Espere pelo Pôr do Sol - visionvox.com.br · garçons passavam por nós. Como ele não aceitava...

370
Espere pelo Pôr do Sol

Transcript of Espere pelo Pôr do Sol - visionvox.com.br · garçons passavam por nós. Como ele não aceitava...

Espere pelo Pôr do Sol

2

Para Henrique,

Que sempre me mostra como usar a imaginação,

E me encoraja com as idéias mais loucas...

3

“Cada Pôr do Sol é o nascer de uma nova experiência.”

4

Debbie Willians

Um viciado em morfina, música e literatura. Seria dessa

forma que eu o descreveria agora. Há quem diga que

tudo piorou no momento exato em que ele me viu

partir, mas eu o conheço bem demais para acreditar em

algo tão simplório. Não foi a morte que o transformou,

muito menos a vida. Foram apenas as consequências de

um destino maluco.

Não foi a doença que ele tentou negar

várias vezes, nem a espera da suposta cura que jamais

viria. Particularmente, eu acho que o que os médicos

diziam estar errado nele, era apenas parte de sua

5

personalidade. Eu gostaria de estar presente quando

seus próprios pensamentos ficaram mais fortes do que

ele pôde controlar, e quem sabe ajudá-lo em seus dias

mais escuros.

Ele riria se me ouvisse nesse momento.

Riria, e mencionaria a expressão que um de seus autores

preferidos adorava repetir. “A noite escura”. Uma

risada irônica, muitas vezes forçada. Diria, pretendendo

mostrar indiferença, “Isso não é apenas uma parte da

minha personalidade, esse sou eu. Tem que aprender a

conviver com isso”. Ele mesmo ainda não tinha

aprendido.

Sua terrível mania de se vitimizar. Nós

dois sabíamos que ele já não era tão inocente assim, e

por mais que insistisse, tinha deixado de ser o garotinho

assustado que rezava pelo primeiro raio de sol.

Imagino com riqueza de detalhes o que

me descreveu numa noite qualquer, quando parecia

6

estar entrando em pânico de novo. O quarto

parcialmente escuro, o menino que esperava sentado na

cama, agarrando o travesseiro. Ele fechava os olhos e

movia os lábios numa oração muda. O homem abriria a

porta, e ele veria a luz amarelada do corredor entrar no

quarto, suave e silenciosamente. Apertaria os olhos com

mais força, e faria uma prece aliviada quando a manhã

viesse pela sua janela. Haveria superado mais uma

noite, estaria superando mais um dia.

Martelava a idéia de que as horas não

passavam durante o dia. Superava mais uma manhã na

escola. Mais uma tarde. E então imaginava que as horas

passavam rápido demais, e ele haveria de voltar pra

casa de novo. Era noite outra vez.

Quando penso nisso, acho estranho que

ninguém tenha perguntado o que eu fiz para curá-lo.

Ainda bem, porque eu não gostaria de ter que

7

responder Não fiz absolutamente nada. Gosto de imaginar

que foi o amor que o fez.

Da mesma forma que o amor constrói, ele

destrói. Posso estar enganada, mas acho que fomos

ingênuos demais simplificando tanto a vida. Ele

abandonou o sofrimento essencial para sua existência, e

eu minhas ideologias. Talvez tenha sido por isso que

tudo terminou assim. A vida não gosta de ser desafiada.

Provei ser verdade esse negócio de amor á primeira

vista. Reconheci nele a salvação da minha vida chata e

sem surpresas, no momento exato que nossos olhos se

encontraram pela primeira vez. Eu, de um lado de

jardim, segurando uma taça. Ele, sentado no banco de

madeira branca.

Respirei fundo antes de tomar a decisão de

me aproximar. Ele me ofereceu um sorriso quase

8

psicótico, que estranhamente me encorajou a sentar do

seu lado.

—Por que está aqui, longe de todo mundo? —Perguntei.

Eu não disse meu nome, e ele tão pouco se

apresentou. Era como se fôssemos amigos há anos, a

conversa soaria natural para quem passasse e por acaso

nos ouvisse. Ninguém podia ver meu coração batendo

forte, numa expectativa que nem eu mesma entendia.

Ele parecia muito relaxado, não parava de olhar para

mim por nem um segundo.

—Não gosto de multidões.

Não havia multidão alguma.

Era a festa de casamento de uma ex

colega de faculdade. Havia anos que eu não a via, por

isso achei legal ter vindo á festa. Mas sempre odiei

gente rica e seus costumes. O lugar bonito e com tantos

tipos diferentes de comidas já começava a me entediar.

Tenho certeza de que ele sentia o mesmo.

9

—Conhece Maggie? —Perguntei, em busca de um

assunto para começar.

Ele balançou a cabeça em negativa.

—Sou amigo de um amigo do noivo dela. Nem conheço

ninguém aqui.

—Então é por isso que se isolou.

—Pode me fazer companhia se quiser.

Eu dei risada.

—Vai ser uma honra.

—Então, menina bonita... —Ele tentou também. Vários

garçons passavam por nós. Como ele não aceitava nada

do que era oferecido, eu também nada peguei. Embora

estivesse louca para tomar um drinque. —O que você

faz?

—Tenho uma lojinha de flores aqui por perto. Estudava

Medicina, mas decidi parar.

—Trocou a Medicina pela natureza? Isso me parece

uma decisão sensata.

10

—A mais sensata que já tive em toda minha vida. —

Acompanhei o seu novo sorriso. —Nunca acreditei na

Medicina.

—Deve-se acreditar na Medicina? Se eu tenho dor, tomo

um remédio. Não preciso acreditar em nada.

—Meu avô era médico; Meu pai e meus irmãos

também. Acharam que esse era o caminho para mim,

mas dessecar defuntos não era bem o que eu queria

para minha vida. E não posso imaginar que drogas

fabricadas por mãos humanas possam curar alguém.

Tanto aquilo que nos cura quanto aquilo que nos deixa

doentes vêm de dentro, nunca de fora.

—Desculpa, moça, mas tenho que discordar. Todos os

meus sentimentos, quero dizer todos mesmo, foram

causados por fatores externos. Já ouviu falar que o

inferno é os outros?

—Mas isso só se você se deixa levar. Gosto de pensar

que sou forte demais para deixar que os outros

11

influenciem em minha personalidade, na minha forma

de ver a vida. Pois antes de tudo, sou uma sonhadora. E

o mundo dos sonhos é a minha primeira opção.

Ele já não me olhava daquele jeito. Agora

conversava comigo como uma pessoa que ele tinha

acabado de conhecer, mas percebia ter muitos assuntos

em comum. Não mais como uma mulher bonita, que ele

precisava conquistar. Os homens sempre acham que

precisam conquistar, mas acabam ficando na defensiva

quando a coisa começa a acontecer.

—Qual é o seu signo? —Eu perguntei.

—Capricórnio. E, sim, eu leio horóscopo.

—Não parece do tipo supersticioso.

—Não me conhece. Meus amigos dizem que sou crente

até demais. —Deu risada e tirou do bolso um chaveiro

com a forma de pé de coelho. —Isso prova alguma

coisa?

12

—Sim, está provado. E me deixa muito contente.

Também carrego esse tipo de coisa na bolsa, e acendo

incensos em casa. Além de trazerem boas vibrações,

espalham um cheiro maravilhoso.

Estendeu a mão para mim.

—Jon Jordison.

Ele não era propriamente bonito. Pelo

menos não no nível da sociedade. Para mim, eu

conseguia ver sua alma através de seus olhos castanhos.

Quando sorria, seu dente tinha a pontinha quebrada,

um acidente de infância, quem sabe. Era o sorriso mais

lindo que eu já tinha visto na minha vida. Um sorriso de

criança maliciosa. Muitas vezes, ele realmente não

passava de uma criança maliciosa.

—Debbie Willians. É religioso, Jon?

—A religião divide as pessoas, uma vez que Deus as

aproxima. Religião é sinônimo de hierarquia, e não de

espiritualidade e paz.

13

—Matou milhares na Idade Média. —Concordei. —E

ainda mata nos países do Oriente.

—Fora aqueles que morrem aos poucos, porque

acreditam tão piamente em suas crenças arcaicas, e

sofrem desperdiçando suas vidas, sem ao menos se dar

conta disso.

—Quantas mulheres foram queimadas vivas na

fogueira, julgadas por auto denominados servos de

Deus? —Suspirei. Era a primeira vez que eu conversava

esse tipo de coisa com alguém. A existência de um ser

superior, nossa existência, e até a queimada das bruxas

há mais de mil anos atrás. Que tipo de cara fala dessas

coisas em seu primeiro encontro? Talvez ele tentasse me

impressionar; Talvez estivesse sendo sincero, pois,

assim como eu, nunca tinha encontrado alguém para

conversar sobre a vida. —Minha família é católica.

Quando eu era pequena, ia á igreja e até sonhava em me

casar ali, vestida de branco, caminhando de encontro ao

14

padre. Mas de repente, tudo isso me pareceu vago

demais.

—Mas ainda acredita em Deus?

—Não sei. Quem é Ele pra você?

—É alguém que está sempre olhando por mim,

principalmente quando eu me sinto sozinho.

Eu olhei ao redor, esquadrinhando os

rostos conhecidos. Todos riam, conversavam e bebiam.

Maggie estava casando. Tudo aquilo também me

pareceu vago e vazio naquele momento.

—Então, Jon, que acha da gente dar uma volta lá fora?

—Está entediada aqui?

—Não gosto desse comida estranha. Passei minha vida

inteira ouvindo que era isso o que comia as pessoas

importantes. Coisas estranhas com nomes franceses, ou

complicados. E que na verdade, não passa de lesma

comestível.

Ele riu e levantou. Eu o acompanhei.

15

—Que tal um hambúrguer? —Perguntou. —Cheio de

condimentos e gordura. Com muito refrigerante, é

claro.

—Me parece irresistível.

Nossos encontros tornaram-se, inevitavelmente,

frequentes depois do nosso primeiro beijo, no banco de

trás do carro dele, antes mesmo que chegássemos á

lanchonete.

Ele aparecia em casa algumas vezes por

semana, de surpresa. De início, sempre me surpreendia

vestindo minha camisola, ou quando já tinha ido

dormir, e atendia á porta com aquela temível cara de

sono. Acabei ficando mais precavida, e sempre tinha á

mão uma roupa especial, e estava maquiada. Ele trazia

uma garrafa de vinho, ou um filme, sempre de terror.

Passava a noite comigo, na maioria das vezes, mas

16

nunca mencionava o lugar onde ele morava, ou com

quem dividia sua vida.

Embora relutasse em admitir, eu sabia que

ele tinha uma esposa. As mulheres sempre sabem. A

prova irrefutável foi naquele dia, quando vi uma

entrevista sua na televisão. Usava uma aliança. Apenas

dessa vez eu mencionei a outra mulher de sua vida,

depois, nunca mais.

Paramos em frente á uma floricultura, eu

examinava as flores, muito bem cuidadas. Uma loja sem

dúvida muito maior e melhor do que a minha. Ele

odiava quando eu pedia que me acompanhasse para

fazer as compras, mas eu o fazia assim mesmo, pois

queria sua companhia.

—O que prefere? —Perguntei. —Rosas ou orquídeas?

Ele deu de ombros. Nada entendia de

flores, e não lhe fazia diferença uma rosa e uma

17

orquídea. Recoloquei o buquê de rosas no vaso, junto ao

vaso de orquídeas.

—Você a ama? —Perguntei de repente.

Ele baixou a cabeça.

—Não sei. —Ele estava sendo sincero. Tenho certeza

disso. —Ás vezes, odeio ela sem motivo algum. Odeio

tanto que chega a me sufocar. Quando olho para ela,

penso no porquê de eu ainda estar ali. E não encontro

uma boa resposta.

—E em que momentos você a ama?

—Quando a observo dormir. Fico pensando no motivo

para tantas brigas, e desejo poder recomeçar e fazer

direito. Amanhece, nós discutimos por qualquer coisa

ridícula e eu dou o fora de casa porque não aguento sua

presença.

Eu tive vontade de chorar. Tive vontade

de estrangular ele ali, na calçada, em frente a todos. Não

18

fiz nada disso. Disse a mim mesma para controlar-me, e

continuei a parecer relaxada.

—Ela sabe sobre mim?

—Acho que sim.

Ele recomeçou a andar, sem se preocupar se

eu iria querer entrar na loja e comprar alguma coisa.

Chegamos ao carro em silêncio. Ele colocou as sacolas

no banco de trás do automóvel, sem o cuidado que eu

teria com os vasos de imitação de cristal que eu

colocaria na minha sala de estar.

—Sinto muito. —Eu arrisquei, quando sentei no banco

do passageiro.

Jon assentiu lentamente e ligou o rádio.

Demorou um segundo para que recomeçasse a falar.

—Está com fome?

Eu nunca mais toquei no assunto,

odiando a mim mesma por ter perguntado coisas que

não me diziam a respeito. Ele não exigia nada de mim,

19

eu nada exigia dele. Ás vezes me pegava pensando em

Jon e sua mulher, ocupando o lado da cama em que eu

deveria estar. Então, imaginava eu matando ela, lenta e

dolorosamente. Não gosto desses pensamentos, e

tratava de afastá-los do meu mundo. Mas não podia

deixar de rir de minha infantilidade.

Um dia ele vai ser meu, eu era obrigada a

repetir para mim mesma, para não enlouquecer a cada

vez que o via partir. Enquanto espero, vou viver

intensamente cada segundo, como se fosse o último.

Porque tudo era mágico quando eu estava

com ele. E o amanhã simplesmente não existia.

Passava minhas tardes cuidando da lojinha,

conversando com minhas amigas, e de vez em quando

brigando com meus pais pelo telefone. Nunca eram

brigas sérias, apenas o suficiente para que eles não me

20

retornassem a ligação por uma semana, no máximo.

Algumas noites, eu saía para um bar, ou ia comer pizza

com velhas colegas em qualquer lugar, apenas para não

me sentir solitária quando ele estava viajando. Tenho a

impressão de que ele passou a metade da vida viajando,

sentindo falta de quem tinha deixado em casa, e

fazendo com que os outros sentissem sua falta. Mas ele

estava realizando seu sonho, aquilo pelo que batalhou a

vida toda, e eu o respeitava por isso; Respeitava e

admirava. Eu mesma nunca tive um sonho de verdade

para perseguir, e nunca conquistei nada além de

liberdade.

Ele entrou na lojinha. Meu coração deu um

salto ao vê-lo de surpresa, mas isso sempre acontecia.

Sorriu para mim enquanto eu terminava de atender

uma cliente, e colocou a mala em um canto perto do

sofá verde. Lá fora, a noite caía.

21

—Veio direto do aeroporto? —Eu perguntei, antes de

beijá-lo. Não queria que percebesse o quanto eu tinha

sentido saudades, mas ás vezes era impossível de não

deixá-lo notar. E eu sentia que com ele também

acontecia o mesmo.

Jon sentou-se no sofá depois de um longo

momento, quando o libertei. Ele parecia cansado. Fui

até a cozinha pegar um copo de água.

—Aconteceu alguma coisa? —Pressenti.

—Não exatamente. Eu só queria... Só queria conversar

com você.

Eu assenti e comecei a fechar as portas da

loja.

—Não. —Ele quis me impedir. —Não precisa fazer isso

por minha causa. Vou ser rápido, prometo.

—Não há problema. Estava quase na hora de fechar,

mesmo.

22

Puxei uma cadeira de madeira e sentei ao

seu lado.

—Acho que você vai pensar que eu sou um completo

idiota. —Começou.

—Você sabe que eu nunca pensaria isso.

—É que... Bom, antes de voltarmos para São Francisco,

fomos visitar um garotinho que estava no hospital. Nem

sei como foi que George o descobriu, mas nos disse que

estava doente e desenganado da vida. Tinha câncer,

imagina só. Uma criança de doze anos. —Eu ouvia com

atenção. Ele não olhava para mim enquanto falava, e eu

percebia que estava realmente perturbado.—Vai receber

alta essa semana, porque não há nada mais que se possa

fazer. Vai morrer em casa, junto com os pais e os

amigos. Eu não queria entrar no quarto. Sou um fraco,

não queria entrar. Mas George insistiu que era

importante que eu o fizesse. O nome dele é Justin. —Ele

parou por um momento. —A mãe dele nos contou que

23

ele tem a coleção completa dos nossos álbuns, e vários

pôsteres espalhados nas paredes de seu quarto. Estava

ciente de tudo, mas se não fosse pela sua aparência

doentia, qualquer um diria que se tratava de um garoto

normal. Chorou quando nos viu, mas chorou de

emoção, pois o sonho dele estava sendo realizado. Ele

não mencionou sua doença uma única vez, e ficou rindo

com as piadas do Reg. A gente podia sentir o cheiro da

morte naquele quarto de hospital. Mas o menino sorria.

Eu pintava a cena em minha imaginação

como um quadro. Admito que fiquei um pouco

surpresa com a reação de Jon ante á situação de um

menino que não conhecia. Não é falta de sensibilidade

dizer isso, mas eu teria ficado impressionada na hora,

mas depois acabaria esquecendo. Ele viera direto do

aeroporto até minha casa só porquê a história ainda

engasgava em sua garganta.

24

—Eu não fui capaz de dizer absolutamente nada em

toda visita. Só correspondi com um sorriso idiota

enquanto ele disse que eu era seu ídolo, e tal. Eu

invejava sua força. Olhava para mim mesmo, com

saúde, sem estar á beira da morte. E vivendo desse

jeito... Medo. Eu tenho medo o tempo todo, e nem sei do

quê. Mas, ele não. Seu único pesar era não ter ido a um

show que fizemos em sua cidade, pouco tempo depois

de ter descoberto sua doença. Saímos daquele quarto

arrasados. Nem conversamos durante o caminho de

volta. Até Reg ficou abalado.

Silêncio por alguns instantes. Achei que ele

fosse começar a chorar.

—Sinto muito, Jon. —Fiz.

—Isso me faz pensar em como essa vida é injusta.

Droga, era só uma criança!

—Mas sempre há uma esperança.

25

Ele me olhou, condescente. Palavras

vazias. Não era o que ele precisava naquele momento.

—Por que me contou isso? —Eu quis saber.

—Achei que pudesse me explicar.

Não respondi, sem querer admitir que eu

não tinha essa resposta. Entendi que era daquele

silêncio que ele precisava.

—Preciso ir. —Ele levantou-se, alguns minutos depois.

Senti um aperto no coração. Achei que ele

fosse ficar comigo. Mas assenti e lhe desejei boa noite.

Eu me sinto egoísta pensando desse jeito, mas não

queria que nada ferisse o meu garoto. Aquela mulher

não saberia compreendê-lo enquanto ele sofria por

causa de um garoto que tinha acabado de conhecer. Eu

sim o entendia perfeitamente, seus medos sem sentido e

suas excentricidades. Sabia o quanto gostava de

26

crianças, e queria ter um filho. Eu esperava que fosse eu

a conceder isso a ele.

Vi crianças pedirem autógrafos quando

passávamos na rua, e elas eram as únicas fãs que Jon

atendia de bom humor. Era fascinante. Tanto ele como o

amigo de banda tinham um ímã que atraía os jovens fãs.

Penso que é a pureza de seus coraçãozinhos que

consegue enxergar muito além do que somos capazes

de ver. Ouvi uma conversa de Reg e Jon um dia desses,

quando passeávamos em algum lugar.

—Acho que a maior parte de nosso público é composto

por crianças. —Reg brincou. —Será que entendem

nossas letras?

Jon riu.

—Espero que não.

Eu desenvolvi uma linda amizade com

Reg. O baixista da banda era um cara mente aberta, e

sempre conversava comigo quando eu precisava. Era o

27

melhor amigo de Jon, por isso não posso imaginar que

não pudéssemos nos dar bem. Nossa perfeita sincronia

não falhava, ainda que dividíssemos tantas diferenças.

Estávamos na minha sala de estar, numa

noite de quarta feira. Jon tinha saído para comprar a

pipoca que acompanharia nosso filme de terror. Reg

dissera que estava triste por causa de uma briga com

sua mulher, e pediu companhia aquela noite. É claro

que eu teria preferido ficar somente com Jon, mas não

pude recusar.

—Mais um filme de terror... —Reg comentou,

estendendo as pernas sobre minha mesinha de centro.

—Jon precisa de um pouco mais de criatividade.

Coloquei o vídeo no aparelho, enquanto

esperávamos que Jon voltasse.

—Pode me responder uma coisa? —Reg indagou,

inclinando-se um pouco mais para a frente. —O que

você fez com Jon? Magia?

28

Eu dei uma risada curta e sentei-me ao seu

lado.

—Por que essa pergunta louca?

—Não sei... Ele ficou tão... Normal depois que te

conheceu. Não bebe mais, nem toma calmantes. É

incrível.

—Eu o incentivei a isso. Ele não precisava realmente

daqueles comprimidos, e a bebida... Bom, sinto muito.

—Dei risada.

—Não, não há problema que você tenha tornado meu

amigo um completo careta. Ele me parece saudável

agora. Estava preocupando a todos nós com aquelas

crises de depressão.

Decidi que aquela era minha chance de

abordar o assunto.

—Morre aqui minha pergunta. —Comecei. —Mas acha

que tenho chances com ele? Quero dizer, chances de

verdade?

29

Não precisei deixar claro. Ele baixou a

cabeça, e eu pude acompanhar enquanto ele elaborava

sua resposta.

—Ele está inseguro. Tem medo de deixar Renée.

Acha que vai acabar sozinho, ou você vai terminar

por deixá-lo. —Reg batia as pontas dos dedos no

braço do sofá.

—Entendo.

Ele percebeu que eu precisava saber

mais. Ponderou se deveria me falar o que tinha em

mente. Não é traição, tentei encorajá-lo, como se ele

pudesse ler meus pensamentos. Pode dizer, só vai

ajudar.

—Eles não estão bem. —Soltou. Vi certo

arrependimento.

Eu queria que ele continuasse. Tenho

uma certa impressão de que as pessoas podem ler

meus pensamentos quando quero que elas o façam.

30

Também sou uma ótima ouvinte. Consigo

compreender expressões. Nem meu garoto, um auto

denominado perito na arte de mentir, não é capaz d

e fazê-lo sem que eu descubra. Já peguei algumas

de suas mentiras, porque ele sempre sorria sem jeito

depois de terminá-las. Não duravam nem um

segundo. Não aprovo essa atitude. Nunca dei a ele

um motivo para mentir.

—Não estão bem, mesmo. E já faz um tempo.

Sempre que os vejo juntos, é a mesma coisa. O

menor dos detalhes faz com que briguem. Sabe

aquele olhar cheio de ódio, obviamente não apenas

por causa de um objeto qualquer que sumiu dentro

de casa?

—Acha que é por minha causa?

Ele assentiu, dessa vez sem hesitar.

Talvez achasse que eu adoraria saber que era eu o

motivo de suas brigas. Não vou negar que havia

31

uma parte suja dentro de mim que se alegrava. A

única coisa que eu quero é que meu garoto seja

feliz, eu repetia pra mim mesma.

—Em todos os sentidos. —Reg estava mais

confiante agora.—Ela sabe, de alguma forma. Jon

pensa em você sempre que olha para ela. Por isso,

sente tanto ódio. Penso qu é do tipo: Quem está ali,

dividindo o mesmo teto e uma aliança com ele é

Renée, e deveria ser você. Deve pensar isso o tempo

todo que está em casa. É o que eu acho, o que eu

vejo.

Tenho certeza de que meu garoto disse

isso pra ele, apenas pela forma de Reg enfatizar a

parte “É o que eu acho, o que eu vejo”. Não crie

esperanças, continuei advertindo a mim mesma. O

coração é enganoso demais, e depende muito dos

outros. Se ele se ligasse ao que Reg dizia agora,

acabaria por criar coisas que não existiam. Ou pelo

32

menos ainda não. Espere um pouco da vida, mas tenha

paciência.

Não fui abençoada com essa virtude.

Não aguento esperar, e aquela espera em especial

me matava.

—Tenho dito para ele se resolver logo. Repito todos

os dias. — Reg deu uma risadinha, assumindo a

expressão brincalhona de quem está cansado. —Ele

não faz nada, pelo amor de Deus! Só reclama. O

tempo todo. Mas atitude que é bom, nada!

—Continue a encorajá-lo, Reg. —Eu deixei-me

dizer. —Diga pra ele o que você acha.

Ele assumiu um ar conspirador.

—Certo, Deb. Pode deixar. Vou tentar, mas não

prometo conseguir.

—Ele vai te ouvir.

—Eu não teria tanta certeza. —Ele riu.

33

Ouvimos o barulho da porta. Jon

comentou alguma coisa sobre o preço da pipoca.

Reg olhou para ele quando respondeu para mim.

—Jon tem a cabeça dura como uma pedra.

Ele esperava eu terminar o jantar, com a cabeça apoiada

nas mãos e o cotovelo na mesa. Me observava distraído.

Desliguei o fogão, interrompendo a água que fervia

numa panela. Ele levantou os olhos para mim, surpreso.

—Vamos para o quarto. —Comecei a puxá-lo pela mão.

—Quero ler nosso futuro.

Abri a mesa montável, e puxei duas

cadeiras almofadadas.

—Está me deixando nervoso.

Espalhei as cartas pela mesa, e percebi

que tanto eu quanto ele prendíamos a respiração.

Aprendi com minha falecida avó a ler tarot. E recebi de

34

herança aquela caixinha artesanal pintada á mão, que

continha as cartas mágicas. Tarde da noite, quando eu

ainda era uma adolescente cheia de planos e sonhos, em

sua casa da praia, ela me dizia que os espíritos sempre

ouviam e ajudavam aqueles que acreditavam.

Fiquei me perguntando o que Jon temia.

Que eu descobrisse alguma coisa? Ou, como eu, temia

que nosso futuro não estivesse traçado no mesmo

caminho?

Um enorme alívio tomou conta de mim.

—Veja, exatamente como eu imaginava. Vamos ficar

juntos até a velhice. Teremos dois filhos. Qual vai ser o

nome deles?

Ele ficou mais aliviado também.

—Você pode escolher.

—Pirata, para o menino. E Lua para a menina.

—Um pouco diferente, não é? —Ele riu. —Vai ser um

casal?

35

—Sim. —Eu continuei a observar as cartas. —Vamos

nos casar em breve.

Vi a apreensão passar pelos olhos dele, e ir

embora rapidamente.

—Maravilhoso. —Ele disse, inclinando-se um pouco

sobre a mesa, como se pudesse ler também o que as

cartas diziam. —Tem mais alguma coisa aí?

Comecei a recolher o baralho. Estava

com medo de estragar mais alguma surpresa que a vida

nos reservava.

—Por enquanto é só, meu garoto. Já passa das sete, e eu

preciso terminar o jantar.

Dei um beijo rápido em seu rosto, e

desci até a cozinha. Ele voltou á posição inicial, me

observando novamente.

—Certo, Déb. Lua, eu até posso entender. —Ele riu. —

Mas Pirata?

—Não é bonito?

36

—Acho que sim! Mas, tem uma explicação?

—Gosto de piratas. —Eu larguei a colher na pia. —

Ladrões do mar, sempre corajosos. Não são como os

outros bandidos, que só tem a temer á Polícia. Eles tem

a Natureza ao seu redor, mas enfrentam o mar

bravamente.

—Vou te considerar justificada. —Ele me deu uma

piscadinha.

—Isso é muito bom. Porque acabei de inventar.

Eu já tinha ouvido todas suas músicas, várias vezes. E

toda vez que escutava cada uma delas, tentava imaginar

de onde vinha tanta dor. Não conseguia encontrar, e

algumas vezes me senti tentada a acreditar que nada

daquilo era real, apenas parte da arte de sua vida.

Tentei pensar isso porque era mais fácil. Sempre é mais

fácil deixar de acreditar que a dor existe.

37

Ele dizia que escrevia para abafar a dor,

tirá-la do coração e deixá-lo na folha de papel. Quando

cantava, pegava tudo de volta, e enterrava em algum

lugar sombrio e esquecido de seu coração.

Em minhas tardes vazias, eu pegava

alguns vídeos da Peas e colocava no meu aparelho de

vídeo, na esperança que pudesse abafar minha saudade

enquanto ele fazia turnês. Parecia que ele estava ali

comigo, embora o vidro frio da televisão nos separasse.

Eu vi ele chorar uma vez, quando cantava a respeito de

sua mãe. Era uma letra carregada de ódio, e eu me

sentia mal ouvindo esse tipo de coisa.

Quando a música terminou, Reg

abraçou ele, enquanto Jon voltava lentamente á

realidade. Ele riu, brincando que se sentia

envergonhado, como todas aquelas pessoas olhando

para ele. Eu sempre soube que ele precisava parar com

aquilo; Precisava parar de rir quando sua vontade era

38

gritar. Mas ele era teimoso demais, e quem sabe tenha

sido esse a causa de todas as coisas que aconteceram

com ele.

Desliguei a TV. Eu sempre fui fraca, e por

mais que relutasse em admitir, nem eu fui capaz de

desvendar a confusão de sua mente, e ajudá-lo para que

não enlouquecesse. Encontrei um bilhete sem

destinatário no meio de suas coisas no dia em que ele se

mudou para minha casa. As palavras não faziam

sentido algum, e eu não tive coragem de perguntar a ele

o que significavam.

“Chama a polícia. Eu acho que tem alguém aqui.

Talvez eu tenha exagerado no Prozac, mas a

verdade é que essa dor não passa!

Ah, espera! Não é uma dor comum... Acho que

agora ele está dentro de mim. Deus! Será que um dia isso vai

39

passar?Eu estou ficando com medo, começando a tremer de

novo.

É como se uma corrente elétrica passasse pelos

meus nervos e sacudisse meu corpo. Mas ele não é tudo que eu

tenho. Tem algo mais...

Droga, é ele mesmo!”

Coloquei o papel junto com suas coisas na

gaveta da cômoda que passaria a ocupar. Não sei se ele

soube que eu li, mas gostaria que ignorasse esse fato.

Não gosto da idéia de ser uma bisbilhoteira, uma

invasora de seu espaço.

Aconteceu naquele tarde maravilhosa. Ele

apareceu na porta de casa, com apenas uma mala, um

dia depois do Natal.

—Se incomoda? —Ele perguntou.

40

Eu não sabia se a pergunta era “Se

incomoda se eu colocar a mala em cima do sofá”, ou

“Se incomoda se eu passar a morar com você?”

Optaria pela segunda opção. E estava

certa.

Sentou-se no sofá, com o braço apoiado

na mala. Eu sentei á sua frente, aguardando

explicações. Tentei parecer relaxada, mas não sei se

fui bem sucedida. Talvez ele nem prestasse atenção

á isso. Estava preocupado. Puxava o próprio cabelo

em seu tique nervoso. Não fazia isso suavemente,

mas dava longas e fortes puxadas. Tive medo de

que acabasse arrancando um tufo de mechas. Eu ia

brincar “Você vai acabar ficando careca se continuar

a fazer isso”, só para quebrar aquele clima ruim. Ele

finalmente resolveu falar.

—Não quero mais ficar naquela casa. Não quero, não

quero.

41

—Aconteceu alguma coisa?

Ele balançou a cabeça veemente. Vi

desespero em seus olhos, e meu coração deu um pulo

dentro de mim. O que teria acontecido de tão grave

para deixá-lo com tanto medo? De alguma forma, não

parecia meu Jon que estava ali á minha frente, parecia

estranho. Começava a me assustar.

—Se importa? —Ele repetiu, com urgência.

—Você sabe que eu sempre esperei que isso

acontecesse.

Por que eu iria querer saber mais? O

importante é que ele estava ali, e agora seria meu. Tanto

quanto uma pessoa pode pertencer á outra, e isso não

significa muito, realmente. Pensei em abraçá-lo e pedir

que olhasse para mim. Estava fitando o vazio, e daquela

vez, não tinha a menor idéia do que pensava.

Jon assentiu de repente, meio para si

mesmo, e começou a levar suas coisas para o quarto. Eu

42

disse que não se incomodasse, eu guardaria as coisas

para ele. Deixei que descansasse aquela tarde. Nunca

perguntei nada. E era como se a outra mulher nunca

tivesse existido.

O único problema do meu novo

hóspede era a falta de incensos. Gostava de acender

incensos perfumados em todos os cômodos, mas ele

reclamava que aquilo atingia profundamente seus

pulmões. Não sei se realmente tinha a ver com sua

asma, ou se apenas o incomodava, mas resolvi que

era melhor não arriscar.

Ele comentou comigo aquela noite,

quando nos preparávamos para dormir.

—Eu não vou me sentir daquele jeito, agora.

Encontrei a verdade, e tudo que eu precisava.

Voltei a pensar no bilhete. Fiquei

tentada a perguntar quem era ele Eu desconfiava de

ser o padrasto, mas pareceu-me algo espiritual. Será

43

que Jon via “coisas”? Até hoje acho que sim. Fora de

seus sonhos, e quem sabe essa fosse a loucura de

que todos falavam. Poderia ser verdade, por que

não? Ninguém sabe o que acontece do outro lado,

além da imaginação humana.

Eu segurei a sua mão por baixo das

cobertas. Ele correspondeu com firmeza, me fazendo

acreditar que nada poderia nos separar agora. Observei

enquanto dormia profundamente. Fiquei daquele jeito

por quase uma hora, e pela primeira vez, senti medo.

Ele disse que ficaria bem. Talvez tenha sido o peso da

responsabilidade que depositou em mim. Não vou

negar que me senti pressionada. Mas eu fechei os olhos

também, ao seu lado, e repeti mentalmente que aquele

era o começo do resto de nossas vidas, e todas as noites

eu poderia abraçá-lo daquele jeito. Não havia motivo

para ter medo, e eu consegui me convencer

absolutamente disso.

44

Ledo engano. Não sei se tinha sido uma

premonição, ou qualquer coisa assim. Eu deveria

saber que aquilo tudo era perfeito demais para ser

verdade. Mas eu calei meu coração. Não deixei que

ele me dissesse que aquela noite era o prelúdio, não

o começo. Simplesmente não ouvi. O que eu queria

que fosse minha realidade, transformei na verdade.

Desprezei todo o resto, e não importava mais que

eu estivesse vivendo um sonho. Não pude sustentar

minha quase mentira, de qualquer jeito.

Acordei muito depois do sol nascer. Ele

ainda dormia.

Tentei levá-lo ao cinema numa noite de verão.

Estreava um filme baseado na história de

um livro que ele tinha lido. Eu não gostava dessa

sua mania de basear algumas de suas idéias e

45

experiências nos romances, mas eu também gostei

da história que me contou quando terminou de ler.

Tratava-se de uma mulher e um manicômio,

quando todos achavam que ela era louca. Na

verdade, sua “loucura” era revelações divinas sobre

o Apocalipse. Ela morreu no hospital psiquiátrico,

quando este foi engolido pelo fogo, uma estrela que

caiu sobre a Terra.

Ele dirigia, e eu sabia que estava

apreensivo. Pouco antes de chegarmos ao cinema,

ele comentou.

—Não sei se vai dar certo. Talvez fosse melhor

esperarmos o filme sair nas locadoras.

—Pelo amor de Deus —Brinquei, abaixando o

volume do rádio. —Você ficou falando desse filme a

semana inteira!

Você está comigo.Eu queria ter dito. Vai

superar seus medos de infância, um por um.

46

Ele suspirou.

—O que eu não faço por você?

Compramos pipoca e entramos na sala

de projeção. Escolhemos assentos do fundo, para

qualquer tipo de emergência. Ainda passavam os

traillers que antecediam o filme, quando senti que

ele apertava minha mão, e começava a ficar gelado

de medo. Ele sussurrou para mim antes de levantar.

—Vou beber água.

Eu não queria estar errada. Precisava

ajudá-lo, e aquela era uma ótima maneira de

começar. Gostaria que ele voltasse, e aguentasse por

duas horas. Enfrente seu medo.

Saí da sala alguns minutos depois. Ele

esperava na frente do banheiro, parado sobre o

carpete vermelho, como se me esperasse. Sabia

quwe eu viria.

—Sinto muito.

47

Ele falou. Peguei sua mão enquanto

deixávamos o lugar.

—Eu falei que não ia dar certo. —Não havia

acusação em sua voz, apenas uma certa vergonha.

Senti-me culpada. Não deveria tê-lo forçado a isso.

Essas coisas não se resolvem desse jeito.

—Vamos para casa.

—A tela é maior do que eu imaginava. —

Comentou.

—Tudo é maior se visto de perto.

Tomamos o caminho de volta ao

estacionamento. Ele se viu na obrigação de me

explicar.

—O barulho estava muito alto.

