Espiral 01 - Discursos sobre a leitura | Filipe Leal
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Transcript of Espiral 01 - Discursos sobre a leitura | Filipe Leal
Discursos
sobre a leitura
espir@l Repositório de reflexões e opiniões
| por Filipe Leal
| [email protected] | bibliotecativa.blogspot.com |
JAN | 2014
[Resumo]. São referenciados os grandes temas ligados
ao discurso sobre a leitura: o discurso sobre a leitura que
é dominante estrutura-se em torno da não-leitura; os
estudos desmentem o discurso sobre a leitura que é
dominante; a atribuição de estatutos às leituras e aos
leitores baseia-se em juízos de valor; o discurso sobre a
leitura que é dominante tem uma matriz ideológica.
Discursos sobre a leitura
Por vezes, durante um processo de produção de um texto, deparamo-nos com um
livro, com um artigo ou mesmo com uma frase, que se constitui como um verdadeiro
Fio de Ariane que nos auxilia a sair do labirinto das ideias e opiniões, das citações
bibliográficas e dos dados empíricos, que entretanto fomos acumulando de forma
mais ou menos desordenada.
No nosso caso esse papel foi desempenhado pelo artigo “Múltiplos objetos, múltiplas
leituras” da Associação de Leitura do Brasil (ALB). O contacto com este artigo
permitiu-nos estabelecer um paralelismo entre a situação brasileira e a situação
portuguesa, criando um distanciamento do olhar que nos levou a ver mais nítido o que
antes era turvo.
Permitiu-nos também sistematizar um conjunto de ideias-chave relacionadas com o
discurso sobre a leitura, que irão funcionar como elementos organizativos deste texto:
o discurso sobre a leitura que é dominante estrutura-se em torno da não-leitura; os
estudos desmentem o discurso sobre a leitura que é dominante; a atribuição de
estatutos às leituras e aos leitores baseia-se em juízos de valor; o discurso sobre a
leitura que é dominante tem uma matriz ideológica. Vejamos cada uma destas ideias-
chave seguindo muito de perto o citado artigo.
O discurso sobre a leitura estrutura-se em torno da não-leitura
Apesar da leitura, no discurso sobre a leitura que é dominante, ter uma conotação
implícita extremamente positiva (ler = conhecimento; ler = autodescoberta; ler =
prazer; ler = desenvolvimento; ler = cidadania), quando se fala sobre a dimensão
social da leitura fala-se pelo reverso, isto é, a não-leitura é assumida com uma
clarividência irrefutável: “Os portugueses não leem!” ou “Os jovens não leem!” são
duas das afirmações mais usuais.
Esta ideia é reforçada negativamente através de uma dupla comparação: “No
estrangeiro lê-se mais do que em Portugal” ou “No passado lia-se mais do que no
presente”. Este discurso sobre a leitura é dominante e cria um estereótipo que pode
ser rastreado nos diferentes países, de Portugal a Espanha, de França a Inglaterra, da
Colômbia ao Brasil (ALB, 1999): «A sentença está dada: o brasileiro não lê. Em
qualquer debate sobre leitura em encontros pedagógicos, até mesmo em conversas
informais aqui e ali, nas perguntas dos jornalistas aos especialistas, aí está uma frase
que não é difícil de ouvir. Ela tornou uma espécie de verdade inquestionável, marca
da falta de cultura, assim como outras do tipo “o brasileiro não sabe votar”.».
A constatação da não-leitura conduz ainda à tentativa de identificar as suas causas e
de vislumbrar as suas consequências, de modo a alterar essa realidade através de
uma intervenção deliberada, que pressupõe a possibilidade de se operar a mudança
social substantiva enunciada pela comunidade discursiva dominante – elite cultural –
(Furtado, 2000: 187): «Mas é neste século XX, em que se assistiu no mundo ocidental
a uma crescente preocupação com o ensino formal, a uma progressiva erradicação do
analfabetismo clássico, à tentativa de generalizar o acesso à leitura e à reflexão sobre
o conceito de biblioteca e suas missões nos novos tempos, que se multiplicam os
estudos, inquéritos e análises sobre a leitura e que, mais ou menos em uníssono, se
aponta para uma crise do livro, da edição e da leitura. Essa crise afetaria hoje uma
grande variedade de competências, de atitudes e de representações face à leitura,
traduzir-se-ia em práticas cada vez menos consolidadas e hábitos de familiaridade
com o escrito cada vez mais escassos.».
Os dispositivos discursivos são calibrados de modo a perpetuarem uma perspectiva
cristalizada da realidade: a eterna crise da leitura. Para fundamentar o fenómeno da
não-leitura, este discurso sobre a leitura alinhava um conjunto de causas: baixo nível
educacional da população, deficiência do sistema de ensino, falta de hábitos culturais,
concorrência da televisão e da internet, preço elevado dos livros, encerramento de
editoras e de livrarias, etc.
