Esperança, apesar do absurdo, aconteça o que acontecer · PDF filerompendo as...

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  • http://combonianum.org/ FP Portugus 3/2016

    Esperana, apesar do absurdo, acontea o que acontecer

    Jos Tolentino Mendona

    O tema da esperana est fora de estao. Desapareceu dos ttulos dos volumes de teologia.

    como se tivesse sido a locomotiva do pensamento teolgico e depois feito um enorme silncio. A

    exceo ser a encclica Spe salvi, de Bento XVI, mas mesmo assim no nada comparado com a

    poca anterior.

    Uma das causas deste fenmeno reside no sentimento de que vivemos ainda hoje a ressaca de

    tantas esperanas projetadas em vo. E assim, a esperana perdeu presena no espao pblico e no

    pensamento teolgico contemporneo. Kafka escrevia: existe esperana e uma esperana infinita,

    mas no para ns.

    Esperar contra toda a esperana (cf. carta de S. Paulo aos Romanos, 4, 18): no de uma

    esperana isenta, empolgada, ligeira, fcil, imediata que se quer refletir e falar, mas de uma esperana

    que resiste prova de fogo da desesperana e se confronta com ela.

    A esperana tambm integra a desesperana no prprio processo. Ela no ignora o enigma e o

    absurdo da existncia. Por isso pretende-se humilde e depurada.

    Para S. Paulo, a esperana uma das peas-chave da existncia crist. Ela surge como elemento

    diferenciador e identitrio do cristo. Tal como o crente pode ser descrito como aquele que possui a

    f, poderamos tambm dizer que ele algum que vive na espera, na expetativa.

    A esperana paulina tem sempre uma onda longa, pois est referida ao futuro de Deus, ao

    mesmo tempo que se refere ao processo histrico em marcha, em processo, em aberto. Com efeito, a

    salvao, mesmo no escuro do sepulcro, est em curso.

    O campo semntico da esperana tem em Paulo uma presena, transversalidade, extenso e

    plasticidade notveis, que se declina em 3 dimenses: a atitude de quem espera; a esperana enquanto

    relao com o objeto que se espera; a causa e fundamento que serve de motivo esperana.

    Na maior parte das vezes, a esperana em Paulo de natureza teolgica, e por isso no reside

    essencialmente em cumprir ou fazer isto ou aquilo, mas numa expetativa que d sentido e razo vida.

    Os cristos vivem na esperana porque as promessas de Deus em Cristo no raro esto em

    contradio com a realidade que os circunda. A alimentar a esperana est o dom do Esprito Santo,

    artfice da esperana.

    Uma vez que fomos justificados pela f, estamos em paz com Deus por Nosso Senhor Jesus

    Cristo. Por Ele tivemos acesso, na f, a esta graa na qual nos encontramos firmemente e nos

    gloriamos, na esperana da glria de Deus. Mais ainda, gloriamo-nos tambm das tribulaes,

    sabendo que a tribulao produz a pacincia, a pacincia a firmeza, e a firmeza a esperana. Ora a

    esperana no engana, porque o amor de Deus foi derramado nos nossos coraes pelo Esprito Santo

    que nos foi dado (Romanos 5, 1-5).

    Mesmo se difcil conservar a esperana no meio dos sofrimentos, os cristos podem alegrar-se

    tambm nos sofrimentos porque a vida inspirada pela glria.

    Estou convencido de que os sofrimentos do tempo presente no tm comparao com a glria

    que h-de revelar-se em ns. Pois at a criao se encontra em expectativa ansiosa, aguardando a

    revelao dos filhos de Deus. De facto, a criao foi sujeita destruio - no voluntariamente, mas

    por disposio daquele que a sujeitou - na esperana de que tambm ela ser libertada da escravido

    da corrupo, para alcanar a liberdade na glria dos filhos de Deus. Bem sabemos como toda a

    criao geme e sofre as dores de parto at ao presente. No s ela. Tambm ns, que possumos as

    primcias do Esprito, ns prprios gememos no nosso ntimo, aguardando a adopo filial, a

    libertao do nosso corpo. De facto, foi na esperana que fomos salvos. Ora uma esperana naquilo

    que se v no esperana. Quem que vai esperar aquilo que j est a ver? Mas, se o que no

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    vemos que esperamos, ento com pacincia que o temos de aguardar. assim que tambm o

    Esprito vem em auxlio da nossa fraqueza, pois no sabemos o que havemos de pedir, para rezarmos

    como deve ser; mas o prprio Esprito intercede por ns com gemidos inefveis. Sabemos que tudo

    contribui para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que so chamados, de acordo com o seu

    desgnio (Romanos 8, 18-26.28).

    Torna-se ainda mais claro que a esperana no pode sobreviver sem o dom do Esprito. ele

    que assegura aos cristos serem co-herdeiros com Cristo; por isso sofrem com Ele antes de serem

    glorificados.

    Os gemidos e a fadiga so um indcio eloquente de que a condio presente se resolver num

    estado glorioso. O portal do sofrimento e da morte transforma-se no portal da grande esperana, da

    glria e do esplendor, como apontou Bonhoeffer.