—Eu não deveria tê-lo forçado.

—Pra falar a verdade, eu tive uma esperança de que

não fosse tão escuro.

48

Ele me abraçou e me presenteou com

aquele sorriso de criança.

—Você sabe que qualquer coisa vale a pena com

você.

Olhei para o estacionamento vazio, e

de repente tudo pareceu muito triste. Estava frio.

Talvez fosse por isso. Ele estaria saindo em turnê

em duas semanas. Estremeci e abracei ele com mais

força.

—Vou cozinhar algo bem especial. —Eu disse,

afastando tudo o que não fosse presente da minha

cabeça. Entramos de volta no carro. —Para obter o

seu perdão.

Peas - Mais um esconderijo

Durma em paz, sem medo

Está perdoado por todas as coisas que fez

Talvez dessa vez você consiga

49

Parar de pensar, enfim compreender.

Ignore o que está acontecendo

É tudo o que não existe, ou pelo menos não deveria

existir

Deixe de acreditar, não permita que domine você

Você quer ser forte e pagar pra ver.

Agora se sente capaz de me deixar assumir o controle?

Consegue fechar os olhos?

Se sente melhor agora?

( Por que seu coração está apertado? Acha que vai

acontecer de novo? )

Fique quieto, e tente ouvir o que as palavras nunca

poderão dizer

O silêncio desse lugar é tudo o que você precisa

E aos poucos, vai parar de sentir

Devagar, você está cada vez mais calmo

50

Você pode sorrir de novo.”

Conheci Jack Hoppus no meu segundo ano de

Medicina. Ele tinha o cabelo loiro encaracolado, como se

fosse um anjo. Na verdade, atuou como um durante

aqueles anos em que eu me sentia terrivelmente sozinha

e triste. As coisas em casa não iam bem, eu vinha

reclamando do curso para meus pais.

Era meu pai quem mais se incomodava

com os comentários.

—Isso não é para mim. —Comentei, durante o

jantar. —Está ficando cada vez mais nojento, a cada

dia que passa. Não aguento mais ouvir falar de

sangue, tripas, víceras. Ver cadáveres, enfiar a mão

nas suas entranhas e...

—Pare, Deborah. —Minha mão interrompeu,

largando o garfo em cima do prato ainda cheio. —

51

Será que não podemos conversar sobre isso mais

tarde?

—Não há nada para conversar. —Meu pai disse,

irritado. —E se vai continuar fazendo esses

comentários grotescos, é melhor que se retire da

mesa.

Eu o encarei, demonstrando a raiva que

sentia. Sempre tão altivo, tão seguro de si. Achava

saber o que era melhor para si mesmo, e para os

outros.

—Retire-se. —Ele disse, como se pudesse ler meus

pensamentos.

—Por que acha que eu devo ser médica? —Disse,

em voz alta, largando o guardanapo em cima do

meu prato. —Para ser igual a você? Tratar pessoas

doentes por dinheiro? Para fazer como você,

despedir uma velha de oitenta anos de seu

maravilhoso consultório, porque ela não tinha

52

dinheiro para pagar a consulta? —Postei-me de pé.

Ele me observava, impassivo. Minha mãe pedia

para que eu me calasse, a voz baixa. —Você não dá

a mínima se ela vai morrer, ou se não vai. Não se

importa, porque não é problema seu. É assunto do

Governo, dos hospitais públicos. Enquanto isso,

você deita á noite no sua confortável cama, com os

bolsos cheios de dinheiro, e consegue dormir em

paz. E chama isso de felicidade. Mas eu nunca vou

ser como você!

Não esperei resposta, e ignorei a voz

da minha mãe que pedia que eu voltasse. Bati a

porta da frente e fui procurar Jack.

—Não consigo mais! —Eu chorei, enquanto ele me

abraçava, sentados na cama de seu quarto. —Não

vou aguentar aquela escola nem mais um dia!

—Eu entendo, Deb. Mas será que não consegue

suportar mais algum tempo? Pelo menos até que

53

convença seu pai de que isso não é o melhor para

você.

Eu sabia que Jack não entendia. Como

poderia, realmente? Vinha de uma família pobre, se

preparara durante anos para conseguir a sonhada

bolsa na universidade. Era seu sonho, e ele o seguia

com afinco. Mas eu deixei que me abraçasse. Deixei

que minhas lágrimas caíssem em seu ombro.

Ele levantou a minha cabeça para que

eu olhasse para ele. Então, disse a frase que deve ter

ensaiado durante semanas.

—Eu amo você.

Fiquei sem reação. Não esperava

absolutamente essas palavras, não naquela hora. Eu

vinha pensando a respeito há algum tempo, mas

ainda não era capaz de entender meus sentimentos.

Só tinha amado uma vez, quando ainda era uma

criança. Disse para o rapaz na quinta série que

54

íamos casar e ter filhos, mas nosso namoro

terminou quando ele encontrou outra garota para

namorar. Uma menina mais bonita, sem dúvida,

para minha absoluta inveja.

Ele me beijou, e naquele momento,

esqueci todo o resto. Entregamo-nos um ao outro

sem restrições, como se aquele beijo fosse tudo que

tivemos por toda vida. Ficamos em silêncio depois

que aquele momento mágico acabou.

—Por favor, Deb... —Ele tentou, falando baixo, e

hesitando em pegar minha mão. —Namora comigo?

Cometi um dos maiores erros da

minha vida. Confundi um amigo e um momento de

dor com um amante. Disse que sim, e prometemos

que seríamos felizes para o resto da vida.

Nosso namoro durou sete meses, que

pareceram sete anos. Deixei a escola nesse período,

55

fui morar na casa de uma colega por um tempo, até

que meu pai me aceitasse de volta.

Passei a sair mais com minhas amigas.

Encontrei novos garotos, os quais Jack apenas

desconfiara que existiam. Eu o evitava da melhor

forma possível, pois não queria magoá-lo. Ensaiei

várias vezes as palavras que colocariam fim em meu

falso romance. Usaria clichês, do tipo o problema não

é você, sou eu. É uma questão pessoal, tenho que resolver

uns assuntos antes de continuar com um compromisso

tão sério. Mas as coisas se complicam muito mais

quando se trata de um velho amigo, que conhece

você mais do que qualquer um, e desvenda suas

mentiras com um olhar. Ele tinha essa capacidade.

Eu continuei com nossa relação, ainda

que soubesse que estava magoando ele ainda mais

com essa atitude. Até que um dia ele veio até minha

casa, antes do horário combinado. Tinha os olhos

56

cheios de lágrimas, e disse as palavras que eu

queria ouvir, mas ainda não estava preparada para

isso.

Está tudo acabado.

Fui reencontrá-lo anos depois, naquela

festa de Samara, nossa amiga em comum. Jon estava

em turnê havia cinco meses, e eu cometi o segundo

maior erro da minha vida.

Aconteceu tudo tão rápido que eu mal pude

acompanhar. Pela primeira vez desde que o

conhecera, eu não pensava nele. Pela primeira vez,

eu me divertia sem ele.

Jack e eu rimos juntos. Fizemos piadas a

respeito das roupas e dos acompanhantes de nossos

inimigos em comum. Falamos sobre nossos antigos

amigos, nossas travessuras de quando éramos

57

crianças, de nossos pais, do quanto que era

diferente ser adulto, ter nossa liberdade, nossas

próprias responsabilidades. As taças de vinho e

champanhe passavam por nós, e eu nunca me senti

tão descontraída.

Então Jack me perguntou se eu

estava casada. Eu disse que não. Nem sequer

mencionei a existência de Jon. Não sei porquê fiz

isso, pensei não ter necessidade, mas já não tenho

tanta certeza se foram esses meus motivos reais.

Tínhamos bebido demais. Ele me levou para casa no

final da festa.

Ficamos um quarto de hora

sentados dentro do carro, ouvindo a chuva fina cair

no vidro fechado. Ele me contou como era sua nova

vida de jovem médico, eu lhe contei sem

entusiasmo como era minha vida de floriculturista.

58

Então ele me abraçou e disse que era

muito bom me rever. Sei que eu deveria ter recuado

naquela hora, antes que fosse tarde. Ele me beijou, e

eu correspondi, sem entender, mais uma vez, que

aquilo não era amor. Meu coração estava confuso,

porque Jack me lembrava minha adolescência, as

escapadas, os esconderijos, as festas, a alegria. Mas

ele se esqueceu de que tinha sido Jack que me fizera

descobrir que uma hora a paixão adolescente esfria,

e então nós temos que sair em busca do verdadeiro

amor. Eu tinha encontrado a minha outra parte, mas

meu coração insistia em ignorar sua existência

naqueles longos momentos.

Sua outra parte não está aqui. Meu coração

fazia questão em me fazer lembrar. Onde deve estar?

Em qualquer lugar entre a Ásia e a Europa.

Pedi para que Jack entrasse comigo.

59

Não abri os olhos quando acordei. Tive medo que

tivesse sido real. Minha cabeça doía antes mesmo

que eu enxergasse a luz. Meu coração estava

apertado, arrependido pelo que tinha feito.

Desculpe, Jack. Adorei sua companhia, mas preciso ir

para casa. Meu marido está viajando, e não tem hora para

ligar. Vai me ligar a qualquer hora.

Mas Jack estava ali, deitado em minha

cama. Senti sua mão encostar em mim. Levantei-me,

tão tonta que pensei que fosse despencar no chão.

Ele sentou-se, encostado na cabeceira da cama.

Sorriu. Ia me dizer alguma coisa, mas eu não

permiti.

—Por favor, Jack. Acho que é melhor você ir

embora.

—Não está se sentindo bem?

60

Balancei a cabeça em negativa. Ele

começou a se vestir e calçou os sapatos. Eu não saí

da minha posição inicial. Ainda não era capaz de

acreditar que tinha realmente acontecido. Como eu

poderia ser tão tola, tão maluca? Como eu me deixei

levar, como uma muda, uma mulher ser

escrúpulos? Eu sabia que nunca seria capaz de me

perdoar.

Fiquei muito tempo sentada na cama

depois que ele saiu, sem um número de telefone,

sem uma promessa de que voltaríamos a nos ver.

Forcei-me a levantar, arrumar a casa

e abrir a loja, fingir que aquele era um dia comum.

Respirava profundamente a cada minuto, e sentia

um arrepio quando me lembrava do que tinha

acontecido. Sorri para as pessoas na rua, mas meu

sorriso nunca tinha sido tão vazio assim.

Cumprimentei meus vizinhos, e atendi meus

61

clientes. Até conversei com alguns deles, sobre

qualquer assunto trivial do nosso dia a dia. No final

da tarde, eu me sentia exausta. Mas tinha

conseguido convencer a mim mesma que tinha sido

um erro, que eu nunca mais cometeria. Decidi

esquecer aquela noite, aquela manhã, aquele dia

confuso e vazio. Se eu simplesmente não me

lembrasse, aqueles fatos deixariam de existir.

Mais uma vez enganei a mim mesma ao

escapar para a terra dos sonhos, onde meus planos

dão certo, e minhas idéias são as leis. Eu sabia que

estava grávida antes mesmo de comprar o teste na

farmácia, e repeti-lo duas vezes.

A todo momento, eu sentia o gosto dos

lábios de Jack nos meus, e revia com clareza as

cenas. Jack conversava comigo, nós bebíamos, ele

me levava para o carro, e depois eu permitia que

entrasse na minha casa. Meu próprio santuário. O

62

lugar onde todos os meus sonhos se tornaram

realidade, o lugar onde eu tinha encontrado minha

felicidade.

Desperdicei tudo em uma noite.

Quando o santuário de um homem é

profanado, sua vida está acabada.

Ignorei a campainha do telefone. Tocou

a tarde inteira naquele domingo. Não levantei da

cama, me recusando abrir os olhos, e deparar de

novo com a realidade. Acho que tirei alguns

cochilos, porque as horas passaram rápido demais.

Já era manhã de segunda feira. Eu não queria fazer

o almoço, ou limpar a cozinha. Tudo o que eu

desejava era matar aquela coisa que crescia do meu

ventre. Não é uma criança, eu pensava. É um monstro

que veio para destruir a minha vida. Um ser estranho,

um filho do demônio. Que precisa ser morto.

63

Mal percebi que já era noite de novo.

Meu corpo implorava por comida, mas eu sabia que

se comesse, estaria alimentando aquele ser.

Havia alguém á porta. Eu não atendi.

Deixei todas as luzes da casa apagadas, para que

pensassem que eu havia saído. Devia ser uma das

vizinhas fofoqueiras, preocupadas com o fato de eu

não ter aberto a lojinha, nem dado às caras na rua.

Esperei paciente, sentada na cama. Eu já sabia o que

devia fazer.

O telefone tocou de novo. Eu tateei

pelas paredes até chegar á porta que me levaria ao

porão. Acendi a luz do pequeno corredor, pois não

havia janelas ali para que as pessoas da rua

pudessem ver. Hesitei com o ranger da porta que há

muitos anos não era aberta.

64

Não desci o primeiro degrau. Recuei

para atender ao telefone que tinha recomeçado a

tocar. Dessa vez eu sabia quem era.

—Debbie, onde é que você estava?

Engoli em seco, e senti as lágrimas

salgadas queimarem a pele do meu rosto.

—Eu te amo, Jon.

Repus o fone no gancho lentamente.

Ele ainda insistiu, mas dessa vez me apressei em

descer as escadas do porão frio.

A lâmpada que iluminava o lugar

era fraca. Mal permitia que eu enxergasse o outro

lado do aposento. Logo encontrei o que eu

procurava. Como que tivesse sido predestinado

para aquele momento, lá estava a grossa corda,

quase encostada na escada de mão. Usei a escada

para alcançar o teto.

65

Juro que até cheguei a ficar pendurada

pelo pescoço, mas meus pés encontraram o topo da

escada novamente, e eu pulei de volta para o chão,

arfante. Não, não poderia fracassar novamente.

Uma voz interna gritava. Dizia para

que eu parasse com aquilo, que para tudo havia um

jeito, e eu estava percorrendo um caminho sem

volta. O caminho pra o inferno.

Esquadrinhei o porão, da melhor

forma possível. Devia haver alguma coisa que me

matasse além da corda. Um rato passou por mim,

mas eu não me importei. Lembrava das histórias

que eu ouvia ainda garotinha, que envolviam o

inferno e os demônios. Mas naquela hora, eu não

temia. Estava disposta a pagar pelos meus erros.

Encontrei o que procurava, e quase

rastejei até a caixinha com as bolinhas brancas.

Engoli todos de uma vez, e me atirei no chão,

66

desejando que ele se abrisse e me tragasse naquela

hora.

Eu não faço idéia de quem foi que me encontrou

daquele jeito. Jon não estava no quarto quando abri

os olhos. Alguém deve ter mandado chamá-lo.

—Você acordou. —Ele disse, sentando ao meu lado,

e pegando minha mão.

Eu não podia acreditar que tinha

fracassado. Gostaria de chorar, mas sabia que ia

doer muito mais se eu o fizesse. Por que não me

deixaram morrer?

Ficamos de mãos dadas, exatamente

como fazíamos quando ele tinha medo. Daquela

vez, quem temia era eu.

—Você acordou. —Ele repetiu, vagamente.

67

Demorou muito até que eu

conseguisse juntar forças para falar. Então, entendi

que não havia fracassado; O idiota que tentara me

salvar só tinha adiado algumas horas a minha

morte.

—Você pode me perdoar?

Ele balançou a cabeça, indignado.

Desejava que ele já soubesse. Do contrário, eu

precisaria me confessar.

—Você não vai morrer. —Ele tentou.

—Eu não mereço que você fique aqui, nesse lugar

horrível. —Cada palavra demorava alguns

segundos para sair. —Você não merece ficar aqui.

—Pare! —Ele sussurrou.

—Apenas diga que me perdoa.

—Nós vamos casar. —Ele começou a chorar,

debilmente. Não sabia que não adiantava? Tudo

que tinha de fazer era dizer o que eu precisava

68

ouvir. Afinal, era para isso que eu havia recebido

uma segunda chance. —Vamos nos casar, e teremos

dois filhos. Um casal. Você não lembra?

—Você... Você sabe o que aconteceu?

Ele não respondeu e entendi que seu

silêncio era uma afirmativa. Ele sabia. De alguma

forma, sabia.

—Eu estava sozinha. —Eu tentei, embora soubesse

que o que devia fazer era me desculpar, não me

justificar. —Muito sozinha. Por favor, apenas diga

que me perdoa.

Eu conseguia ouvir meu coração.

Uma batida longa, muito lenta para a normalidade.

Ouvi de novo a voz dentro de mim. Você vai morrer.

Precisava de sua resposta para

poder descansar os olhos. Eles começavam a ficar

pesados demais, e fui tomada pela pressa.

—Por favor, apenas diga.

69

—Nós ainda vamos ser muito felizes juntos.

Minha vontade era sacudi-lo pelos

braços, e fazer com que entendesse minha

necessidade. Fiquei ouvindo ele chorar por longos

minutos. Estava com frio, e nunca me senti tão

cansada. Eu sabia que precisava lhe dizer alguma

coisa, mas não conseguia me lembrar o que era.

Terminei cedendo, e fechei os olhos.

Eu devo ter dito eu te amo mil vezes.

Gostaria de tê-lo feito mil e uma vezes.

Observei ele colocar minha mão sem vida sobre o

lençol branco, e apenas sair quando o médico pediu,

praticamente tendo que arrancá-lo para fora.

Fiquei com ele aquela noite. Do mesmo

jeito que ele tinha ficado comigo, ao meu lado na

cama. Não conseguia dormir, fitava o teto, sem mais

70

lágrimas. Tive que resistir á vontade de tocar-lhe o

rosto, e lhe prometer debilmente que tudo ficaria

bem. Tinha medo de que ele se assustasse ao sentir

o meu toque. Tive que partir em silêncio.

Era chegada a minha hora.

Caminhava em direção ao desconhecido, mas ainda

tinha esperança. Não sabemos o que há do outro

lado, e quem sabe eu pudesse continuar velando

por ele onde quer que eu estivesse. Até que

pudéssemos nos encontrar novamente.

Senti o toque frio no meu braço, me

avisando que eu precisava me apressar. De alguma

forma, aquela mão invisível me fazia sentir estranha

e acolhida. Aquele quarto nunca tinha me parecido

tão escuro e frio.

Ainda lhe dei uma última olhada.

Você não foi capaz de me perdoar.

71

Sarah Thompson Eu não morei com Jake por muito tempo. Na verdade,

tenho poucas lembranças do tempo que dividimos o

mesmo quarto. Ele saiu de casa antes que eu

completasse cinco anos.

Jon chorou naquele dia. Agora eu entendo

que se sentia abandonado. Na época, tudo o que eu

pensei foi “Que pena, as brincadeiras de Jake vão fazer

muita falta”.

Mamãe também chorou e pediu para que

ele ficasse. Apenas papai não disse nada. Papai sempre

ficava calado.

Na verdade, Jake não ia para tão longe,

não. Foi morar há algumas quadras lá de casa. Mas o

suficiente para que eu percebesse que Jon chorava

muito mais do que antes durante a noite.

72

—O papai te machuca? —Eu interrompi a brincadeira

com bolinhas de gude.

Costumávamos brincar no quintal, na

mesinha de madeira poída que o papai tinha construído

para mim.

Jon desistiu de lançar uma das bolinhas

no meio da jogada. Demorou um pouco para responder.

—Não.

—Eu achei que sim.

—Quem foi que te disse isso?

Ele mexia a bolinha de gude entre os

dedos. Eu estava quase arrependida de ter começado

aquele assunto, mas há algum tempo eu planejava

perguntar isso a ele. Pensei que talvez devesse ter ido

perguntar direto ao papai.

73

—Não sei. Eu só... Pensei nisso.

—Está sendo uma boba, Sarah. Sabe muito bem que seu

pai não poderia fazer mal para mim.

Assenti, embora não acreditasse. Sim, eu

perguntaria para o papai uma outra hora. Mas agora eu

só queria continuar o jogo. Esperei que continuasse a

brincar, mas ele permaneceu imóvel.

—Jon?

—O que é?

—Pode continuar jogando agora.

Ele fez que sim. Mas continuou

pensativo, olhando para as bolinhas verdes. Sacudi a

mão que apertava uma delas.

—É a sua vez!

—E se nós... Brincássemos de outra coisa? Cansei dessa

idiotice de ficar acertando bolinhas.

Ele espalhou as bolinhas sobre a mesa.

74

—E do que vamos brincar, então? —Eu o segui até os

degraus que nos levariam do quintal á rua. Sentei ao

seu lado. Havia acusação em minha pergunta. Estava

implícito “Se não as bolinhas de gude, o quê? Você não

pode brincar de basquete ou futebol, porque vai ter um

acesso de tosse”.

—Vamos jogar xadrez.

—Eu não sei jogar essa idiotice. —Cruzei os braços

sobre o peito.

—Está aprendendo.

—Não gosto de xadrez.

—Isso porque você é burra, e não sabe jogar.

Arranquei uma pedrinha do chão e lancei

longe.

—Eu não sou burra!

—É, sim. Você é muito burra.

—Eu sei jogar damas.

—E daí? Perde sempre.

75

—Isso é mentira!

—É mesmo? Quando foi a última vez que me venceu?

—Eu sempre deixo você ganhar!

Ele riu. Eu odiava quando ria ao me ver

nervosa. Levantei num salto, desafiadora.

—Vou buscar o tabuleiro. E te provar que posso vencer.

—Vai lá, magricela. Vamos ver do que é capaz.

—Magricelo é você!

Corri para o quarto, a procura do jogo.

Voltei e coloquei o tabuleiro no degrau,

como uma mesa improvisada. Estava decidida a provar

que era uma vencedora.

Ele ganhou aquela partida.

Eu fui conversar com papai quando me lembrei do

assunto, no final daquela tarde.

76

—Por que você não é pai do Jon?

Estávamos na oficina, ele tinha o capô de

um dos carros aberto, e observava atentamente o

conteúdo lá dentro. Suas mãos estavam pretas de graxa.

Sentei na caixa de ferramentas.

—O quê? —Ele perguntou, distraído.

—Quero saber como é que pode você ser meu pai, mas

não ser pai do Jon.

Ele amaldiçoou baixinho, concentrado

na peça do automóvel de seu cliente. Coçou a cabeça,

tornando o cabelo loiro parcialmente negro.

—Dá o fora, Sarah.

—É que eu quero saber!

—Estou ocupado. Vai perguntar para sua mãe.

—A mamãe na vai querer conversar agora. Está

preparando a janta. —Ele tirou uma peça do

carburador, e a examinou. —Você machuca ele?

77

—Ele quem? —Papai recolocou a peça no lugar,

irritado.

—Jon.

—Claro que não. Por que faria isso? —Tirou a atenção

da peça mecânica e olhou para mim. —Ele comentou

algo com você?

Dei de ombros.

—Ouço ele chorar á noite.

—Sarah, escute. Ele chora porque é um bobão, entende?

Nunca encostei um dedo nele, nem pretendo fazê-lo.

Certo?

Eu não estava satisfeita, mas concordei

com a cabeça.

—Entendeu mesmo, Sarah? —Ele quis confirmar. —

Vamos esquecer esse assunto.

—Tudo bem.

—Então vai brincar.

78

Dei um beijo nele e saí. Talvez Jon sentisse

falta do pai. Estava sempre falando a respeito. Meu pai,

quem sabe, poderia entrar no quarto é noite para

confortá-lo, dizer que estava tudo bem, como fazia

quando eu tinha um pesadelo.

Fiquei pensando no assunto o tempo

máximo com que uma criança

é capaz de se preocupar. Papai nem conversava com

Jon. Só se dirigia a ele se precisasse de alguma coisa, ou

na necessidade de repreendê -lo. E o que eram os

barulhos que eu ouvia á noite? Não, não poderiam ser

simplesmente um consolo.

Eram pancadas, tenho certeza. Por outro

lado, não conseguia imaginar papai batendo em

alguém. Pelo menos, não até aquele dia.

79

Eu adorava meu pai. Acho que é dessa forma que a

maioria dos filhos vêem seus pais, como super heróis,

que vão sempre estar perto quando elas precisarem, no

colo de quem podem dormir e sentir-se protegidas.

Aquele que ouve suas manhas e conhece suas manias, e

está quase sempre disposto a conceder privilégios. Pelo

menos quando somos crianças; até que entendemos que

eles também são seres humanos, e erram como nós.

Geralmente, ele deixa de ser aquele super herói, e passa

a representar mais um dos seres fragilizados que vemos

todos os dias, diante dessa vida enorme. Então,

passamos a amá-lo mais ainda, porque ele teve a

coragem de se fazer parecer um herói, e nos ter

protegido da vida real, a qual somos obrigadas a

enfrentar sozinhos, porque exigimos nossa liberdade,

muitas vezes ignorando seu amor e preocupação.

Ele me decepcionou naquele dia, e eu era

muito nova para assumir a realidade. Acho que entrei

80

um pouco no mundo de Jon, e pela primeira vez, quase

entendi porque ele tinha tanto medo da vida.

Jon e eu voltamos da escola, largamos

nossas mochilas no sofá. Comecei a ouvir a gritaria que

vinha do quarto. Era uma briga. Os gritos tinham a voz

do papai. Senti um aperto no coração. Era medo.

Comecei a subir as escadas em direção ao

som. Jon me deteve, segurando meu braço.

—Por que papai está brigando? —Eu sussurrei para ele.

—Não sei. Mas é melhor ficarmos aqui, quietinhos.

Ele me puxou para baixo, mas eu resisti.

Meus olhos se encheram de lágrimas. Detestava chorar

na frente dele, pois sempre me chamava de chorona.

Mas não consegui me conter.

—Eu quero saber porquê papai está bravo!

Soltou meu braço, dando-se por

vencido.

—Então, vai.

81

Hesitei, mas recomecei a subir devagar.

Discernia as palavras do papai agora, e ele dizia muitos

palavrões. Jon permaneceu onde estava, e não parecia

mais assustado do que eu. Pedi com um gesto para que

me acompanhasse, mas ele fez que não.

Já tinha me aproximado da porta quando

ouvi a pancada. Houve um grito da mamãe. Papai

gritou mais ainda. Eu corri escada abaixo, tropecei no

último degrau.

—Ele bateu na mamãe! —Não consegui controlar minha

voz quando gritei para Jon. Ele me ignorou, e se sentou

no sofá. —Ele bateu na mamãe!

Demorou até que ele levantasse os olhos

para mim.

—E o que eu posso fazer?

Fiquei olhando para cima das escadas por

alguns instantes, mas sem escutar nada. Imóvel e aflita.

E de repente, tudo ficou calmo. O silêncio sempre é

82

perigoso. Papai desceu as escadas cambaleante, julguei

ter visto uma mancha de sangue na sua roupa. Ele não

olhou para mim. Bateu a porta da rua sem olhar para

trás. Deixou um rastro de cheiro de álcool.

Procurei apoio em Jon. Ele não se moveu.

“Devemos subir para ver o que aconteceu?”, quis

perguntar.

Eu subi, já que não houve resposta.

Entrei no quarto. Mamãe tinha um olho machucado, e

estava deitada na cama. Chorava. Eu quis falar, mas

minhas próprias lágrimas sufocaram minha garganta.

—Saia daqui! —Ela gritou quando me viu.

Não esperei segunda ordem. Corri para

meu quarto, fechei a porta. Se tivesse a chave, me

trancaria ali para sempre. Era a sensação de que tudo de

ruim ficava fora do quarto; ele tinha feito com mamãe? E

por quê? Parecia a mim que estava vivendo um

pesadelo, e desejei acordar logo.

83

Mamãe não fez o almoço, Jon desapareceu

durante toda a tarde. Papai só voltou á noite. Daquela

vez, não me consolou porque eu estava triste. Eu

também já não tinha certeza de gostaria e ser consolada

por ele.

Não houve qualquer sinal de que houvesse

mais alguém na casa, até que as luzes foram apagadas, e

todos os moradores da casa foram para a cama. Exceto

papai. Entrou em nosso quarto, sem fazer ruído com a

porta. Como sempre, ou não tive coragem de levantar a

cabeça das cobertas, e descobrir porque Jon chorava.

Não foi possível conciliar o sono, mesmo

depois que os barulhos cessaram, e Jon fez silêncio.

Ele bateu em minha mãe. E agora, ela tinha

um olho roxo agora. Não consegui encará -lo na manhã

seguinte.

Essa foi apenas a primeira vez.

84

Jake veio nos visitar. Perguntou do olho roxo da

mamãe.

—Estava meio sonâmbula, fui descer para beber água.

—Ela deu uma risadinha. —Dei com a cara na porta!

Era a desculpa mais velha que alguém de

olho roxo poderia dar, mas Jake não insistiu. Resolveu

abordar o assunto com Jon, enquanto o acompanhamos

até sua casa, como fazíamos todas as vezes que ele

vinha á nossa casa.

—Javier bateu nela?

Jon baixou a cabeça imediatamente. Uma

coisa que não tinha aprendido ainda era a mentir.

— Não sei.

—Eu sei que bateu.

—Então por que pergunta?

—Eu gostaria de poder ajudá-lo, Jon. Gostaria mesmo.

—Ele suspirou, chutou uma garrafa plástica

85

abandonada na calçada. —Mas mal estou conseguindo

me sustentar. E minha garota.

Jon aproveitou para mudar de assunto.

— Como vai a Courtney? Faz tempo que não a vejo.

—Vai bem, vai bem... Estamos bem. —Ele riu. Nós

sabíamos que poderíamos adjetivar a relação deles com

qualquer termo, menos “bem”. Nunca gostamos dela.

Era uma chata, e tenho a impressão de que não gostava

da gente.

— Bom saber. —Jon riu também.

—Acha que consegue superar mais um pouquinho?

Ele insistia em falar a respeito. Jon devia

estar tremendo por dentro. O medo era muito óbvio

quando alguém lhe falava do papai.

—Sim.

—Sinto muito, Jon. Gostaria mesmo de poder ajudar. —

Paramos na esquina da casa dele. Eu o puxei para baixo

para que pudesse dar-lhe meu beijo de despedida. —

86

Mas assim que eu ficar estável em meu emprego, vou

levá-lo comigo. Isso é uma promessa.

Jon assentiu e retomamos o caminho de

volta. Não sei se acreditou nas palavras de Jake. Mas o

dia prometido nunca chegou.

Meu dia preferido era o Haloween. Eu saía para pedir

doces com a fantasia que mamãe me ajudava a

improvisar.

Jon não ia comigo. Dizia que os meninos

da rua iriam tirar sarro dele. Eu perguntei o que fazia

com que pensasse isso, já que nunca tinha brincado com

os vizinhos. Ele não soube me responder, mas insistiu

em não ir.

87

—Problema seu. —Eu me irritei. —Está fazendo calor,

você vai perder uma noite divertida e não vai ganhar

doces.

—Não estou a fim, mesmo. —Ele deitou na cama, pegou

o controle remoto. —Vai passar um filme que eu não

quero perder.

Dei de ombros e saí. Me irritava essa sua

mania de se trancar em casa, enquanto todas as crianças

estavam lá fora. Até mesmo Heitor nos acompanhava.

Eu adorava Heitor. Minha mãe pedia para que tomasse

conta de mim, mas ele me dizia que eu era livre para

fazer o que bem me aprouvesse.

Ele tinha o cabelo preto enroladinho, e

olhos verdes que estavam sempre sorrindo. Era um

viciado em figurinhas, e usava um óculos grosso que eu

achava ridículo. Morava na mesma rua que eu, e tinha

se tornado o primeiro e único amigo de Jon.

88

Nós perseguíamos os doces, alucinados,

junto com uma turma enorme. A cada ano aparecia

duas ou três crianças novas, e alguém sempre acabava

caindo e se machucando em nossas corridas perigosas,

depois de praticar alguma travessura. Nunca foram

acidentes sérios, e a alegria do Haloween era muito

viva, ainda que nem soubéssemos seus verdadeiros

significados.

Naquele ano, eu trouxe balas e pirulitos

para ele, porque fiquei com pena por causa do seu braço

quebrado.

Ele contou á mamãe e ás crianças da

escola que tinha caído da escada, com o peso sobre o

braço direito. Acho que as pessoas acreditaram, mas eu

sabia o que tinha acontecido de verdade.

Já devia passar das três da madrugada.

Ouvi papai sussurrar para Jon, depois de uma enorme

89

pancada que derrubou o criado mudo que suportava o

abajur.

Começou com o grito abafado de Jon, e ele

começou a chorar antes mesmo que papai deixasse o

quarto.

Papai disse: “Droga! Tente mexer isso aí”.

Um segundo de silêncio. “Tente de novo”. “Droga!” Um

longo suspiro. Jon conteve o choro. “Aguente, garoto.

Pela manhã eu te levo no hospital. Vamos dizer que

você caiu da escada. Entendeu?”. Silêncio. “Entendeu?”.

“Ótimo. Tente dormir um pouco. Isso deve passar logo,

está bem? Pense em outras coisas, coisas boas, certo? E

vai parar de doer. Lembre-se: Você caiu da escada.”.

Afundei o rosto no travesseiro, na tentativa

de não ouvir mais nada. Papai sempre me dizia isso,

para pensar em coisas boas quando eu sentia alguma

dor e não conseguia dormir. Respirei fundo, e engoli

90

algumas lágrimas. Esperei um tempo depois que papai

saiu do quarto, para perguntar.

—Vocês está bem, Jon?

Ele reproduziu um som que significava

sim, mas sua voz estava cheia de dor.

Eu senti pena dele, e pela primeira vez,

ódio do papai. A única coisa que eu encontrei para

deixá-lo mais contente, foi dividir meus doces com ele

naquele final de Outubro.

Jake se trancou na cozinha com Jon. Eu sabia que eles

conversavam sobre o que tinha acontecido, e colei o

ouvido na porta para escutar melhor. Jake era esperto o

suficiente para entender que Jon tinha mentido sobre a

história da escada. De alguma forma, isso me fazia

sentir melhor porque eu não era a única a saber, e não

fazer nada.

91

—Por que acha que ele faz isso?

Era a voz de Jake. Escutei um líquido

derramar-se em um copo de vidro.

—Não sei. —Jon respondeu, em voz baixa.

—Nenhuma idéia?

—Acho que ele fica deprimido. —Foi a resposta de Jon.

Sem afetação. —Precisa descontar em alguém.

Jake ensaiou uma risada

—Entendo. Como uma terapia? —Ou o barulho de seu

punho cerrado contra a mesa. —Nunca gostei desse

imbecil. É ótimo não ter que morar aqui.

—Sim, é ótimo.

Eu esperaria ouvir alguma acusação na

voz de Jon, mas não houve nenhuma. Jake tentou:

—Já pensou em contar á mamãe?

—Ela sabe.

—Tem certeza?

—Sim.

92

—Você já falou com ela?

—Acha mesmo que ela seria tão cega assim?

Jake o considerou por um instante.

—Ela viu. —Jon completou. Novamente, o som do

líquido derramando no copo. —Um dia desses, estava

parada na porta. Viu que ele me batia. Eu ia chamá-la,

pedir que me ajudasse, mas... Não sei. Simplesmente

não sei. —Jon esperou que Jake dissesse algo. O irmão

permaneceu calado por vários segundos. —A verdade é

que ela sabia desde o começo.

“Então, por que ela nunca fez nada?”, devem

ter os dois perguntado-se mentalmente.

“Porque ela tinha medo”, foi a resposta que

achei, refletindo nisso, anos depois. “Tanto medo

quanto Jon”.

—E a Polícia? — Jake indagou vagamente.

—Sem chances! —Jon baixou o tom de voz ainda mais.

Eu mal conseguia discernir suas palavras. —Ele disse

93

que me mataria se eu dissesse alguma coisa. Nem

deveríamos estar tendo essa conversa. Prometa que não

vai dizer nada, por favor. Prometa!

Jake não respondeu imediatamente.

—Está bem, eu prometo.

Ouvi o barulho de cadeiras arrastadas.

Corri até o sofá, e apanhei o controle remoto, fingindo-

me interessada num programa de televisão qualquer.

Os dois passaram por mim, sem desconfiar de nada.

E se Jon tivesse reagido? Permitido que

Jake comunicasse as agressões á Polícia? Se tivesse

fugido de casa, saído mais cedo do seu inferno

particular? Até que ponto sua vida teria sido diferente?

Quando papai não estava, eu achava a casa muito

entediante. Ás vezes brincava com Jon no quintal, ou

nos sentávamos á mesa da cozinha para estudar.

94

Eu tentava aprender, Jon tentava me ensinar.

Batia o caderno fechado na minha cabeça, ou me

espetava com a ponta do lápis.