Alerta também para as consequências nefastas de um novo fenómeno diretamente
associado à não-leitura (analfabetismo funcional, iletrismo ou iliteracia): atrasos no
desenvolvimento económico e social do país, limitações ao desenvolvimento pessoal
dos indivíduos, restrições ao pleno exercício da cidadania, etc. (Furtado, 2000: 187):
«Ainda mais, assistiu-se a uma súbita tomada de consciência de um «novo»
fenómeno, com implicações evidentes na dificuldade que percentagens significativas
da população encontram em dominar as competências da leitura, escrita e cálculo,
apesar da frequência, na grande maioria dos casos, de, pelo menos, a escolaridade
mínima obrigatória. Essa realidade, designada por «analfabetismo funcional»,
«iletrismo» ou «iliteracia» (realidade e termos que mais adiante analisaremos), viria
pôr em causa, segundo Jean-Marie Besse, a ideia, então corrente nas sociedades
pós-industriais, segundo a qual «a alfabetização generalizada e a escolarização
tinham favorecido a emergência de uma referência cultural comum à maioria da
população, obrigando a uma interrogação sobre a homogeneidade das práticas
culturais e, particularmente, no que nelas tem a ver com a cultura escrita.».
Todavia, podemos questionarmo-nos sobre se existe verdadeiramente uma crise da
leitura, as suas causas e sobre as suas implicações (Basanta e Hernández, 2002):
«Hablar de la crisis de la lectura en medios profesionales resulta desde hace tiempo
un tópico con demasiados lugares comunes. Si convenimos que la lectura está en
crisis, vamos concretar el alcance del término a su significado original de mutación, de
cambio. Y vamos a partir de que hablar de una población lectora es, incluso en países
como España, un fenómeno recientísimo. No puede olvidarse, al establecer y analizar
los índices de lectura, que la escolarización universal de la población y la erradicación
del analfabetismo se alcanzan en países como Inglaterra a finales del siglo XIX, en
España en los años setenta del pasado siglo, y en muchos países del planeta son
todavía una esperanza del XXI. Sin una alfabetización generalizada es difícil pensar
en una sociedad que mantenga una relación estable y fluida con el libro y la lectura.
Cuando hablamos, alarmados, de la reducción o la trivialidad de las prácticas lectoras
y nos parapetamos en defensa de la lectura como un valor en peligro, puede ser que
tan solo estemos desviando la mirada del núcleo de un cambio en las prácticas de
lectura, que conocen nuevas formas, nuevos espacios, nuevas funcionalidades y
nuevos sujetos.».
Resumindo, o discurso sobre a leitura que é dominante serve-se também da não-
leitura como justificativo para pedir a intervenção direta do Estado através dos seus
múltiplos dispositivos (regulamentar o mercado editorial; apropriar os meios de
comunicação social; reajustar o sistema de ensino; lançar campanhas, programas e
planos de leitura). O discurso sobre a leitura que é dominante é pois veiculado
institucionalmente (pelo Estado, pela Escola, pela Academia, etc.) e sanciona uma
visão contaminada ideologicamente (Furtado, 2000: 225): «Referia-se, no início deste
capítulo que, neste século XX, se tem apontado recorrentemente, para além de uma
crise do livro e da edição, para uma crise da leitura. Multiplicam-se, cada vez com
maior regularidade, os estudos, inquéritos e análises sobre a situação da leitura e,
como escreve Martine Poulain, lastima-se a diminuição dos hábitos de leitura,
deplora-se o desinteresse dos jovens pela leitura, prediz-se o fim do livro, alerta-se
para os “analfabetos do audiovisual” e desespera-se perante o fenómeno do iletrismo
nos países desenvolvidos. Mas “serão novos estes receios? Serão novos estes
discursos? Não tanto como algumas Cassandras gostariam de fazer crer”.».
Os estudos desmentem o discurso sobre a leitura dominante
No discurso sobre a leitura que é dominante prevalece uma visão de senso comum
que, apesar de desmentida pelos indicadores estatísticos e pelas conclusões dos
estudos sociológicos, persiste em ancorar-se nas ideias de não-leitura e de crise da
leitura (Furtado, 2000: 199): «Perante esta descrição algo cândida, e que nalguns
passos se afasta completamente do que são as posições gerais sobre as ameaças ao
livro e à leitura, e refiro-me designadamente às provocadas pela concorrência na
ocupação dos tempos livres pelos novos meios de comunicação de massa, a
conclusão de Poulain é lapidar: “os sociólogos, ao longo do século, vão levar a cabo
pacientemente estudos para chegar a conclusões comparáveis e a maior parte das
vez
vezes opostas ao “senso comum” ou às vulgatas de certos editores e de certos
intelectuais. A leitura não lhes parece nem ameaçada nem em vias de
desaparecimento, as evoluções dos géneros de produção, dos modos de difusão, dos
gostos e das práticas não apresentam sintomas de declínio.».
Na verdade, os estudos (nomeadamente os da sociologia da leitura) têm identificado
padrões recorrentes que pouco variam temporalmente e geograficamente. Estes
resultados remetem para uma maior complexidade das inserções sociais das práticas
de leitura, que variam em função da idade, do nível de escolaridade, do sexo, etc. Ou
seja, não é possível afirmar cabalmente «Os portugueses não leem!» sem especificar
de que portugueses se está a falar (idade, sexo, profissão, habilitações, etc.) e de que
tipo de leitura se trata (jornais, livros, legendas de televisão, relatórios, etc.).
Contextualizar as práticas sociais da leitura é uma das formas de desconstruir o
discurso sobre a leitura que é dominante (Furtado, 2000: 199): «Quando se cruzam
estes dados com as variáveis socioprofissionais habituais, manifestam-se certas
constâncias que ainda hoje nos são familiares: quanto maior o grau de educação
formal maior o hábito de leitura; quanto menor o rendimento maior a leitura exclusiva
de jornais e a não leitura; o número de leitores de livros cresce significativamente em
função do aglomerado urbano; uma taxa de leitores de livros (eventualmente
associados à leitura de outros concorrentes impressos) mais forte nas profissões
liberais e quadros médios; é nas idades mais jovens que se encontram com maior
frequência leitores de livros; a leitura de livros denota uma relação mais forte com o
impresso: por um lado, o leitor de livros lê mais a imprensa e, por outro lado, pratica
outras formas de “lazer”; por fim, compra-se mais do que se lê. Poulain chama ao
grosso destas conclusões a “vulgata sociológica”, tal a persistência com os resultados
semelhantes nos virão a acompanhar até hoje.».
