rgis trabalha com o exemplo das algemas utilizadas durante o perododaescravido.Asalgemas,decertaforma,relembramosanosemqueosistema escravista esteve presente na sociedade brasileira. No entanto, o objeto tambm simboliza as estratgiasdepoderdominanteeosofrimentocausadodosenhorparacomoescravo.No casodomuseudaLoucura,podemostomarcomoexemplooaparelhodeeletrochoque.O I Simpsio de Patrimnio Cultural de Santa Catarina - Patrimnio Cultural: Saberes e Fazeres Partilhados, Florianpolis, SC, 21 e 22 de novembro de 2013 7 objeto em si, remete aos manicmios espalhados pelo Brasil e ao imaginrio ocidental sobre a loucura. S que no apenas isso, o aparelho simboliza uma tcnica utilizada como tratamento, masemalgumasinstituies,comofoiocasodeBarbacena,comorepresso,nointuitode acalmar algum paciente, ou servir como fonte de equilbrio. Mdia e veculos de comunicao: Criado pelo governo estadual, em 1903, para oferecer"assistnciaaos alienados de Minas",atentoatendidosnosporesdaSantaCasa,oHospitalColniatinha, inicialmente, capacidade para 200 leitos, mas atingiu a marca de cinco mil pacientes em 1961, tornando-se endereo de um massacre. A instituio, transformada em um dos maiores hospcios do pas, comeou a inchar na dcada de 30, mas foi durante a ditaduramilitarqueosconceitosmdicossimplesmentedesapareceram.Paral eramenviadosdesafetos,homossexuais,militantespolticos,messolteiras, alcoolistas,mendigos,pessoassemdocumentosetodosostiposdeindesejados, inclusive, doentes mentais. 2

OtrechoacimadeumareportagempublicadanositedojornalTribunadeMinas, discursandoacercadacriaodohospitaldeBarbacenaesuasconsequnciasnavidados pacientesedasociedadeemgeral.Aolongodareportagem,noscontadoumpoucosobre suahistria,ocotidianodosinternosefinalizacomentandosobreacriaodoMuseuda Loucura e seus principais objetivos.No apenas na reportagem do jornal Tribuna de Minas que repassada essa mesma imagem.perceptvelaolongodasreportagensapresenaconstantedostermoshorror, sofrimento, desafetos, extermnio em massa e barbrie, bem como mostrar relatar o cotidiano dospacientes,comoobjetivodecaracterizaroperodorelatado.Comisso,podeinferir-se queessasreportagenstemointuitodequererimpactaroleitor,quasesendocomparadasa reportagens-denncia.Almdisso,ficaassduaaquestodaimpunidadeemmemriaas vitimas de Barbacena. At os dias atuais, ningum foi punido pelo genocdio. Diantedessecenriodehorroresofrimento,oMuseudaLoucuravaicontinuar lembrando o que, convenientemente, poderia ser esquecido 3 mas tambm serve de tributo as milharesdevitimasquemorreramnoHospital.Essaimagemperpassadanodecorrerdas reportagens,natentativadeatingirapopulao.Portanto,omuseuassumeumaposio crticadiantedasociedade,pois,deacordocomPessanha,quandoentramosnosmuseus, entramos no tribunal, onde vrias falas se apresentam, vrias vozes silenciosas, fortssimas e

2 Trecho da Holocausto Brasileiro: 50 anos sem punio, realizada pelo jornal Tribuna de Minas (Disponvel em: Acesso em: 15/11/2013), 3 Trecho da Holocausto Brasileiro: 50 anos sem punio, realizada pelo jornal Tribuna de Minas (Disponvel em: Acesso em: 15/11/2013), I Simpsio de Patrimnio Cultural de Santa Catarina - Patrimnio Cultural: Saberes e Fazeres Partilhados, Florianpolis, SC, 21 e 22 de novembro de 2013 8 eloquentes se apresentam, h rplicas e trplicas, (...), e tem-se, de alguma maneira, que tomar posio. (...) (PESSANHA, apud. RAMOS, 2004, p. 29). Emlivrorecente,intituladoHolocaustoBrasileiro,ajornalistaDanielArbex procurou caracterizar o Hospital a partir de experincias e depoimentos de ex-pacientes e ex-funcionrios,bemcomopessoasprximaserelacionadasaoHospital.Talcaracterizaose datravsdediversasimagensaolongodolivro,juntamentecomanarrativa, contextualizando o ambiente e a histria de maneira mais efetiva.Durante o livro, a jornalista assinala o Hospital como um lugar