—Droga, Sarah! Será que eu vou ter que repetir vinte

vezes até você entender?

—Certo, Jon, desculpa. Eu estava prestando atenção. Só

me fale mais uma vez.

Ele fazia questão que eu notasse sua

impaciência, mas repetia todas as vezes que eu

precisava. Não que eu gostasse de estudar com ele, mas

foi graças á essas sessões de tortura que eu passei nos

exames de Matemática.

Se ele resolvia passar a tarde sozinho no

quarto, me expulsava de lá. Eu ficava na sala de estar,

brincando de boneca ou ajudando mamãe com o serviço

de costura.

Eu não sabia costurar, mas ela pedia que

eu contasse os enfeites de cortina ou as roupinhas de

95

bebê já produzidas, para depois colocá-las numa caixa

de papelão. No fim da tarde, antes do papai voltar da

oficina em nossa garagem, a dona da loja vinha pegar as

encomendas. “Conte de novo, Sarah”, mamãe insistia.

“Eu preciso entregar exatamente setecentos desses aí”.

Jon ficava assistindo televisão. Eu ainda

batia á porta do quarto, e implorava para ficar com ele,

pelo menos um pouquinho.

—Não. Quero ter a liberdade de assistir o programa que

eu quiser, e você vai ficar me importunando com seus

desenhinhos de bebê. —Ele gritava lá de dentro.

Como se houvessem muitas opções. Ele

assistia aos programas da tarde, esses projetados quase

que exclusivamente para donas de casa. Não prestava

realmente atenção ás receitas caseiras e dicas de

limpeza, e, ás vezes, acabava pegando no sono.

Tudo mudava quando papai voltava pra

casa. Eu ficava contente com sua presença, e corria pro

96

seu colo assim que ele cruzava a porta. Para Jon, o medo

substituía o ar dentro de casa, e era o sinal de que outra

noite iria começar.

Foi numa dessas tardes que ele descobriu

sua vocação, por acaso. Era uma quarta feira, e mamãe

saiu para fazer a manicure de uma vizinha. Pediu a Jon

para tomar conta de mim.

—Se precisar de alguma coisa, vai me chamar na casa

da Mary, ou ligue pro seu irmão. Deve estar em casa, é

um vagabundo e não faz nada o dia inteiro.

Jon comentou que achava a casa bem

mais sossegada sem os gritos histéricos da mamãe. Faça

isso, faça aquilo. Venha até aqui, saiam já daí. Eu concordei,

e nós dois rimos.

Ficamos na sala de estar, e ele até brincou

um pouquinho com minha nova casa de bonecas.

97

Uma barata saiu de dentro da caixa de

papelão onde eu guardava os brinquedos. Pulei em

cima do sofá, e comecei a gritar, histérica.

—Mata, Jon! Mata logo esse bicho, ou eu vou me mudar

daqui.

Ele reclamou. Não tinha simpatia

alguma por insetos, e sei que sua vontade era subir no

sofá junto comigo. Mas a sociedade exige que sejam os

homens a matar as baratas para as mulheres, então ele

obedeceu. Lançou-se á caçada.

Foi parar no quarto da mamãe, com meu

chinelo na mão. Eu o segui, com os pés no chão gelado.

—Você é tão devagar! —Parei á porta do quarto, ainda

histérica. Não sossegaria enquanto ele não encontrasse o

animal. —A barata até etrou dentro do armário! Meu

deus, ela está dentro do armário.

98

—Não está. —Ele disse, dando a volta no enorme

guarda roupas de madeira escura. —Veio parar aqui

atrás.

Ele verificava o espaço entre o armário e a

parede. Ali encontrou o violão, todo empoeirado. Ele

tirou o instrumento com reverência.

—Olha só isso!

Passou os dedos pelas cordas, fazendo um

barulho que estava muito longe de ser música. Espirrou

com o pó.

—Como pode ficar assim, esquecido?

Revirei os olhos.

—Vai matar a barata!

Foi para o banheiro com o violão, e

começou a limpá-lo com um paninho molhado. Ainda

insisti para que ele matasse a barata, mas ele me

ignorou deliberadamente.

99

Sentou-se na tampa fechada no vaso, e

começou a tocar. Até tinha pose de violonista, mas não

acho que tenha saído alguma nota certa. Dei risada.

—Você é péssimo.

—Espera só até eu pegar o jeito, sua magricela.

Duas vezes por semana, mamãe ia fazer a manicure da

tal vizinha. Jon aproveitava esses dias para praticar com

o violão roubado. Começou a usar também as manhãs

de domingo, quando todos estavam dormindo. De vez

em quando, permitia que eu escutasse. Achei que ele

realmente estava pegando o jeito, e sabia cantar. Até

que foi descoberto pela mamãe.

Ele dedilhava “Get a Grip”. Fico

orgulhosa de pensar que fui sua primeira grande fã, na

longa jornada que ele teria pela frente, fazendo o que

mais amava. Papai estava na oficina, mamãe deveria

100

estar dormindo. Era uma manhãe de sábado, estava

fugindo um pouco de sua rotina. Ela foi atraída pelo

som. Abriu a porta da frente, e nos pegou sentados no

quintal.

A música parou imediatamente. Mamãe

voltou-se diretamente para Jon.

—O que está fazendo?

Ele engoliu em seco, e apertou o braço do

violão com mais força.

—Eu... Eu não... Desculpe.

Ficamos observando enquanto ela

pensava por um instante. Ainda usava o roupão, e

protegia os olhos da luz do sol.

—Onde aprendeu a tocar?

—Eu... Não sei.

—Não sabe?

—Sozinho.

—Mentira.

101

—Eu ouço... Acho que... Rádio.

—O quê?

—Ouvindo música. No rádio. Eu acho.

—Esse violão era do meu pai.

Ele se levantou e estendeu o instrumento

para ela.

—Des... Desculpa.

—Ele tentou me ensinar uma vez, mas... —Sorriu. Não

pegou o violão da mão dele. —Não consegui aprender.

Ele ficaria feliz se te visse tocar.

Jon mordia o lábio inferior, e ainda

mantinha o braço estendido para ela.

—Se prometer tomar conta dele —Ela empurrou de

volta. —Pode ficar com você.

Ele hesitou.

—Eu prometo.

102

—Certo, mas vê se consegue encontrar uma musiquinha

melhor, da próxima vez. E tente ser mais afinado com a

voz.

Só depois que ela já tinha se retirado ele

respondeu.

—Tudo bem, mãe. Obrigado.

Eu sorri para ele, entendendo sua sorte.

—Agora você pode tocar a qualquer hora!

—Vai brincar, Sarah. Eu tenho muito o que fazer.

Antes que eu pudesse retrucar, ele virou

as costas. Fechou-se no quarto. Ficou tocando sozinho

durante horas a fio.

Tive medo do papai, quando retornou

para casa, á noite. Mas ele pareceu nem ouvir a música.

Apenas quando o relógio mostrou onze horas da noite,

ele interrompeu.

—Pára com essa droga, eu quero dormir.

103

Claro que Jon parou no mesmo instante. E

dali para frente, só tocaria quando papai não estivesse

em casa.

Ele me contou que estava montando uma banda. Ele e

Heitor. “Uma dupla”, eu pensei. Perguntei qual nome

teriam, e ele respondeu que não haviam escolhido

ainda. Penso que foi graças á essa banda inexistente que

Jon perdeu seu medo de sair na rua, pois passou a

frequentar a casa de Heitor.

Quando ele completou catorze anos, a banda

finalmente tornou-se uma banda, e a fobia social de Jon

melhorou consideravelmente. O grupo foi batizado com

o nome de Loveartist.

Nunca vi a banda completa, tocando na

garagem que os pais de Heitor permitiram que

transformassem em estúdio. Os outros integrantes

104

ficavam por conta da minha imaginação. De vez em

quando ouvia Heitor e Jon tocar em nosso quarto, e

achava o nome da banda um pouco romântico demais

para o som que eles tocavam. Para mim, na verdade, era

só barulho. Mas quando mencionei minha opinião, ele

mandou que eu me calasse, pois nada entendia a

respeito de música, muito menos de arte.

Mamãe não gostava dos pôsteres e revistas

que Jon guardava na gaveta, nem dos discos que passou

a comprar com sua mesada. Ela dizia que aqueles

músicos tinham pacto com o demônio. As músicas que

cantavam era pura invocação e culto ao demo.

Ele nada respondia á ela, mas continuava

a ouvir as músicas escondido. Eu perguntei se mamãe

tinha razão.

—É apenas uma forma direta de se expressar. —Ele

respondeu, com surpreendente paciência. —Um jeito

105

direto, sem eufemismos. É a maneira de ser você

mesmo, sem se preocupar com a sociedade.

Jon dizia que a música libertava sua

alma. Eu acho que o deixava ainda mais deprimido.

Não demorou muito até que Heitor e ele

passassem a se vestir igualzinho o cara do pôster.

Compraram até um estojo de maquiagem. Mamãe

gritava quando via ele sair de casa daquele jeito, para ir

á escola. Ele se afastava o mais depressa possível, e

íamos encontrar Heitor na esquina.

Eu percebia os olhares quando

passávamos pelo corredor, antes de entrar na sala de

aula. Alguns riam deliberadamente, outros mais

disfarçados. Eu tinha vergonha de estar com eles,

gostaria que mamãe deixasse eu ir á escola sozinha.

—Veja só. —Gritava alguém. —Já chegaram as

bichinhas de maquiagem!

106

Jon não os encarava, como fazia Heitor, em

sua expressão de desafio.

—Não se pode ser diferente. —Jon reclamava, fazendo o

possível para ignorar os outros. —As pessoas têm que

ser todas iguais, umas ás outras, para que sejam aceitas.

—Respira fundo, Jon. Que se danem os olhares. —

Heitor dizia. —Pense no Pistols. O que você acha que

esse pessoal diria se Sid Vicious estudasse aqui?

—Eles ririam. —Jon considerou. —Eu tenho vontade de

gritar e se eu fosse um anarquista? O que pensariam essas

pessoas normais e mecânicas?

Heitor deu uma risadinha. Paramos em

frente aos armários.

—Não seja tão pretensioso, Jon. Nós somos apenas uma

banda de garagem. Isso não que dizer que vamos

mudar o mundo.

—Se eu fosse Sid Vicious ou Steven Tyler? Eu seria mais rico

do que todos vocês juntos. Não seríamos?

107

—Acha mesmo que continuariam nos enchendo o saco?

Ele riu.

—Não mesmo! Bando de superficiais...

Eu olhei ao redor, ansiosa para pegar

minhas coisas e seguir para minha sala. Não conseguia

encontrar meu livro de Inglês. Então por que você não diz

isso ás pessoas que vêm zombar de você? Optei por ficar

calada.

Sam estava acenou para nós. Estava vindo

em nossa direção, quando grupo de garotas a fez parar

para conversar. Eram as famosas e medíocres líderes de

torcida do colégio.

—Faz um tempinho que não vejo a pequena Sammy. —

Heitor comentou, observando a menina conversar

animadamente.

—Está trabalhando muito ultimamente.

108

—Oh céus. —Ele zombou, enquanto Sam lançava um

sorriso na direção de Jon. —Está se sentindo

abandonado?

—Imbecil.

Sam nunca tinha entrado em casa. Jon e ela ficavam no

portão, conversando, ou saíam para tomar sorvete.

Toda vez que ela via o papai, lhe lançava um olhar

mortífero.

Sempre foi muito legal comigo, e de vez

em quando me ajudava a convencer Jon a me levar pra

passear com eles. Ela era a completa antítese de suas

amigas. Fazia parte do clube de dança e das animadoras

de torcida da escola, mas não por status, simplesmente

porque gostava. Ela nunca teve esse negócio de fazer as

coisas pelos outros, pensando no que iriam achar. Isso

109

era o que mais me fascinava nela. E também o seu

cabelo. Decidi que seria igual á ela quando crescesse.

Jake dizia que ela estava apaixonada por

Jon. Eu achava que não, não seria possível. Sam era

linda demais. Tinha olhos verdes, e usava as melhores

roupas da escola. Havia vários dos jogadores de futebol

que queriam namorar com ela.

Que Jon estava apaixonado por ela, eu não

tinha dúvidas.

Quando Jon me contou que estavam

namorando, eu fui obrigada a acreditar em Jake.

Sam salvou a vida de Jon.

Sam e a música.

110

Samantha Paige

Não nos demos conta de quando nossa amizade de

criança passou a ser amor de adolescente. O fato era que

tanto eu quanto ele estávamos perdidos, e nos

encontrávamos um no outro.

Conheci Jon na quinta série. Ele sempre foi

tímido, mas eu consegui fazer com que ele falasse

comigo. Eu era a única pessoa com quem ele conversava

em nossa classe.

Eu não acho que ele era tão diferente e

estranho, apesar do visual que adquiriu mais tarde. A

verdade é que se tratava de um egocêntrico. Sempre

preocupado com que os outros iam pensar, sempre se

sentindo perseguido pelas outras crianças. Sim, eles

111

zombavam de Jon. Mas só o faziam porque ele deixava-

se ofender.

—Ignore esses otários. Simplesmente ignore. —Eu tentei

dizer várias vezes.

—E você acha que eu me importo? —Ele tentava

parecer displicente.

Sei que chorava quando chegava em casa.

Era aula de História. Eu estava compenetrada na lição

atrasada, quando aconteceu. Jennifer lançou uma

bolinha molhada de saliva em Jon, através da carcaça do

que um dia tinha sido uma caneta.

Ela fazia parte da “turma do fundo”, e eu

sempre a odiei particularmente. Usava roupas e atitude

de meninos, e cuspia chiclete mascado no chão. Os

outros meninos riram.

112

Eu tentei me controlar, respirei fundo

três vezes. Mas aí ela gritou, motivada pela risada dos

outros garotos.

—Sua bichinha!

Jon viu quando eu cerrei os punhos e

levantei.

—Não, Sammy. Por favor, você disse para eu ignorá-los.

Não ouvi o que ele dizia, enquanto

avançava para o fundo da sala.

—Espero que não esteja falando de Jon.

Não esperei resposta. Acertei ela na

orelha, enquanto ele tentava puxar meu cabelo. O

professor correu para acionar a diretoria, e todos os

alunos já tinham formado uma roda em volta de nós.

Dei meu último soco, fazendo o seu nariz sangrar, antes

que os inspetores nos afastasse, e arrastasse as duas

para a diretoria.

113

Jon estava assustado em um canto da

sala, e eu acenei para ele, vitoriosa, enquanto me

afastava.

Esperei quase uma hora no banco da

Diretoria. Não faço idéia de onde Jennifer esperou. Foi

bom que estivesse bem longe de mim, pois minha

vontade de arrebentar-lhe os dentes ainda não tinha

passado. Meu pai finalmente apareceu, com aquela

expressão carrancuda de sempre. Um pouco mais

acentuada dessa vez. Não tinha sido boa a conversa

com a diretora.

—Vai me pagar por isso. —Ele disse, enquanto me

puxava de volta para o carro.

—O que foi que ela disse? —Perguntei, como se fosse

necessário. Acomodei-me no banco do carro.

—Está suspensa por três dias. Isso porque queria te

expulsar, Sam.

Suspirei, aliviada.

114

—E quanto ao grupo de dança?

—Ainda está nele, Sam.

Eu sabia que minha mãe ficaria louca se

soubesse que eu tinha sido expulsa do grupo, porque

bati numa garota no meio da sala de aula.

“Quando eu era jovem”, ela diria, como

sempre. “Fazia parte das líderes de torcida da minha

escola. Eu era a mais bonita de todas. Você é igualzinha

a mim, Sam. Não sabe o quanto me orgulho”.

—Não quero mais você metida em confusões. —Meu

pai continuou. Eu começava a ficar levemente

entediada. E imaginava o que faria com meus dias livres

da escola. —Da próxima vez, não vou perdoar. Está

entendido?

Eu assenti antes de saltar do carro. Minha

mãe perguntou o que tinha acontecido, meu pai

explicou tudo com riqueza de detalhes. Eu revirei os

olhos e tentei sair da conversa.

115

—Ela merece um castigo, Morty! —Minha mãe pediu.

—Dessa vez, vou perdoar. —Ele respondeu, dando uma

olhadinha para mim. —Mas da próxima... Bom, já

estamos conversados.

Esperei a permissão para ir para o meu

quarto. Entendi que tinha escapado por pouco dessa.

Mas não pude deixar de rir, lembrando de como deve

ter parecido a cena aos olhos dos outros.

No dia seguinte, encontrei com Jon em nosso

esconderijo. Costumávamos ficar em um beco em nosso

bairro, conversando sobre tudo e sobre nada. Ríamos á

toa, e mesmo que fizesse frio, ficávamos lá, muitas

vezes encolhidos sob um toldo velho para não

tomarmos chuva.

Naquela tarde fazia sol.

116

—Onde foi que você aprendeu a lutar assim? —Jon riu,

quando nos encontramos na mesma tarde.

Tirei uma lata de refrigerante vazia do

caminho, e encostei na parede. Dei um sorriso,

orgulhosa.

—Essas coisas não se aprendem. Nem se ensinam.

—Foi incrível!

—Acha mesmo, Jonny? Pois bem. É que não vai ser

você a perder o exame de Geografia amanhã, não é?

—Vamos, assuma. Está adorando a idéia de uns

feriados, não é?

Dei risada.

—E aquela vadia teve o que mereceu. Você viu a cara

dela quando eu parti pra cima?

—Você deveria ter visto a sua cara! Achei que fosse

matá-la.

—Não tanto. Só queria lhe quebrar alguns dentes.

117

Ficamos rindo por alguns instantes. É

incrível como uma risada pode durar entre dois velhos

amigos, que se entendem tão bem. Muitas vezes,

começávamos a rir de qualquer coisa boba, e no final, já

nem sabíamos do que estávamos rindo. O que,

obviamente, era motivo para mais uma risada. Ele

levantou-se.

—Que tal um refrigerante? —Ele perguntou,

começando a contar as moedas que tinha tirado do

bolso.

Eu levantei atrás dele, e arranquei as

moedas de sua mão. Dei risada.

—São minhas!

Comecei a correr, ele me perseguiu. Quase

fomos atropelados no caminho. Ele parou de correr em

algum ponto, e eu já tinha perdido ele de vista. Esperei

na porta da mercearia até que ele finalmente surgisse,

caminhando arfante. Eu também estava cansada.

118

—Isso aqui não vai dar pra nada. —Eu dei risada,

devolvendo as moedas para ele.

—Quanto é que tem aí?

—Oitenta centavos.

—E quanto custa o refrigerante?

Eu dei de ombros. O dono da mercearia

já começava a olhar torto. Resolvemos entrar e

perguntar.

—Um dólar. —Ele respondeu, mal humorado.

—Acho que nós vamos levar balas de caramelo. —Jon

pediu, sem deixar de dar uma risadinha pra mim.

É certo que eu já havia visto os machucados, mas ele

nunca queria falar a respeito. Da primeira vez, ele disse

que se tratava de um acidente qualquer. Mas eu sabia

que acidentes não aconteciam com tanta frequência.

119

—Ou você é muito azarado. —Eu sugeri, enquanto

andávamos pelas ruas conhecidas do nosso bairro. —

Ou está mentindo para mim.

—Você sabe que eu não mentiria para você.

Eu fiz ele parar.

—Jura?

—Juro.

Olhei para ele por um longo momento. Ele

não desviou os olhos dos meus. Por um momento,

quase acreditei. Não fosse pelo olhar cheio de medo

quando Javier estava perto, e a forma que gaguejava

quando ele se dirigia a Jon.

—Chega de perguntas. —Ele abriu um sorriso, que não

deixariam dúvidas quanto á legitimidade de suas

afirmações, se eu não o conhecesse tão bem. Pegou

minha mão, e lá estávamos de novo, caminhando sem

rumo, conversando bobeiras.

120

Eu sabia que era Javier. Não importava o

quanto seu rosto demonstrasse inocência, e aqueles seus

cumprimentos polidos estavam longe de ser sinceros.

Parecia tão mentiroso quanto Jon. Estive planejando

secretamente uma forma de puni-lo, de fazê-lo ver que

estava pecando. E eu ainda não imaginava a que

consequências estava levando a saúde de Jon. Eu

mesma só fui saber muito mais tarde, pela Internet.

Passei a ignorar os acenos simpáticos de

Javier, quando ele passava por mim acidentalmente.

Julguei que já tinha esgotado minha cota de falsa

simpatia para aquele velho bêbado.

Várias vezes me peguei chorando

pensando nisso. A pior sensação do mundo é a

impotência.

121

Devo admitir que quase me apaixonei por Nathan. Em

alguma época da minha vida, eu estive próxima de fazê-

lo.

Ele era um dos jogadores de futebol do time

da escola. O melhor dos goleiros que a Ethan Martin já

tinha visto. E era louco por mim. Teríamos tornado real

mais um clichê adolescente perfeito, o jogador de elite e

a animadora de torcida loira.

Ao contrário da maioria dos meninos que eu

conhecia, ele era doce e sensível. Sempre me trazia

presentes e elogios. Certa vez, me pediu em namoro.

Passei a noite em claro remoendo o assunto. Quase me

decidi a aceitar, mas embora eu ainda não soubesse,

estava apaixonada por outra pessoa.

Minhas colegas de dança, obviamente,

achavam que Nathan era o cara ideal para mim. Tive

minha primeira discussão séria com minhas melhores

amigas por causa disso, naquela tarde de sábado.

122

A noite do baile de formatura da oitava

série aconteceria em algumas horas. Como qualquer

adolescente, queríamos estar lindas e perfeitas.

Alice enrolava meu cabelo com bobies. Kate

pintava as unhas dos pés, sentada na cama de Alice. Ela

usava um dos esmaltes cor lilás da amiga, que deveria

combinar com o vestido e as sandálias que tinha

comprado no dia anterior.

—Nathan ia te convidar para o baile. —Alice comentou.

—Mas ficou sabendo que você já tinha acompanhante.

Coitado, deve ter ficado desapontado.

—Que pena. —Murmurei, tentando não entrar em

detalhes. Observava meu reflexo no espelho da

penteadeira marfim, imaginando em que tipo de

maquiagem eu deveria apostar naquela noite. Mais

escura, mais discreta? Eu escolheria um vestido branco

e a maquiagem leve. Não queria chamar a atenção

naquele dia.

123

—Por que não aceita o convite de Nathan?

—Porque ele não me convidou.

Senti a voz de Alice se alterar.

—Se você não tivesse espalhado pra escola inteira que

iria ao baile com aquele nerd maluco, ele teria ido falar

com você.

Levantei da cadeira em um pulo,

derrubando o estojo de bijuterias que estava no meu

colo. As jóias falsas se espalharam pelo chão, diante do

olhar perplexo de Alice.

—Se quer ser minha amiga, vai ter que me respeitar. —

Eu não me importava que a mãe de Alice estava no

andar de baixo da casa, e poderia me escutar.—E nunca

mais quero ouvir você mencionar meu melhor amigo,

nem fazer cara de nojo quando me vê com ele. Ou vou

ter que te dar uma surra, exatamente como fiz com

Jennifer.

124

Kate, sentada na cama, interrompeu o ato de

pintar as unhas, e tinha a expressão perplexa. Acho que

mais por eu ter enfatizado as palavras melhor amigo do

que pelo fato de estar gritando.

—Sam... —Alice disse, em voz baixa, como que

tentando me apaziguar. —Sinto muito se te ofendi, mas

é que Nathan está realmente apaixonado por você. E ele

é tão bonito e inteligente! Como sua amiga, não gostaria

que desperdiçasse sua vida dessa maneira. Não é

verdade, Kate?

Kate baixou a cabeça e voltou sua atenção ás

unhas coloridas, murmurando qualquer coisa

ininteligível. Eu suspirei, um pouco mais sob controle, e

me sentei de novo. Alice retomou o seu trabalho.

—Eu gosto dele, e vocês não podem mudar isso. —Fiz.

— Nunca.

Alice hesitou.

—Está apaixonada por ele?

125

—Não. —Eu disse sem pensar. —Mas se estivesse, isso

não seria da conta de vocês.

Ela assentiu longamente, enquanto eu a

observava pelo espelho. Demorou um minuto inteiro

até que voltasse a falar.

—Só espero que um dia você perceba o que está

fazendo consigo mesma.

O assunto nunca mais foi mencionado.

Jon me esperava na esquina de casa. Estava distraído

com o nó da gravata. Nunca tinha usado uma antes, e

sua mãe tinha comprado essa especialmente para o

baile. Ele achava complicado demais, e antes mesmo

que eu me aproximasse, percebi que começava a se

enfezar.

Tampei os olhos dele, de forma que ele não

podia saber quem o segurava por trás.

126

—Minha princesa Sammy. —Ele adivinhou, afastando

minhas mãos e voltando-se para mim com um sorriso.

—Você está lindo. —Eu disse, tomando espaço para

ajeitar sua gravata.

—Esses sapatos estão me matando.

—Não seja manhoso.

—Olha só para você. —Ele brincou, pegando minha

mão quando começamos a andar. —Linda e confortável,

ainda que esteja com esses saltos enormes.

—Percebeu que estou quase do seu tamanho?

—Não seja boba. Você ainda tem que crescer muito.

O clima passou de descontraído para

pesado quando nos aproximamos do salão. A música

estava alta, a conversa animada e a risada jovem

inundavam o lugar. Eu sabia que ele estava com medo,

e só tinha vindo por minha causa.

—Droga de sapato. —Ele tentou, ciente de que eu sabia

que não era esse o motivo de seu descontentamento.

127

Abrimos caminho entre a multidão. Fui

obrigada a parar diversas vezes para conversar com

conhecidos. Eu sentia a impaciência de Jon ao meu lado.

Procuramos um lugar afastado, e encontramos algumas

cadeiras encostadas na parede. Estávamos longe das

caixas de som, portanto a música chegava baixinha aos

nossos ouvidos.

—Seus amigos agem como se eu não existisse.

—Sinto muito. —Eu disse, na falta de palavras. Ele

estava certo, e eu não tinha como retrucar.

—Deixa pra lá. A noite é sua.

—Nossa. —Ele sorriu, com condescêcia.

—O que quer fazer?

—Vai dançar comigo? —Perguntei, de brincadeira. Nem

sei se ele sabia dançar, mas obviamente nunca aceitaria

fazê-lo na frente de tanta gente.

Ele riu, em vez de responder.

—Eu também só quero ficar aqui. —Eu declarei.

128

Porque estar com ele era tudo o que eu

precisava.

Alice olhou em nossa direção algumas

vezes, e quando nossos olhos se encontraram, ela sorriu

e acenou. Estava linda naquele vestido, acompanhada

de Billy, um garoto baixinho com cara de enfezado.

Alice podia ter muitas qualidades, mas a escolha de

parceiros para o baile não era o seu forte. Ainda que,

apesar de feio, e sabe-se lá por qual motivo, Billy fazia

parte da turma dos garotos mais populares da escola.

—Heitor vai vir? —Perguntei.

—Não. —Ele riu. —Não encontrou alguém que quisesse

acompanhá-lo.

—Coitado.

Eu percebia, e sei que ele também, que

algumas pessoas olhavam para nós, com curiosidade,

com empatia. Sei que não conseguiam enxergar o que

eu via nele, mas isso porque eram criaturas superficiais,

129

cegas de espírito. Jon notou que eu encarava com ódio

um dos transeuntes que tinha passado por nós, um

garoto bem mais velho, com cabelo comprido e

calçando um sapato barulhento.

—Isso é ridículo. —Esbravejei. —Eles estão sempre

apoiados em estereótipos. Não sou como essas meninas.

Nunca vou ser.

Jon sorriu para mim.

—Eu sei que não. Você é a minha Sammy.

Estava certo. Para sempre eu seria sua

Sammy.

Á certa hora, levantei para ir ao banheiro.

Já fora das vistas de Jon, Nathan me alcançou no

caminho. Me pegou de surpresa, puxando meu braço

com delicadeza.

—Boa noite, Sam.

—Olá. —Eu queria dar o fora, odiaria que Jon nos visse

conversando.

130

—Faz tempo que não nos falamos. O que tem feito

ultimamente?

—Nada de interessante. —Me afastei alguns

centímetros, pronta para sair.

—Ainda tirando fotos para as revistas?

—Sim.

—Não vi mais nenhuma.

—Que pena.

Ele arqueou uma sombracelha.

—Algum problema?

—Só estou com um pouco de pressa.

—Ah desculpe. —Exibiu um sorriso amarelo. Senti sua

raiva disfarçada. —Está com seu namorado, não é?

—Sim.

—Bom, foi um prazer revê-la. —Me deu um beijo no

rosto.

Escapei para o banheiro rapidamente, e

procurei por ele quando saí de lá. Não o encontrei. Á

131

essa altura, meu humor para festa já havia terminado, e

eu só desejava dar o fora.

Voltei para nosso lugarzinho. Joguei as

palavras seguintes.

—Vamos lá para fora.

Eu estava com vontade de chorar; Por

que a humanidade tem que ser tão supérflua? E

confesso que fiquei chateada com Jon, mesmo que não

admitisse. Por que ele tinha que ser tão diferente, tão

anti social? Por que tinha que usar maquiagem, e não se

vestia como os meninos de sua idade?

Ele não perguntou o que tinha acontecido.

Ao invés disso, me abraçou, enquanto eu enterrava o

rosto nas mãos e chorava. Encostamos em um carro,

num ponto um pouco distante do baile. Ainda éramos

capazes de ouvir a música do DJ.

Pensei em deixar o grupo de dança da

escola. Pensei até em mudar de escola. Senti vontade de

132

abandonar tudo o que conquistei. Até mesmo minha

pequena carreira de modelo. Tudo que eu tinha, tudo

que eu era, apenas me afastava de Jon.

Ficamos naquela posição por vinte

minutos.

—Quer entrar? —Ele perguntou, quando eu me acalmei

e o silêncio reinou entre nós. —Não está com frio?

Eu assenti e limpei o rosto, sabendo que

os outros perceberiam que eu tinha chorado, e haveria

rumores. Pela primeira vez, não me importei com isso.

Voltamos ao salão.

Não estava mais divertido, e eu nem sentia

vontade de dançar. Perdi a noção de quantas taças de

ponche eu tomei, mesmo sabendo que algum idiota

sempre batizava as bebidas em festas escolares.

Comecei a ficar mais alegre, e de repente não me

importava aquela mágoa da sociedade. Descontraía, eu

testei a paciência de Jon.

133

—Vamos dançar, por favor! —Eu repetia sem parar,

puxando o artigo “o” da palavra por favor com capricho.

Ele fazia que não, e pedia para que eu parasse de fazer

escândalo.

Já não sabia onde tinha parado meus

sapatos quando Jon disse que tínhamos que ir para casa.

—Procure para mim, meu príncipe encantado, sim?

Quando ele finalmente os encontrou, de

baixo de uma mesa, passava da meia noite. Ele

praticamente me carregou até minha casa.

—O que acha que seu pai fazer se vir você desse jeito?

Ele perguntou. Estávamos na frente de

casa, eu apoiei uma mão na grade, e outra em seu

ombro. Um degrau acima dele, eu ficava mais alta. Dei

uma risada extravagante.

—Vai me matar, é claro! Mas não importa, você é muito

cavalheiro. Sabia disso? Muito cavalheiro!

—Ah é?

134

—Sim, sim, sim.

Achei que fosse tropeçar, mas tinha sido

apenas um reflexo falso. Ele me segurou pela cintura, de

impulso, e ficamos cara a cara, muito próximos. Dei um

largo sorriso.

—Você é tão lindo, Jon.

—Você está querendo me agradar.

—Não estou. Você é maravilhoso, em todos os sentidos.

E muito mais.

Eu poderia ter voltado á minha antiga

posição, mas continuamos daquele jeito. Eu literalmente

pendurada nele, meus pés quase pendendo dos

degrauzinhos que levavam á minha varanda.

—E o que mais? —Ele provocou, com um ligeiro sorriso

cheio de malícia.

—Bom... —Achei incrível o sabor das palavras quando

se puxavam as vogais. Dei risada. —Você é inteligente e

legal. E sexy.

135

Ele riu. Soltei outra gargalhada.

—E agora fica todo sorridente!

—Então me diga, Sammy. Já se apaixonou por alguém?

—Hum hum. —Eu fiz, observando-o por um instante.

—Estou apaixonada.

—Será que eu posso saber por quem?

—Não vou contar!

—Só me dá uma pista. —Ele olhou ao redor. Não havia

ninguém na rua. —Eu conheço?

—Sim, muito bem.

Ele fez um ar pensativo. Dei risada.

—Muito bem, mesmo!

—Está na nossa classe?

—Você está chegando perto.

—Com que letra começa o nome dele?

Não resisti e soltei uma gargalhada.

—A maioria das pessoas o conhece como Jon.

136

—Que coincidência! Estou apaixonado por uma garota

que todos conhecem por Sam. —Eu sorri e esperei que

ele continuasse. —Eu conheço ela por Sammy.

Juro que não ia fazer nada, Mas antes que

eu pudesse me controlar, o puxei e beijei. Não sei

quanto tempo durou meu beijo desajeitado de bêbada,

mas meu pai surgiu na porta justamente quando

finalmente o soltei.

—Entre. —Ele disse, obviamente nervoso. —Agora.

Jon tirou a mão de mim, e foi sorte eu estar

dividindo meu peso com a grade da varanda também.

Murmurou um adeus rápido e se afastou

imediatamente.

Meu pai me impeliu até o quarto. Minha

mãe ficou parada ao seu lado, encolhendo-se sob o

roupão. Deitei na cama, imaginando que aquele tinha

sido o primeiro beijo de Jon. Sorri, e eles nem sequer

perguntaram do que eu sorria.

137

—O que aquele garoto estava fazendo com você? —Meu

pai perguntou.

Dei uma longa risada.

—A pergunta é o que eu estava fazendo com ele.

—E qual foi a sua sentença? —Jon perguntou, depois

que eu contei de minha pequena discussão com meu pai

na noite anterior.

Estávamos sentados em nosso esconderijo,

e dessa vez fazia frio. Muito frio. Era inverno na

Califórnia. Mascávamos chicletes ruidosamente.

—Mesada cortada. —Declarei, dando de ombros. O

cheiro de pão quente que saía da cozinha da padaria

despertava minha fome. A padaria do sr. Georges dava

as costas para o beco. —E estou proibida de sair de casa.

—É impressão minha ou você está aqui?

138

—Estou. —Dei risada. —Meu pai está trabalhando, e

minha mãe nem vai notar minha falta. Eles estão

ocupados demais para me educar.

Ele ficou em silêncio por um instante.

Mesmo os melhores amigos ficam sem palavras de

consolo de vez em quando.

Eu resolvi arriscar as palavras que ensaiei

durante a manhã inteira.

—Posso te fazer uma pergunta?

—Sempre pode dizer o que quiser. —Ele brincou,

mexendo no meu cabelo.

—Já esteve apaixonado?

Ele mudou de posição levemente. Era

exatamente a reação que eu esperava.

—Por que a pergunta? —Deu uma leva estremecida, e

me abraçou. —Nossa, que frio!

—Estou curiosa. —Dei de ombros.

—Acho que já estive, sim.

139

—Ah... —Fiz uma pausa.

Tinha começado a ventar. Fiquei com medo

de que ele pegasse um resfriado. Ele começou a falar,

tão direto que me deixou sem resposta por um segundo.

—Você se lembra do que aconteceu ontem?

—Sim. —Respondi, timidamente.

—Eu sinto muito. —Ele passou a fitar os próprios

sapatos.

—Sente? —Aventurei.

Deu uma risada nervosa.

—Não tanto assim...

—Que bom. Por que eu não sinto muito.

—É... Nem eu.

Tirei uma pedrinha do chão e comecei a

brincar com ela. Eu também não tinha coragem de olhar

para ele.

—Na verdade, eu adorei. —Ele alegou.

Silêncio.

140

—E seu pai?—Ele tentou, retomando o tom

descontraído. —Ficou bravo?

—Já tenho quase dezesseis anos. Não tenho mais idade

para ficar levando bronca de papai.

—Sim, sim. Dezesseis. É praticamente adulta.

—Bobo.

Ele riu.

Como odiei aquele silêncio!

—Era verdade? —Arrisquei.

—O quê?

—Quando disse que gostava de uma menina ...? —Ele

nada disse, tentando parecer confuso.

—Sammy? Sim, eu conheço uma certa Sammy.

—E está apaixonado por ela?

—Não tenho certeza, mas acho que ela me disse que

estava apaixonada por um certo Jonathan.

—Jon. —Eu fui sincera. —Sim, ela está.