Muitas das vezes, quem faz o exercício de desconstrução desse discurso, utiliza os
indicadores estatísticos como principais ferramentas: tiragens elevadas de livros
(best-sellers), aumento dos hábitos de leitura, aumento dos níveis de escolaridade da
população, expansão da rede de bibliotecas públicas e bibliotecas escolares, número
de visitantes de livrarias e de feiras do livro, etc. Citando o artigo (ALB, 1999): «Basta
examinar alguns números para ver a mesma realidade de outra maneira: dados
oferecidos pela Câmara Brasileira do Livro no Boletim da Bienal 98, nº 19, informam
que um milhão e quatrocentas mil pessoas visitaram a 15ª Bienal Internacional do
Livro em São Paulo. Outros números, tomados mais aleatoriamente da imprensa ou
das próprias capas de livros, também impressionam: exemplos de O Xangô de Baker
Street. de Jô Soares, traziam, em junho de 1998, tarja anunciando 4 milhões de livros
já vendidos no Brasil. Na capa da 4ª edição, de 1996, do Manual do Estilo e Redação
de O Estado de São Paulo destacava-se que haviam sido vendidos mais de 500.000
mil exemplares. Segundo a revista Veja de 15 de abril de 98, os oito livros publicados
por Paulo Coelho foram comprados por 7 milhões de brasileiros; a mesma revista, em
su
sua edição de 13 de maio de 98, noticiava que O Mistério do Cinco Estrelas, de
Marcos Rey, vendeu 1,1 milhão de exemplares desde 1980. Pesquisa desenvolvida
no interior do projeto Memória de Leitura (IEL – UNICAMP) registra que em 1996,
lançavam-se, mensalmente, 35 títulos de séries como Sabrina, Bianca, Júlia,
Momentos íntimos.».
Todavia, o discurso sobre a leitura que é dominante contrapõe, emitindo um juízo de
valor sobre as leituras que são retratadas nos números: não interessa a quantidade da
leitura (e dos livros) mas sim a qualidade da leitura (e dos livros). As leituras da
maioria da população são leituras fora do cânone literário, logo, de qualidade e de
gosto duvidoso. Por isso, apesar de se poder referir aumentos quantitativos nas
práticas da leitura eles correspondem a decréscimos qualitativos. Existe claramente
um posicionamento ideológico: visitantes de feiras do livro não é o mesmo que leitores
de livros; compradores de livros não é o mesmo que leitores de livros; leitores de
jornais e revistas não é o mesmo que leitores de livros; leitores de best-sellers não é o
mesmo que leitores de clássicos; pequenos leitores não é o mesmo que grandes
leitores.
Assim sendo, em que terreno se enraíza o discurso sobre a leitura que é dominante?
Como se pode, apesar dos indicadores estatísticos e dos estudos sociológicos,
sustentar a ideia de não-leitura?
O estatuto das leituras e dos leitores assentam em juízos de valor
A resposta às duas questões anteriormente enunciadas liga-se aos diferentes
estatutos que se atribuem às leituras e aos leitores, que, por sua vez, são
contrapostas segundo juízos de valor: boas leituras versus más leituras; bons livros
versus maus livros; bons leitores versus maus leitores. Voltemos ao artigo (ALB,
1999): «De onde vem, então, a ideia de que a gente não lê, ou não gosta de ler? Para
nós, há um equívoco no modo de como se coloca a questão. O debate sobre leitura
tem se centrado em torno de um certo tipo de leitura e de leitor, o qual traria
benefícios de toda ordem para as pessoas e para o país. Sem explicar de que leitura
se fala e sem apoio de estudos objetivos sobre as práticas sociais de leitura, constrói-
se um discurso que, ignorando os modos de inserção dos sujeitos nas formas de
cultura, estabelece em torno da questão da leitura juízos do tipo “bom” ou “mau”. Em
outras palavras, torna-se ler como verbo intransitivo, associando-se a esta
representação valores sempre positivos, como “Ler é bom”, “ler torna os sujeitos
críticos”, “ler faz com que se escreva melhor”.».
As leituras efetivamente praticadas pela maioria dos leitores são exercidas fora do
cânone
cânone (escolar, académico, literário), como tal não só não são legitimadas pelo
discurso sobre leitura dominante como são apontadas como exemplos cumulativos de
uma degenerescência social e cultural. A leitura exercida deste modo é uma não-
leitura, o que a torna culturalmente desprezável e discursivamente marginalizável;
paradoxalmente, o não exercício da leitura encerra em si mesmo uma possibilidade de
redenção, que se prenuncia numa visão salvífica (combate ao iletrismo, conversão à
leitura, promoção da leitura, etc.). Volte-mos ao artigo (ALB, 1999): «Entretanto, tais
virtudes só são garantidas àqueles que leem os livros certos, os livros positivamente
avaliados pela escola, pela academia, por uma certa tradição literária, ainda que em
nenhum momento se explicitem que critérios sustentam estas avaliações.