frio, hostil, repleto de sofrimento e dor, ao mesmo tempo emquemostraasmudanasaolongodasltimasdcadas,finalizandocomoMuseuda Loucura, considerado, segundo Daniela, um tributo as vtimas. Aindahojesetempresenteumavisodeloucuraestereotipada.Talvisosurgedo pressupostodoprpriopreconceitocontrainstituiespsiquitricasatuais,eprincipalmente, seuspacientes.Cria-secertodistanciamentoporpartedelas.Essedistanciamentosurgeno passado, quando se tinha presente a ideia de manicmios, sendo queeram responsveis pelo isolamentosocialdepessoasinstitudascomoloucas.Comoconsequncia,esse distanciamentocontinuaatosdiasdehoje,sendoquehcasosemqueospacientesso esquecidos e so obrigados a viver na solido. No entanto, j se tem iniciativas dos prprios hospitaisemreintegrarospacientesavidasocial.Pelomenosaquelesquetmmaior independncia. Ligaropassadoaopresenteumadascaractersticasdosmuseus.Conforme FranciscoRgis(2004,p.94),opassadotransforma-seempassando,jquemuitodoque ocorre na sociedade contempornea se deveaconstrues do passado. OMuseu daLoucura nofogearegra.AoconhecerahistriadeBarbacenaatravsdoMuseu,ovisitantepoder entender o queeraconsiderado loucura durante boa parte do sculo XX. So as emoes provocadas (JEUDY, 2005, p. 60) pela instituio museolgica que possibilitam ao visitante construir um sentido crtico daquilo que j aconteceu e coloca-lo em prtica nos dias de hoje. Ouseja,eleirtomarumposicionamentonopresente,nessecaso,sobrealoucura.Esse pensamentocrticorompercomavisoestereotipadaquesetemsobreloucura.Ademais, tem-setambmaligaodopresentecomoquevaiacontecernofuturo.Compreendero passadoeopresentedeterminaroquepoderemosquerernofuturo,atravsdenossas escolhas.Asreportagenssofundamentaisparaadivulgaodomuseueparaquea populaotenhanoodessasligaesentrepassado-presente-futuro.OuconformeJeudy (2005,p.63),oritmodamemriasegueodacatstrofe,provocandoaomesmotempoos I Simpsio de Patrimnio Cultural de Santa Catarina - Patrimnio Cultural: Saberes e Fazeres Partilhados, Florianpolis, SC, 21 e 22 de novembro de 2013 9 efeitosdasimultaneidadeentreopassado,opresenteeofuturo,queperderiamoprprio sentido ante a ideia de ocultao. Em 1979, esse palco de horrores comeou a sofrer algumas transformaes a data questionada por especialistas, mas considerada pela maioria como marco inicial dareformapsiquitricanoBrasil.Ahumanizaonotratamentodospacientes,a reduodonmerodeleitosnoshospitaisdesadementaleacriaodeservios substitutivos, porm, avanou a passos lentos nos anos seguintes. Somente em 2001, comapromulgaodaLeidaReformaPsiquitrica(n10.216/01)quelevou, acredite,maisde10anosparaseraprovadaumaredeintegrada,formadapor ncleosdeatendimento,unidadesdeapoioehospitais-diacomearam, progressivamente, a substituir o modelo antigo. 4 Ao longo delas percebe-se a comparao do que ocorreu nesse caso, em Barbacena, no iniciodosculoXX,ecomotratadonosdiasatuais.Cita-seprincipalmenteacriaoda ReformaPsiquitricaeareverberaoqueelatevenotratamentodosinternosnosltimos anos. E a mudana do tratamento psiquitrico atestadaainda no trechode uma reportagem do site Museu da Psiquiatria: O Museuumaatraonoapenasparaomeioacadmico,masparatodaa comunidade. Isto porque alm demostrar a histria do antigo manicmio atravs daexibiodeequipamentos,acervodohospitaleaindadocumentaodedados coletados e pesquisados em todo o Estado, enfoca a atual abordagem do tratamento psiquitricoquevemsendodesenvolvidajuntoaospacientes.Ecomisso proporcionaaberturaparaacomunidadeaceitarmelhoroportadordesofrimento psquico. 5