141

Rimos simultaneamente, por muito tempo.

Depois o silêncio prevaleceu sobre nós. Não há nada há

dizer quando não sabemos exatamente o que sentimos.

Tudo o que sabíamos era que os dois sentiam o mesmo.

Ele me puxou para mais perto, e dessa vez foi sua a

iniciativa de me beijar. Notei que ele era bem talentoso

para um iniciante.

Por um momento, meu mundo girou duas

vezes mais rápido, e as estrelas brilharam no meu céu

há muito tempo sem vida.

Encontrei Jake na rua por acaso. Ambos estávamos

indo á padaria. Ele estava acompanhado de Sarah.

—Soube que está namorando. —Ele disse, enquanto

ajustávamos nossos passos, e começávamos a caminhar

juntos.

142

—Jon contou?

—Sim. Sortudo ele, não?

Sarah sorriu para mim, com ar de

cumplicidade.

—Eu diria que a sorte é minha.

—Claro que diria. —Ele riu. —E o que acham seus pais?

—Meu pai ficou nervoso, mas eu nem ligo. E minha

mãe se importa menos ainda.

Entramos na padaria. Ele fez seu pedido no

balcão.

—Eu sempre soube. —Ele suspirou, brincalhão.

—Soube, é?

—Sim, que vocês se amavam.

—Como poderia saber? Nem eu mesma sabia!

—Crianças... —Ele pegou os pães da mão da atendente,

agradeceu. —Até mais, cunhada.

Fiquei imaginando até que ponto Jake teria

razão. Caminhei a passos curtos de volta pra casa,

143

balançando o pacote da padaria. Decidi que ele estava

certo. Sempre tinha amado Jon.

Naquele ano, minha carreira deu uma guinada. Pela

primeira vez, acreditei que as chances de realizar meu

sonho eram reais.

Eu tirei minha primeira foto para a

publicidade de uma empresa de brinquedos quando

tinha sete anos, e desde então, entendi que aquele era

meu destino. A imagem da modelo famosa, dando

autógrafos e sendo reconhecida por adultos e crianças

na rua passou a povoar os meus sonhos, e para mim, eu

já era uma modelo.

Meus pais sempre me encorajaram a esse

respeito, embora eu tenha sido apenas a esse respeito em

tudo o que fiz e quis fazer. Até hoje eles são assim.

Mesmo quando tive meu primeiro filho, eles não

144

pareceram se importar. Aliás, só vieram visitá-lo em

Chicago quando ele estava próximo de completar dois

anos de idade.

Apesar disso, sei que não teria sido possível

sem a ajuda e apoio deles. Eu chegava da escola, e ia

direto para uma sessão de fotos, e muitas vezes, nem

tinha tempo para almoçar. O que, diga-se de passagem,

já tinha deixado de significar um problema, eu tentava

comer o menos possível para manter a forma. Era

bobagem, agora reconheço, pois eu não tinha tendências

a engordar, tinha sido magra durante toda minha vida,

e a família de meus pais não possuíam essas tendências

também. Mas tudo estava dando tão certo, que fiquei

com medo de estragar.

Eu chegava tarde, á noite, muitas vezes. De

vez em quando conseguia fazer um trabalho escolar, ou

a lição de casa, mas outras vezes o cansaço era maior, e

145

eu ia direto para a cama. Foi um esforço enorme ser

aprovada naquele ano.

Jon reclamava que eu não tinha tempo para

ele. E não havia justificativa, porque era verdade. Por

mais que eu me esforçasse, era verdade.

Mas ele também andava muito ocupado com

sua banda, que agora estava completa e não mais fazia

covers. O Loveartist tinha agora suas próprias

composições, o que me deixava orgulhosa. De alguma

forma, eu sabia. Tinha certeza de que, como eu, ele

também conseguiria.

Nosso relacionamento ia bem. O mais

engraçado é que quando começamos a namorar, não

mudou muitas coisas entre nós. Aliás, olhando agora,

nada mudou. Continuamos a ser aquelas crianças

apaixonadas, mas agora declarávamos isso a nós

mesmos, e um ao outro. E tínhamos o hábito de nos

beijar.

146

Em 1997, Jon já tinha perdido cinquenta por cento de

sua fobia social, e tinha mais alguns amigos. Seus

parceiros de banda, Max e Gerald, além de Heitor, é

claro. Max era o mais engraçado da banda, estava

sempre de bom humor; Gerald, eu acho, era um cérebro

incrível escondido atrás de óculos de arames grossos. E

estava apaixonado por mim.

Eu sempre soube, pelos seus olhares e pela

forma cheia de timidez que se dirigia a mim. Não sei se

Jon sabia, ou se descobriu mais tarde, mas não me

importava mais. Tudo o que sei é que certo dia, ele não

chegou mais perto de mim. Na minha opinião, ficou

com medo de que Jon descobrisse.

Fui a um show do Loveartist, em um bar em

que a banda tinha sido aceita todas as sextas-feiras. Era

um lugar amplo, cheio de jovens vestidos de preto, e de

atitude displicente e indomável um pouco forçada. Era

uma barulheira, mas o que eu não teria feito por Jon?

147

Eu tinha acabado de voltar de uma pequena

viagem à Nova York, e estava bem cansada da longa

viagem do dia anterior. Minha cabeça doía, mas dei o

meu melhor para ficar ali até de madrugada. Sentei

sozinha em uma mesa perto do palco, e fiquei

observando Jon cantar. Já tinha visto ele nos ensaios,

mas em cima do palco ele se superava.

Jon não tinha pretensão de lugares maiores

ou turnês mundiais. Estar ali era tudo que importava

para ele, o palco e as pessoas eram apenas uma

consequência. Ele cantava para ele mesmo, então não

fazia diferença se as pessoas escutavam ou não.

Ele desceu do palco e sentou-se ao meu

lado. Já passava das duas da madrugada, e outra banda

assumiu o palco. Eu não entendia muito desse tipo de

música, mas sabia que a Loveartist era a melhor.

—Está se divertindo? —Ele perguntou.

—Vocês são muito melhores.

148

—Com certeza. Dez vezes mais.

Gerald sentou-se com a gente. Em nada

parecia com um “astro do Rock”, a não ser que estivesse

em cima de um palco, atrás de uma bateria. Foi meu

primeiro pensamento quando vi ele pela primeira vez, e

depois em um ensaio.

Ele pediu uma quantidade absurda de

cerveja, e ficou me observando sobre a borda do copo.

Fiz o possível para ignorá-lo, rezando para que Jon não

percebesse.

—Preciso te contar uma coisa. —Jon disse, erguendo a

voz para ser ouvido através da música alta. —Aquele

seu amigo, Nathan, veio falar comigo hoje.

—Nathan não é meu amigo. —Achei necessário dizer.

Senti que minhas mãos começavam a ficar suadas.

—Ele disse para eu me afastar de você.

Tomei um gole de cerveja. Ele fez o mesmo.

—Não dê bola para Nathan. É um idiota.

149

—Eu disse pra ele se ligar, ele não tem a menor chance

com você. E se alguém tem o direito de pedir para se

afastar, sou eu. Falei de forma bem clara: Se afaste da

Sam.

—Está brincando. —Custei a acreditar. E até hoje, não

sei se acredito. Era uma situação quase inimaginável.

—Não estou.

—Você não disse isso.

—Disse.

—Meu Deus!

—Eu acho que ele não gostou muito. Mas não disse

nada, não. Só concordou e saiu.

Lembrei que Nathan tinha me cumprimentado

de um jeito estranho na saída da escola essa manhã.

Eu me inclinei sobre a mesa e dei um beijo

nele.

—Você é o meu herói.

Ele deu risada.

150

—Faço o possível.

Gerald observava.

—Sabe, Jon... —Comecei, imensamente desconfortável.

—O que acha de irmos lá para fora um pouco?

—O quê? —Max surgiu, de repente, completamente

embriagado. Não pude deixar de rir de sua repentina e

absurda intromissão. —Vão nos deixar?

—Vamos, bêbados malucos. —Jon riu também, pegando

na minha mão para sair.

—E nem vai tomar cerveja, Jon?

—Já tomei.

—Fracote. Só aguenta uma lata.

—Um copo, imbecil. —Jon brincou, empurrando-o e

abrindo passagem. —Está vendo alguma lata na mesa?

—Está vendo alguma lata na mesa?—Max remedou, com

uma voz engraçada e ridícula, enquanto nos

afastávamos. —“Vamos lá, Jonny.Vamos dar uns beijinhos

lá fora”. “Claro, minha Sammy. Você é tão linda!”

151

Vi Heitor, do outro lado do bar, conversando

com uma menina de cabelo tingido, metade de roxo,

metade verde limão. Ele acenou para nós, e deu uma

piscadela para Jon. Ganhei essa. Era o que ele queria

dizer. Perguntei-me se Jon não queria ser como ele,

solteiro. Poderia ficar com muitas daquelas garotas, e

sei que elas dariam bola para ele. Percebia a forma que

olhavam para ele no palco. Aquele era o seu mundo, o

lugar onde ele era aceito. Ali, ele conseguia ser

simplesmente Jon.Fui invadida por um sentimento de

tristeza repentino. Éramos tão diferentes!

Quando deixamos o salão, eu repensei.

Éramos diferentes em quase tudo, mas nossas

diferenças se encaixavam tão bem que eu sabia que

nosso amor seria para sempre. Pelo menos enquanto

durasse.

Caminhamos de volta para casa, e devo

dizer que era um longo caminho a pé. De qualquer

152

forma, era bem mais seguro do que voltar com Max e o

carro de seu pai, pelo menos naquela noite. Andávamos

a passos curtos, olhando para estrelas. Naquele dia

fizemos promessas. Dissemos um para o outro que

estaríamos ali, juntos, sempre e sempre. Rimos quando

nos imaginamos velhinhos, mas ainda discutindo sobre

quem era o melhor jogador de pôquer dos becos de

Bakersfield.

Tudo terminou no final de maio daquele

ano.

Era tarde de quinta feira quando meu pai me levou á

sala de Mathew, aquele que seria meu novo empresário.

Sentamos em seu escritório grande, e por mais que eu

tentasse, não conseguia prestar atenção ao que ele dizia,

depois de pronunciadas as palavras contrato, Chicago,

153

mês que vem, e o nome de uma empresa de cosméticos

muito famosa na época.

Confesso que não sabia quais eram as minhas

emoções naquela hora. Nunca estive tão confusa. Eu

pensava em Jon, e na distância de Chicago até a

Califórnia.

Um mês.

Talvez tenha sido até bom, mas eu não tive

escolha. Não tive, porque meu pai não me perguntou se

eu queria ir. Fiquei muda durante todo o trajeto até

nossa casa, enquanto ele tagarelava sobre o orgulho que

ele sentia por mim. Depois minha mãe, que me abraçou

e até chorou de emoção.

Fui falar com Jon ainda naquela noite. Foi

ele que atendeu a campainha.

Desabei em seus braços, e comecei a

chorar. Ele me arrastou para a calçada, e sentamos ao

meio fio.

154

—O que aconteceu? —Perguntou.

Respirei fundo várias vezes, antes de me

sentir capaz de responder.

—Estou indo para Chicago o mês que vem.

Ele ficou imóvel por um instante,

absorvendo a notícia, esperou que eu parasse de chorar.

—Não tem outro jeito? —Ele indagou.

—Não.

Passou-me pela cabeça pedir-lhe em

casamento naquele momento. Abracei ele, e chorei mais

um pouco.

—Eu já devia estar preparada. Eu sabia que isso poderia

acontecer. —Apertei ele com mais força. —Sinto muito,

Jon.

Ele assentiu.

—É que a gente nunca espera por essas coisas. —

Tentou, com ar de quem sabe das coisas.

—Não sei se vou suportar!

155

Ele esperou mais um pouco antes de fazer a

pergunta a seguir.

—E o que vai acontecer?

“Com nós dois?”. Tinha sido isso que ele

quis dizer?

Eu não sabia.

Ele me abraçou com tanta força que quase

machucou.

—Por que você tem que ir? —Senti que ele ia começar a

chorar.

Tentei explicar da melhor forma

possível, e não deixei de enfatizar que meu pai tinha

tomado a decisão por mim, embora eu não tenha tanta

certeza do que teria escolhido se tivesse a chance. Mas

tudo o que eu sabia era que nunca mais queria que ele

me soltasse do abraço.

156

—Vamos aproveitar nossos últimos dias. —Ele se

restabeleceu, mais rápido do que eu. — E rezar para que

você volte logo.

Tentamos fingir que não era o final.

Passamos as férias sentados em nosso esconderijo,

relembrando fatos antigos com nostalgia, e nos

lamentando de que estivesse terminando, embora não

verbalizássemos tudo o que pensávamos. Não tinha

importância se eu voltaria a Bakersfield ou não. Tudo o

que víamos á nossa frente era a partida.

Não houve muitas palavras em nossa despedida. Era

manhã de domingo, ele ainda vestia o pijama e estava

descabelado quando me atendeu á porta. Eu sabia que

ele tinha chorado e não dormido, porque seus olhos

estavam tão inchados quantos os meus. Ele me abraçou,

e sussurrou no meu ouvido que não me deixaria partir.

157

Não nos importava mais que meus pais esperavam no

carro para me levar ao aeroporto. E aquele abraço

pareceu durar horas.

—Eu vou voltar. —Eu falei, sabendo que mentia.

—Se não voltar. —Ele tentou. —Vou ter que ir buscá-la.

Eu sorri tristemente, e desejei que o tempo

parasse naquele momento. Ele passava a mão no meu

cabelo, quando eu voltei a abraçá-lo. A buzina do carro

do meu pai nos trouxe de volta ao presente, e só

naquele instante eu entendi que era real. Sim, aquele era

nosso último momento.

Acenei adeus enquanto o carro se afastava,

deixando para trás um garoto parado á porta, que

chorava, longe da minha presença.

Eu vou voltar. Prometi a mim mesma. Vou

voltar porque não posso ver minha vida sem Jon.

Não podia, mas foi assim que teve que ser.

158

Heitor Lee

Os problemas de Jon formaram os ingredientes

principais para que o Loveartist conseguisse seu lugar

ao sol. Ele começou a escrever nossas letras assim que

Max entrou na banda. Dizia que não existe artista sem

confusões emocionais, e não existe arte sem dor. Eu

diria que era apenas uma de suas maluquices, mas

quando conseguimos vaga toda sexta feira em uma casa

de shows importante, tive que concordar.

Estudamos juntos na quarta série, eu era quase

seu vizinho. Era a única criança com quem ele

conversava. Acho que deveria ter procurado um bom

médico, a sério, ainda nessa época, mas quem sabe as

coisas não melhorassem? Claro que não comentei a

159

respeito, pois eu nem sabia o que fazia um psiquiatra

até então. O fato é que ele mal saía de casa, e quando o

fazia era só para ir á mercearia. Dizia que as pessoas lá

fora observavam.

Afora isso, acho que Jon era um garoto

bem normal. Mamãe dizia que ele era estranho, e que eu

deveria ter cuidado quando brincava com ele. Retruquei

que Jon nada tinha de diferente. O único problema era

que não gostava de brincar na rua, afinal, não podia

jogar futebol. Hoje, penso que ele usava sua asma como

uma boa desculpa para não sair de casa.

Melhorou bastante quando conheceu

Sam, a loira bonita. Diziam que o pai dela era dono de

uma multinacional, mas desconfio de que ele fosse

apenas o domo da fábrica de látex que ficava perto da

escola. Crianças gostam de inventar boatos. As crianças

de Ethan Martin mais ainda.

160

Sam ia conosco á escola quase todos os

dias, e não se importava de ser vista com os plebeus,

justamente quando tinha tudo o que queria.

Ás vezes penso em Sam, e tento

desvendar o mistério.Talvez estivesse cansada de ter

tudo que a vida e as possibilidades lhe ofereciam. E

precisasse de menos.

As aulas de Educação Física eram

também grande problema para Jon. Os garotos diziam

que ele era magricelo. Ele chorava. Os meninos riam

ainda mais. Eu acho que ele fazia muito caso disso, e ele

nem era tão magro assim. Os mesmos garotos também

caçoavam de mim, me chamavam de gorducho, e olhos

de fundo de garrafa. Eu ria com eles, devolvendo um

comentário maldoso. Jon levava tudo muito a sério. Fico

feliz que tenha mudado nessa parte ao longo do tempo.

Mas reconheço que daquela vez os alunos

pegaram pesado. Viram uma marca roxa no seu braço e

161

começaram a fazer piada. Estávamos no vestiário,

aquele lugar depois da Educação Física, tão temido

pelos pré adolescentes, especialmente os mais tímidos.

—O que é isso, cara? —Um deles perguntou. Tinha uma

toalha enrolada na cintura. —Foi mordido por alguma

espécie de vampiro gay, como voce?

Era a piada mais inteligente que um

garoto de onze anos pode fazer, e a risada foi geral. Jon

correu, e se trancou em um dos banheiros.A algazarra

no vestiário da escola foi tanta, que chegou aos ouvidos

da professora mais distraída que tínhamos.

—Saia já daí. —Ela deu um toque na porta, com

rispidez.

De início, Jon não respondeu. Como ela

insistiu, ele finalmente gritou, com a voz embragada.

—Não quero sair; Nunca mais.

Eu sei que Jon falava sério. Os alunos

esperavam do lado de fora, e alguns se atreviam a

162

observar o que acontecia, com a cabeça inclinada no

batente da porta aberta. Procurei pelo agressor, mas ele

já tinha escapulido. Só quando a diretora apareceu, Jon

foi convencido a sair, e apenas sob a ameaça de

convocação dos pais.

Não sei exatamente o que aconteceu depois

da visita á sala de diretora. Thomas desapareceu por

três dias, e houve rumores de que tinha sido suspenso.

Jon também não deu as caras por duas semanas, e eu

suspeitei que algo grave tivesse acontecido. Tentei

visitá-lo em casa, mas sua mãe dizia que estava doente e

não podia sair para brincar.

Ele reapareceu com um braço quebrado.

Comecei a ouvir falar que Jon se machucava sozinho.

Sinto um ódio corrosivo toda vez que penso nisso.

Poderiam os adultos da época serem tão cegos? Claro, a

viúva Sophia e o mecânico que adotara a família

Jordison não seria capaz de machucar uma criança.

163

Principalmente quando tinha aquela fala mansa, e

comparecia á missa todos os domingos.

Tudo o que eu sabia na época era o que ouvia

falar, e como as crianças inventam muito, não posso

afirmar que era verdade. Mas ouvi dizer que Jon foi

encaminhado a um psicólogo, conveniado da escola. Se

realmente foi, não adiantou absolutamente nada.

Sam não ficava conosco todos os dias. Ás vezes ela

faltava na escola porque tinha uma sessão de fotos ou

qualquer coisa do tipo. Não me admira que ela tenha

conseguido o que conseguiu. Além de linda e talentosa,

ela sempre foi muito esforçada, ficava até de

madrugada colocando as lições atrasadas em dia.

Nós voltávamos sozinhos da escola

naquela tarde. O dia seguinte era exame de História, e

vínhamos discutindo o que teríamos que estudar.

164

—Eu não sei a quem tento enganar. —Jon disse,

diminuindo os passos. —Eu sei que vou acabar não

estudando, e mais uma vez, fazendo a prova na raça. —

Suspirou tristemente, como se não soubesse que ia

passar no teste. Estereótipos geralmente estão certos.

Jon sempre ia bem nas provas. —Não ande tão rápido,

Heitor. Vamos acabar chegando em casa logo.

—Estou com fome. —Justifiquei.

—Você tem a vida inteira para comer.

Passamos por uma igreja. Ele se deteve,

especulando o que havia lá dentro. Fui obrigado a parar

também.

—O que é?

—É tão bonito.

—E daí? É chato, também. Terminei o catecismo ano

passado, e, acredite, não é a coisa mais divertida para se

fazer nas manhãs de sábado.

—Vamos entrar.

165

Ele avançou a passos largos pelos degraus

da pequena igreja, antes que eu pudesse detê-lo. Lá

dentro estava escuro, o cheiro de velas acesas era forte.

Jon estava fascinado, pareceu a mim que nunca tinha

visto uma igreja antes.

—Qual é, Jon? Não tem nada de mais.

Avançamos pela nave vazia. Ele parou em

frente á estátua de Jesus. Era a imagem do Senhor em

tamanho real, deitado em um caixão. Os olhos fechados,

mas não me parecia realmente morto. Dava a impressão

que estava sonhando. Jon passou a mão na imagem. Há

alguns metros, uma senhora estava ajoelhada ante a

imagem de Nossa Senhora, e movia os lábios sem parar.

Jon fechou os olhos. Ficou parado desse jeito por alguns

segundos. Depois, recomeçou a andar.

—Imagina só. —Ele disse, baixinho. —Todas essas

pessoas, mortas.

—O quê?

166

—Essas pessoas. Morreram. Todas elas.

Eu olhei ao redor, tentando ver o que ele

estava enxergando.

—Esses que escutam nossas orações. —Ele explicou,

percebendo minha confusão. —Quase posso sentir o

espírito delas nesse lugar. Dizendo que não, não podem

nos ajudar. Eram mortais, como nós. “O destino está em

suas mãos. Ninguém pode fazer nada por você”. É o

que dizem.

Balancei a cabeça em concordância.

Queria ir embora. Meu estômago começava a roncar.

—Está vendo aquela velha? —Ele apontou a mulher

ajoelhada. Agora ela lutava com um palito de fósforo, a

vela branca á sua frente esperando para ser acesa. —Um

espírito do lado dela está dizendo para que ela fique em

paz. Porque ele está em paz. Como uma mãe pode ficar

bem com um filho morto? —Indagou, mais para si

167

mesmo, ou alguém invisível, do que para mim. —

Como?

“Bom saber que agora você é vidente”,

pensei, mas continuei calado.

—Nossa... —Ele sentou-se no último banco. Eu o

acompanhei, mas não sentei. Voltou os olhos para o

altar. —A morte tem tanta vida aqui!

Deixei ele com o olhar pensativo por

alguns instantes. Depois arrisquei, de voz baixa, com

medo de romper o silêncio sagrado. Confesso que Jon

começava a me assustar.

—Podemos ir embora?

Inicialmente, achei que não tivesse

ouvido. Ia insistir, mas ele levantou-se e tomou a

direção da rua. A luz do sol pareceu clara demais para

meus olhos recém adaptados pro escuro. Nossos passos

continuaram lentos.

168

—É claro que era só especulação. —Ele me acalmou,

tentando diminuir ainda mais o ritmo. Não permiti que

fizesse isso, começando a me revoltar. Meus passos

mais rápidos venceram. —Não posso saber se era o filho

da velha que tinha morrido.

Eu olhei para o céu. Devia ser quase três

horas de tarde.

—Sério, Jon. Nunca estive com tanta fome.

A partir desse dia, eu sabia onde procurá-lo quando

desaparecia. Sam e eu o encontramos em outra tarde,

sentado no mesmo banco da primeira vez, olhando para

a frente, do mesmo jeito vago e sonhador.

Entramos daquela forma hesitante com que

entram os não tão cristãos assim.

169

—O que está fazendo aqui? —Sam perguntou, perplexa.

Já tinha feito a primeira comunhão também, e

concordava que crianças não vão para a igreja por

vontade própria.

—Estava rezando.

—Por que veio sozinho?

—Eu queria ter uma conversa a sós com Deus.

Dei uma olhada para a estátua de Jesus pela

qual Jon tinha ficado apaixonado. Continuava ali,

intacta, sem nenhuma diferença. Há quantos anos

estaria ela naquela mesma posição, daquele mesmo

jeito? Seria sacrilégio trocá-la de lugar?

—Por que não foi rezar ali?

Apontei para a estátua. Ele deu um leve

sorriso, um pouco triste. Apontou para cima, indicando

o céu.

—Prefiro conversar com o de verdade.

170

Uma jovem passou pela porta; Olhou para

nós, eu acenei polidamente. É estranho como nos

sentimos próximos das pessoas que não conhecemos se

estamos dentro de uma igreja. Acho que é porque

descobrimos que temos a mesma crença, e, sim, aquilo

nos torna irmãos. A menina sorriu timidamente e

sentou-se num dos bancos mais á frente, abaixando-se

para rezar também.

Sam se sentou ao lado de Jon.

—O que estava pedindo a Deus?

Ele deu de ombros.

—O de sempre.

Fiquei me perguntando o que seria o de

sempre. Aquilo que todos pedimos, sem realmente

prestar atenção no que falamos? “Abençoe minha

família, nos dê saúde e prosperidade”. Ou o que ele

pedia? A respeito de Javier, provavelmente.

171

Ficamos parados ali por algum tempo. Ele

pegou na mão de Sam e levantou.

Eu tinha para Jon um bom motivo para rezar.

Na minha opinião de mero espectador,

eram óbvios demais os olhares de Gerald para Sam. Eu

já não tinha dúvidas a respeito, mas o baterista veio até

a minha casa num fim de semana. Chorava tanto que

pensei que alguém de sua família tivesse morrido.

—Estou apaixonado por Sam.

Sua notícia velha quase me decepcionou.

—Não me diga.

Gerald balançou a cabeça, em efusiva

afirmativa.

—Tenho certeza de que estou.

—E percebeu isso de repente, é?

—Não. Mas fui obrigado a admitir a mim mesmo uma

hora atrás.

172

—Certo. Isso não é nada estranho.

—O que eu faço, Heitor?

Puxei ele pelo braço, o impelindo a sair da

minha casa. Fomos parar no meio da rua; ele com os

olhos marejados, esperando que eu tivesse a chave de

seu enigma. Eu batia os dedos nervosamente na perna,

com a mão enfiada no bolso. Homens não devem brigar

por mulheres. Gostaria de saber até onde isso afetava o

Loveartist.

—O que eu posso fazer? —Imitei sua pergunta. Parecia

que estávamos fazendo uma encenação.

—Você sabe que ela gosta do Jon.

—Gosta?

—Não finja surpresa, é claro que gosta!

Dei um tapa no braço dele.

—Deixe de ser imbecil, Gerald. Escute bem, você tem

que esquecer essa garota!

—Não posso. Se eu mandasse no meu coração, já teria...

173

Interrompi sua frase com um novo golpe.

Uma tentativa de trazê-lo de volta á realidade.

—Não me importa, você tem que esquecê-la, porque vai

ser melhor para todos nós, seu dramático.

—Acho que você não pode me ajudar. —Ele virou as

costas, obviamente cheio de rancor.

—Não, não posso. —Gritei, enquanto ele se afastava. —

Eu não sou nenhuma droga de conselheiro amoroso.

Passei pela porta estreita da garagem no momento exato

que o corpo de Gerald atingiu o chão. Tapava a boca

com a mão, e seus olhos estavam cheios de lágrimas.

—Santo Deus! —Exclamei, antes de correr ao seu

socorro.

Jon esfregava os dedos da mão. Tinha sido

um soco só. O suficiente para derrubar o magricelo

Gerald de uma vez. Ajudei-o a sentar-se no banquinho

174

que servia como assento para ele quando tocava bateria.

Ele começou a chorar, antes de se virar para Jon.

—Isso não era necessário. —Ele disse, a voz

entrecortada.

Percebi um sorriso. Tenho certeza que vi Jon

sorrir de leve.

—Você é um idiota. —Falou, ligando o microfone como

se fôssemos começar a ensaiar. —Eu só queria que

entendesse isso.

Estendi um lenço de papel para que Gerald

limpasse o sangue que ainda escorria pelo seu queixo.

Suas mãos tremiam.

—O que foi que você fez? —Perguntei baixinho para

Jon, como se Gerald, ao meu lado, não pudesse me

escutar.

Ele balançou a cabeça, indignado.

—Só falei a verdade.

—Menino burro!

175

—Sabe qual é a verdade? —Jon interferiu, apoiando-se

no pedestal vazio. —Nosso amigo está apaixonado por

Sammy.

Dei um tapa em Gerald.

—Você disse isso para ele?

—Queria me desculpar! —Suas forças para chorar

estavam renovadas.

—Por quê? Você não fez nada de errado!

Senti que Jon me lançou um olhar.

—Não é minha culpa. —Se justificou novamente.

Eu o sacudi pelos braços.

—Se não é sua culpa, cale a boca e pare de se desculpar!

Você não tinha que falar nada!

—Me solte, está me machucando!

—Que menino idiota...

—Você sabe —Jon retomou a provável discussão que

acontecera antes do soco atingir a cara de Gerald. —Que

176

Sammy não gosta de você, e jamais te daria uma chance.

Sabe porquê? Olha só pra você. É um fracassado.

—Deixa disso, Jon. —Eu me intrometi. —Está ficando

ridículo.

—Ah, você acha, traidor? —Ele começava a alterar o

tom de voz. —Você sabia de tudo, não é?

Levantei do sofá para encará-lo melhor.

—Eu sabia do quê? Não há nada para saber.

Ele deu um passo em minha direção. Nunca

tinha visto ele nervoso, realmente. É verdade que ele

estava sempre revoltado, mas nunca tão nervoso. De

qualquer maneira, se ele quisesse me bater, eu estaria

pronto para recebê-lo.

—Você nem namora Sammy! —Esbravejei. —Namora?

Não houve resposta. Ele olhou ao redor

como se procurasse alguma coisa. Eu insisti.

—Namora Sammy, Jon? Está nervoso desse jeito, como

se a possuísse. Como sabe que ela não poderia se

177

apaixonar por Gerald, mas por você? Diga-me onde

você é melhor do que ele. Vamos, me diga!

Talvez eu tenha falado demais. Talvez eu

devesse ter deixado quieto, não comprado uma briga

que não era minha. Se eu aparecesse com um olho roxo

em casa, meus pais fariam perguntas. Esperava que eles

não ouvissem a discussão que acontecia lá em baixo.

Parei para tentar ouvir algum ruído que viesse da porta.

—Dane-se você, Heitor. —Ele quase gritou, cerrando os

punhos numa tentativa de autocontrole. —Isso nada

tem a ver com você.

—Você o chamou de fracassado. —Olhei para Gerald,

acompanhando a discussão com os olhos ansiosos.

Ainda tremia. Por que é que ele tinha que ter

conversado com Jon? O que diabos se passara pela

cabeça dele? —O que é você então? Dê uma olhada na

sua vida, Jon. Onde foi que obteve sucesso até hoje? —Á

essa altura eu já tinha me arrependido, mas era tarde

178

para parar. Gostaria que Gerald se levantasse, e dissesse

alguma coisa. “Qualquer coisa”, implorei mentalmente.

“Desvie a atenção do Jon de mim”. Por um motivo que

eu desconhecia, era impossível parar por ali. —Acho

que deveria olhar para você antes de encher o Gerald de

porrada.

Ele avançou tão rapidamente que meu

primeiro impulso foi o de defesa. Mas ele não vinha em

minha direção. Deu mais um soco em Gerald, dessa vez

o acertou na orelha. Eu pulei em cima, mas não a tempo

de impedi-lo.

—Vou te matar! —Gritou. —Vou te matar enquanto

você estiver dormindo!

Gerald levantou, derrubando o banquinho

almofadado no chão. Correu escadas acima, com os

braços se agitando. Achei que Jon fosse segui-lo, mas ele

ficou imóvel, fitando o chão.

179

—Contente? —Indaguei, deixando-me cair sentado do

outro lado da garagem, arfando de cansaço.

Ele balançou a cabeça repetidas vezes.

—Droga, droga, droga! Como foi me deixar fazer isso?

Perguntei-me se ele estava realmente

falando comigo.

—Qual é, Jon? Está ficando maluco?

—Maluco, eu? —Ele finalmente olhou para mim, e achei

que ele fosse chorar. —Você não deveria ter deixado eu

bater nele!

Suspirei alto. Que se danasse Jon e sua

loucura. Aquilo estava ficando estranho demais para

mim.

—Pega as suas coisas, e vai embora. Acho que não vai

dar para ensaiar hoje. —Ele parecia confuso. Ironizei: —

Que acha?

—Não. —Ele respondeu, com simplicidade.

180

Balancei a cabeça em desaprovação. Resolvi

não perder meu tempo com ele.

—Amanhã nos vemos na escola. —Ele disse, antes de

começar a sair. Fiquei com medo que fosse procurar

Gerald. Considerei se devia impedi-lo. Mas nada fiz.

Gerald que se danasse. Pelo menos tinha

aprendido uma lição. Não se pode ser sincero o tempo

todo, ou você pode acabar perdendo um dente.

Max chegou meia hora depois de Jon ter

saído. Contei para ele o acontecido.

Ele deu risada enquanto afinava a guitarra

vermelha que tinha ganhado do pai como presente de

aniversário. Nada tinha a ver com a guitarra de Jimmy

Hendrix, mas serviu para fazer sua felicidade completa

nos anos que estavam por vir.

—O que acha? —Eu sentei no chão, mais uma vez me

perguntando como faria par comprar cadeiras para pôr

na garagem.

181

—Jon deve estar usando drogas.

Sammy mudou-se para Chicago uma semana depois do

acontecido. Acho que nunca ficou sabendo sobre

Gerald. A idéia inicial do meu estúpido amigo de se

declarar desapareceu no momento que viu que sua boca

estava inchada, e sua orelha doía.

No dia seguinte á briga, fomos ensaiar na

minha garagem. Parecia que nada tinha acontecido na

tarde anterior. Exceto pelos olhares vacilantes de Gerald

na direção de Jon. Isso me deu medo, fiquei aguardando

uma explosão que não aconteceu.

182

A justiça foi rápida a favor de Gerald, dias depois de

Sam ter partido.

Estávamos no corredor da escola, antes do

início da aula de Matemática. Discutíamos um novo

projeto de música, uma letra que ainda precisava de

arranjos. Nossa maior dúvida era qual a parte que nos

serviria de refrão.

—Bom dia, Alice Cooper.

Dois garotos estavam com Nathan.

Acho que Jon se perguntou se Nathan se

dirigia realmente a ele. Deve ter entendido subitamente

o que aconteceria dali para a frente. Tentou se esquivar,

mas um dos garotos o segurou.

—Aonde vai, amigo?

—O que tem aí? —Nathan tirou o papel da mão de Jon.

—Devolve. —Jon pediu, hesitante.

O outro garoto ainda tinha a mão pesando

em seu ombro.

183

—Escuta só isso, Jeff. —Nathan pigarreou. Estendeu a

folha á sua frente. —“Minha vida foi só uma série de

situações, tudo que eu pude suportar, todos os muros.

Eles caíram em cima de mim. Fiz o que tinha que fazer.

Por favor, deixa, não me deixa morrer”. —Deu uma

risadinha. —O que diabos é isso?

—Por favor, me devolve. —Jon murmurou, debilmente.

—Viu, só, Martin? —Ele se dirigiu ao menino que

apertava o braço de Jon, esboçando um sorriso. —O

garoto é um poeta!

Eles riram. Eu permaneci calado, desejando

que Nathan devolvesse a letra de música.

—Diga-me uma coisa, Jordison... Ouvi dizer que você é

sadomasoquista. É verdade?

Jon tentou recuar, mas já estava contra a

parede. Eu consegui escapar do semi círculo que os

garotos tinham formado.

—Pode... Pode me devolver o papel... Por favor?

184

—Diga, seu imbecil! —Ele empurrou Jon pelo ombro,

quase derrubando ele no chão.

—Não sei... Eu...

—Tudo bem, cada um se diverte do seu jeito. Não é?

Como Jon não respondeu, Nathan deu um

tapa no braço dele.

—Acho que sim.

Ele limpou a mão que tinha tocado em Jon

com uma repugnância forçada.

—Talvez seja uma prática religiosa. —Tentou Jeff. —Ele

deve fazer parte de uma seita, quem sabe. Como é que

chamam aquilo? Autoflagelação.

Todos riram. Recuei um passo. Decidi

que se tocassem em Jon novamente, ia tentar comunicar

alguém da Direção.

—Está certo. —Nathan concluiu, finalmente. —Vamos

nos ver na hora do almoço.

185

Eles se afastaram. Eu me reaproximei,

hesitante.

—Está bem?

Jon assentiu, sem tirar os olhos de Nathan,

que se afastava, bem á frente no corredor cheio de

alunos.

—Palhaço...

—Sinto muito, Jon. Muito mesmo.

Ambos sabíamos que aquele era só o

começo.

Apesar do que ele que ele enfrentava na escola, a

Loveartist ia incrivelmente bem, além das nossas

espectativas.

Era mais uma noite de domingo. Não

tínhamos subido no palco ainda quando a vi entrar no

bar. Procurei Jon com os olhos. Ele estava no outro

186

canto do salão, conversando com Max. Quis gritar para

que ele largasse a garrafa de vinho, mas já era tarde

demais. Sua mãe já tinha visto. Cheguei nele primeiro

do que ela.