Curiosamente, o preenchimento do objeto só se faz ao se discutirem as leituras
repudiadas: “os alunos só se interessam por gibis”, “as meninas só querem ler
novelas sentimentalóides”. Assim, a leitura efetivamente observada é negada em
nome de uma certa leitura que jamais se define positivamente. Todos os demais
escritos – mesmo que materialmente idêntico aos livros certos – são não-livros. Da
mesma forma, aqueles que os leem – embora leiam – são não-leitores, pois leem o
que não deveriam ler. Por se realizar em torno a objetos desvalorizados, tais leituras
são apagadas em favor da preservação da leitura mítica.».
O estabelecimento de um cânone é também uma forma de ditar as leituras prescritas
e as leituras proscritas, logo de criar dinâmicas de pertença e de exclusão. Esta lógica
pode ser transposta para um plano maniqueísta: bons livros + bons leitores = boas
leituras versus maus livros + maus leitores = más leituras. Neste sentido, torna-se
possível categorizar leituras e leitores, atribuindo-lhes diferentes estatutos e inserindo-
os numa hierarquia social e culturalmente legitimada. A subtileza máxima no
estabelecimento desta hierarquia revela-se na aplicação incisiva de um duplo estatuto:
ledores (os que exercitam a leitura ao nível da descodificação) versus leitores (os que
exercitam a leitura ao nível da compreensão).
O próprio discurso que é dominante é modelador da perceção social que existe em
torno das leituras e dos leitores, permitindo a manutenção do status quo. Só assim se
compreende que, apesar dos números contraporem factos a argumentos, o discurso
sobre a leitura que é dominante continue a prevalecer.
Mesmo as bibliotecas públicas, enquanto instituições estatais concebidas e geridas
pela elite cultural, incorporam essa visão assumindo claramente a necessidade da
prescrição das boas leituras, efetuada através da seleção de bons livros para
integração e disponibilização aos seus leitores e do aconselhamento de boas leituras
(Furtado, 2000: 197): «Salienta particularmente [Walter Hoffman], nesta linha de
investigação, que o que importa não é que as pessoas leiam, mas que leiam bons
livros
livros e que disso tirem benefícios (esta perspectiva vai ser, como veremos adiante,
um persistente ponto de controvérsia a partir de então, não apenas no que se refere a
discordâncias teóricas, mas com consequências práticas, em particular no que isso
implica, por exemplo, em termos de constituição e manutenção do acervo das
bibliotecas públicas e de uma filosofia da sua missão perante os seus leitores e a
comunidade em geral). Para esse fim, é necessário que os bibliotecários, esses
conselheiros de leitura, conheçam a psicologia dos leitores e lhes proponham livros
que lhes convenham, correspondendo aos seus gostos e às suas capacidades,
cruzando o estudo dos leitores com o dos livros publicados para que a partir daí
possam confeccionar «catálogos» adaptados aos diferentes tipos de leitores.».
Levada às últimas intenções, essa vontade de prescrever as boas leituras pode dar
azo a abordagens como a da bibliopsicologia (Furtado, 2000: 193): «Roubakine, que
começou por ser bibliotecário e veio a ser criador do Instituto de Bibliopsicologia, tem
pretensões científicas e acredita poder fabricar o homo lector, ou pelo menos vir a
conhecer as suas menores atitudes, desejos e comportamentos. Qual é o seu
objetivo? Fornecer a esse homo lector os tipos de obras que corresponderão à sua
psicologia a partir de um repertório bibliográfico mundial.».
As bibliotecas públicas também têm variado a sua posição sobre o estatuto a atribuir
às diversas leituras: para informação, para instrução, para recreação. (Dionísio, 2000:
33): «Mas a valorização da leitura ultrapassa geralmente as dimensões funcionais,
pragmáticas (dimensões muitas vezes causadoras de medidas redutoras onde
prevalece a conceção de que aos sujeitos deve apenas exigir-se o saber ler em
função das suas necessidades ocupacionais) e atinge as práticas de leitura gratuita,
de lazer. Apesar de esta ser apenas uma de entre as várias modalidades de leitura,
não deixa de ser por ela que muitas vezes se afere o nível cultural de uma sociedade
e, por isso, não é raro que seja na leitura como ocupação de tempos livres, como ato
voluntário, que se pensa quando se erguem as vozes denunciando a falta de hábitos
neste domínio. E, mesmo aqui, não podemos esquecer que, quando se fala de não
leitores, de atitudes positivas para com os livros e a leitura, estamos, ainda muitas
vezes, colocados ao nível de uma determinada leitura, designadamente, a leitura da
literatura na sua modalidade de apropriação estética (ainda que nem sempre isso seja
trazido à discussão, por pressuposto, certamente).».
A forma como a leitura de recreação tem sido encarada ao longo dos tempos é
paradigmática do posicionamento institucional das bibliotecas públicas perante os
seus leitores. Não é de estranhar que, ainda hoje, os bibliotecários se sintam mais
habilitados (diríamos mesmo, mais compelidos) a referenciar uma obra de carácter
técnico ou científico (de uma área que não dominam) do que a aconselhar uma obra
literária (apesar de já a poderem ter lido). Para além da questão ética (pudor em influir
nos
nos gostos do leitor) há uma questão ideológica: a leitura de recreação tem uma
conotação negativa, principalmente agora que está associada aos best-sellers e à
literatura light (Furtado, 2000: 226): «Esta desconfiança em relação à leitura de
romances, considerada como uma leitura de pura evasão, vai ser um tema persistente
ao longo do século e encontrar um acolhimento assaz favorável junto dos
bibliotecários.