    A esperana no se esgota no presente, ela tenso, dinamismo que no presente vive o rasgo

    do futuro; tem o seu sentido de pregustao de algo maior. um encorajamento dirigido aos crentes

    no meio dos seus sofrimentos, mas tambm um desafio para no nos conformarmos com a realidade

    presente.

    Nas promessas de Deus o futuro j se anuncia e exercita um impacto, real, histrico, sobre o

    presente. Como escreve Charles Pguy, a esperana ama o que ser.

    Sobre a esperana, Paulo evoca Abrao: e bem, porque a narrativa, a imagem, tm a fora

    expressiva de mil palavras, no falando s razo como tambm ao indizvel da f e do corao. A

    esperana de Abrao tornou-se decisiva e maior porque acreditou em Deus mesmo quando toda a

    esperana humana se esvaa por completo.

    O Senhor disse a Abro: Deixa a tua terra, a tua famlia e a casa do teu pai, e vai para a terra

    que Eu te indicar. Farei de ti um grande povo, abenoar-te-ei, engrandecerei o teu nome e sers uma

    fonte de bnos. Abenoarei aqueles que te abenoarem, e amaldioarei aqueles que te amaldioarem.

    E todas as famlias da Terra sero em ti abenoadas. Abro partiu, como o Senhor lhe dissera, levando

    consigo Lot. Quando saiu de Haran, Abro tinha setenta e cinco anos (Gnesis 12, 1-4).

    Chamado para Deus para encetar uma nova histria, quando pensava que a sua j tinha

    terminado, Abrao entende o apelo divino como um desafio.

    A esperana comea por ser desafio a transcendermos a resoluo individual da nossa existncia

    ou as formas pretensamente definitivas que construmos para ela, abrindo-nos surpresa de Deus e

    sua dependncia.

    O modelo paulino da esperana um ancio que se torna viajante, um aposentado que se faz

    estrada, um homem que, em princpio, podia estar a viver dos seus bens, como um jovem de mos

    vazias. Porque o crente um peregrino de mos pobres e vazias e olhos atirados para o alto.

    a esperana que nos conduz para fora dos crculos fechados das nossas interrogaes,

    rompendo as perspetivas. Precisamos de abrir janelas que do para o vasto cu, erguer os olhos para

    alm do que se pode contar, contemplar a imensido.

    Todavia, tornamo-nos facilmente calculistas at exasperao, tendo a prudncia como

    desculpa. Mas esperar contra toda a esperana no uma sugesto naf. levantar os olhos

    deslumbrados e confiantes esta a deciso de quem espera.

    Contemplemos Abrao e a esperana em trs passos.

    Comecemos com Gnesis 18, 1-5: O Senhor apareceu a Abrao junto dos carvalhos de

    Mambr, quando ele estava sentado porta da sua tenda, durante as horas quentes do dia. Abrao

    ergueu os olhos e viu trs homens de p em frente dele. Imediatamente correu da entrada da tenda ao

    seu encontro, prostrou-se por terra e disse: Meu Senhor, se mereci o teu favor, peo-te que no

    passes adiante, sem parar em casa do teu servo. Permite que se traga um pouco de gua para vos lavar

    os ps; e descansai debaixo desta rvore. Vou buscar um bocado de po e, quando as vossas foras

    estiverem restauradas, prosseguireis o vosso caminho, pois no deve ser em vo que passastes junto

    do vosso servo. Eles responderam: Faz como disseste.

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    Abrao concebe a existncia como um exerccio de hospitalidade. Na hora do calor, em pleno

    deserto, corre da entrada da tenda ao encontro dos visitantes. Adianta-se. A escola da esperana supe

    a arte da hospitalidade.

    A pacincia: a esperana comea pela aceitao paciente da vida, porque ela, a pacincia,

    coloca-nos diante da vulnerabilidade prpria e alheia. H um trabalho de transformao pessoal que

    deve ser prosseguido e intensificado.

    Somos convidados a ultrapassar os bloqueios que radicam no temor face ao silncio e demora

    de Deus. A pacincia, tal como a esperana, uma respirao longa, distendida e aberta, ao contrrio

    do respirar ofegante. A pacincia respirar melhor por dentro da promessa ininterrupta de Deus.

    Abrao mostra tambm que a esperana feita de prova. Ela o lugar onde se fortalece aquela

    confiana chamada a ser radical na esperana. A esperana no repousa em garantias ou sinais, mas s

    em Deus tem o seu fundamento

    Na narrativa do sacrifcio do seu filho, Isaac (Gnesis 22), Abrao sobe o monte levando no seu

    corao a ordem absurda de Deus. Ele sabe que no meio do absurdo Deus se revelar de uma forma

    que no conhece. Porque a f em Deus sobrepe-se a todas as convenes culturais.

    Matando o seu filho, Abrao sabe que estar a matar quem mais ama; mas ele cr apesar de, e

    espera que no absurdo da esperana possa recuperar tudo de Deus. A esperana, na verdade, no

    um imaculado estado de iseno, mas as dores de parto da alma do mundo e da nossa prpria alma.

    O que Paulo diz como o modelo de Abrao (Romanos 4) que no fundo da nossa pobre

    esperana somos chamados a di