—Sua mãe está aqui.

—Quem? —Ele olhou ao redor, como se não acreditasse.

Soltou um palavrão quando a viu aproximar-se. Largou

a garrafa de vinho no chão, quase a espatifando.

—O que diabos está fazendo nessa droga? —Ela gritou

sobre a música alta, esforçando-se para ser ouvida da

forma exata que pretendia. Irritadíssima.

Como sempre fazia, Jon se pôs a gaguejar

palavras que não respondiam absolutamente nada.

—É só um show. — Eu entrevi, meio débil. Torci para

que ela soubesse do Loveartist.

Ela não prestou atenção em mim. Lançou

mais um olhar ao redor, para o bar. Devia estar

pensando no futuro que teria seu filho em um lugar

187

daqueles. Meu Deus, ele tinha começado com um inofensivo

violão.

—Vamos pra casa. —Ela pegou o braço de Jon e

começou a puxá-lo em direção da porta.

Vi quando Jon lançou um olhar cheio de

ódio para Gerald. Desconfiei, mas duvidei de que Jon

estivesse certo. Gerald era idiota demais para pensar

nisso. E poderia colocar em risco a nossa banda, o que

exatamente aconteceu.

—Ele não pode sair agora. —Max interveio, confiante.

Sem dúvida, sua coragem de encarar a sra. Thompson

era três vezes maior do que a minha.

Mas ela o ignorou também. Max os seguiu

até a rua. Talvez para sentir que eu estava fazendo algo

de útil, fui atrás também. Paramos na calçada. Ela ainda

apertava o braço de Jon.

—Não quero meu filho metido com vocês, entendeu

bem?

188

—Nós temos um show para fazer. —Max puxou o outro

braço de Jon, enquanto eu soltava uma expressão de

espanto. —E vamos fazê-lo.

—Quanta audácia!

—Você é louca, sabia? Completamente louca.

Jon estava em estado de choque. Não fez

nenhum esforço para libertar qualquer um dos braços.

Max estava realmente nervoso. A essa altura eu já sabia

que ele não se referia ao show que corríamos o risco de

perder. A raiva em sua voz era tanta que só podia ser de

motivo maior. Todos sabíamos de Javier. Max

continuou, cuspindo as palavras.

—Nunca deu a mínima pro Jon, não devia se incomodar

em bancar a boa mãe na frente de todo mundo.

Jon soltou finalmente o braço que Max

puxava. Acho que rezava para que o amigo parasse de

falar.

189

—Aliás, devia olhar para você mesma, e repensar

alguns conceitos.

Pensei em dizer para que Max parasse, mas

não ousei interferir. Ele estava fazendo o que eu deveria

ter feito há muito tempo. O dono do bar se postou atrás

de nós, carrancudo. Se havia algo que detestava, eram

brigas em seu estabelecimento. Tinha sido claro quanto

a isso no primeiro show que o Loveartist fizera naquela

casa. Max não se importou com sua presença.

—Uma mulher que apanha do marido todas as noites

não deve ter o menor amor por si própria. E permitir

que batam em seu filho então, nem se fala.

Sra. Thomsom levantou a mão como se

fosse lhe dar um tapa. Não o fez. Cerrou o punho,

deixou o braço despencar junto ao corpo.

Eu estava apreensivo pela presença de

Arvizu atrás de mim. A música lá dentro tinha parado.

Era nossa vez.

190

Ela girou nos calcanhares e andou

depressa, puxando Jon consigo. Olhei desolado para

Max em busca de uma resposta.

—Mulherzinha medíocre. —Ele disse, antes de tentar

passar pela porta do bar.

Arvizu, com sua barriga grande e seus

furiosos olhos redondos o deteve.

—Peguem suas coisas e dêem o fora.

Max assentiu lentamente, depois de

raciocinar por um segundo. Obedeceu, e começamos a

guardar os equipamentos em silêncio. As pessoas nos

olhavam com curiosidade e até um pouco de raiva.

Onde está a música?

Algum cliente do bar parou Max, no

caminho da porta, para perguntar o que tinha

acontecido. Eu fiz minha melhor cara de piedade para

Arvizu.

191

—Será que não pode nos perdoar, só dessa vez?

Prometo que nunca mais vai acontecer.

—Desapareça. —Ele deu as costas, me deixando sem

direito de defesa. Quanto exagero! A briga nem tinha

sido tão feia assim.

Lembrei de Gerald e fui procurá-lo. Estava

escondido no banheiro. Obviamente tinha chorado.

—O que foi que aconteceu? —Perguntou.

—Fomos despedidos. —Tentei não soar acusador.

—Não acredito!

—Pois é, a mais pura verdade. E vai saber para onde

aquela velha levou Jon. Só espero que não afogue ele se

passarem perto do rio.

Suspirei enquanto observava sua

expressão de dor. Disse que era melhor irmos mesmo,

antes que Arvizu se invocasse ainda mais.

—Será que não poderemos voltar nunca mais? —Ele

perguntou enquanto abríamos caminho pela multidão.

192

Balancei a cabeça em negativa.

—Nem como clientes.

Não sei o que aconteceu com Jon naquela noite. Não sei

se a doida de sua mãe bateu nele, ou se contou o

acontecido a Javier. Tudo que Jon comentou no dia

seguinte foi que precisaria ser mais cuidadoso da

próxima vez. E estava chateado com nosso desemprego

repentino.

Modéstia á parte, nós éramos talentosos, e

não ficamos muito tempo parados. Tocávamos bem,

compúnhamos nossas próprias músicas, e teríamos

dado certo se Jon não tivesse colocado tudo a perder,

poucos anos depois. Conseguimos shows ás sextas e

sábados num bar bem maior do que o primeiro. Seu

ápice ali era aos domingos, mas outra banda,

193

provavelmente melhor do que a nossa, assumia o palco.

Claro que ficamos contentes com o que tínhamos. O

proprietário descendente de asiático, com piercings em

toda parte do corpo, nos pagava um bom cachê por

noite, e permitia que comêssemos de graça durante

nosso expediente.

Chegamos a procurar duas gravadoras. As

duas ficaram de retornar uma ligação. Nunca

retornaram. Infelizmente, no meio musical é preciso ter

mais do que talento. É necessário aparência e sorte. No

nosso caso, a beleza é quase indiferente, o que nos trazia

uma grande vantagem, porque não era o que nos

sobejava exatamente. Era sorte o que nos faltava.

No auge dos nossos quinze anos, o que

tínhamos eram sonhos promissores, e isso constituía

tudo o que precisávamos por enquanto.

O Anjos Estáticos virou nossa segunda casa,

e Robin um irmão mais velho para nós. Lá nós nos

194

divertíamos e alimentávamos nossas esperanças. Nunca

houve nada melhor do que a atenção e o carinho da

platéia do Anjos Estáticos.

Á parte de tudo que ia bem para a

Loveartist, Jon estava sempre assombrado pelos seus

problemas pessoais. Ainda sentia falta de Sam. Mas

acho que Javier já tinha deixado de atormentá-lo

diariamente, e isso significava um progresso

significativo. Ele parecia mais saudável, brincava mais,

permitia-se sair com a gente de vez em quando fora de

nossos horários de trabalho. Quase todos os finais de

semana ficávamos até tarde no Anjos Estáticos, depois

do expediente. Max e eu bebíamos bastante, e

geralmente o trabalho de nos carregar até nossas casas

ficava por conta dele e de Gerald.

Jon ficou bêbado apenas uma vez naquela

época. Foi adquirir esse vício depois de adulto, que eu

também passei a conhecer tão bem. Mas ele ainda não

195

estava acostumado, e acredito que não tenha sido uma

boa experiência para ele. Paramos em um beco escuro,

depois que perdemos o resto do grupo de vista, e

ficamos agarrados ás nossas garrafas vazias. Ele chorou

tanto que achei que ia desintegrar. Ficou falando de

Sam. Durante horas. Voltamos para casa pela manhã;

Ele apanhou da mãe. Eu também teria apanhado se a

minha mãe não estivesse acostumada com minhas

bebedeiras.

Havia também os garotos da escola.

Nathan aparecia quase todos os dias, nos corredores ou

na hora do almoço. Classicamente, como nos dramas

americanos adolescentes, eles derrubavam livros e

cadernos, e observavam enquanto recolhíamos do chão,

humildes e calados.

—Vi uma coisa no jornal e lembrei de você.

Jon baixou a cabeça, obrigado a esperar

que ele continuasse. Nathan tirou do bolso o recorte e

196

mostrou para os outros meninos. Eles riram juntos. Ele

entregou para Jon. De onde eu estava não consegui ler

direito. “... se interna em clínica psiquiatra”, era a parte do

título da reportagem que consegui perceber.

—Bichinha louca.

Jeff e Martin riram novamente. Vi quando

Jon respirou fundo, tomando coragem apenas para

permanecer de pé.

Os garotos já estavam saindo, quando ele

disse, baixinho:

—Tudo isso é por causa de Sam?

Nathan voltou-se para ele, entre indignado

e irônico. Sorriu, e se aproximou novamente.

Eu senti que minhas pernas cediam ao peso

do corpo, e tive certeza de que matariam Jon.

—O que disse?

—Você tem raiva porque a Sam não gosta de você.

—Acha mesmo, frutinha?

197

Jon tentou escapar. Nathan o agarrou pela

gola da camiseta. Deu-lhe um soco no pescoço, e no

impulso fez com que ele caísse. As pessoas já

começavam a se aproximar, curiosas. Nathan recuou,

com um sorriso.

—Aprenda a conversar como gente.

Jeff deu um derradeiro chute antes de

partir com seu mestre.

—Está bem? —Eu fiz a pergunta inútil. Ajudei ele a se

erguer.

Ele assentiu, respirando forte.

—Deixa estar. Ele ainda vai ter o que merece. —

Amassou o recorte de jornal e o largou no chão.

Abrimos caminho. As pessoas observavam,

dessa vez Jon tinha razão. Abaixamos a cabeça

enquanto seguíamos para a sala de aula. Foi um longo

dia na escola.

198

Nathan fez quase exatamente igual no dia

seguinte. Tentamos entrar na aula de Biologia o mais

rápido possível, mas foi inútil. Ele conseguiu nos

alcançar.

—Olá, Alice. —Ele riu. —Como acha que devemos

começar o dia?

Estava acompanhado de uma garota ruiva,

tão alta quanto ele. Ela sorria. Talvez ele quisesse provar

alguma coisa para ela.

—Me deixa em paz. —Continuamos a andar. Ele nos

deteve, quase sufocando Jon ao puxá-lo pelo colarinho.

Nova multidão já começava a se juntar para

ver. Nathan não soltou o pescoço de Jon até que ele

ficasse quase completamente sem ar. Quando o fez,

continuou segurando ele pelo braço. Olhou ao redor

para os idiotas de seus amigos que riam. Virou-se para a

ruiva.

199

—Será que se importaria de me emprestar um grampo

de cabelo, querida?

Ela desmanchou o penteado, deixando que

o cabelo caísse sobre os ombros. Estendeu o objeto

dourado para ele.

—Ela nunca gostou de você. —Disse.—Olhe pra você. O

que ela tinha era pena.

Enfiou o grampo de cabelo em seu ouvido.

Houve alguns gritos dos espectadores.

Aproximei-me dele quando Nathan o

abandonou. Tive medo que tivesse perfurado seu

tímpano. Acho que as palavras dele afetaram muito

mais do que a dor.

Sei que Jon ficou pensando nisso por muito

tempo, embora parecesse óbvio demais para mim que

Nathan sentia inveja. Ninguém é tão bom assim, a

ponto de se comportar como Sam fazia por pena.

200

Estamos no mundo real, Jon. Mais uma vez tive vontade

de dizer.

Não participamos da formatura no colegial. Decidimos

comemorar só nós, e a banda. Max levou alguns de seus

amigos estranhos, todos fumadores de maconha —e eu

já tinha ouvido falar que eles saqueavam casas durante

a noite. Fomos ao Anjos Estáticos no domingo á noite,

só por diversão, planejando ficar até de madrugada,

lembrando-nos de que não iríamos acordar cedo no dia

seguinte. A banda em cima do palco era formada por

homens adultos, obviamente profissionais. Tocavam um

metal melódico irrepreensível, uma seleção de músicas

ótima. Mas não deixava de ser mais uma banda cover.

—Não quero que se preocupe. —Jon começou de

repente, tomando um gole da Vodka, que naquele dia

201

estava custando a nós. —Com certeza eu vou voltar em

oito meses.

Não participamos da formatura no colegial.

Decidimos comemorar só nós, e a banda. Max levou

alguns de seus amigos estranhos, todos fumadores de

maconha —e eu já tinha ouvido falar que eles

saqueavam casas durante a noite. Fomos ao Anjos

Estáticos no domingo á noite, só por diversão,

planejando ficar até de madrugada, lembrando-nos de

que não iríamos acordar cedo no dia seguinte. A banda

em cima do palco era formada por homens adultos,

obviamente profissionais. Tocavam um metal melódico

irrepreensível, uma seleção de músicas ótima. Mas não

deixava de ser mais uma banda cover.

—Não quero que se preocupe. —Jon começou, de

repente, tomando um gole da Vodka, que naquele dia

estava custando a nós. —Com certeza eu vou voltar em

oito meses.

202

—Do que diabos está falando? —Tentei compreender,

enxergando através da nuvem de álcool que embaçava

minha visão.

Eram duas da madrugada. A pior hora para

se dar notícias ruins dentro de um bar.

—Consegui um curso em São Francisco. Acha que vocês

conseguem levar a Loveartist sem mim durante oito

meses?

Eu encarei ele por alguns instantes, e não

tinha certeza se falava sério.

—Claro que não! —Dei risada.

—Podemos achar alguém para me substituir por um

tempo. Temos até fevereiro para isso.

—E onde é que encontraremos um bom vocalista, que

aprende rápido e que seja bonito como você? —Caí na

gargalhada novamente.

Era a primeira vez que Jon falava a

respeito. Eu achava que a banda era nosso futuro, e

203

estranhei imensamente o fato dele estar procurando por

outra coisa que não fosse a música.

—Talvez Robin conheça alguém. —Sugeriu.

—Não podemos, Jon. Você sabe disso. —Tentei parecer

sério. — Seria suicídio para a Loveartist.

—É só por um tempo, eu juro.

Roubei uma batatinha de sua porção.

—Por que não deixa esse curso idiota para mais tarde?

—Mais tarde, quando? Preciso trabalhar.

Eu trabalhava desde meus treze anos de

idade, e não entendia esse sua necessidade repentina de

ter que estudar. Ele não poderia trabalhar em um

restaurante, uma loja, qualquer lugar em que não seja

necessário um diploma, até que a Loveartist conseguisse

seu lugar fora dos palcos do Anjos Estáticos?

Como se lesse meus pensamentos, ele

disse:

204

—Não posso basear meu futuro numa coisa tão incerta

como nossa banda. —Fez silêncio por um segundo,

planejando as palavras a seguir. —Nós sabemos que

não vai dar em nada. —Ele me observou. Eu enchia de

catchup uma batatinha frita que não tinha intenção de

comer. —Não sabemos?

—Eu ainda apostava na Loveartist. —Sorri, tristemente.

—Apostaria essa batata que daria certo.

—Vai chegar uma hora que vocês também vão precisar

dar o fora. Não vamos poder sobreviver com quarenta e

cinco dólares por noite.

Ele me olhava com expectativa, esperava

uma resposta. Desviei os olhos para Gerald, na parte

extrema do salão. Conversava animado com uma

garota.

—Veja só. —Comentei. —Acho que Gerald encontrou a

groupie da noite.

205

Max tentou convencer Jon a adiar o curso,

mas nossos argumentos eram muito fracos. O pior de

tudo era que Jon tinha razão, e nós devíamos na

verdade fazer o mesmo que ele.

Aqueles oito meses demoraram a passar. Já no

segundo mês, perdemos a esperança da Loveartist ficar

ativa de novo. Embora não declarássemos abertamente,

mas a banda tinha morrido. Ainda me lembro como

senti falta dos palcos. Era como se tivessem levado uma

parte de mim para muito longe.

Não encontramos um vocalista, nem sequer

procuramos. Foi decidido que esperaríamos, torcendo

para que Robin nos aceitasse de volta mais tarde,

embora tenha ficado razoavelmente irritado com nossa

demissão com menos de um mês de antecedência.

206

Jon me ligou uma semana depois que começou

o curso. Estava empolgado, instalado numa pensão

velha, e, segundo ele, cheia de goteiras, mesmo que não

chovesse.

—Você não acreditaria. —Ele disse. —Esse curso é o

máximo, exatamente como vemos nos filmes.

—Você faz alguma coisa?

—Por enquanto, não fiz nada. Só teoria mesmo. Estão

ensinando pra que serve cada um dos instrumentos.

—Já viu algum cadáver de verdade?

—Já, e eles são bem mais assustadores de perto. Juro

que tive a impressão de ver uma mão se mover.

—Isso acontece por causa de espasmos. Ou pelo menos

é o que ouço dizer.

—Como estão as coisas aí?

—Na mesma, visitamos o Anjos Estáticos só a passeio.

Não sei se ele estava chateado com a falta da

banda, mas sei que ele pretendia voltar. Fiquei abalado

207

naquela noite. Minha esperança era de que ele não

gostasse do curso, desistisse e voltasse a Bakersfield.

Sete meses mais tarde ele ligou novamente.

Sua voz estava completamente diferente desde a

primeira ligação. Não parecia mais empolgado. Pelo

contrário, soou realmente deprimido.

—Não sei se vou aguentar.

—Por quê? —Ele me pegou de surpresa.

—É terrível, as pessoas morrem! Não só os velhos e

doentes, Heitor. As pessoas morrem!

—Você precisa aguentar, seu maluco. Chegou até aqui,

não pode voltar agora. Só falta um mês. E você sabia

exatamente onde estava se metendo.

—Não morrem só por morrer, são assassinadas!

Crianças! Têm crianças que vêm parar nessas mesas

frias, quando deveriam estar na escola, estudando, ou

brincando na rua, fazendo planos para o futuro. Não é

justo.

208

—Eu sabia que você não ia conseguir. Por que não

escolheu outra coisa? Tantos cursos para escolher, meu

Deus!

—Eu achei que seria divertido. —Pensei que ele fosse

chorar, e fiquei contente por não tê-lo feito.

—Então volte para casa. —Cedi.

Ele não respondeu dessa vez. Disse que

pensaria no assunto, e mas tentaria sobreviver nos

próximos meses. Ambos sabíamos o que aconteceria se

ele voltasse sem seu diploma. Javier não haveria de

gostar de ver seu enteado fracassar. Jon permaneceu até

os final do curso.

Notei muitas diferenças em Jon quando ele voltou de

São Francisco. Não só na aparência —Ele estava muito

mais magro e abatido, como se não dormisse há noites.

209

Parecia ainda mais perturbado, e até mesmo assustado.

Tinha pesadelos. Dizia que vinha á mente imagens de

seu passado, que ele não conseguia afastar, e sentia que

era como se estivesse sonhando acordado, quando

estava dormindo. Vai entender as coisas que Jon

falava... Olhava por sobre os ombros com frequência.

Notei seu olhar perdido diversas vezes, e estava sempre

distraído. Eu gostaria de ter percebido isso naquela

época, reconhecer os sintomas da doença que acabaria

por matá-lo. Mas, pensando bem, o que eu poderia ter

feito, se soubesse? Acho que ninguém sabe exatamente

como salvar uma vida.

Eu tinha vivido esses oito meses no escuro,

tateando em busca de algo que pudesse tapar o buraco

que a falta da música fazia. Eu nunca tinha percebido o

quanto amava minha música, até perdê-la. Acho que

nunca pensei nisso antes, porque era algo natural, que

sempre estivera dentro de mim.

210

O único apoio que encontrei me levaria

para um abismo no futuro. Acabei cedendo ás drogas,

deixei a maconha para a cocaína. Era minha preferida

na época, me ajudava a permanecer ligado nas noites de

fim de semana, e eu conseguia curtir um pouco. Minha

namorada me largou quando descobriu que eu tinha me

tornado um viciado.

A gente nunca sabe o que o destino nos

reserva, e isso pode ser excitante ou assustador. Na

época, não me importava. Eu queria me divertir, sair, ir

a bares e colecionar namoradas. Por isso, não me

importei muito quando Stephanie me deixou.

Mas, como eu disse, o destino é misterioso.

Algum tempo mais tarde, Stephanie voltaria e salvaria

minha vida. Isso só aconteceria algum tempo depois de

Jon viajar definitivamente para Los Angeles, onde

viveria o resto de sua vida.

211

Stephanie me tirou das drogas, me

obrigando a ficar internado numa clínica de

recuperação. Não vou dizer que foi fácil, mas eu sei que

só teria conseguido com a ajuda dela. Passei anos

lutando contra o desejo, passando em frente aos bares e

pensando “Apenas um golinho de cerveja”, ou “apenas

uma tragadinha”. São as vozes interiores que devemos

ignorar, ou vamos voltar para o abismo. Posso

assegurar que venci a tentação, e consegui levar a vida

que há muitos anos atrás eu teria achado muito sem

graça.

No final de 1999, Jon e Max falaram com

Robin assim que Jon retornou de São Francisco.

Negociaram a volta da Loveartist, que foi aceita com o

cachê reduzido pela metade. Robin alegou ter perdido

clientes por causa do nosso sumiço no bar. Poderia ser

mentira, mas aquilo nos encheu de orgulho.

212

Eu estava trabalhando como Office boy na

época. Trabalhava para uma imobiliária, e acho que era

o melhor emprego do mundo. Passava o dia inteiro na

rua, almoçava na hora que bem me aprouvesse e

voltava pra casa antes que a noite caísse. Jon realmente

conseguiu um emprego como assistente de um médico

legista, e garanto que passou no Instituto Médico Legal

não foram os melhores anos de sua vida, ainda que não

cortasse as entranhas dos cadáveres como desejava

inicialmente.

Juntamos nossas economias e alugamos um

apartamento, onde nos veríamos livres de nossas

respectivas famílias, e a liberdade seria nosso maior

merecimento. Não era, de fato, uma mansão. Estávamos

sempre com a impressão de que o teto ia cair nas nossas

cabeças. Sempre vazava água de algum lugar, os

corredores estavam sempre úmidos —Por qualquer

substância que não sabíamos identificar. Ali era onde

213

ficavam os garotos do nosso prédio/pensão, carregando

bebidas e cigarros estranhos. Mesmo assim, o aluguel

estava caro para o nosso bolso, e diversas vezes Jon teve

que implorar para que a sra. Ferguson não nos

despejasse. Chegamos a ficar sem eletricidade por três

meses, quando tivemos que escolher entre pagar a sra.

Ferguson ou a companhia de energia.

Aquele noite, Jon chegou depois das dez

horas. Estava tão pálido que eu tive certeza de que ia

desmaiar. Afastei as roupas sujas que cobriam a minha

cama e fiz com que ele sentasse. Trouxe um copo de

água.

—Tinha alguém... Me seguindo. —Explicou.

Fui até a janela e observei. A rua estava

cheia de jovens rindo e falando alto, como sempre. Uma

parte da veneziana quebrou na minha mão.

—Seguiram você até aqui?

214

Ele assentiu, forçando mais um gole de água.

Percebi que uma atadura cobria seu punho esquerdo.

—Machucaram você?

—Não.

—Deu pra ver quem era?

—Só as sombras. —Ele respirava com dificuldade.

—Sombras?

Fez que sim. Tirei o copo ainda cheio da

mão dele, achando que fosse despencar no chão. Pela

primeira vez, me perguntei por que alguém haveria de

querer segui-lo. Que eu soubesse, não tinha inimigos, e

éramos pobres demais para pensar em assalto ou

sequestro.

—O que aconteceu aí? —Apontei o machucado.

—Não foi nada.

Ele levantou de repente, para olhar pela

janela também. Estava agitado, como eu nunca tinha

visto antes.

215

—O que aconteceu, Jon? Precisa me dizer!

Começou a chorar, completamente fora de

controle. Tentei o copo de água novamente, mas ele

ignorou. Deixou-se cair sentado, ali mesmo, frente á

janela, encostado na parede. Sentei ao seu lado.

—Foi Javier? —Indaguei.

Há muito que não víamos o homem, mas

nada é impossível. E me parecia a única alternativa. Ele

fez que não.

A imagem de Nathan na escola, há mais

de um ano atrás, me veio á cabeça. Nem perguntei, era

inviável. Eu não sabia ao menos se o garoto ainda

estava vivo.

Puxei a mão dele á força. A faixa branca

mal colocada sobre o pulso estava manchada de sangue.

—Alguém te cortou? —Senti-me desesperar.

—Não, não foi ninguém. —Ele quase gritou. —Eu não

sei o que aconteceu. —Ele olhou para mim, e percebi

216

que precisava de ajuda. Estava com aquela expressão de

desespero, exatamente como acordava dos pesadelos. —

Por favor, não pense que sou maluco!

—Não vou pensar. Me diga!

Tentei demonstrar confiança, mas já achava

que ele estava ficando louco. Ele disse o que eu já

esperava ouvir.

—Fui eu.

Assenti lentamente, esperando que se

acalmasse. Deixei que chorasse mais um pouco, mas

acabou por alterar-se ainda mais em alguns segundos

de silêncio.

—Não pense que eu tentei me matar, porque não foi

isso. Não foi! É que alguém... Eu estava

descontaminando uma... Sozinho. Sozinho, Heitor! —Eu

gostaria que ele falasse mais devagar. Emendava uma

palavra na outra, em meio aos soluços descontrolados, e

eu mal conseguia compreendê-lo. —Ninguém poderia

217

ter falado comigo, porque não tinha ninguém ali. Mas

eu ouvi. Era uma voz estranha, me dizia para

experimentar como se sentiam os... Quando o médico...

Os cortava com... Eu cortei, mas não foi a veia, viu? Era

só pra saber como era o corte de navalha. Mas eu não...

Não quis... Não era pra ter me machucado.

—Tudo bem, Jon. Acalme-se, certo? Precisamos refazer

esse curativo, em primeiro lugar. Depois pensamos

nisso.

Levei ele quase carregado até o banheiro

minúsculo. Senti que minhas mãos começavam a

tremer. Eu nunca gostei de ver sangue, e não tinha idéia

de como lidar com aquela situação inédita para mim.

Tirei a atadura dele, e fiz com que ele

colocasse o braço embaixo da torneira. O mais estranho

é que ele não parecia sentir dor.

218

—É assim que você quer ser médico? —Brinquei, na

tentativa boba de descontraí-lo. —Você nem sabe fazer

um curativo simples!

—Não tive tempo. O dr. Perry chegou bem na hora. —

Agora ele respirava com mais leveza. Finalmente tinha

parado de chorar.

—Ele viu? —Eu me alarmei.

—Não tudo. Só viu que eu tinha me machucado.

—E o que disse a ele?

—A verdade.

—Você disse que a voz... O que foi que disse?

Ele recomeçou a chorar. Amaldiçoei

mentalmente a mim mesmo. Não deveria ter

perguntado isso naquela hora.

—Eu só disse que tinha... Que tinha... Me machucado

sem querer.

Peguei a bombinha de ar e dei para ele,

uma prevenção básica e meio estúpida. Vasculhei por

219

alguma coisa que servisse de curativo, mas tudo que

encontrei foi uma camisa velha para servir de

esparadrapo.

Fui dormir naquela noite com certo receio. E

se alguém realmente estivesse a persegui-lo? Nunca se

sabe.

Ele não dormiu aquela noite.

Alguns dias depois, encontrei Max na rua

por acaso, depois do meu expediente na imobiliária.

Contei a ele que estava horrorizado com o que tinha

acontecido enquanto seguíamos de volta para nosso

bairro, vizinho ao meu local de trabalho.

—E quem é que estava seguindo ele?

—Não faço idéia, já não sei se havia alguém de verdade.

Ele pensou por um instante.

—Vamos convencê-lo a sair daquele hospital.

—E como é que vou bancar o aluguel sozinho?

—Jon vai acabar ficando doente.

220

—Meu Deus... —Eu gostaria de saber o que fazer.

—Pense, Heitor. Não deve ser fácil. Você vê uma pessoa

em um dia. Ela te cumprimenta, ou te vende alguma

coisa em um mercado. Reclama do tempo ou das

notícias. No dia seguinte, aparece na cama de metal do

seu legista. Aguardando a necropsia.

—Eu sabia desde o começo que isso não era para o Jon.

—Deixa comigo, eu vou resolver.

Confiei em Max. Meu maior motivo para

isso era minha falta de alternativas. Jon estava tendo

pesadelos todas as noites. Dificilmente eu ia dormir

depois dele, ou acordava enquanto ele estivesse

dormindo.

Max apareceu com a solução no dia

seguinte. Foi até nossa casa, dizendo que tinha um

emprego para Jon em um bar.

—Não é o salário que você ganha. Na verdade, é um

terço dele.

221

Jon riu.

—Então você quer que eu largue meu emprego, aquele

pelo qual estudei oito meses, para servir bebidas e

ganhar três vezes menos?

Max olhou para mim, em busca de apoio.

—Vai ser melhor, Jon.—Eu disse. —Você não percebe

que esse seu serviço não está te fazendo bem?

—Deixe disso. Agradeço sua ajuda, Max. Mas realmente

não estou interessado.

Em março de 2001, Jon conheceu Francie. Era amiga de

uma ex namorada minha. Nunca tinha conversado

realmente com ela. Não que nossos destinos não se

cruzassem, mas sempre nos odiamos mutuamente. Se

tratava de uma arrogante. Não era rica, mas agia como

se fosse. Se me via na rua, não me cumprimentava. Eu

222

não fazia a menor questão que ela o fizesse. Jon teve o

infortúnio de se apaixonar por ela.

Aconteceu numa festa de minha ex

namorada. Devo ressaltar que Cody estava explêndida

naquela noite. Quase reatamos nosso falecido

relacionamento.

Jon me acompanhou á festa porque não

queria ficar sozinho em casa, e tão pouco tinha lugar

para ir. Afastei-me dele assim que entramos na casa de

Cody, embora ele implorasse para não deixá-lo sozinho

no meio de gente que não conhecia.

—Vê se consegue ser menos gay. —Respondi, antes de

dar o fora.

Foi então que Francie salvou Jon e o levou

para a garagem, onde passaram um bom tempo. Eles

começaram a namorar em algumas semanas, e quando

ela passou a frequentar nossa casa, ele ficou ainda mais

exigente com a limpeza doméstica.

223

Detesto essa garota absolutamente,

portanto sou suspeito a falar. O fato era que Francie

dominava Jon completamente, como fazia com todo

resto em sua vidinha medíocre como babá dos filhos

dos ricos. Dificilmente eu permanecia em casa quando

ela vinha visitá-lo.

Max apostava que iam se casar. E devo dizer

que meu alívio foi enorme quando eles terminaram,

quase três anos depois.

Foi então que Francie salvou Jon e o levou

para a garagem, onde passaram um bom tempo. Eles

começaram a namorar em algumas semanas, e quando

ela passou a frequentar nossa casa, ele ficou ainda mais

exigente com a limpeza doméstica.

Detesto essa garota absolutamente,

portanto sou suspeito a falar. O fato era que Francie

224

dominava Jon completamente, como fazia com todo

resto em sua vidinha medíocre como babá dos filhos

dos ricos. Dificilmente eu permanecia em casa quando

ela vinha visitá-lo.

Max apostava que iam se casar. E devo

dizer que meu alívio foi enorme quando eles

terminaram, quase três anos depois.

Francie foi ver a banda algumas vezes, e

ocupava a mesinha perto do palco onde Sam costumava

ficar. Na aparência, ela era muito parecida com Sam.

Mas não gostava do nosso som, e não fazia qualquer

esforço para fingir que estava se divertindo. Por causa

dela, devo admitir que Jon começava a ficar chato. Dava

o fora assim que o show terminava, porque ela queria

voltar para casa, ou porque ele tinha que encontra-la na

casa dela.Víamos Jon olhar para o relógio com ar

apreensivo, e correr sem nos ajudar a arrumar os

equipamentos, ao encontro dela, de rabinho abanando.

225

Era patético, e juro que tentei abrir os seus olhos, mas

Jon podia ser muito teimoso. Talvez ele não visse as

coisas do jeito que eu via. Foi nessa época que ele

começou a beber.

Eram quase de horas da noite quando cheguei em casa.

Lembro-me bem de ter abusado das drogas naquele dia,

e minha cabeça já não se encontrava muito boa. Estava

acontecendo com frequencia e eu não tinha mais noção

de quando parar. Parecia que minha mente pedia cada

vez mais, embora eu sentisse que meu corpo estava

desfalecendo. Tinha sido um dia difícil. Andava

procurando emprego, perdi minha vaga de Office boy na

imobiliária porque tinha chegado muitas vezes

atrasado, e não conseguia mais realizar meu serviço

corretamente.

226

Eu ia passar direto por Jon, deitado na cama,

com os olhos presos no teto. Tinha aquele olhar distante

de novo.

—Heitor! —Ele chamou, como se eu tivesse muito

longe, sem descravar os olhos do teto.

—O que é? —Perguntei, mal humorado.

—Tenho um problema.

—Ah, é? Por que não vai resolvê-lo com um copo de

vinho?

—Porque não tenho dinheiro para isso. Fui demitido.

Não pude deixar de rir com ironia. Era tudo

o que precisávamos, mais um desempregado na casa. A

sra. Furguson não ia gostar de saber disso.

—Por quê?

Pelo que Jon contava, o dr. Perry tinha ele

em grande estima, tinha lhe dado um aumento de

salário, e até o incentivava a fazer Medicina. Achei

muito estranha a repentina mudança. Reforcei minha

227

pergunta, com impaciência. Joguei-me na cadeira, em

desespero. Estava vendo o mundo ruir, e percebi que

logo estaríamos morando na rua. Como eu desejei ter

mais um cigarro naquele momento! Mas nem para isso

eu tinha dinheiro.

—Como é que conseguiu ser demitido, seu

inconsequente? —Esbravejei.

Ele não se moveu, nem retrucou. Eu estava

com vontade de quebrar alguma coisa, sabia que

precisava extravasar aquela raiva, que não provinha

apenas da notícia. Era algo superior, uma coisa com a

qual eu tive que sobreviver até Stephanie salvar minha

vida.

Bati a porta atrás de mim quando sai de casa.

Eu não tinha certeza para onde estava indo, mas sabia

que tinha que chegar logo. Caminhei a noite toda, e

apenas de manhã consegui raciocinar um pouco melhor.

228

—O que foi que aconteceu? —Perguntei, como se não

tivéssemos interrompido a conversa da noite anterior.

Jon ainda estava no mesmo lugar. E não me

respondeu. Não sei se não me ouviu, ou ficou com

raiva. Mas ele tinha aquele ar perdido de novo.

Pensei a respeito do que tinha levado Jon a

demissão do hospital, ainda que as causas não fossem

meu maior problema na época; O que mais me

perturbavam eram as consequencias. Despejei um

pouco de água no pó de café que ainda sobrava. Teria o

dr. Perry descoberto que Jon estava ficando doente? Era

possível, ainda que sua doença tenha demorado algum

tempo para avançar de grau.

Os dias avançaram, e a falta de dinheiro também. Jon

teve que usar todo seu charme para convencer a sra.

229

Ferguson a ter um pouco mais de paciência, até que

arrumássemos um emprego.

Max apareceu com parte da solução, quando

anunciou que ainda tinha aquela proposta de emprego

para Jon. Era um bar, mas Jon não pareceu se importar

realmente. Na verdade, eu acho que ele gostou muito

mais de trabalhar com os bêbados do que com os

mortos.

A proprietária era uma velha gorducha, com

o cabelo preto tingido. O bar era realmente um boteco.

Não havia música nem comida. A venda era

basicamente álcool. Não sei onde é que Max conhecia

pessoas tão diversificadas como a sra. Holmes. Ela dizia

ter trinta e cinco anos, mas não aparentava menos de

cinquenta. Faltavam-lhe muitos dentes, e estava o

tempo todo falando. Mas o peso que lhe sobrava fazia

justiça ao carinho que Jon passou a sentir por ela.

Acabou até por convencer-se de que o bar fazia-lhe

230

melhor no que seu outro emprego. Ele dizia que os

melhores amigos que ele fez em toda sua vida foram os

clientes, pois eram as pessoas mais sinceras desse

mundo. Ele conhecia a história de todos os bêbados do

bar, e entendia o motivo de cada um para cair na sarjeta

quando o bar fechava. Contava sua história para eles, e

muitas vezes se perdia nas mentiras que contava. Para

cada um, era uma história diferente, e ele admitia que

ficava difícil memorizar todas.