Tenha-se em conta a regra sistematicamente adotada pelas bibliotecas públicas no
sentido de regulamentar o empréstimo. Como refere Poulain, essa atitude “é
característica de uma visão técnica de leitura partilhada por muitos bibliotecários: o
romance, a literatura, repousam, não educam e não formam o cidadão moderno e
informado. O interesse exclusivo ou demasiado forte pelo romance é sinal de uma
imaturidade do leitor que não lê para se instruir”.».
Mais do que as “boas leituras” ou as “más leituras” teremos que reequacionar o
conceito de leitura em função da sua polissemia, ou seja, falar de leituras e não de
leitura (Basanta e Hernández, 2002): «Porque lo que parece cada vez más claro es
que el concepto de lectura es víctima, con demasiada frecuencia, de un considerable
reduccionismo semántico. Las más de las veces, asociamos lectura a la lectura de
impresos y, de manera más específica, a lectura de libros, o más bien de libros de
creación literaria. Demasiado a menudo, consideramos lector tan solo a quien lee una
obra literaria, despreciando como utilitaria o banal gran parte de las prácticas de
lectura. Sin embargo, la realidad nos muestra que la lectura no es un todo integrado y
unívoco. Una cosa es leer un poema y otra, muy distinta, leer el manual de
instrucciones de un electrodoméstico; leer una revista y una novela; una bibliografía y
una sinfonía; un informe estadístico y una película; un cómic y una disposición
gubernamental sobre impuestos; son distintas prácticas, pero, si son “lectura” al fin y
al cabo, tal vez deberíamos comenzar a hablar de distintas tipologías de lectura y abrir
el término lectura a un concepto capaz de ayudarnos a comprender lo que pasa hoy
día en el ámbito de la comunicación humana. Así pues, deberíamos empezar a pensar
en la lectura como el proceso de descodificación de cualquier mensaje humano, al
margen del código lingüístico y del soporte tecnológico en que se exprese y transmita,
y al margen del contenido y forma de la información que contenga, sea ésta El
Quijote, un contrato de arrendamiento, un informativo televisivo o un bolero. Cada vez
se hace más difícil hablar de lectura sin tener en cuenta la lectura audiovisual o la
lectura en los nuevos soportes electrónicos. En especial en la información digitalizada,
la imagen, el sonido y el texto se articulan en un mismo mensaje o conjunto
informativo que genera nuevas formas de lectura sobre las que será preciso
reflexionar, máxime cuando el lector interactúa con esa información, decidiendo
extensión, formato, diseño, funcionalidad o soporte final.».
O discurso sobre a leitura dominante tem uma matriz ideológica
A enunciação de uma não-leitura só é imaginável por oposição a um ideal de leitura
que se projeta numa visão utópica: a sociedade leitora. Nesta visão a leitura (a par da
escrita) é um substrato civilizacional que sustenta a ideia de modernidade (homem
leitor = homem moderno) e fundamenta uma virtude cívica (homem leitor = cidadão
consciente) (Mäkinen, 2004: 2): «The modern man can, among many other features,
such as rationality and individuality, be defined also as a reading man possessed by
the desire to read, a concept almost non-existent in premodern times. ”The desire to
read” should be seen as a historically conditioned social construction, not as an
inherent attribute of man. It didn’t attain all people at once, but wandered under a long
period of time like a contagious disease from a country to another and from a group of
people to another.».
Numa primeira abordagem podemos dizer que fora desta sociedade leitora estão
todos os que não se inscrevem no conceito delimitador de homo lector, entendido aqui
como o praticante das boas leituras (canónicas). Isto sublinha a ideia de que as boas
leituras permitem a inclusão dos sujeitos leitores nesta dita sociedade e de que, por
outro lado, as más leituras tornam proscritos aqueles que as praticam. Nesta
perspectiva o discurso sobre a leitura, mais do que modelador, é um regulador social.
A leitura pode, efetivamente, contribuir para uma elevação social ou espiritual, todavia,
também pode servir para a subversão social ou para a perversão espiritual. Um bom
leitor não é necessariamente um bom cidadão, embora seja essa a afirmação
primordial, em termos ideológicos, do discurso sobre a leitura que é dominante. Esta
afirmação torna-se necessária para regular os processos de exercício do poder e para
validar o processo de prescrição de leituras (Furtado, 2000: 226): «Na verdade, como
já sublinhámos, não existe a leitura, mas sim leituras, diversas, plurais e, sobretudo,
possuindo diferentes legitimidades. Por isso sempre houve leituras ”perigosas”, só que
não historicamente fixadas, sendo diferentes em diferentes momentos e contextos.
Mas o que é certo é que “ler pode ser perigoso”. Assim, na transição entre o século
passado e este nosso século, quando a “alfabetização era generalizada, quando se
assistia a um desenvolvimento sem precedentes da imprensa e da edição que
possibilitava a abertura de todo um mercado de novos leitores”, quando se pode
constatar que “toda a gente lê”, aumenta o receio de “esses novos alfabetizados se
dedicarem a más leituras”. Importa assim que, depois de ter ensinado a ler esses
novos leitores, “neófitos e influenciáveis, se lhes ensinasse a ler bem e indicar-lhes o
que deviam ler.».