Comojfoiditoanteriormente,umdosobjetivosdoMuseufazerumareflexo crticasobrealoucura.NessamatriacomentadaqueoMuseuemsiservedemaneira positiva,poisatravsdeleconsegue-seconstruirumelomaisforteentreospacientesdo Hospital e a comunidade ao redor, que passa a olhar eles de outra maneira. Rompe-se com a concepo de isolamento social e adquire-se uma aproximao maior, conseguindo expressar uma ateno especial com respeito e carinho, incluindo o paciente como parte da comunidade. Consideraes finais Conhecer o passado de modo crtico significa, antes de tudo, viver o tempo presente comomudana,comoalgoquenoera,queestsendoequepodeserdiferente(RAMOS, 2004,p.21).Pensaropresenterelacionadoaopassadoumdesafio,jquevivemosnuma

4Trecho da matria Onde (e como) tratar?. Disponvel em: Acesso em: 01/11/2013 5TrechodamatriaHistricodoCentroHospitalarPsiquitricodeBarbacena.Disponvelem: http://www.museudapsiquiatria.org.br/predios_famosos/exibir/?id=1 Acesso em: 01/11/2013 I Simpsio de Patrimnio Cultural de Santa Catarina - Patrimnio Cultural: Saberes e Fazeres Partilhados, Florianpolis, SC, 21 e 22 de novembro de 2013 10 sociedadequetemumaconcepodeHistrialinear,eurocntricaequeestudaapenaso passado. No entanto, tem-se tentado fazer uma ligao entre os dois tempos, de tal maneira a compreenderopresenteepoderfazermodificaes.EoMuseudaLoucuraumadessas iniciativas.UmadasprincipaispropostasdoMuseupensaremoutralgicadepensara loucura.Trazeropassadodolorosonofcil,pormaisquequeiraetenteseresquecido. Apesar disso, as necessidades do presente requerem uma viagem ao passado, de tal maneira a modificaravisodeloucura.Umavisoqueaproximeaspessoasdospacientes,pensando que eles tambm so seres humanos, que tiveram suas prprias histrias, suas trajetrias, seus medos e anseios. Pensar o cenrio da poca, tendo em mente os motivos em que muitos foram internados, o tratamento l dentro, as denncias, as mudanas que l ocorreram um misto do que o Museu da Loucura prope para o visitante. (...) o Museu daLoucurafaz parte deste contexto sesolidificando como um espao ondeaarte,ahistriaeamemriaseorganizampararesgatarepreservar fragmentosdapsiquiatriamineira,deformacrticaereflexivatornando-seum Centro Cultural de grande atratividade para turistas, universitrios e a sociedade em geral (PEREIRA, 2011, p. 37). AindaqueoMuseusejaumainiciativarecente,algoconveniente.Nessesentido, entramasmdiaseosveculosdecomunicao.Poisseroelesquelevaroessamensagem paragrandepblico,divulgandoosprincipaisobjetivosdoMuseudaLoucura.Passaruma reflexo crtica da loucura levar a construo de sujeitos crticos, de cidados que conheam suaprpriacomunidadeeentendamsuaprpriaexistncia.Osobstculossograndes,mas fica o convite. Referncias Bibliogrficas ARBEX,Daniela.HolocaustoBrasileiro:50anossempunio.Disponvelem: http://www.tribunademinas.com.br/cidade/holocausto-brasileiro-50-anos-sem-punic-o-1.989343 Acesso em: 01/11/2013 _______________. Holocausto Brasileiro. So Paulo: Gerao Editorial, 2013. BORGES,Viviane.Anossasociedadeproduziuessetipodeinstituio:Omuseuda loucuraeseuacervo.In:MORGA,AntnioEmlio.Histriadasadeedadoena.Itaja: Casa Aberta, 2012 I Simpsio de Patrimnio Cultural de Santa Catarina - Patrimnio Cultural: Saberes e Fazeres Partilhados, Florianpolis, SC, 21 e 22 de novembro de 2013 11 HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memria. 2. ed. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2004 JEUDY,HenriPierre.Patrimnioecatstrofe.In:JEUDY,HenriPierre.Espelhodas cidades. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005 ORLANDO,Elisangela.Onde(ecomo)tratar?Disponvelem: http://www.revistaviverbrasil.com.br/impressao.php?edicao_sessao_id=730Acessoem: 01/11/2013 PEREIRA,Lucimar.HistricodoCentroHospitalarPsiquitricodeBarbacena. Disponivelem:http://www.museudapsiquiatria.org.br/predios_famosos/exibir/?id=1Acesso em: 01/11/2013 _________________.Memriasdaloucura:opapeldoMuseunaressignificaodo imaginrio urbano. Trabalho de Concluso de Curso apresentado ao Curso MBA Executivo emSade.Ps-graduaolatoSensu,NveldeEspecializaoProgramaFGV-FHE-MIG, 2011. RAMOS,FranciscoRgisLopes.Adanaodoobjeto:omuseunoensinodehistria. Chapec: Argos, 2004.