Eu, no entanto, convencia meus “colegas”

a me fazerem fiado suas mercadorias. Eu podia passar

sem comida, mas não podia ficar sem elas.

Mas ainda íamos ao Anjos Estáticos todas

as sextas, e a nossa música ainda nos mantinha vivos.

Foi estranho como as coisas aconteceram naquela noite

em especial. Era como se tudo cooperasse para que o

231

show não acontecesse. Max se atrasou. Francie fez cena

para deixar Jon sair.

—Você prometeu que ia comigo! —Ela alterava a voz,

no corredor de tijolos, frente ao nosso prédio/pensão.

Pela primeira vez, Jon retrucou com ela.

—Eu não disse que ia. Você sabe que estou sempre

ocupado de sexta feira.

—E eu devo ir sozinha?

Eu saí do apartamento, deparando com eles.

Tranquei a porta atrás de mim.

—Onde ela quer te levar? —Eu me intrometi.

—Á uma festa. —Ele respondeu, mal humorado. —Eu

não disse que ia, droga! —Ele repetiu.

Achei que Francie fosse ter um colapso.

Não teve. Deu as costas e saiu pisando duro, com os

saltos fazendo um barulho chato, e um eco enorme no

corredor vazio.

—Menina idiota. —Eu comentei.

232

Seguimos em silêncio todo o trajeto. Ele estava

nervoso. Admira-me que tenha resistido á Francie, pela

Loveartist.

Apesar dos contratempos, o show correu

bem. Uma garota ficou trocando olhares com Jon o

tempo todo, e assim que descemos do palco, ele foi

conversar com ela.

Fiquei com Stephanie em um canto, mais

uma vez tentando convencê-la de que pararia com as

drogas.

Foi só depois de um bom tempo que eu notei

a presença de dois estranhos, em uma mesa afastada. Eu

sabia que o gordo careca se tratava de um empresário,

porque é o tipo de profissão que está estampada na

cara. O outro que o acompanhava, usava dreads

compridos, e tinha jeito de especulador. Procuravam

alguma coisa, e torci para que tivessem gostado da

Loveartist.

233

Minha expectativas falharam. Vi quando eles

se aproximaram de Jon, trocaram algumas palavras com

ele, e deixaram um cartão.

Eu imaginei o que estava acontecendo, mas

achei melhor acreditar que não. Perguntei a ele quem

eram aqueles caras no dia seguinte, quando a bebedeira

já havia passado, e tudo que restava era a ressaca.

—Ninguém importante. —Ele respondeu, dando de

ombros. —Gostariam de conversar comigo, mas eu nem

vou. Deve ser mais uma dessas coisas com as quais você

se empolga, mas acaba não dando em nada. Não quero

esperar muitas coisas, e me decepcionar depois.

Claro que ele estava mentindo. Demorou

duas semanas para falar comigo, no Anjos Estáticos,

igualzinho tinha feito da primeira vez, quando me

contou que ia fazer o curso em São Francisco. Uma

paródia, uma ironia do destino. Até hoje me pergunto

se a Loveartist poderia ter tido uma chance.

234

—Assinei um contrato com uma banda. Uma banda

iniciante também; A diferença é que eles têm uma

gravadora e um contrato de verdade.

Balancei a cabeça em negativa.

—Você não fez isso.

—Sinto muito, é que eu...

Ele não terminou a frase, porque não tinha o

que dizer. Demorei alguns segundos até digerir

completamente a informação. Depois, fiquei de pé na

cadeira, e levantei meu copo de uísque em um drinque.

—Ei pessoal! —Nem todas as pessoas olharam, mas eu

continuei, como se tivesse toda a atenção do bar voltada

para mim. —Vamos fazer um brinde em louvor ao Jon e

ao seu novo futuro. Um futuro que não inclui seus

amigos, ou a banda que ele dizia amar. —Gerald e Max

olharam para mim, confusos. Ainda não tinha recebido

a notícia. —Um brinde —Dei uma risada. —A Jon

Jordison, meu melhor amigo.

235

Jon deixou o estabelecimento, vi quando

Max e Gerald o seguiram.

A conversa que tivemos no quarto desarrumado me fez

lembrar aquilo que tínhamos conversado há quatro

anos atrás. Mas dessa vez, ele não prometia voltar oito

meses depois. E soava tão definitivo quanto possível.

—A gente nunca sabe o que vai acontecer. —Ele

justificou. —Pode dar certo, mas pode dar terrivelmente

errado.

—Então você vem com o rabinho entre as pernas,

querendo voltar. —Deixei transparecer minha irritação,

ainda que parecesse relaxado, esticado no sofá e

comendo salgadinhos. Eu via um sonho, construído

desde criança, desabar. —As coisas não podem ser

sempre do jeito que você quer.

236

—Eu achei que você fosse entender.

—Não consigo.

—Mas é meu melhor amigo. Pelo menos tente!

—Deixa disso, Jon. Você está sendo hipócrita. Não está

dando a mínima realmente, pensando nos milhões que

vai ganhar como rockstar. Não pense que é simples

assim. Só porque eles têm um empresário.

—E um contrato.

—Grande coisa!

—Nunca conseguimos um contrato. E o mais próximo

que chegamos de ter um empresário era o maluco do

Robin.

—Você está absolutamente certo. Simplesmente

abandone seus amigos, aqueles que sempre te apoiaram

por causa de dinheiro.

—Não se trata de dinheiro.

—Dinheiro e fama. Eu canto porque gosto, porque a música

me entende. Não me venha com esse papo. Poderia

237

acreditar nisso se não abandonasse sua música para fazer

a vontade dos outros. Ou pensa que vai ter a liberdade

que tinha na Loveartist quando entrar na sua nova

bandinha? Vai ser uma marionete nas mãos desses

caras.—Forcei uma risada. —Você é sensível demais

para a Cidade dos anjos. Não vai sobreviver um dia

nesse mundo.

—Max aceitou numa boa. Ele entendeu que meu futuro

não pode depender da Loveartist, ou vou envelhecer e

morrer nessa favela com você.

—O que acha que Francie vai fazer? Viajar com você?

Esperar que você volte?

—Não tenho a menor intenção de voltar. Foi esse lugar

que acabou comigo. E o que Francie e eu decidimos já

deixou de ser da sua conta.

Dei de ombros, voltando-me para o

programa de televisão que eu já nem conseguia prestar

atenção.

238

Ele aguardou uma próxima reação. Não me

movi.

—Tudo bem, então. —Tirou um cheque da carteira.

Apoiou-se na cabeceira de sua cama para assinar. —

Minha parte do aluguel.

—Não preciso disso. —Irritei-me, a quantia pagava o

aluguel inteiro e ainda sobrava um pouco. —Não quero

a droga da sua caridade.

—Dane-se. —Ele rasgou o cheque no meio. Deixou que

os pedaços caíssem no chão.

Eu ouvi Peas mais tarde, e achei o som

bem diferente da nossa banda. Não vou dizer que era

ruim. Mas senti que faltava alguma coisa. Um pouco de

sentimento, talvez. Acho que é isso o que a fama faz.

Loveartist, Espere pelo por do sol

239

Um lugar escondido

Voltando para onde comecei, todas as coisas que eu sei

Nada muito complexo

Não muito profundo, nada romântico

Apenas a superfície vazia que restou

Dentro da min da mente estou preso de novo

Dominado, não há como escapar

Nem sempre você sente

Eu escondo isso e finjo que ninguém vê!

Irreal, é sempre igual

Minha mente declara a morte da minha realidade

Até o limite da minha sanidade

Mas aí tudo isso vai passar,

E você vai achar que eu sou normal!

240

Patty Holmes Jon tinha vinte anos quando começou a trabalhar para

mim. Eu sempre soube que aquela espelunca não era

seu lugar, embora ele insistisse que gostava de seu

serviço. Soube que tinha trabalhado um tempo

cuidando dos mortos, e que aquilo só serviu para deixá-

lo mais deprimido.

Foi Max quem me apresentou a ele.

Conheço Max desde que usava fraudas, e corria pela

rua brincando de Homem Aranha. Jon tocava na mesma

banda que ele. Compartilhavam o mesmo sonho de ser

artista. Fico feliz que Jon tenha conseguido.

Eu vi um vídeo dele na televisão um dia

desses. Minha filha estava comigo na sala. Eu disse que

era aquele o garoto de quem eu já tanto falava, mesmo

depois de tantos anos, me sentindo tão orgulhosa, como

se fosse sua própria mãe. Liguei para Max, e ele falou

241

que já conhecia a banda. Comentei do quanto ele tinha

crescido. Depois desse dia, nunca mais. Não sei se

casou, se teve filhos, ou qual é o seu paradeiro até hoje.

Demorou algum tempo até que ele se

sentisse á vontade para conversar comigo. De início ele

era muito tímido, conversava pouco. Em seus últimos

meses no bar, ficávamos até tarde conversando, depois

do expediente.

Ele contava pra mim sobre sua namorada.

—Ela faz com que eu me sinta contra a parede o tempo

todo. —Explicou, enquanto tomava a dose diária de

Vodca. Ele do lado de dentro do balcão, eu sentada

numa cadeira do outro lado. Metade das luzes estavam

apagadas.—Entende? Estou sempre impelido a fazer a

sua vontade.

—Meu marido era assim. —Fiz o sinal da cruz. — Que

Deus o tenha! —Sorri, olhando para ele. Era um menino

lindo. Eu gostaria de ter tido mais tempo com ele. —O

242

almoço saía ao meio dia. —Continuei a história, virando

meu copo também. —Uma vez, atrasei dez minutos. Ele

fez minhas malas e disse para eu ir embora. Ah, Cristo!

Não se deve falar mal dor mortos. Mas ele foi a maior

praga da minha vida. Afaste-se dessa menina enquanto

há tempo.

—Ela me levou numa festa ontem. Eu disse que não

queria ir, estava cansado. Olha só pra mim. Estou

morrendo de gripe! —Ele cruzou os braços sobre o

balcão e apoiou a cabeça como se estivesse dormindo.

—E como eu sou um idiota completo, eu fui! Aquelas

meninas cheias de olhares superiores. “Francie, como

pode estar com esse cara?”, eu posso ler seus pensamentos.

Suspirei, em concordância. Já tinha visto a

menina algumas vezes,e não tive boa impressão dela.

Ela ficava na porta do bar, esperando que ele saísse,

numa estranha pose de supervisora. Eu sabia que não

era a pessoa certa para Jon.

243

—Eu fazia tudo que meu marido queria, e vejo minha

filha indo para o mesmo caminho. —Contei. Foi incrível

a forma de como nos tornamos próximos em apenas um

ano. Chegou uma época que sabíamos tudo a respeito

um do outro.—Veja só, o cara não faz nada o dia inteiro.

Ela sustenta a casa, passa e cozinha, e ainda tem que

cuidar do bebê. E sabe o que ele faz? Para não dizer que

não ajuda, ele levanta os pés para Mary varrer embaixo

do sofá.

Ele riu, lembrando-se do episódio que

lhe contei. Eu jogando um balde de água gelada pela

janela, acertando bem a cabeça do meu genro.

—Vamos combinar para matá-lo. —Brincou.

—Certo. E depois matamos sua Francie.

—...Imaginar que isso é uma danceteria. —Jon falava

com o Fantasma, um dos meus clientes diários, cara tão

244

pálido que dava a impressão que ia desaparecer. Entrei

no bar, carregando algumas sacolas. —Ali estão as luzes

coloridas. —Ele explicava, apontando para o teto. —

Elas piscam tanto que te deixam tonto. —Indicou o

cliente que dormia em uma das mesas, a cabeça

abaixada apoiada nos braços. —Peixinho Dourado é

uma das garotas bonitas. E a sra. Holmes é a garota que

você quer conquistar.

Fantasma assentiu. Coloquei as sacolas em

cima do balcão, e ia passar para o lado de dentro

quando ele me impediu.Pegou minha mão. Deu um

beijo nela.

—Com licença, mo...Moça. —Tentou, a voz embargada

pela bebida. —Pode me con... Conceder essa dança?

Sorri para Jon.

—Claro, senhor. —Respondi, e ele me conduziu há dois

passos, imaginando que me me levava para o meio do

salão da discoteca.

245

Começamos a dançar no ritmo da música

imaginária. Jon ria atrás do balcão. Parou para atender

um cliente que acabara de chegar, mas Fantasma e eu

não paramos a dança. É incrível como somos capazes de

nos divertir em circunstâncias como essas —A dona de

uma espelunca, clientes embriagados que nem sempre

pagam o que devem, cada vez mais em decadência.

Acho que fazemos isso para não enlouquecer. Depois

que serviu a bebida do Tenente, Jon voltou á sua

posição de DJ.

—Agora, uma música menos dançante. Sintam essa

baladinha.

Dançamos colados, o hálito cheio de álcool

dele batia em meu rosto, sem piedade. Ele pisou nos

meus pés tantas vezes que fui incapaz de contar.

Quando cansamos, eu fui para o lado de dentro do

balcão. Esbocei um sorriso amarelo de brincadeira.

246

—Parece que se divertiu bastante, não é? —Perguntei

para Jon.

Fantasma tirou um chapéu imaginário em

reverência a mim.

—Até mais, bela dama.

—Diga cherry. —Jon provocou.

—Cherry.

Ele foi sentar-se á uma das mesas, com

uma garrafa de vinho aberta á sua frente. .

Peguei os pratos sujos e comecei a lavá-

los. A pia de barro estava manchada de gordura, porém

bem mais limpa do que antes de Jon começar a

trabalhar comigo.

—Como está Francie? —Perguntei.

—Na mesma. —Deu de ombros. —Pode deixar isso aí,

eu vou lavar.

247

—Você devia conhecer minha filha. —Larguei o copo

ainda ensaboado na pia. —Quem sabe dariam um belo

casal.

—Quem sabe?

—A quem eu tento enganar? —Bati no balcão, nervosa

de brincadeira. —Eu é que queria casar com você.

—Ninguém sabe o que o futuro nos reserva. E você é

muito mais bonita do que Francie.

Pintado, o bêbado cheio de sardas, sentou-se

frente ao balcão e fez o seu pedido.

—Está melhor, Jon? —Ele disse.

Jon pensou por um instante antes de

responder. Suspirou.

—Cada dia, uma nova luta.

—Está melhor do quê, Jon? —Intervi, com um sorriso.

Ele permaneceu sério.

—Daquele meu probleminha de dupla personalidade.

Dei uma longa risada.

248

—Dupla personalidade?

—Sim, você não sabia? —Ele indagou, com surpresa.

—Não!

—Pois é. —Dramatizou. —Céus, como isso é difícil.

Olhei para Pintado. Ele realmente engolia a

história absurda.

—Jon sofre de uma grave e rara doença. —Ele explicou,

com ar sério. —Jon sabe que Jack existe, mas Jack nega a

existência de Jon.

—O maior problema —Jon completou, para mim. —São

os relacionamentos amorosos. Jack tem uma namorada,

e eu tenho outra.

—Nossa, isso deve ser dificílimo pra você, não é? —Fiz.

—Você nem imagina o quanto.

Eu ri.

—Você vai para o inferno. —Passei para o outro lado do

balcão. —Preciso dar uma saída. Cuide desse

manicômio pra mim, certo.

249

Ele me deu um sorriso.

—Será o maior prazer.

Fiquei muito feliz por ele quando me contou que estava

indo para Los Angeles, e tinha acabado de assinar um

contrato com a tal banda. Eu teria direito de ficar

chateada, pois me avisou em cima da hora, e eu não

tinha alguém para colocar em seu lugar imediatamente.

Mas não fiquei. Acho que teria sido impossível ficar

brava com Jon. Eu entendi que ele havia achado o que

tinha procurado a vida inteira. Eu sabia que daria certo.

Ele trabalhou apenas meio período

naquela terça feira, e veio despedir-se de mim e dos

clientes na quarta feira, o dia de sua viagem.

Ficamos algum tempo conversando no

bar, como fazíamos sempre, antes dele partir.

250

Jon trabalhou apenas metade do período naquela quarta

feira. Disse que estava indo para Los Angeles naquela

tarde. Claro que fiquei chateada com sua partida, mas

entendi que tinha encontrado o que estivera

procurando.

—Por que é tão difícil fazer as pessoas entenderem? —

Perguntou para mim, enquanto enchia o copo de uma

cliente já embriagada. —Heitor não entendeu. Francie

menos ainda.

—Já falou com Francie?

—Levei ela para almoçar ontem . Pela primeira vez, em

um restaurante decente, esses cheios de talheres

diferentes, e taças legais. —Deu seu habitual sorriso de

criança. —Eu não sabia nem o que pedir quando li o

menu. Graças a Deus ela sabia!

—Ela não reclamou, pela primeira vez na vida?

—Achou estranho. Mas imagino que tenha gostado.

Pelo menos até a chegada da sobremesa, que foi quando

251

eu contei onde tinha arrumado o dinheiro para pagar a

conta do restaurante.

—Ela deve ter pensado que você considerava a idéia de

fugir depois de comer. —Dei risada.

—Não seria má idéia. A lasanha deles é ótima.

—Comida italiana?

—Muito chique. Você precisava ver. Vou te levar um

dia desses.

—Promete?

—Com certeza.

Seu olhar ficou perdido por um instante.

Pensava em Francie. Eu sabia que ela não o apoiaria, se

nem o próprio Heitor tinha feito isso. O que me

preocupava era imaginar se Jon deixaria passar essa

oportunidade por causa dela.

—O engraçado, —Ele continuou, sentando-se em á das

mesas. Eu o acompanhei. — É que Francie não queria

que eu fosse naquele show. Não sei porque, mas é como

252

se pressentisse algo. Queria ficar comigo aquela noite.

Insistiu tanto... Imagina só, eu disse não! Justamente

naquela noite.

—Existem coisas que foram feitas para acontecer.

Ele concordou entusiasticamente.

—Eu estava nervoso, tínhamos chegado atrasados,

quase não nos apresentamos. Parecia que tudo

cooperava para que não desse certo. Mas os caras

estavam lá, a procura de um vocalista maluco.

A partir desse momento, minhas dúvidas

se dissiparam. Tudo iria sair bem, muito bem. Porque

não tinha outro jeito. Porque eu estava vendo ele feliz, e

isso pareceu a coisa mais importante do mundo naquela

hora.

—Francie disse que vou me arrepender. —A antiga

insegurança voltou a assombrar-lhe. —Disse que essas

coisas nunca saem do jeito que esperamos.

253

—Essa menina não sabe de nada. —Abanei a mão num

gesto de quem não deve se importar. —O que vale é o

que sente seu coração.

—Eu nunca confiei no meu coração, é a última coisa em

que devo confiar, acredite. Melhor, na minha mente,

porque meu coração não passa de mais um músculo

controlado pelo cérebro. —Suspirou. —Não, meus

sentimentos não são confiáveis.

O Poodle entrou no bar. O homem baixinho e

atarracado tinha esse apelido por causa de seus tufos de

emaranhados cabelos brancos. Jon ia levantar-se para

servi-lo, mas eu o impedi. Fiz o serviço e voltei á mesa.

Agora ele tinha a expressão triste.

—O que foi?

—Só estou pensando... Ei, você precisava ver. Teria sido

cômico se não fosse trágico. Ela ficou nervosa quando

disse que estava saindo de Bakersfield. Gritou no meio

do restaurante, perdeu toda sua classe. —Deu uma

254

risada. —O pessoal ficou olhando. Nada mal para uma

estréia em um lugar chique, não é?

—O que ela disse?

—Blá blá blá, “Pode ir se quiser”. O que frequentemente

quer dizer: se sair daqui, vou te matar. Então ela disse

que ia pra casa caminhando, estava cansada de andar

comigo de ônibus. Problema dela, entende? Acho que

cansei.

—Acho isso maravilhoso, Jon. Mas não entendo... Esses

caras te viram cantando uma vez, e, pumba! Você é o

vocalista oficial deles?

Ele apoiou o rosto na mão, o cotovelo na

mesa.

—Não te contei essa parte? São completos idiotas.

Ligaram depois que eu voltei do bar que Max me levou,

naquela comemoração, e disseram para eu ir até a casa

de um deles. A casa era grande, tinha até um jardim.

Acho que era dos pais do baixista. Sabe o que me

255

falaram? —Balancei a cabeça em negativa. —Pediram

que eu cantasse. Imagina só, cantar para eles me

avaliarem! Fiquei nervoso, muito nervoso. Estava

prestes a sair de lá, dizer para que se ferrassem, todos

eles. E eu tinha comemorado antes de assinar o contrato

que deveria mudar minha vida!—Deu uma rápida

olhada pro relógio de pulso. —O gordinho dono da casa

disse que aquilo tudo era ridículo e desnecessário. ”Isso

aqui não é um concurso de canto”. Bom, acabei assinando o

maldito contrato sem cantar coisa nenhuma. Fui

obrigado a comer um negócio que o tal do Reg chamou

de camembert empanado. E até que não estava tão

ruim... —Ele levantou e pegou a mala. —Eu perguntei

por que ele me defendeu, sendo que nem tinha ido ao

Anjos Estáticos, não sabia se eu era bom de verdade.

“Procuramos muitos e não achamos ninguém. Eu cansei.”

Quase que explodo de ódio, claro. Preciso ir, sra.

Holmes.

256

—Será que até agora vai me chamar de senhora, pelo

amor de Deus?

—Patty.

—Vou sentir sua falta. —Eu abracei ele.

Sem pensar, beijei sua boca. Ele resistiu

de início. Sei que não queria, mas não pude evitar. Sabia

que era minha última chance.

Marinheiro e Poodle levantaram e

aplaudiram. Soltaram vivas e assobios. Agora sim meu

bar parecia um hospício.

—Isso aí, Jon! —Fantasma gritou, quando eu liberei ele

do abraço. —Se deu bem!

Jon riu, meio em choque. Deu um

abraço nos clientes.

—Até mais, rezem por mim.

—Sempre, amigo! —Poodle piscou.

—Boa sorte. —Eu falei.

—Obrigado. Vou precisar.

257

Foi muito triste vê-lo saindo. Passei a rezar

por ele todas as noites.

258

Reg Levesque

Tornamo-nos melhores amigos quase imediatamente.

Ele ficou nervoso quando duvidaram do seu talento,

mas vi na sua cara que se tratava da pessoa que

procurávamos. Ele hesitou antes de assinar o contrato,

mas eu sabia que o faria. Tinha vindo até minha casa

para isso.

Ele mal conversava com os garotos da

banda. Viajamos em uma quarta feira de natal, quando

já planejávamos a gravação de um álbum que ainda

nem existia, e pedimos para que ele escrevesse as letras.

Nenhum de nós sabíamos escrever uma boa letra de

metal, essa é a verdade que tivemos que admitir.

Tentamos depois que nosso outro vocalista

oficial desertou, sob a alegação de que tinha encontrado

uma banda melhor. Não saiu absolutamente nada em

nossas escritas, por mais que parecesse fácil. Tudo que

259

consegui foram algumas palavras divertidas, que

falavam sobre álcool, mulheres e carros.

—Não é isso. —Paul objetou, quando leu a primeira

estrofe da minha obra. —Nós temos que falar sobre ódio

e dor. Isso não tem nada a ver, seu imbecil.

Eu xinguei de volta, embora concordasse.

Escrevi alguma coisa, mas se o sentimento não é real,

nem adianta continuar. Jon acabou por pegar algumas

das letras de sua ex banda, por falta de tempo para

escrever. Sei que não faria nada se o obrigássemos a

fazer. Jon era o tipo de pessoa que não gosta de

obedecer. De forma que eu nem mencionei mais o

assunto de material inédito, deixei por conta dele.

Estávamos no aeroporto, prestes a

começar o primeiro mês do resto de nossas vidas.

George passou por nós.

—Vamos, meninas. O avião já está saindo.

260

Caminhamos a passos largos pelo corredor

cheio de pessoas de várias nacionalidades. Eu dizia a

mim mesmo que era assim que deveria ser, precisava

me acostumar. Pessoas diferentes, lugares diferentes.

Minha vida nunca tinha sido tão excitante. Não seria

esforço algum viver daquele jeito para o resto da vida.

—Por que eles são assim comigo? —Jon indagou,

referindo-se aos outros caras da banda.

Não era momento para esse tipo de

conversa, mas cedi.

—Vão melhorar. —Assegurei, virando meu copo de

café num gole só.

—Não, não vão.

—Como pode saber? —Perguntei.— Conheço esses

caras bem melhor do que você. Só que acham você é um

idiota arrogante.

Percorremos o resto do trajeto em silêncio.

Vi tanta gente diferente... Meu sonho estava se

261

realizando. Íamos mesmo gravar um CD, tínhamos

mesmo uma gravadora, e até patrocinadores.

—Nervoso? —Perguntei, quando tomamos nossos

assentos dentro do avião.

—Um pouco.

—Nunca estive tão animado em toda minha vida.

Recebemos a ordem de apertar os cintos de

segurança.

—Dá pra acreditar que estamos aqui?

—Não, nunca. —Ele respondeu, um pouco vagamente.

Não sei se prestava atenção em mim.

—As únicas pessoas que acreditavam eram minhas

irmãs.

A contagem regressiva começou. Percebi

que Jon respirava fundo várias vezes.

—Já viajou de avião antes?

—Não.

—Sente-se bem?

262

Ele assentiu sem convicção. Já começávamos

a decolar.

—É muito seguro. —Garanti. —Não há tantos riscos

assim, Jon. Se precisar vomitar, use aquele saquinho

plástico ali, certo? É normal sentir-se enjoado na

primeira vez.

—É que fica meio difícil de respirar.

—Não tem nada a ver. Tem ar de sobra aqui dentro. É

só da sua cabeça. Espere até que o avião se estabilize.

Vai parecer que estamos em casa.

—Acho que sou meio claustrofóbico, não sei. —Ele

agitou-se, puxando o cinto de segurança para a frente,

como se tentasse libertar-se dele, mas sem abri-lo. —

Acha que podemos voltar?

—Trauma de infância? —Tentei distraí-lo.

—Fiquei algumas horas presos em uma biblioteca

escura.

263

Permanecemos em silêncio. Torci para que

ele ficasse bem. Precisava ficar. Lembrei-me mais uma

vez que aquele era o começo de nossas vidas. Não havia

tempo para claustrofobia.

Tudo que ouvíamos era o chiado baixo do

avião contra o vento. A tontura inicial já havia passado.

Eu me sentia realmente bem.

Disse alguma coisa para Paul, sentado do

outro lado de nossos assentos. Fiz uma brincadeira

qualquer sobre ele estar pálido de medo.

Jon estava em silêncio, olhando pela

janelinha.

—Sente-se bem? —Indaguei de novo.

—Acho que não tenho outra escolha.

Nossas viagens de avião não tiveram

mudanças com o decorrer do tempo. Jon nunca perdeu

seu medo infantil de voar, e sua mania de insistir na tal

da claustrofobia. Mas sempre foi muito corajoso, pois

264

nossas viagens de avião se tornaram cada vez mais

frequentes desde a primeira vez.

Os hotéis em Los Angeles com certeza são os melhores

do mundo. Até mesmo em comparação com aqueles

onde eu passava as férias escolares com minha família.

Viajávamos para a Europa, uma vez fomos até a

América do Sul. Saíamos o tempo todo, quando meu pai

não estava trabalhando. Os passeios de família não

falhavam nunca, jantares, festas ou eventos. E tudo o

que eu queria era ficar em casa, para jogar futebol com

meus amigos na rua.

Nosso progresso com a Peas foi grande e

rápido. Em menos de um mês, entregamos um álbum

pronto para a gravadora, e começamos nossa primeira

turnê em alguns estados nacionais.

265

Tínhamos uma Kombi que nos servia para as

longas estradas entre um lugar e outro. Ela balançava

muito, e por mais de uma vez, fomos obrigados a descer

para empurrá-la, até que voltasse a funcionar. Nosso

motorista nos abandonou na primeira semana de

viajem, e George assumiu o volante, dividindo a função

de empresário e motorista, até darmos sorte de

conseguir alguém muito corajosos para enfrentar as

longas estradas com nosso decadente carro.

Quando começamos a ter o privilégio de nos

hospedar dignamente, levávamos dentro da mala

sabonetinhos e mini garrafas, ou o que mais

pudéssemos roubar dos hotéis. Jon achava o máximo

aqueles refrigeradores pequenos, porque eram iguais os

que via nos filmes de Hollywood. Eu morria de rir, e

diziam que eles eram pobres e deslumbrados, e nada

poderia mudar isso.

266

A essa altura, a banda estava em perfeita

união. Jon finalmente conseguiu convencer os rapazes,

sem usar nenhuma palavra, que era um de nós. O

engraçado é que aos poucos ele tomou a liderança da

banda, sorrateiramente, e acho que nem ele percebeu

isso. Simplesmente nasceu para isso. Para ser líder de

uma banda internacionalmente famosa.

Quando conseguimos um trailler de

verdade, queimamos nossa antiga Kombi em praça

pública. Foi um dos melhores dias de nossa vida.

Levamos uma multa por isso, mas não importava.

Estávamos livres daquela ridícula lata velha.

A nossa primeira turnê internacional foi excitante,

apesar de exaustiva e ansiosa. De início, estávamos com

medo do público lá fora. Nossas expectativas foram

superadas. Não importava que aquelas pessoas não

267

falavam nosso inglês. Conversávamos em nossa própria

linguagem: A música. E essa língua eles entendiam

muito bem. Em nosso primeiro show dessa turnê, o

público foi extremamente caloroso, como se conseguisse

ver o quanto estávamos nervosos, e foram bondosos

conosco.

Fomos jantar juntos no salão do hotel.

—Nunca mais ouviu falar de sua ex namorada? —Ryan

perguntou a Jon.

Nós sabíamos de Francie por causa das letras

que ele tinha escrito para ela. Na verdade, forma apenas

duas músicas com linguagem direta, e algumas outras

que apenas dava a entender, e misturava outros

assuntos, de forma confusa, como sempre tem que ser.

Ele dizia que escrever libertava sua alma.

268

—Graças a Deus, não. —Ele respondeu, sem soar

convincente.

—A fila anda, não é? —Nosso baterista Joey riu.

—E como anda!

Eu não tinha certeza se Jon não gostava mais

dela de verdade. Mas esse é um assunto que homens

não conversam, por isso eu não poderia ter certeza. Mas

sei que o ódio sempre está ligado ao amor, e da forma

cheia de raiva que ele falava a respeito, despertava

minhas suspeitas.

Jon não nos acompanhou em uma viagem extra oficial a

Bakersfield. Ele não tinha nada mais a ver com a cidade

que fazia com que tivesse pesadelos.

269

Devo dizer que foi estranho entrar em casa,

carregado de lembrancinhas adquiridas em outros

países. Minha mãe estava tão contente por mim quanto

nunca imaginei que estaria. Sonhava para mim uma

faculdade, que eu me tornasse advogado ou qualquer

outra coisa cheia de burocracia. Meu pai comentou que

viu um pôster da minha banda em alguma loja, e mal

acreditava que era mesmo minha foto ali na parede.

—Esse aí é meu filho. —Ele comentou com o

comerciante, uma cena que eu não consigo imaginar.

Era raro os integrantes da Peas serem

reconhecidos na rua, mas acontecia. Em sua maioria de

fãs, eram jovens vestido de preto, lotados de piercings e

tatuagens, com aquela atitude forçada de quem odeia

tudo e todos. Tal como víamos em nossos shows. Esses

adolescentes malucos eram nosso maior orgulho. Com

maior prazer, eu lhes dava um autógrafo ou dizia olá.

270

Dificilmente Jon parava para cumprimentá-

los. Odiava a idéia de ser reconhecido, talvez porque

ficasse sem jeito, ou fosse mesmo um idiota arrogante. A

não ser que fossem as crianças. Para elas, ele dava

autógrafos de bom grado, mesmo quando não estava de

bom humor. Sorria e conversava com elas.

Eu também sempre as adorei, embora elas

não pudessem ir aos shows. Eram nossas fãs mais

sinceras.

Eu tive Charlie, meu primeiro filho na

época que Jon conheceu Renée. Ela era filha de um

produtor francês que nos auxiliou na gravação de um

vídeo.

Tinha que ser loira; Até onde sei, Jon só

namorou loiras. Talvez fosse um fascínio, ou uma

tradição. Bom, Renée pintou o cabelo de preto alguns

meses depois de conhecê-lo, mas nem por isso o

casamento deixou de acontecer. Foi uma festa á fantasia,

271

em um buffet com poucos convidados. Ela se vestiu de

fada, uma fada um pouco acima do peso, e ele do herói

Zorro, para fazer jus áquele bigodinho horrível que

usava.

Eu gostava particularmente da nova esposa

de Jon. Não era como Paula, minha esposa na época.

Renée nos acompanhava quando íamos beber cerveja e

whisky nos bares de Los Angeles.

Peas, Para achar a frase perfeita

Somos muitos

Estamos sozinhos

Esse mundo enorme – Tão fundo, tão cheio

Cheio de corações...

272

Corações diferentes que não sentem o mesmo

Eu não sou igual

O que é minha existência?

Outro número, outro rosto

Poder para os poderosos, esperança para os esperançosos

Não é fácil, não é divertido

As emoções mais profundas que já encontrei

São aquelas que ninguém aceita existir

Aquelas que todos disfarçam

O ódio e a dor...

A dor que rasga meu coração!

A dor que eu aceito sentir!

Ódio, aquele que encontrei

Dor...

Me faz sentir! Me permite respirar!

O que impulsiona todos a fazer as coisas

Mas ninguém vê

Está dentro do coração de cada um

A emoção mais sincera

273

Pura e sincera

Do que essa vida e esse mundo são feitos

Talvez tenha sido exatamente ali que as coisas

começaram a ficar erradas.

Tínhamos voltado de uma turnê

mundial, referente ao segundo álbum da Peas. Dessa

vez, passaríamos bastante tempo em casa. Umas férias

merecidas depois de tento tempo fora.

Acho que ficar muito tempo em casa

acabou por entedia-lo, ou qualquer coisa assim. A

verdade era que tudo cooperava para o mal de Jon. A

começar pela casa que ele tinha arrumado. Uma mansão

velha e mal cuidada, a três horas da minha casa. Os

portões de ferro enferrujado, as tábuas de madeira que

serviam como piso rangiam durante a noite, tudo era

antiquado e estranho. Jon insistia que parecia com uma

274

mansão de filmes de terror, e estava fascinado com sua

nova casa. Estava instalado no meio do nada, com sua

esposa, longe da cidade. Nem mesmo o sinal de telefone

ou da televisão funcionava direito.

—Realmente —Brinquei.—Parece um filme de terror. E

sabe o que vai acontecer? Vai começar a ver espíritos.

Ou vai enlouquecer e matar sua mulher.

Ás vezes, eu tinha a impressão de que Jon

vivia em um filme de terror particular. Tinha ataques de

pânico, achava que estava sendo perseguido. Suspeitei

que ele estivesse doente desde o começo. Pensei na

síndrome do pânico, ou na depressão, maus que

parecem muito comuns hoje em dia.

Renée me ligou, um tanto desesperada, e

pediu para que eu fosse ver Jon em sua casa.

Entrei no quarto. Renée estava lá, e

também Tammy, a filha de seu primeiro casamento. De

início, achei que Jon estivesse doente. Estava deitado na

275

cama, completamente imóvel. Puxei uma cadeira para

sentar ao seu lado.

—O que foi?

Ele não respondeu. Virou o rosto para o outro

lado do travesseiro. Olhei para Renée. Ela apoiava os

braços na janela aberta, e observava o lado de fora,

como se pretendesse ficar de fora da cena que acontecia

lá dentro.

Tammy foi quem me deu a resposta.

—Mamãe disse que tio Jonathan está triste.

—Sabe o que foi que aconteceu?

Tammy deu de ombros.

—Pensei que eu tivesse feito alguma coisa para magoá-

lo, mas ele disse que não.

Renée interferiu.

—Está aí há horas. Recusa-se a falar com qualquer um.

Por isso pedi para que você viesse. Será que pelo amor

de Deus pode fazer alguma coisa?

276

Notei que ela falava rispidamente. Talvez

tivessem brigado. Tentei de novo.

—Jon? Por favor, Jon, fala comigo.

Demorou bons minutos de insistência

para que ele levantasse os olhos para mim.

—Pode me dizer, se sente mal?

Ele assentiu e sentou-se na cama. Fiquei

feliz com o progresso. Pegou um livro no criado mudo.

—Vai começar a ler, e vai me ignorar? —Perguntei.