Todavia, quando elevada a um estatuto de elemento civilizador, a leitura arrasta
consigo uma visão ideológica, pois é assumida como um elemento regulador tanto ao
nível
nível individual como ao nível social (Furtado, 2000: 193): «Disso depende “a
evolução intelectual moderna da humanidade”. E, assumindo que só o livro poderá
salvar a humanidade, é na bibliopsicologia [conceito introduzido por Roubakine] que
se encontra o meio de “humanizar a humanidade”, pois ela “indica a via que leva às
profundezas da alma humana, profundezas onde se encontram a consciência moral, a
verdade e, em geral, o próprio princípio da vida espiritual” (...)».
Podemos ainda constatar que a comunidade discursiva que veicula o discurso sobre a
leitura que é dominante (a elite cultural) transporta um projeto social (sociedade
leitora), que passa pela afirmação do homo lector (Britto, 2004): «O mito do sujeito
leitor resulta de um tipo de discurso que, sem explicitar o que se entende por leitura e
sem apoiar-se em estudos objetivos sobre as práticas sociais de leitura, ignora os
modos de inserção dos sujeitos nas formas de cultura e estabelece em torno da
questão da leitura juízos de valor do tipo “bom” e “mau”. Com isso, vulgariza noções
vagas sobre a importância de ler que, funcionando como adágios dificilmente
negáveis, porque validáveis na mesma medida em que podem ser refutados inclusive
e preenchíveis com valores diversos de acordo com o arbítrio de quem o ouve,
produzem um consenso aparente pouco interessante do ponto de vista da democracia
social.».
A formulação da noção leitor ideal (homo lector) pela elite cultural serve mais os
propósitos de um discurso marcado ideologicamente do que como uma tipificação de
um leitor real que possa ser resgatado a um estatuto de menoridade cultural e social.
Mais do que a redenção pela leitura interessa a emancipação do sujeito leitor (ALB,
1999): «Na base destes discursos, estão relações de poder que necessitam reafirmar
posições sociais, culturais e identitárias. A leitura realizada por muitos deve ser
reconhecida como não-leitura, enquanto se cria o mito de uma leitura redentora capaz
de tornar os sujeitos melhores. “Esquece-se” que a leitura não é prática neutra, que no
contato de um leitor com um texto estão envolvidas questões culturais, políticas,
históricas e sociais, que as diferentes leituras são condicionadas por diferentes formas
de inserção nas formas de cultura.».
Mas, não somente ao nível do adágio se faz a afirmação do homo lector, esta também
pode ser inscrita num âmbito científico, de que uma das primeiras formulações
conhecidas, no início do século XX, é a da bibliopsicologia. O seu fim último passava
por conhecer cientificamente o leitor real para o transformar num leitor ideal. Através
deste movimento seria possível as elites conduzirem as massas rumo a uma
sociedade leitora. Este projeto, para além da sua pretensa dimensão científica tinha
uma dissimulada dimensão ideológica (Furtado, 2000: 193): «(…) a bibliopsicologia
“recomenda que se estude mais e mais o leitor, e estudá-lo cientificamente, com
exatidão, com o apoio de todos os métodos que fazem a glória da ciência
contemporânea:
contemporânea: observações, experiências, hipóteses, deduções, verificações
experimentais e outras, inquéritos estatísticos e, por fim, análise matemática dos
dados. Através do emprego do conjunto destes procedimentos poderão assim
introduzir-se “correções do leitor” rigorosas em todas as ciências filológicas, sociais e
outras, em todos os manuais escolares e em todos os livros destinados a meios
determinados e, desse modo, estudar a influência de qualquer discurso cristalizado
enquanto função de um dado leitor”. E, graças a esta ciência, as elites poderão
cumprir o seu dever de “conduzir as massas populares, instrui-las e guiá-las
espiritualmente.».
A transformação do leitor real em leitor ideal transporta consigo a promessa de
concretização de um ideário que perspectiva a sociedade leitora como uma sociedade
solidária (Britto, 2004): «Uma das características mais marcantes da representação de
leitura do senso comum é a ideia de que as pessoas, se verdadeiras leitoras, ficam
melhores, libertas de um estado de alienação, o que possibilita o seu engajamento, a
partir da vontade despertada pela própria leitura, em movimentos de solidariedade ou
de transformação da sociedade. Criam-se em torno desta ideia correntes de leitores e
movimentos por leitura que em muito se assemelham aos grupos de proselitismo
religioso ou de ação beneficente e organizam-se campanhas de leitura, à semelhança
de clubes de assistência e filantropia, para levar aos presídios, hospitais, parques,
etc., para que todos fiquem melhores.».
Mas mesmo ao nível da sociedade terrena em que vivemos é possível identificar a
leitura como forma de inclusão, ou, pelo menos, de não exclusão, visto que podemos
operar dentro dos parâmetros ditados por uma sociedade letrada, que exige o domínio
da leitura, da escrita e do cálculo, para um pleno usufruto dos seus mecanismos e das
suas possibilidades (Dionísio, 2000: 35): «Na controvérsia há quem afirme que “ler
humaniza o homem”, que “somos um pouco mais humanos – compreenda-se, um
pouco mais solidários com a própria espécie (um pouco menos “animal selvagem”) do
que antes, depois de termos lido Tchekhov. Independentemente de ser Tchekhov ou
não o objeto da leitura, ler é sempre participar num ato social e, por isso, a
incapacidade de ler constitui um factos de exclusão social (de que atrás se falava),
agora vista a dois tempos: por um lado, estamos impedidos de participar nesse ato
social e, por outro lado, não podemos aceder a outros modos de ver o mundo.