Exatamente. Renée saiu do quarto. Eu a

segui, e também Tammy. Pequei a menina no colo.

—Não sei por quanto tempo vou suportar isso. —Renée

disse, enchendo um copo de vinho.

—Tem acontecido com frequência?

—Ele deita naquela cama e não quer falar com ninguém.

Ontem tentei conversar com ele. Começou a gritar que

eu não sabia de nada, era uma idiota, burra, que nunca

277

conseguiria compreendê-lo. Fico me perguntando o que

foi que fiz de errado.

Nosso guitarrista veio vê-lo no dia

seguinte. Jon continuava exatamente do mesmo jeito. Só

sentava na cama para ler, se recusando a falar com

qualquer pessoa. Eu sabia que começava a agir como

louco.

—Não está comendo? —Paul indagou.

Renée fez que não.

—Nem dormindo. —Completei.

—Jon? —Ele chamou, sabendo que seria inútil. —É uma

crise de depressão. Só um pouco mais acentuada do que

das outras vezes. —Paul tentou explicar para Renée,

com ar entendido. —A culpa não é sua, pode ficar

sossegada. Ele tem estado assim com a gente também.

—De novo para mim. — Lembra que ele chorou na

França só por que gostaria que Renée estivesse com ele

para ver a Torre Eiffel?

278

—Sim. —Concordei, recordando-me. —E não pense que

foram só umas lágrimas derramadas. Chorou de

soluçar, mesmo. Achei que ia derreter.

—Ele precisa de um médico. —Paul sugeriu, como se

nós não soubéssemos disso.

Jon olhou para nós. Finalmente interagiu,

gritando alguma coisa, de repente. Lançou o livro no

chão, fazendo um barulho oco.

—Por que ficam me ignorando? Odeio quando agem

como se eu não estivesse aqui. Odeio, odeio, odeio!

—Tudo bem, Jon. —Fiz, com voz calma, como se

estivesse falando com uma criança contrariada. —Será

que quer conversar agora?

—Não!

—Então por que diabos está reclamando? —Me

irritei.— Não quer falar com a gente.

Percebi que ia chorar.

—Não me sinto bem.

279

Paul sentou-se ao seu lado. Ele tinha sido

lutador no passado, e ainda conservava músculos que

poderiam assustar qualquer um. Com certeza era nossa

mina de ouro, nos casos de confusões em boates.

—Só queremos te ajudar. —Tentou. — Vamos procurar

um médico. Ele vai te prescrever algumas pílulas, e

você vai ficar bom.

—Não quero ficar bom. Isso só vai prolongar minha

vida.

—Pretende ficar nessa cama até morrer?

Ele assentiu. Parecia mesmo uma criança.

Paul levantou-se, como se desistisse.

—Se trouxermos um médico aqui. —Arrisquei. —Você

ouviria ele?

—Ele quem?

—O médico.

Jon esboçou um sorriso.

—Claro, o médico.

280

—Ouviria?

—Depende.

—Do quê?

—Do que ele vai dizer. Se me chamar de louco, não.

Estou cansado. Acho que tem alguém na porta.

—Não tem. —Foi Renée quem respondeu.

—Talvez seja o médico. Mande ele embora. Cadê meu

livro? —Sua voz se alterou novamente. — Por que

pegaram meu livro? Droga, eu quero meu livro!

—Se quiser seu livrinho —Paul falou. —Vai ter que

levantar para pegá-lo.

—Não posso. Minhas pernas não funcionam mais.

—Está mentindo.

—Sim, estou. —Sorriu. —Olá, Tammy.

A menina abriu um sorriso e pulou na cama

com ele.

—Acha que preciso de um médico, Tammy?

—Mamãe acha que sim.

281

—Pois não preciso. Repita comigo: O tio Jon não precisa

de um médico.

—O tio Jon não precisa de um médico.

—Muito bem, boa garota. —Jon falou, ainda

conservando um sorriso. —Ele só está um pouco

cansado.

Olhei para Paul e depois para Renée. Pensei

que ele só estivesse querendo chamar a atenção. Não era

possível que estivesse enlouquecendo. Era como se isso

não pudesse acontecer na vida real.

—É você quem sabe. —Fiz, caminhando para a porta. —

Se quiser nossa ajuda, sabe que pode contar com a

gente. Vamos, Paul.

Antes de sairmos, ele disse:

—Danem-se. Não quero a droga da ajuda de ninguém.

282

Jon desapareceu durante uma semana depois disso, e

justamente quando íamos acionar a Polícia, ele retornou

á sua casa, na maior inocência possível. Alegou não se

lembrar de nada. Disse que acordou em um quarto de

hotel, imaginando estar ainda em turnê com a banda.

Voltou mais magro e abatido, e só Deus sabia por onde

tinha estado. Não acredito que não se lembrasse

realmente. Deve ter sentido vergonha, e achou a

mentira a saída mais fácil.

Para espantar seus demônios, ele voltou a

beber. Eu via ele cair em um abismo, e me sentia

impotente. Eu nada podia fazer para salvá-lo.

Ele dizia não acreditar que havia algo de

errado acontecendo com ele. Alegava estar apenas

passando por uma fase difícil. Para mim e as pessoas

que o rodeavam, era mais fácil acreditar que Jon estava

certo, aquilo tudo ia passar. Ele recusava-se veemente a

283

ver um médico. E por mais que tentássemos nos

enganar, sabíamos que havia uma tragédia eminente.

Mas essa tal tragédia foi adiada no dia em

que ele conheceu Debbie.

Meu casamento já não ia bem, e eu só o mantive por

mais tempo por causa de Charlie. O mesmo estava

acontecendo com Jon e Renée. Frequentemente, ele

aparecia na minha casa, ou na casa de Paul para pedir

um abrigo durante a noite. De vez em quando ele

chorava, ou simplesmente decidia que se separaria dela.

Não sei exatamente o que o impedia de fazê-lo, se era o

medo de ficar sozinho, ou Tammy.

Eu o aconselhava a deixá-la, ainda mais

agora que tinha Debbie. Era uma perda de tempo, tendo

284

em vista que seu casamento não estava dando certo,

mesmo.

—Ela está brava porque não cumprimentei as amigas

dela. —Ele disse, colocando a mala improvisada em

cima da cama do meu quarto de hóspedes.

—O quê?

—Isso mesmo, meu amigo. Não parece loucura?

—Acho que sim. —Arrisquei, sabendo como melhor

amigo que Jon não era tão inocente quanto achava que

parecia. Renée não ficaria brava á toa.

—Minha casa estava cheia, aquelas vadias imprestáveis.

Não gosto delas. Não disse nada quando passei pala

sala de estar. Deveria ter dito?

—E por isso Renée ficou nervosa?

—Por isso, e porque eu disse que ela é uma vadia sem

vergonha, que fica desperdiçando tempo com suas

semelhantes, e depois só sabe me criticar.

Dei uma risada rápida.

285

—Só por isso?

—Sim. —Ele sorriu em sua auto ironia.—Estou cansado

disso, Reg. Você não imagina como.

—Claro que eu imagino. —Baixei a voz. Paula dormia

no quarto ao lado, e logo eu teria que estar ao seu lado.

—Não acha que também não estou louco para dar o

fora?

—Então por que não caímos fora simplesmente? —Ele

indagou, deitando na cama. Cruzou os braços sob a

cabeça. —Parece que sempre ficamos quando devemos

ir embora.

—Eu penso todas a s manhãs. Hoje é o dia, hoje eu vou

embora. Pensei isso essa manhã. E veja, aqui estou eu.

—Não posso entender. Nós nos amávamos tanto... Era

tudo tão perfeito. E, pouco a pouco, nosso amor foi se

transformando em ódio.

—É uma pena. Renée é legal. —Pensei por um minuto

na outra loira na vida de Jon. A garota de cabelo

286

encaracolado, e com um sorriso de anjo. — Se bem que

entre ela e Debbie, acho que eu escolheria Debbie.

—Porque ela é mais bonita?

—Também por isso.

—Já tentamos conversar, sabe? Esse negócio chato de

sentar e expor nossos sentimentos. Cara, piorou tudo.

Eu assumi coisas que não deveria ter assumido.

—Isso nunca dá certo. Por isso que eu e Paula nunca

tentamos. Acho que devemos simplesmente aceitar que

vamos passar o resto de nossas vidas desse jeito.

Condenados até envelhecer. E aí quem sabe as coisas

não começam a funcionar?

Ele assentiu e tirou um comprimido da

carteira. Engoliu-o a seco. Balancei a cabeça em

desaprovação.

—Você não deveria se auto medicar desse jeito. Sabe o

quanto isso é perigoso.

—Por quê? Tem dado certo até agora.

287

—E ainda mais esses aí, com a tarja preta. São os mais

fortes.

—São os que viciam. Deixe disso, Reg. Eles ajudam a

controlar minha loucura. —Enfiou-se em baixo do

cobertor, e fez um sinal para que eu deixasse o quarto.

—E me fazem dormir, também.

—O problema é seu. —Dei de ombros. —Mas fique

sabendo que não vou visitá-lo no hospital todos os dias,

quando ficar internado e inválido por causa dessas

coisas. —Abri a porta para sair. —E não vou te levar

chocolate também.

—Aí você pegou pesado! —Ele gritou, depois que saí.

Era inverno em Nova York.

Reclamávamos o tempo todo, apesar de

estarmos em lugares mais frios do que aquilo, estar em

288

nosso país nos instigava a vontade de estar de volta á

Califórnia.

Estávamos com Mike, um amigo que

morava por lá, o qual conhecemos durante uma

gravação qualquer. Ele não era do nosso meio, era um

hip hopper famoso por conquistar as mulheres. Levou-

nos á uma casa noturna. Jon achava barulhenta demais,

a música repetitiva demais, o lugar escuro demais, mas

o que não faria quando dizíamos que tinha a chance de

conhecer novas garotas?

Aproximei-me de uma das mesas do canto,

um pouco mais afastada que as demais.

—Oito. —Eu fiz o sinal com os dedos. Era mentira, tinha

conseguido beijar metade desse número de garotas.

—Sei. —Jon riu.

—Você, garanhão? Quantas?

—Não quero falar de números.

—Vamos!

289

—Três.

—Fracote.

—Se liga só. —Mike interrompeu, de repente. Segurava

um copo de conhaque que parecia pender de seus

dedos. Chamou a atenção para uma ruiva muito alta

que dançava sozinha no meio do salão. —Ela não dá

mole para ninguém. Foi a única que me deu um fora em

toda minha vida.

Jon e eu trocamos olhares incrédulos. A

única, claro.

—Aposto que eu consigo. —Falei, de alguma forma,

convencido.

—Duvido. —Jon fez.

—Ah, é? E o que faria no meu lugar, bonitão?

Ele deu de ombros, desinteressado.

—Está apostado. —Mike interrompeu. —Se um de

vocês conseguir pelo menos uma dança, eu perco. Se

não, a vitória é minha, porque eu estava certo.

290

—E o perdedor —Jon deu uma de suas idéias

terrivelmente infantis. —Tem que correr pela Time

Square gritando “Eu sou o cara”. Sem roupas, é claro.

Mike riu.

—Que comédia! Não quero realmente ver Reg com essa

barriga de fora, mas está valendo. Boa sorte pra vocês.

Eu já venci essa.

Eu tentei primeiro. Vi que Jon e Mike

assistiam á cena de longe, e estavam rindo. Pedi só por

uma dança. Ela simplesmente me ignorou. Insisti. Ela

olhou para mim com ar superior, e continuou dançando

sozinha. Implorei, ela me afastou com um gesto.

Arrisquei começar a dançar com ela. Deu as costas, e foi

para outro lugar.

Voltei derrotado. Jon certificou-se de que

a ruiva não nos tinha visto juntos. Ele estava confiante.

Eu não confiava muito nele. Mas minhas próximas

291

horas dependiam dele. Comecei a torcer

fervorosamente.

Ele falou com ela. Como se conversasse com

uma amiga. Não estava tentando nada. A ruiva

continuava a ignorá-lo, quando parou de repente de

dançar. Agora olhava para ele com atenção.

—Não acredito. —Murmurei.

Ela olhou na nossa direção. Baixamos a

cabeça insistivamente. Jon falou mais alguma coisa. Ela

o empurrou, e saiu.

—Eu não vou á Time Square. —Ele disse, assim que

retornou.

—O que diabos você disse á ela? —Repreendi, enquanto

Mike nos arrastava para fora do clube. —Falou da

aposta? —Ele não respondeu. —Cara, você é bem

melhor quando mente!

Entramos no carro do Mike, incertos de

nossos destinos.

292

—Vamos a outro lugar. —Pedi. —Por favor, um pouco

de misericórdia. A Time Square, não!

—Certo. —Mike concordou, relutante. Parou ao meio

fio de uma rua não tão vazia. —Vão dar a volta no

quarteirão. Encontrem-me aqui de novo.

—Deus do céu! —Fiz. —No quarteirão?

—Devem ficar agradecidos. Era para estarmos na Time

Square.

Jon murmurou um palavrão, e começou

a tirar a roupa. Ele arriscou:

—Mike... De cueca? Por favor!

—Está bem, está bem. —Concordou.

—Está frio.

—Sem mais! —Esbravejou, saindo do carro. Forçou-nos

a sair.

Terminei de me despir na calçada mesmo.

Algumas pessoas observavam, atônitas.

—Comecem a correr! —Mike riu.

293

Comecei, tentando ignorar os olhares.

—Eu sou o cara! —Gritei.

Jon tentava esconder o rosto. Rezávamos

para que não houvesse algum paparazzi que pudesse nos

reconhecer por ali.

—Meu Deus... —Ele murmurou.

—Vamos lá, Jon! Diga... Eu sou o cara! —Eu me animei,

inexplicavelmente. É uma estranha sensação de

liberdade.

—Eu sou o cara. —Disse baixinho. Na certa, as pessoas

julgavam que estávamos bêbados ou éramos loucos.

Não que não tivéssemos bebido um pouquinho.

—É isso aí! Eu sou o cara!

Ele começou a gritar também.

—Eu sou o cara!

Já estávamos quase completando a volta

quando ouvimos a sirene da Polícia.

294

—Essa não... —Eu pensei em voltar por onde viemos.

Seria inútil. Estacamos no meio do caminho.

Tivemos que entrar na viatura. O calor

inicial tinha passado, e agora eu tremia de frio.

—Será que vamos ser presos? —Jon perguntou,

segurando uma risada.

—Provavelmente.

O policial mal humorado nos mandou

calar a boca. O resto do trajeto foi feito em silêncio,

risadas contidas. Na delegacia, graças a Deus, nos

deram toalhas, e nos fizeram esperar por mais de três

horas. Jon reclamou que era claustrofóbico, mas

ninguém parou para ouvir. Algumas pessoas ainda

olhavam com curiosidades. Eu já não estava de bom

humor, e sustentei seus olhares com desaprovação.

—Eles deveriam nos agradecer. —Eu falei, em voz alta.

—Fizemos um favor á sociedade nova iorquina,

295

mostrando a eles nossos impecáveis físicos

californianos.

Jon não riu. Eu sabia que começava a sufocar

de verdade, e torci para que Mike viesse logo ao nosso

auxílio. Um policial apareceu nos dizendo que a fiança

tinha sido paga. Entramos no carro de Mike, dessa vez

vestidos com as roupas que ele trouxera.

—Vocês vão me reembolsar. —Ele disse, assumindo o

volante. —Não têm idéia de como foi engraçado.

Nojento, mas engraçado.

—Ah, você acha? —Fiz. —Quase tivemos uma

hipotermia.

Paula convidou alguns amigos a seus familiares para a

ceia de Natal. Eu sempre preferi as festas lá de casa, em

meus tempos de solteiro, apesar de sempre exigirem os

bons modos que eu não tinha. Minha mãe nunca deixou

296

de fazer festa no Natal, e geralmente toda nossa família

comparecia. Cerca de trinta pessoas em nossa ceia. Eu

ficava no jardim com meus primos. Eles sonhavam em

ser médicos e advogados. Eu dizia que queria ser hip

hopper.

Agora, já não fazia sentido para eu receber

pessoas em casa. É uma festa onde se celebra a união, e

isso era algo que estava longe de ser a realidade da

minha vida e de Paula como casal.

Foi com grande alegria que abri a porta para

Jon um pouco antes da meia noite. Quem sabe uma

companhia me salvasse daquela monotonia anual? Ele

estava ofegante.

—O que diabos aconteceu?

—Tenho uma... —Ele tomou fôlego. —Uma boa história

pra contar.

Vasculhei a rua vazia com os olhos.

297

—Veio andando? —Ele assentiu e deu risada. —Quer

entrar?

Deu uma espiadinha lá dentro. Fez que não.

Fechei a porta atrás de mim, carregando Charlie no

colo.

—Você não vai acreditar no que acaba de acontecer!

Sentou-se no meio fio, me instigando a

fazer o mesmo. Tomou mais um pouco de fôlego e

começou a me contar a história que haveria de mudar

sua vida para sempre.

—Eu estava na casa do pai da Renée, certo? —Assenti.

—Estava chato, muito chato.

—Nem me diga! —Pensei na festa lá dentro, e como eu

desejei que o relógio marcasse logo a meia noite para

começar a beber.

—Tinha uma prima dela, uma garota, jovem mesmo.

Ela sentou do meu lado no sofá e me mostrou uma

pasta cheia de fotos. Ela disse que era fã da Peas, mas ali

298

só tinha fotos minhas. —Tornou a rir. —Imagina isso?

Fotos minhas! Devia ter, sei lá, uns dezoito anos.

—Não, você não...?

—Sim. Quer dizer, mais ou menos. Ela disse para eu ir

beber com ela lá fora, na varanda. Sabe como são as

coisas? Eu não pensava em mais nada quando ela me

beijou.

—Mentira!

—Quem é que se lembraria que a porta que dividia a

cozinha e a varanda era de vidro? Ninguém. Muito

menos eu. Era uma menina bonita, Reg.

—Certo. E quem foi que viu? Renée?

—Pior. O pai dela. Começou a gritar para que eu

largasse sua sobrinha. Eu larguei, e quando percebi que

o velho vinha para cima, pulei o portãozinho, e disparei

em correr pra rua. Nem me lembrava mais que tinha

asma. Nessas horas, até nosso pulmão ajuda.

299

Eu desatei a rir, imaginando a cena. Jon

correndo de um velho, depois de ter traído sua mulher

com uma garota de dezoito anos.

—Por que correu de um velho capenga, Jon? Estava

com medo?

—Não sei, foi impulso.

—E correu até aqui?

—Corri até a avenida principal. Depois ele não

aguentou mais. Deus, estou cansado. —Suspirou. Eu

sentia que ele estava contente pelo acontecido. Eu

entendia. Se ele não conseguira se libertar por ele

mesmo, o destino o ajudou. —Acho que vou sentir falta

de Tammy.

—E onde está o seu carro?

—Santo Deus! —Levantou, num pulo. —Meu carro!

Deixei Charlie com Paula e seguimos até a

casa dos pais de Renée. Os fogos nos avisaram que já

tinha dado meia noite.

300

Quando parei meu carro a uma certa

distância da casa dos pais de Renée, o velho tinha

terminado de destruir o último vidro do Peugeot com

um pedaço de pau.

—Não saia do carro. —Alertei, antes que Jon abrisse a

porta e descesse.

—Velho maluco! —Ele gritou. —O que foi que você fez?

O homem largou a arma no chão, e eu

respirei aliviado. Saí do carro e me aproximei do carro

destruído.

—Espere, Jordison. —Ele disse, arfante. Com certeza

tinha descontado toda sua raiva, e devia sentir-se mais

aliviado agora. —Vou trazer as chaves para você.

Cheguei á conclusão de que Jon tivera

razão em fugir. O velho era forte e esperto. Jogou as

chaves no meio da rua, e foi para dentro de casa.

—Veja só isso. —Jon disse. Ajoelhou-se frente ao pneu

furado. Passou a mão na lataria. Até a pintura estava

301

lascada em várias partes.—Eu ainda nem tinha

terminado de pagar...

Tive que arrastá-lo dali quando começou a

chorar.

Jon passou a morar com Debbie, mas não creio que

tenha contado toda a verdade á ela. Foi nessa época que

parou de tomar os calmantes. Eu aconselhei ele a não

fazer isso de uma vez, porque uma vez que tinha

começado, seria difícil de seu organismo acostumar-se

sem.

—Debbie acha que é o melhor para mim. —Ele se

irritou. —E por acaso você é médico para entender

dessas coisas?

Não sei o que foi que Debbie fez, mas o

fato é que realmente o curou. Pelo menos por um

302

tempo, ele me pareceu feliz de verdade. Acho que ele

estava feliz de verdade durante aqueles meses.

Suas habituais crises de depressão se

retiraram de sua vida, e ele não mais se jogava nas

camas de hotel e nos sofás dos estúdios, recusando-se a

fazer qualquer outra coisa. Mas, seu destino não era

esse, por isso o pior aconteceu. Ele perdeu Debbie, de

uma forma horrível, e bruscamente. Aquela felicidade

que só tinha servido para mascarar sua dor desapareceu

por completo naquela tarde, quando estávamos para

fazer um show no Japão.

Tínhamos acabado de descer do táxi para

entrar no aeroporto, quando ele recebeu a ligação dos

pais de Debbie no celular. Eles disseram que ela estava

seriamente doente, e hospitalizada. Ele estacou no meio

do caminho, e quase deixou o telefone cair.

—O que foi? —Paul perguntou.

303

—Não é verdade. —Ele murmurou, simplesmente, sem

explicar absolutamente nada.

Ele entrou no aeroporto, e sentou-se em um

banco, afundando o rosto nas mãos. Jon nem sabia o

que tinha acontecido, mas recusou-se veemente a se

mover, como se aquilo pudesse mudar o seu destino.

Dizem que o primeiro sintoma da perda é a negação.

Tivemos os shows restantes adiados, e ele voltou

catatônico para os Estados Unidos. Ficou com Debbie

nos seus últimos segundos, e deve ter visto seu último

suspiro. Ele não quis comparecer no velório. Trancou-se

no quarto e não permitiu que ninguém entrasse ali

durante quatro dias.

Confesso que fomos fracos, todos nós. Paul

dizia para arrombarmos a porta, chamar um médico ou

a Polícia. Mas ninguém fez nada. As pessoas têm medo

de perturbar o silêncio da dor. Aguardamos com

paciência até que Jon resolvesse que estava preparado

304

para enfrentar a vida. Ele se recuperou, e me ligou,

pedindo que o encontrasse numa lanchonete que

costumávamos frequentar.

Á essa época, eu já tinha me divorciado de

Paula, o que me fez sentir livre. Ser solteiro, para mim,

era a melhor coisa do mundo. Voltava da minha visita

semanal a Charlie. Jon parecia incrivelmente saudável.

—Aconteceu tudo tão rápido... —Ele disse. Tomou um

gole de café. —Não ficamos juntos nem um ano, mas

parece que a conheço minha vida inteira. Parece que foi

ontem que eu me mudei para sua casa, e pedi que

tirasse os incensos do quarto. Sabe, é nessa hora que a

gente sabe que está vivo. Precisamos da morte para

entender que temos vida. —Sorriu tristemente. —Veja

só, estou vivo.

—Pensei que tivesse parado com o café.

Ele deu de ombros. Ficou parado por

alguns instantes, fitando o movimento da lanchonete.

305

Ele tinha razão, as coisas acontecem rápido demais.

Debbie era uma boa garota, é muito triste que tenha

terminado desse jeito. Bem que ela poderia ter se

perdoado, e continuado com sua jovem vida.

—Aconteceu uma coisa estranha. —Ela baixou o tom de

voz, e se inclinou sobre a mesa. —Mas precisa me

prometer que não vai contar a ninguém.

—Sabe que sempre pode confiar em mim.

—Era o terceiro dia que eu estava naquele quarto

escuro, completamente incapaz de levantar da cama.

Era como se mãos estivessem me impelindo a continuar

deitado, entende? Mãos humanas, mas muito fortes. Por

diversas vezes, quase me mataram sufocado. Mas eu

resisti. —Ele esboçou um sorriso, e eu vi que ele já

estava começando uma crise maníaca. Essas crises

sempre se denunciavam com um sorriso. —Eu resisti

porque sou forte. Muito forte. Mais forte do que eles. —

Eu quis perguntar quem são eles, mas achei mais sensato

306

permanecer apenas ouvindo. —Então, o relógio passou

de cinco e trinta e cinco da manhã para cinco e trinta e

seis. Eu fechei os olhos, mas não dormi. Debbie me disse

para ficar em paz, porque ela estaria comigo todos os

dias da minha vida. Isso te soa amedrontador, não é? —

Ele tinha começado a falar daquela forma que me

assustava. Sem interrupções, de uma forma psicótica.

Estava impaciente, ora batia os dedos na mesa, ora

brincava com algum dos objetos. —Pois não. Isso é bom,

Reg. Muito bom. Quer dizer que ela não me abandonou,

simplesmente. Você acha que ela me deixaria assim, tão

bruscamente? Acha? Não deveria achar. Ela está aqui,

nesse exato momento. Eu sei porque posso sentir.

—Talvez tenha sido um sonho.

Ele bateu a mão na mesa com força. Tinha

ficado nervoso com minha observação.

—Não foi.

—Tudo bem , não foi.

307

O movimento com os dedos tinha ficado

rítmico, e ele pareceu se confortar somente com aquele

barulho.

—O que acha? Pensa que sou louco?

—Claro que não. Só acho que precisa descansar um

pouco.

—Não posso dormir.

—Por quê?

—Não posso. Esqueça, certo? Vamos sair daqui.

Ele ia levantou-se num pulo, e já estava

deixando a lanchonete. Gritei para ele:

—Seria legal pagar a conta, não acha?

Tanto eu como Paul pedíamos para que ele viesse

passar um tempo em nossas casas, mas ele recusou-se,

dizendo que estava bem. Parecia realmente saudável,

um pouco animado demais, e não disse mais nada a

308

respeito de nossa conversa na lanchonete. Julguei que

tivesse dito coisas sem sentido porque estava em maus

momentos, e cada um reage de forma diferente em

relação á coisas ruins.

Resolvi guardar para mim mesmo o

incidente, pois as coisas haviam melhorado. Ele não

mais falava de Debbie, e eu julguei que tivesse se

conformado. Saímos em uma turnê nacional, e tudo

correu tão perfeitamente que deixou Paul inseguro.

—Ele não deve estar bem. —Comentou comigo e com

Ryan. —Acho que tem uma bomba se formando dentro

dele, e vai explodir a qualquer momento.

Na época, eu não sabia se Paul estava

certo, mas a verdade era que Jon parecia bem, e eu não

queria me preocupar. Estava sempre querendo nos

acompanhar s boates durante as turnês, algo novo para

ele, que sempre tinha odiado lugares lotados e

barulhentos. Se nós não saíamos com ele, ia sozinho, e

309

desaparecia até a hora da partida, quando íamos para o

próximo país. Perdemos muitos vôos por causa de seus

atrasos, mas parecia a nós que lhe era impossível

permanecer nos quartos de hotel, ou parado por muito

tempo. Estava em constante agitação, falava e bebia

muito. Por muitas vezes, notei que não tinha noção

nenhuma de tempo. Fiquei com medo do que

aconteceria quando ele voltasse á realidade que ele

parecia ter abdicado. Muitas vezes não parecia o Jon

que eu conhecia, de uma forma que não sei explicar.

Mas a realidade ia voltar, uma hora ou outra, quando

acabasse aquele seu estado de agitação. E acabaria com

Jon.

Eu não sabia ainda que se tratava de seu

transtorno. Algum tempo mais tarde, os policiais

encontrariam uma carta remetida á Debbie, em meio ás

suas coisas. Acho que aquilo explicou alguma coisa.

310

Obviamente, a carta nunca foi entregue. A data

constava depois da morte dela.

“Já faz tempo. Devo ter perdido a prática. Já se

passaram muitos anos desde a última vez quer fiz isso, um

quarto escuro, me sentindo sozinho e mal compreendido, com

esse mesmo vazio no coração. Não sinto nada, só esse vazio...

E um pouco de medo. Medo inexplicável, sem sentido.

Antes de descobrir a música, era isso o que eu fazia.

Sentava e escrevia. Deixava sair tudo o que me incomodava

por dentro. No final, o que restava era o vazio. Porém, um

vazio cheio de paz, e eu conseguia chorar —Tem horas que

não me sinto capaz de chorar. Isso acontecia só depois que ele

saía do quarto, e eu ficava sozinho de novo, sem mais motivos

para rezar.

Mas, afinal, com quem estou falando? Tudo

aconteceu rápido demais.O que quer de mim? Ainda não

consigo entender. E não vai ser um pedaço de papel que vai

311

me ajudar, não é?Por que não me dá outra chance? Fui

sempre tão egoísta... E você nunca reclamou disso. Eu

mereceria outra chance?

Se eu preciso de alguém? Se eu queria que

alguém estivesse aqui, comigo, agora? Eu queria que você

estivesse aqui, e me ajudasse a dormir. Não esses

comprimidos, eu queria você! Será que alguém além de você já

me amou de verdade? Eu fui capaz de amar pra valer.

Acontece que eles dizem me amar e sofrer junto comigo, mas

cadê todo mundo agora? Onde estavam eles nos dias mais

loucos da minha vida. Talvez seja simplesmente isso. Sou

louco, e está tudo na minha cabeça.

Eles sorriram para mim, gritaram meu nome.

Sento minhas forças se renovarem naquele momento. Vou me

lembrar para sempre. Como um momento qusae mágico,

irreal. De fato, fui aclamado pela primeira vez na vida, por

pessoas que não conheço, mas me amam de verdade.

312

Não quero culpar ninguém dessa vez. Acho que

estou mesmo ficando louco. Você me diz que não. Eu não

aguento mais.

VAI LOGO! ACABE COM ISSO!

Quer me matar aos poucos? ASSIM FICA MAIS

DIVERTIDO? Por favor, se apresse, ficar falando e me

confortando não é nada prático, Deb.Você sabe que eu quero

dar o fora, mas não encontro as forças. Estou vivendo nessa

montanha russa de emoções, e eu nunca sei se tem mais

alguma coisa terrível para acontecer.

Estou confuso, nem sei mais o que pensar. No

que se resume minha vida, afinal? Em menos de um ano! Eu

vivi menos de um ano! Ás vezes, eu desejo nunca ter te

conhecido, então eu não saberia o que é felicidade. A gente não

perde o que não possui, certo?

Não quero mais tentar. Tentar viver, tentar

morrer. Dessa vez eu me rendo.

Sabe como me sinto agora? Ainda mais vazio, e um

pouco mais em paz.”

313

Achamos que a carta foi escrita em Brixton,

depois de um show onde Jon foi aclamado pela platéia,

depois que os fãs ficaram sabendo de sua doença. É

muito incoerente, e completamente confuso. Me mostra

como devia estar sua mente enquanto escrevia, e isso

me causa arrepios.

Foi no último dia de viagem, depois de um exaustivo

show, que Jon conheceu Julia. A banda do irmão dela

estava em turnê conosco, conhecíamos ele há algum

tempo, era um grande amigo da Peas. Julia veio vê-lo

aquela noite, e nos bastidores encontrou-se com Jon.

Como ela também morava em Los Angeles,

prometeram-se encontrar mais vezes.

314

Não preciso dizer que ela era loira, mas

acho que era jovem demais para Jon. Tinha vinte e um

anos, e eu sabia que não estava preparada para um

relacionamento sério. Estava apenas deslembrada com

seu ídolo, e isso era perigoso.

Mas com o passar do tempo, pude

perceber que ela gostava dele de verdade, e até

concordou em viver com ele na mansão mal

assombrada.

Ela engravidou dois meses depois de

terem se casado informalmente. Eu ia visitá-los de vez

em quando, e levava Charlie comigo. Meu filho ficava

fascinado com o bebê.

Mas eu via que as coisas começaram a

esfriar entre Jon e Julia, logo depois do nascimento da

criança. Era como se a história de Renée se repetisse

bem diante dos meus olhos, e fiquei com pena que

estivesse terminando mais uma vez.

315

Jon me ligou ás quatro e meia da madrugada.

—O que é? —Perguntei, sonolento.

—Tem alguém aqui em casa. —Ele sussurrava ao

telefone.

Não entendi o que ele falou, e pedi que

repetisse.

—Tem alguém aqui em casa!

—Onde está Julia? —Sentei na cama, fazendo o possível

para afastar a névoa de sono da minha cabeça. Tinha

bebido demais na noite anterior, e ainda me lembrava

da garota ruiva que eu tinha beijado na balada. Não

fazia mais de duas horas que eu tinha vindo para a

cama.

—Julia? —Ele perguntou, como se estivesse ouvindo

esse nome pela primeira vez. —Não está em casa.

—O que é que está acontecendo, Jon?

316

—Eu disse para ela que não é mulher de verdade, pois

nem sabe cuidar direito do bebê. Tony estava chorando,

e ela, ouvindo música alta no fone, nem ouviu.

Começamos a gritar um como outro, e ela decidiu ir

dormir na casa da avó.

—E quem é quem está aí?

—Não sei, mas ouvi meu nome. Estava me chamando.

Deve estar lá embaixo, escondido. Estou com medo,

Reg.

—Já ligou para a Polícia?

—Polícia? Claro quer não. O que eles poderiam fazer?

Não se trata de pessoas normais, entende? Escuta só, eu

estava no estúdio, e coloquei café para esquentar na

garrafa térmica.

—Jon... —Tentei interrompê-lo inutilmente.

O estúdio da Peas ficava em um dos

cômodos da sua casa, e ele gostava de ficar lá mesmo

que não estivéssemos ensaiando ou produzindo. Não

317

era de se admirar que alguém como Jon ficasse

assustado em um lugar daqueles, até eu me sentia

estranho quando entrava na sua casa. Mas ele parecia

insistir em sua tragédia, como se precisasse dela, ou

gostasse disso. É uma das coisas que jamais consegui

compreender.

—Julia me chamou lá do quarto, eu queria esquentar o

café, mas ela encheu tanto o saco, e a garrafa estava

demorando tanto, que eu desisti, interrompi o

funcionamento, e desliguei a garrafa. Ouviu bem?

Desliguei a garrafa. Aí eu e a Julia discutimos, porque ela

estava ouvindo música, e o bebê estava...

—Jon! Você já disse isso. Quem é que está na sua casa?

—...Resolvi voltar para o estúdio, e a garrafa estava

ligada. E esquentando o café! Reg, não estou louco,

tenho certeza que desliguei. Mas ela estava lá,

funcionando perfeitamente. Alguém ligou ela depois de

mim!

318

—Espíritos não tomam café, Jon. E veja pelo lado bom,

seu café estava quente. Gostaria de voltar a dormir

agora.

—Eu saí de lá correndo, e ouvi barulho do corredor.

Em um dos quartos, como se alguma coisa tivesse caído,

ou sido arremessada na porta. Foi um barulho enorme!

E agora tem alguém me chamando. Estou com medo.

Você não pode me ajudar?

—Você deve estar sonhando, Jon. O que quer que eu

faça por você?

—Não sei.

—Onde você está?

—No quarto.

Ele começou a chorar. O telefone foi cortado

por um momento, e percebi que o sinal estava

fraquejando. Fiquei com medo. Jon estava realmente

perturbado. Se estava começando a ter alucinações, era

melhor eu me preocupar.

319

—Tomou alguma droga? —Perguntei, torcendo para

que ele dissesse que sim. Jon não costumava usar

drogas, e eu sabia que era uma pergunta boba.

Sua resposta foi cortada por uma falha do

sinal. Ele se desesperou.

—Não desligue, não desligue, Reg! Por favor, não me

deixa.

—Calma, estou aqui. Olha, Jon, vai demorar até eu

chegar aí. Então é melhor que você tome um calmante.

Tem tomado os calmantes?

—Não! —Ele gritou. —Não sou um maldito louco! Não

preciso dessa drogas de remédios. Você mesmo me

dizia isso, seu falso mentiroso!

Entendi que era melhor eu tomar uma

atitude. Tentei acalmá-lo pelo telefone sem fio enquanto

me vestia.

—Está tudo bem, Jon. Estou indo aí. Apenas mantenha a

calma, tranque a porta do quarto, e não saia daí por

320

nada. —Meu maior medo era perder o contato com ele

até que eu chegasse. Era óbvio que Jon era capaz de

cometer uma besteira.—Escute, vou te ligar do celular,

assim eu posso falar com você enquanto estou

dirigindo. Atenda assim que eu ligar, certo? Entendeu

bem?Vou desligar agora.

—Não! —Ele me interrompeu. —Estão batendo na porta

do meu quarto. —Começou a gritar, em pânico. Eu me

desesperei também. Calcei os sapatos em tempo

recorde, mas estava com medo de desligar meu telefone

resisdencial.

—Atenda quando eu desligar.

—Não! Pelo amor de Deus, eles vão me matar. Vai me

matar!

Desliguei o telefone, largando-o no chão.

Peguei o celular, enquanto tropeçava na escada antes de

sair.

321

Eu não consegui completar a

chamada. O sinal estava caindo.

Pensei em ligar para a Polícia, mas

aquilo poderia ter de grande repercussão, e acabaria por

chegar aos ouvidos da mídia.

Cheguei na mansão tão rápido que

mal pude acreditar. Algo me dizia que era tarde demais,

e hesitei antes de pular o muro. Cruzei a enorme

garagem, forcei a porta da frente, mas descobri que

estava aberta.

Subi as escadas, e estaquei quando vi

a porta do quarto escancarada.

—Jon? —Chamei.

Silêncio. Todas as luzes estavam

acesas como de costume, mas não havia o menor indício

de vida ali.

Hesitei antes de entrar no quarto.

Chamai mais uma vez.

322

Vasculhei todo o aposento, depois o resto

da casa. Nenhum sinal de Jon. O fim estava começando.

Apareci na casa de Paul. Já tinha amanhecido, e ele

também estava de ressaca.

—Jon desapareceu. —Eu disse, simplesmente.

—Como assim?

Imitei um mágico quando faz algo

desaparecer.

—Já falei com George, ele está tentando entrar em

contato pelo celular, mas acho que Jon deixou em casa.

—Expliquei o telefonema de madrugada, e consegui

deixá-lo tão preocupado quanto eu.

—E Julia? Já sabe o que aconteceu?

—George ficou de entrar em contato com ela.

—E o que vocês estão achando?

323

—Não sei.

—Sequestro? —Arriscou, incrédulo.

—Não consigo imaginar. Tenho medo de que possa ter

tido um surto. Pode estar em qualquer lugar desse

mundo.

—Não seria melhor chamar a Polícia? —Ele tentou.

Eu assenti, sabendo que não faríamos isso.

Comecei a caminhar em direção da porta.

—Se eu tiver mais novidades, te ligo.

Duas horas depois Julia apareceu na porta. Estava

assustada. Pedi que sentasse, e lhe dei um copo de água.

—Tem idéia para onde ele pode ter ido?

Ela sabia tanto quanto eu. George já não

sabia onde procurar. Não sabíamos o que fazer.

Julia esperou no meu apartamento pelo

resto do dia, sem que obtivéssemos novidades. Eu

324

começava a me desesperar. Ela passou a noite com o

bebê no meu quarto de hóspedes.

Você não tem idéia de onde está entrando. Eu

pensei. Pensei que seria melhor ela se afastar enquanto

havia tempo.

Passamos duas semanas sem novidades. A campainha

tocou ás onze da manhã, me despertando. Achei que

fosse George ou Paul, e tive medo das novidades.

Deparei com Jon na porta.

—Bom dia. —Ele disse, simplesmente. —Te acordei?

—Pelo amor de Deus! Onde é que você estava?

—Andando por aí.

Obriguei ele a entrar e sentar no sofá. Estava

completamente despenteado, e a barba deixada por

fazer fazia com que se coçasse o tempo todo.

325

—Estávamos preocupados!

Ele recostou-se no sofá.

—Por quê?

—Como tem coragem de me perguntar por que, seu

imbecil?

—Fala sério. Que tempestade em um copo de água. Eu

estava meio deprimido, e saí para andar.

—Acha mesmo? Um exagero de nossa parte? Não é o

que Julia pensa.

—Contou á ela?

—Você acha que ela não teria percebido?

—Sério? —Ele parecia genuinamente surpreso.

—Quanto tempo acha que ficou fora, Jon?

—Não conseguia dormir, e fui andar.

—Por uma semana?

—Foi apenas uma noite!

—Dê uma olhada no calendário. Completou quase uma

semana.

326

Ele teve que conferir para acreditar em mim.

—Eu... Sinto muito. —Ele disse.

—Você precisa ver um médico, Jon. Tem algo de muito

errado com você.

Ele assentiu

—Ligue para Julia, e diga que está tudo bem. Não quero

voltar para casa agora.

Acordei com os gritos dele. O rosto molhado e as mão

trêmulas me fizeram entender porquê ele tinha tanto

medo de dormir.

—Tranque a porta! —Ele saltou da cama e bateu a porta

do quarto. Voltou ao seu lugar rapidamente. —A casa

está trancada? —Ele me sacudiu pelos braços. —Tudo

fechado?

—Sim, Jon. —Tive que responder depressa. —Ms não

há perigo algum. Era só um pesadelo.

327

Ele balançou a cabeça várias vezes em

negativa. Encolheu-se no canto da cama e tapou os

ouvidos com a s mãos. Seu corpo tremia por baixo das

cobertas.

—A porta está trancada? —Indagou, como se fosse a

primeira vez.

Eu assenti, torcendo para que aquela noite

passasse logo.

—Estou com medo. —Ele começou a chorar,

compulsivo.

Aproximei-me, hesitante. Ele teve um

sobressalto quando eu o abracei, mas não se moveu.

Continuou chorando. E pela primeira vez em muitos

anos, eu chorei também.

Ele olhou para mim, afastando-se do

abraço. Parou de tremer, e seus olhos tinham perdido

aquele brilho de insanidade por um momento.

328

—O que está acontecendo comigo? —Ele sussurrou,

antes de fechar os olhos.

Paul o levou ao psiquiatra alguns dias depois. Jon já tina

voltado para casa, mas eu alertei Julia para entrar em

contato comigo se houvesse problemas. Estava

preocupado com ela. Não sei se não havia riscos para

ela ou para Tony.

Liguei para Paul em busca das

informações do médico. O que ele me disse não me

deixou nem um pouco contente.

—O dr. Perry deu um primeiro diagnóstico, mas ainda

não é um diagnóstico definitivo. Ele acha que Jon sofre

do Transtorno Esquizoafetivo.

329

—E que droga é essa? —Perguntei, custando a acreditar.

Era um nome estranho, não me soava bem, e eu estava

cansado demais para aceitar aquilo.

—É uma doença, Reg. Quase uma mistura do Distúrbio

Bipolar, e a famosa Esquizofrenia. O dr. Perry explicou

que não é um transtorno reconhecido por todos os

psiquiatras, mas acontece, e ninguém tem certeza do

que chamar. Uma coisa ou outra, entende?

—E o que é que temos que fazer? Tem cura?

Ele demorou para responder.

—Como a maioria das doenças mentais, não existe cura.

Mas existe tratamento. Ele receitou antipsicóiticos. Não

sei se vai dar certo. Estou realmente assuntado. Sabia eu

Jon estava doente, mas não pensei que fosse tão sério

assim. Não achei que estivesse patologicamente louco.

—Quer dizer que vai ser assim pro resto da vida? Não

posso acreditar. Como é que ele está?

330

—Está tentando parecer conformado, mas temo que

essa novidade acabe com ele.

Fui visitá-lo na tarde seguinte.

—Ele me deu pílulas para dormir. —Explicou, sentando

no sofá e estendendo os pés em cima da mesinha de

centro da sala. —E mais uns doze tipos de comprimidos

que ele chamou carinhosamente de anti psicóticos.

—E você vai tomar, não é?

Ele deu de ombros, e pegou uma lata de

refrigerante.

—Está me deixando tonto. Meu braços estão

adormecidos, minha mente parece estar há quilômetros

de distância. Mas acho que só devo estar sentindo a

falta da psicose.

Peas, Final Perfeito

331

Isso é dor, e você não pode me curar

Se fosse só um sintoma, eu poderia pensar de novo

É o problema, fiquei sozinho de novo

Encontrei minha solução

Se fosse para morrer agora, eu fecharia os olhos

Eu sei que não vai doer

Percebo que era tudo que eu procurava

O fim da vida que estava me matando

Meu coração começa a bater devagar

Minha mente sedada não percebe

Os remédios fizeram o efeito esperado durante alguns

meses. Isso nos deu grandes esperanças, e até

começamos a gravar nosso novo álbum.

Estávamos com problemas com nossa

gravadora na época. Acho que isso é comum em nosso

meio, e não era a primeira vez que acontecia. O

problema era que as idéias não batiam. Eles queriam

332

dinheiro, nós queríamos fazer música. Jon ficou

nervoso, quase matou um cara lá de dentro, de tanto

socá-lo, fora do controle. Nosso empresário entrou na

briga, e acabou apanhando também. No final, acabamos

perdendo, e as coisas continuaram a ser do jeito que a

gravadora queria. Como sempre acontece. A lei de

Darwin, Jon disse.

Ele não era capaz de lidar com as coisas que

aconteciam rápido demais, ou com muitas novidades. E

Ryan deixou a banda naquela mesma ocasião, devido á

sua nova religião. Tentamos convencê-lo de que uma

coisa nada tinha a ver com a outra, mas não adiantou.

Acho que o baque de perder Ryan como amigo foi

muito pior para nós do que perdê-lo como guitarrista

base. O Peas logo se reergueu, mas nunca nos

recuperamos de sua suposta traição. Digo suposta

333

porque pessoas abandonadas tendem a sentir-se traída,

mesmo que não seja verdade. A pressão da gravadora

também aumentou naquele ano, e as mudanças no

próprio som da banda acabaram por ser inevitáveis.

—Metal industrial. —Jon adjetivou, na sala de George. O

empresário nos explicava as novas exigências impostas.

—É isso o que querem da gente.

Conseguimos driblar algumas de suas

vontades, mas se queríamos continuar em cima dos

palcos e fazer o que amávamos, tínhamos que aceitar.

—Vamos subir lá —Disse Paul, antes de um show em

Acapulco. —Olhar para aqueles rostos inocentes e tocar.

Simplesmente tocar!

Não havia outro meio de sobrevivência.

Tivemos três turnês em uma ano, as brigas

de Jon com Julia aumentaram. Eu assistia a história de

Renée se repetir. Dessa vez, eu o aconselhei a ir embora

334

de casa, mas ele descordou. Eu sabia, ele também. Não

havia Debbie agora.

Parece que a vida precisa nos colocar contra a

parede, para que possamos olhar pra cima. Foi então

que eu entrei em uma igreja pela primeira vez, e tive

meu encontro espiritual. Minha vida mudou

completamente. Ainda tinha problemas, mas minha

capacidade de enfrentá-los aumentou de forma

considerável. Mesmo o problema de Jon parecia ter

menor gravidade.

Mas isso não me impediu de cometer a

maldade de ligar para Ryan e dizer: Viu? Eu também

encontrei meu caminho, mas não tive que deixar meus amigos

e minha banda por isso.

Jon estava traumatizado com a história de

Ryan, e tinha medo de que eu largasse a Peas. Me

provocava o tempo todo, muitas vezes de forma

335

agressiva e hostil. eu tentava ignorá-lo ao máximo, e até

arrisquei convidá-lo a ir na igreja comigo.

Exatamente como eu previa, ele riu e

ironizou.

—Não, irmão. Muito obrigado.

Ele desapareceu mais uma vez em meados de

dezembro. Dessa vez, não hesitamos antes de acionar a

Polícia. Como uma repetição da primeira cena, Julia

apareceu em casa, chorando. Sentou-se no sofá.

—Sinto muito, Reg. Mas não sei quanto tempo vou

aguentar.

—Tenha paciência, nós vamos encontrá-lo.

—Não é só isso. —Eu pude sentia a raiva em sua voz, e

depois em seus olhos, quando ela levantou o rosto para

mim. —Não é só essa maldita doença! Há dias não

336

conseguimos ter um diálogo sem que comecemos uma

discussão. E são por coisas tão bobas... Como um molho

de chaves deixado em lugar errado, ou o café que

acabou.

—Você precisa ter um pouco de paciência com ele.

—Ele não quer tomar os remédios. Finge que toma, mas

encontrei um comprimido enterrado em um vaso de

plantas. E agora, ele some de repente!

Eu ia dizer que a culpa não era dele, que era

preciso cuidar dele. Mas a verdade era que eu também

estava cansado. Por diversas vezes imaginei se não seria

melhor se tudo terminasse.

George me ligou e avisou que tinham achado Jon em

um hospital em nosso bairro.

—Ele caiu de cima de um muro. —O médico explicou.

337

—Que droga de muro? O que quer dizer com isso? —

George indagou.

—Seu amigo sofre problemas com drogas?

—Não.

Eu julguei que era melhor dizer a verdade, não

havia mesmo como evitar as consequências.

—Ele tem um problema mental. Transtorno

Esquizoafetivo. Se quiser, posso chamar o médico dele

aqui.

—Já temos um psiquiatra cuidando do caso.

—E Jon está machucado? —George quis saber.

—Arranhões superficiais. E quebrou a perna.

—Só isso?

—Bom, e onde é que ele achou um muro para

despencar? —Indaguei, como se aquela história maluca

não fizesse sentido. Eu já estava cansando dos sumiços

de Jon. Aliás, tudo a respeito começava a me cansar.

338

—Seu amigo estava correndo da polícia. Não sei o que

ele pensou que fosse, mas em seu desespero tentou

invadir uma casa. Eu diria que teve sorte de cair antes

que alcançasse o topo, porque a casa era protegida por

arames farpados.

—E ele está bem? —Perguntei, sempre com medo da

resposta.

—Temo que não, sr. Levesque. Sugiro que procurem

uma clínica psiquiátrica.

Entrei em contato com o psiquiatra que

acompanhava Jon desde a primeira vez. O dr. Perry

pediu que ele fosse transferido imediatamente para sua

clínica particular. Tive medo de que demorassem

demais para transferi-lo, e esse foi meu primeiro

conflito com o dr. Perry. Eu preferia que Jon ficasse em

um hospital convencional, embora soubesse que

internar-lo em uma clínica psiquiátrica era a melhor

339

alternativa naquela situação. A palavra hospício me veio

á mente, e causou-me arrepios.

Quando percebeu que George e eu

estávamos hesitantes quanto á nova decisão, o dr. Perry

veio até o hospital onde estávamos.

—Eles querem matá-lo aqui. —O dr. Perry quase

sussurrou para mim. —Vai deixar que o matem?

—Por que diz isso?

—Posso levá-lo, ou vai deixar que injetem uma porção

de calmantes? Seu amigo está sofrendo uma crise de

asma, desesperado porque não consegue entender o que

está acontecendo. Pelo pouco que pude entender, acha

que se trata de uma conspiração espiritual, e talvez

esteja em uma realidade paralela, onde querem matá-lo.

Não, Jon não estava pensando isso. Não o

meu amigo normal, que não possuía uma imaginação

tão absurda.

340

—E vão matá-lo mesmo, porque Jonathan precisa de

gente especializada. —Continuou.

Engoli em seco e assenti, tomando a decisão.

Logo, estávamos seguindo para o tal hospital do dr.

Perry.

Não parecia um hospício, pelo menos não

na sala de espera. George pegou uma revista, e a

folheava sem ver nada realmente. Achávamos

realmente que aquele era ao fim. E agora eu orava para

que não fosse, para que eu tivesse uma chance de me

redimir dos pensamento errados.

Uma enfermeira veio em minha direção e

pediu que eu a acompanhasse. Fiz sinal para que

George nos acompanhasse. Ela nos guiou até a sala

onde o dr. Perry colocava luvas brancas, e preparava

uma injeção.

—Ele precisa voltar. —Disse para mim. —Você permite

que eu o traga de volta?

341

Eu não soube o que responder. George

também permaneceu calado.

—Preciso de uma autorização.

Ainda assim não respondi. Fiquei

lembrando das histórias de Jon a respeito de um

aparelho de choque que o personagem de algum livro

tinha sido submetido, depois de uma crise

esquizofrênica. Não, não permitiria que fizessem isso

com Jon. Eu ia negar, dizer para que parassem com

aqueles atos desumanos, mas o dr. Perry pediu para que

os enfermeiros me tirassem da sala. Eu tinha demorado

demais, e Jon precisava de uma resposta rápida. Sua

vida dependia de minha decisão, e eu não era capaz de

escolher.

—Isso é proibido por lei. —Tentei, embora soubesse que

o dr. Perry estava mais a fim de salvar Jon do que eu.

342

—Se não quer dizer agora, vou ter que responder por

você. Não me importa se você quiser me processar mais

tarde.

Esperei por algumas horas que pareceram

dias. Aquela sala de espera estava me matando. Não

conseguia parar de pensar no pior, imaginar que Jon já

devia estar morto por aquelas horas. Eu sei que George

pensava o mesmo, mas não estava disposto a se deixar

desesperar. Finalmente, o médico apareceu.

—Você pode visitá-lo de manhã, está bem? Pode ficar

despreocupado, Jon está bem e vai se recuperar logo.

Entre em contato comigo sempre que achar necessário.

Voltei na manhã seguinte, mas não sem antes

pensar mil vezes. Estava com medo do que ia ver, nunca

tinha passado por nada parecido em toda minha vida. É

incrível como a doença mental ainda é um tabu, até

mesmo para mim. Pedi para que Paul me

acompanhasse.

343

Na verdade, eu esperava ir visitar Jon em um

quarto, mas fomos encaminhados para uma sala de

visitas. Jon estava esperando por nós. Era como a sala

de uma casa qualquer. Havia televisão e livros. Sentei

em uma poltrona, na outra extremidade da sala.

—Onde está Tony? —Ele perguntou, obviamente

decepcionado.

—Julia não pôde vir. —Paul falou.

Jon levantou-se e foi saindo da sala. Paul

conseguiu puxá-lo pelo braço.

—Queremos conversar.

—Não tenho nada a dizer.

—Eu sei que deve estar nos culpando, mas não fomos

nós que decidimos colocá-lo aqui.

—Não estou perguntando nada. Só achei que fossem

meus amigos.

—Por favor, Jon... —Interferi, mas não tive palavras

para continuar.

344

—Quando é que vão me tirar daqui?

—Quando o médico disser que já está bom. —Foi Paul

que respondeu.

—Ele não vai dizer isso nunca. É conveniente que

permaneçamos loucos. Sabe como é, essa coisa toda que

vemos na televisão.

—O dr. Perry é confiável. —Eu disse. Não tinha certeza,

mas precisava dizer alguma coisa.

—Sim, plenamente confiável. Sabe o que aconteceu

ontem, Reg? Me deu alguns choques na cabeça. Não que

eu esteja reclamando, porque nada como um bom

choque nas idéias pra gente ver tudo com mais clareza.

Não respondemos. Já tinha começado

com as ironias, e isso nunca foi bom sinal.

—Vamos fazer de tudo para tirá-lo daqui o mais rápido

possível. —George garantiu. Eu assenti, efusivo.

—Certo. —Ele puxou a maçaneta da porta. —Então eu

estarei esperando lá dentro, perto da ala dos

345

esquizofrênicos. Quem sabe eu também não encontre

um amigo invisível por lá? Aí eu prometo que não darei

mais trabalho para vocês.

Julia me ligou e pediu que eu fosse até sua casa.

Quando cheguei lá, estava arrumando suas malas. Tony

dormia no berço, e com um aperto no coração me

lembrei de meu pequeno Charlie. Tony estava assim

destinado: Mais um filho de pais separados.

—Você está de cabaça quente agora. —Eu tentei.

Ela balançou a cabeça em negativa, e começou

a chorar. Eu gostaria de ter as palavras certas que a

fariam ficar.

—Não consigo mais. Preciso me salvar, e tirar meu filho

disso. Não quero que ele veja as coisas que está vendo.

346

—Se está pensando realmente em Pirata, considere que

a melhor alternativa não é um lar despedaçado.

—Jon nunca está em casa, mesmo. E sei que ele tem

outras. —Eu arrisquei minha melhor expressão de

surpresa. —quando vai á essas festas com vocês... Por

favor, não pense que sou cega.

—Ele está doente, Julia. Por favor, repense.

—Não, Reg! Não consigo mais ouvir isso, não consigo.

—Colocou a última peça de roupa dentro da mala. Não

tenho certeza, mas acho que aquela mala era de Jon. —

Eu espero que você me entenda, porque sei que ele é

cabeça dura demais para entender.

—Não vai ao menos dizer adeus?

—Não é necessário. Creio que ele vai querer visitar o

Pirata. Diga que sempre pode fazer isso. Estarei na casa

da minha avó, pelo menos por um tempo.

Entregou a chave de casa na minha mão, e

saiu.

347

Por mais que tentássemos negar, Jon já não era capaz de

cuidar de si mesmo e de seus próprios assuntos.

Esquecia os horários, se perdia nas datas. Quando

estava em casa, trocava a noite pelo dia. Não se

alimentava direito, e só dormia porque os remédios

eram mais fortes do que sua vontade de permanecer

acordado. Tentamos dever tudo isso á sua perna

quebrada, e que ele ainda se recuperava de sua estadia

no hospital psiquiátrico.

Ele dizia que os remédios contra dor

receitados pelo seu médico eram fracos demais, e

acabou encontrando o seu ideal por conta própria, o que

finalmente aplacava as dores de seu osso que se

calcificava, e as supostas dores de cabeça que o

tornavam irritadiço. Eu dizia para que parasse com

aquilo, o remédio era forte demais, e acabaria por viciá-

348

lo. Eu estava certo com minha predição, e obviamente,

ele não me deu ouvidos.

Jon não pareceu se importar quando

anunciei que Julia tinha partido.

—Eu já sabia. —Não sei se dizia a verdade, mas nunca

mais tocamos no assunto.

Paul e eu nos revezávamos para não deixá-

lo sozinho, tanto em casa como durante as turnês. Não

era grande sacrifício de nossa parte. Minha únicas

companhias em casa eram meus cachorros, e meus

únicos compromissos fora da Peas eram com a igreja.

Paul era um fanfarrão, e nunca se importou com nada,

além de festas e curtição. Acho que nunca pensou em

casar.

Aquele ano, em um todo, correu muito

bem. Jon não teve poucas crises, e observávamos

quando ele tomava remédio.

349

—Odeio isso. —Esbravejava toda vez que avisávamos

que era hora do remédio. —Eu não sou uma maldita

criança.

—Então não tinha esquecido?

—Claro que não! Programei meu celular, ele vai me

avisar todos os horário, ouviu bem?

O único horário que ele não perdia, eram os

da visita a Tony. Julia permitia que Jon passeasse com

ele, eu assegurei á ela que não tinha problemas, Jon me

parecia completamente sob controle.

Estávamos no estúdio naquela tarde. Os

caras saíram para almoçar, Jon e eu ficamos esperando a

pizza ali mesmo. Eu fumava um cigarro, sentado no

sofá.

—Odeio esse sentimento de gratidão. —Jon disse, de

repente. Enchia um copinho plástico de café. —É a pior

coisa que um ser humano pode sentir.

—Do que está falando?

350

—De vocês. Dessa droga toda. Não são mais meus

amigos, são minhas babás, meus enfermeiros. E o que

ganham em troca? Porcaria nenhuma. Ou melhor,

minha maldita gratidão.

Respirei fundo.

—Estou fazendo o que posso.

—Eu sei, e esse é o problema. Por que são tão egoístas?

Por que não me deixam morrer logo?

Sentou-se pesadamente na poltrona que

combinava com o sofá. Eu dizia a mim mesmo para

manter a calma. São apenas palavras vazias de um cara

cansado de depender dos outros. Eu entendia isso, mas

nada impedia que minha raiva subisse á garganta.

—Essa piedade —Ele continuou. —O jeito que todo

mundo me olha. Coitadinho dele, não é? Está doente. Eu

não sou nenhuma droga de retardado, entendeu? Quero

que parem de agir como se eu fosse.

351

—Como pode saber se a gratidão é um mau sentimento

se nunca sentiu? Não acho que você seja capaz.

—Eu nunca pedi ajuda. Por que deveria me sentir

grato? Não quero que me ajudem, entendeu? Só isso!

Não pode ser tão difícil de entender.

—Acontece que consideramos você. Nos preocupamos.

—Então, parem com isso. Não estou fazendo mal pra

ninguém além de mim mesmo. Essa maldita perna dói

em mim, não em vocês.

Levantei do sofá na vontade de espancá-lo.

Ao invés disso, joguei as palavras das quais eu me

arrependeria pro resto da vida.

—Se quer tanto morrer, por que não se mata logo?

Deixei o estúdio antes que ele pudesse

responder.

352

A turnê do nosso último álbum, The Damage Done, teve

início logo depois da retirada do gesso da perna de Jon.

Por ordens do dr. Perry, não fazíamos mais longas

viagens, sempre voltávamos para casa e deixávamos

que Jon descansasse por um tempo.

Conseguimos conhecer alguns pontos turísticos

da América do sul, e Jon se divertiu um pouco, mesmo

com seus horários restritos. Parecia a mim que já estava

se acostumando com a nova rotina. A vida de rock star

teve que ser deixada para trás.

Ele teve duas crises antes que voltássemos para casa em

julho de 2007. Eu diria que foram dois surtos literários,

como só Jon era capaz de ter.

Paul me contou que ele surgiu durante a

madrugada no seu quarto, chorando e gritando que

353

alguém estava perseguindo ele, e tentava matá-lo. Eu o

encontrei encolhido junto á parede. Pedi explicações.

—Ele quer me matar!

—Quem?

—O assassino.

—Não me diga.

—Ele me seguiu durante todo o trajeto até aqui. Eu

tinha ido no... No... Correu atrás de mim pela escada.

De início, eu achei que era só impressão minha, mas o

cara não parava de observar. Ele e vestia um sobretudo

preto, e botas de couro.

—Nesse calor, Jon?

—Isso. Ele correu atrás de mim... Pela escada.

—Por que haveria de persegui-lo?

Paul revirou os olhos deitou-se na cama.

Esforcei-me para continuar paciente. Jon baixou o tom

de voz para um sussurro.

354

—Ele vai arrancar meu coração. Vai arrancar meu

coração e colocá-lo... Colocar numa caixinha. —Seus

olhos molhados agora brilhavam, quase de excitação.

Quando você abrir a porta amanhã, vai encontrá-lo ali,

ensangüentado numa caixinha de papelão. Exatamente

como no livro.

Ouvi alguma exclamação de Paul. Passei as

horas seguintes explicando que ele estava seguro ali, e

implorando para que tomasse a pílula. Quando ele

finalmente concordou e dormiu, fomos pegar o tal livro

no quarto dele. Era um romance policial, e tratava da

história de uma jovem detetive, que perseguia e era

perseguida por um assassino em série. A cena a qual ele

se referia acontecia mesmo em um hotel, e a

protagonista recebia na porta de seu quarto uma

caixinha contendo o coração de um de seus colegas de

trabalho. Nós desaparecemos com o livro, como se

aquela atitude resolvesse nossos problemas.

355

—Onde foi que deixei a droga do livro? —Ele

perguntou a si mesmo, enquanto preparava as coisas

para seguir para o próximo país.

O segundo surto aconteceu na Bolívia, uma

semana depois. Ele ligou para um amigo nosso em Los

Angeles, que imediatamente me ligou de volta,

preocupado.

—Reg, Jon ligou aqui agora há pouco. —Fred contava.

—E eu acho que é melhor ir atrás dele.

—Ah Deus meu! E o que é que ele disse pra você?

—Disse que você quer roubar as pedras mágicas dele.

Não pude conter o riso.

— Que droga...?

—Não sei. Alguma coisa sobre umas pedras que são

capazes de saber do futuro. Jon disse o nome, mas agora

não me recordo.

—Cara, temos duas horas antes que comecemos o show.

356

—Então é melhor se apressar. E tome cuidado com o

que vai dizer. Afinal, é de você que ele desconfia.

Levando em consideração essa advertência

de Fred, pedi para que Paul e George fossem em busca

dele. Foi sorte nossa que o tenham achado no jardim do

hotel. Fico imaginando o que teria acontecido se ele

tivesse se perdido em um país desconhecido, cheio de

imaginações absurdas e idéias mirabolantes. O que faria

eu com pedras que liam o futuro? Não me

interessavam. Prefiro surpresas. Mesmo porque eu sabia

que acabaria por me assustar com o que o destino me

reservava.

Enquanto aguardava o retorno de Paul e

George, segui para o quarto de Jon. A porta tinha sido

deixada aberta. Revirei a mala de Jon e encontrei dois

livros. Um deles tinha um marcador de páginas.

Comecei a folheá-lo. Não era um livro grosso, as letras

eram grandes, o tipo de história fácil. Eu não sou muito

357

fã de leitura, mas um livro assim eu até me atreveria a

ler. Era um autor brasileiro, um dos grandes ídolos de

Jon.

Não demorou até que eu encontrasse a página

que procurava. Um dos trechos que falavam sobre as

pedras mágicas. Um sábio rei entregava para um

humilde pastor duas pedras: Urim e Tumim. Elas eram

a única forma de adivinhação permitida por Deus nos

tempos de Moisés, e a busca da Terra Prometida. A

pedra de cor preta significava “sim”, e a de cor branca

significava “não”. Fiquei curioso para saber o que o

jovem pastor desejava adivinhar em seu futuro, mas

fechei o livro quando meu aparelho celular tocou. Era

George, anunciando que tinha encontrado Jon. Pensei

em dar sumiço nesse livro também, mas me dei conta de

que não adiantaria. Recoloquei o livro dentro da mala.

358

Jon tinha os olhos vazios enquanto fitava o

chão do quarto de Paul. George colocou nosso novo

desafio:

—Temos um show para fazer, e já estamos atrasados.

Arriscaremos, ou não?

Olhei para Jon. Não deveríamos. Não

mesmo. Mas cancelar mais um show seria um prejuízo

grande demais. Pagaríamos uma multa enorme, e ainda

corríamos o risco de sermos processados.

—Temos fãs que nos esperam. —Respondi.

George assentiu. Conseguimos levar Jon

meio catatônico até o carro, e depois até os camarins.

Seu olhar perdido ás vezes se tornava assustado, mas

logo voltava á impassividade. Subimos no palco, com o

coração aos pulos. Não vai dar certo.É melhor desistir

enquanto ainda há tempo.

O milagre da música. O incrível milagre

da música. Ele se empolgou no palco, muito mais do

359

que normalmente faria. O show correu quase natural, e

acho que passamos perto de enganar a multidão de

jovens, convencendo-os de que não havia nada de

errado. Jon esquecia as letras, e improvisava qualquer

coisa absurda. A platéia não pareceu se importar.

Imaginei que parte dela não entendia o que dizia, e a

outra parte simplesmente levou tudo numa boa.

Há certa altura, Jon trocou a letra inteira de

uma música, substituindo-a pela história da Cinderela e

o seu sapatinho de cristal. Estava provocando riso na

platéia, e nos deixando em pânico em cima do palco.

Estávamos na penúltima música quando

ele disse, interrompendo o som na metade, nos

obrigando a parar de tocar.

—Eu não quero mais fazer isso. Estou cansado e vou

para casa.

360

Largou o microfone no chão e saiu. Paul usou

o seu próprio microfone de vocal de apoio e se

desculpou com a platéia.

—Até mais, pessoal. Vocês foram incríveis.

Voltamos para casa no dia seguinte. Aquele

tinha sido o último show da Peas.

Eu tenho minha própria teoria. Sim, eu sei que foi

encontrada uma suposta carta de suicídio em seu

quarto, mas estou disposto a acreditar que foi um

acidente, uma distração de Jon. Eu expus minha opinião

aos médicos, e eles disseram que não era impossível que

se tratasse de um acidente. Mas os legistas afirmavam

sua teoria com tanto afinco, que foi essa a notícia que

saiu na Internet no começo de 2008.

Jon estava com vinte e oito anos. Não havia

nada de errado com ele naquele noite. Pelo contrário,

361

ele parecia bem. Assistimos um filme de comédia em

minha casa. Jon odiava comédias românticas, mas nos

divertimos com comentários estúpidos á parte, mal

consegui prestar atenção ao filme. Ele foi para o quarto

de hóspedes que sempre ocupava quando dormia em

casa, e eu nem desconfiei que algo estivesse para

acontecer. Na manhã seguinte, encontrei seu corpo sem

vida.

Foi um dos policiais que identificou a

possível carta de despedida, entre os outros inúmeros

papéis de desabafo.

“Eu tenho muito pra sentir, mas pouco para dizer.Embora eu

reconheça que devo me desculpar por tudo o que causei,não

consigo encontrar as palavras certas. Acho que ainda não foi

inventada a definição exata da palavras “loucura” e “dor”.

O máximo que posso dizer é que tenho tentado

da melhor forma possível, para abandonar a dor e suportar

362

sozinho, e mesmo mergulhando no fundo onde cheguei, não

encontrei as linhas que dividem. Pensar “vai ser melhor

amanhã” já não está funcionando, e aí eu vou chegando ao

meu limite. E qual é o meu limite?

Uma coisa que eu posso dizer é que, fora as

noites passadas em claro, agarrando um travesseiro no canto

da cama, esperando que a porta do quarto se abrisse, nunca

me senti sozinho. Vocês nunca deixaram que isso acontecesse.

Apesar de minha certeza de que ninguém além dela foi capaz

de me entender. Vocês me deram forças para continuar.

Agora já não parece tão estranho. Meu coração

está batendo forte, mas não é tão assustador assim. Acho que

hoje consigo ver tudo com mais clareza. Qualquer coisa que

deixem minhas mãos livres. Então me julgue agora. Eu tinha

medo de admitir, mas agora... Agora sim. Acho que não venci

essa corrida. Ou venci? Afinal, cheguei até aqui. Tem mais

alguma coisa para acontecer?

Eu quero silêncio. Deixar o ódio e a dor, só o que

vai restar é o vazio. Não permite que eu sinta absolutamente

363

nada. Ele está mais calmo agora. Batendo devagar. Estou

esperando. Cada vez mais devagar... Sem outro amanhecer.

Um vislumbre do meu lar seguro.

Eu sinto muito, muito mesmo.

De braços abertos, estou chorando.

De braços abertos, eu vejo o fim.

De braços abertos, estou esperando.

Luz das estrelas do céu, guiem meu coração, e me diga porquê!”

Eu identifiquei alguns trechos das músicas

que ele costumava ouvir quando estava triste. Sei que

parece mesmo que ele escrevia enquanto esperava os

calmantes fazerem efeito. Mas os peritos diziam que a

carta poderia ter sido escrita muitas horas atrás, quem

sabe até há alguns dias. Sinceramente, acho que era

apenas mais um de seus papéis, embora pareça o

derradeiro pedido de socorro e a despedida.

364

Eu observo que a carta não tem destinatário,

nem assinatura. E não era a primeira vez que Jon

escrevia sobre suicídio. Como prova disso, existem

músicas da Peas. Consigo imaginá-lo sozinho no quarto,

depois que eu fui dormir. Ele não conseguia conciliar o

sono, a dor de cabeça devia estar piorando devido a

isso. Uma dose de codeína. Mais uma dose reforçada de

Valium. E ele conseguiu acidentalmente o que sempre

quis.

Pensei em me mudar para Bakersfield,

enquanto via cada um de meus amigos seguirem o seu

rumo. Apenas George e eu permanecemos em Los

Angeles. Por causa de Charlie, e também porque me

sentia na obrigação de visitar Tony como Jon fazia.

Os primeiros dias foram os mais difíceis,

como sempre acontece. Mas aos poucos, consegui me

convencer de que tinha sido a única saída para Jon.

365

Passei horas relembrando o dia em que ele

concordou milagrosamente em ir á igreja comigo,

poucos meses antes de sua morte. Eu vi ele orar com

tanta fé que chegou até a me invejar. Dessa forma,

cheguei á conclusão de que ele estava espiritualmente

em paz, e preparado para sua morte.

Existem coisas em que precisamos

desesperadamente acreditar.

Peas, Para achar a frase perfeita

Eu estou aprendendo a lidar com a dor

Vai ficando mais fácil a cada vez

Vai te dando mais vontade a cada vez

Vai te levando mais pra perto a cada vez

Odiar tinha sido divertido

Até certo ponto, tem sido divertido

Vai queimando, possuindo, controlando

366

Não há nada que se possa fazer

De uma forma nada física

Por dentro da minha cabeça, fora de controle

( Estou fora de controle )

Não tente me alcançar agora

Não queira me vencer agora

O que ainda te parece fácil

Não me toque

Já não é tão frágil

Não me importa, não me importa

Tudo faz sentido agora

Se minha loucura faz sentido pra mim,

Deixou de ser loucura pra mim!

O que eu vejo, o que eu sinto

Me dê uma luz, ainda acredito

Não me entende porque é mais fácil não entender...

367

368

369

Agradecimento pela imagem:

Henrique Teles

370