Apesar de, por vezes, se pretender apresentar a leitura e, por ela a literatura, como
uma panaceia, ela não resolve problemas sociais, o que ela faz é possibilitar o
envolvimento e o esclarecimento. Ler é um processo ativo e criativo e também um
constante juízo de valor, residindo neste “a chave para a igualdade e a chave para a
liberdade. O seu fim é a manutenção da consciência consciente que é a base da
liberdade individual e da dignidade humana” (Frey, 1998, p. 100).».
Numa segunda abordagem podemos perspectivar os movimentos de emancipação
social dos novos leitores, através de um desejo individual que emerge sobre a forma
de “desejo de ler”, assim como as tentativas das elites para controlar esses
movimentos. Este desejo de ler manifesta-se na sua dimensão social sendo alvo de
uma lenta progressão que atravessa diferentes grupos sociais e diversos países. Mais
uma vez, é ao nível do discurso que se estrutura socialmente a autorrepresentação do
novo leitor, que sai de classes sociais tradicionalmente analfabetas (Mäkinen, 2004:
5): «The traditional distinction between those, who were supposed to read (les
hommes policés), and those, who were not supposed to read, was shaken only after a
deep restructuration of the prevalent discourse. This restructuration was needed both
for the elites and for the common people themselves, because the old representation
that they had about themselves did not include reading. Even the reader and the
readership was a construction that had to be created. The new readers had to
construct a self-consciousness as members of a particular audience.».
O acesso aos materiais de leitura passou a ser o ponto de tensão entre o desejo de ler
(por parte das massas) e o controlo desse desejo de ler (por parte da elite). Os
movimentos filantrópicos conduziram à criação de escolas públicas e de bibliotecas
públicas que, mais tarde, seriam integradas numa lógica estatal. Não sem muitas
reservas e receios por parte da elite cultural e política (Mäkinen, 2004: 5): «It seems
that it was as much a question of manners to speak about the common people’s
reading than material obstacles blocking the way. There were no proper concepts to
legitimize a more general reading for the uneducated common people. Firstly, it was a
lack among the educated people who were in the key position to enhance the
promotion of reading and libraries: they could not attribute individual, free and active
reading to the common people—or they did not find it suitable. There was hardly
anybody, however liberal, who would have considered it possible or suitable for the
common man to read as extensively, e.g. novels, as the educated people did.
Secondly it was a lack among the common people themselves: they did not know that
there existed in themselves an active desire to read.».
Mesmo numa fase posterior em que os bloqueios, ao nível do discurso, foram
ultrapassados havia que tomar ações concretas para o estabelecimento de
instituições de acesso generalizado à leitura, tanto ao nível da sua aprendizagem
(escola pública) como ao nível do seu usufruto quotidiano (biblioteca pública)
(Mäkinen, 2004: 5): «Acceptable ways to speak about popular enlightenment in the
1840s were unfavorable for the practical implementation of extensive library
campaigns or popular enlightenment in general. There were rhetorical blocks against
seeing mass schooling or a general provision of libraries for the common people as
feasible, not only in principle, but also in practice. Those who advocated primary
schools were convincing only in principle, not in practice. The same applies to libraries
for
for the common people: when they were discussed both in the dominant Swedish-
language press and the emerging but weak Finnish-language press during the 1840s,
there was hardly anybody who opposed them. There was no active opposition, but on
the other hand no authoritative backing either.».
Todavia estas instituições acabaram por se afirmar (fazendo parte integrante da
sociedade moderna), e consubstanciando o ideal de uma sociedade leitora movida
não pela retórica das elites mas pelo desejo de ler das massas (Mäkinen, 2004: 11):
«Popular or public libraries and the ”desire to read” have been closely connected until
the present day. Reading has characterized modern man and the public library has
been an institution par excellence of free and democratic societies, hand in hand with
mass education. Until now the voluntary and spontaneous reading habit, desire to
read, has been conquering more ground.».
Numa terceira abordagem podemos perspectivar que discurso sobre a leitura que é
dominante é veiculado pela escrita (artigos de opinião, trabalhos académicos,
documentos programáticos, etc.) e consumido através da leitura, o que faz dele um
discurso autofágico que alimenta uma comunidade discursiva, permitindo a sua
afirmação identitária (Nós-leitores versus Eles-não-leitores). Esta comunidade é, por
assim dizer, a elite dominante que detém as chaves do acesso ao poder através do
saber, veiculado tradicionalmente pela leitura (Britto, 2004): «A supervalorização da
leitura em si, como espécie de comportamento sempre saudável e desejável, conduz
à mitificação da leitura e à fetichização do livro e do ato de ler. Mais ainda, faz com
que perca completamente a crítica histórica e a perceção de que a leitura tem sido
muito mais instrumento de denominação (as classes dominantes sempre tiveram a
leitura a seu serviço) do que de redenção de pessoas ou de povos. Ninguém fica
melhor ou pior, mais solidário ou misantropo, mais crítico ou alienado porque passa a
ser leitor. Pode ser, mas não há relação de necessidade. Objetivamente, ao contrário
do que quer fazer crer o discurso da leitura redentora, não há vínculo necessário entre
leitura e comportamentos saudáveis, positivos.».
Se historicamente este acesso estava naturalmente vedado pelo analfabetismo, pela
inexistência da imprensa, pela restrição das comunicações e transportes, limitando-se
a uns poucos o saber, e logo, o poder, hoje a democratização da leitura torna mais
volátil este poder e faz com que os mecanismos que o asseguram e o sustentam se
tornem mais exigentes. Um destes mecanismos é a definição do cânone do que se
pode considerar leitura. Através desta definição é possível criar condições de
hegemonia desta comunidade discursiva sobre os restantes sujeitos (ALB, 1999):
«Enfim, o discurso sobre a precariedade da leitura no Brasil funda-se no estereótipo
de um certo modo de ser burguês. Resulta daí a insistência sobre a atividade pouco
definida de ler e a desconsideração dos objetos lidos. Deste ponto de vista, grande
parte
parte dos brasileiros não teria efetivamente condições sociais de ser leitores. A
desqualificação dos objetos implica a desqualificação das pessoas que os tomam para
ler, tornando a leitura um capital individual e de classe, com valor de mercado e de
status no meio social imediato. É certo que parcelas da população têm pouco ou
nenhum acesso a materiais escritos. É certo também que outra parcela tem pleno
acesso. A questão que se levanta, contudo, é se a representação do que seja leitura
no discurso pedagógico não está ofuscando o fato de que a gente lê mais do que se
supõe, mas talvez não leia aquilo que a tradição letrada considera importante.».
A clivagem social não é feita somente ao nível das práticas da leitura mas também ao
nível dos discursos sobre essas práticas. Os discursos enformam a realidade dentro
de uma visão redutora da diversidade das práticas de leitura. Somente as leituras
“politicamente corretas” são valorizadas, sendo todas as outras marginalizadas
discursivamente e, em última instância, obliteradas socialmente. Assim sendo, o
discurso prevalece sobre as práticas, os argumentos prevalecem sobre os factos.
A questão central é a de saber se é possível intervir sobre estas tendências
aparentemente contraditórias. Para responder, as comunidades discursivas
organizam-se em torno dos dois polos opostos do discurso, ideologicamente
determinados (Furtado, 2000: 197): «Encontramos assim persistentemente uma
relação com a leitura que oscila entre a resistência a sucessivas ameaças que lhe são
exteriores e uma atitude militante que, depositando na leitura um conjunto de
expectativas quase messiânicas, quer pôr toda a gente a ler. Como refere Poulain, é
nesta época que aparecem os primeiros inquéritos e estudos sobre a leitura e sobre o
discurso sociológico, que recusa o alarmismo e partilha com os bibliotecários e
militantes da época uma certa fé na possibilidade de melhorar as qualidades das
leituras da população.».
No entanto, numa perspectiva mais realista, que fica aquém dos discursos sobre a
leitura, há que ponderar se a leitura não é um pré-requisito para qualquer cidadão
poder entrar na dita sociedade da informação (conceito em que antevemos um
discurso concorrente ao discurso sobre a leitura) (Basanta e Hernández, 2002): «Por
el contrario, las consideraciones propuestas hasta aquí se encaminan a considerar
que la construcción de una sociedad lectora es el requisito básico para edificar una
sociedad de la información para todos los ciudadanos, permitiendo su participación
activa y equilibrando los factores latentes de exclusión que conlleva el actual
desarrollo tecnológico. Fomentar la lectura, incrementar los hábitos lectores, mejorar
la calidad de lectura de los ciudadanos es, por tanto, una actuación decidida para
integrarles activamente en un mundo en el que la capacidad de generar y transmitir
información y conocimiento se ha convertido en el motor de desarrollo económico y
bienestar social por excelencia.
Por último, queríamos deixar uma nota que se prende com o facto de que
consideramos que é fundamental desconstruir o discurso sobre a leitura que é
dominante. Caso contrário, corremos o risco de todos os nossos esforços e os
resultados que daí advenham serem terraplanados por uma visão elitista e
conservadora sobre o que é ler e sobre quem é leitor. Para tal torna-se fundamental
consubstanciar um discurso sobre a leitura alternativo, que esteja suportado num
corpus teórico-prático sobre a leitura, cuja constituição deve ser efetuada a partir da
interação entre uma vertente teórica e uma vertente prática da abordagem às
problemáticas da leitura. Mais do que isso é determinante para o sucesso deste
processo a nossa capacidade de equacionarmos a leitura na sua dimensão social,
assumindo plenamente e em igualdade de estatutos a diversidade das leituras e dos
leitores. A definição de políticas nacionais de leitura não pode deixar de ter este
aspeto em consideração. Defendemos que os bibliotecários, enquanto técnicos
especializados da leitura, podem (e devem) ter um papel ativo neste processo, cujo
lema poderá ser: «Mudar os discursos, mudar as práticas».
Bibliografia
ALB (1999) – Múltiplos objectos, múltiplas leituras in Portal das Letras. Consultado no dia 17 de Agosto de
2006, no endereço: http://www.portrasdasletras.com.br/pdtl2/sub.php?op=arti-gos/docs/artigos1
.
BASANTA, Antonio; HERNÁSDEZ, Hilario (2002) – “Diez reflexiones en torno a la lectura y la información
en las bibliotecas públicas” in Educación y Biblioteca. Nº. 128, Marzo- Abril, pp. 30- 34;
DIONÍSIO, Maria de Lourdes da Trindade (2000) – A construção escolar de comunidades de leitores.
Coimbra: Almedina;
FURTADO, José Afonso (2000) – Os Livros e as Leituras: Novas Ecologias da Informação. Lisboa: Livros
e Leitura;
MAKINEN, Ikka (2004) – “From the revolutionary France to the awakening Finland: Desire to read as a
construction in the discourse on public libraries during the 18th and 19th centuries” in 70th IFLA General
Conference and Council.