Espanta pardais

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Espanta pardais - Ah! Ah, que se mandasse não seria assim... Nem a Rosa teria «tinha» na cabeça, nem o Nelo a perna partida , nem o Zé as mãos pisadas de amassar barro todo o dia... Ah, que se ele mandasse, a vida não seria tão dura... E a antena de televisão deixaria de brilhar lá por cima da casa do Tio Jé Tendeiro... Ah, que se ele mandasse... Acabava com tudo, pronto! Nem ninhos roubados, nem vidros partidos, nem água desviada, nem palmatória nas mãos do Celso, nem nada... pronto! Ah! Ele... Ah, que ele por certo... Ele por certo, não estaria ali todo o dia, no meio da seara, a gritar como um possesso, a fazer gestos, a bater caldeiro, a perguntar ao Sol e ao vento quando viria a chuva miudinha. A chuva miudinha era doce, fresca, cariciosa e boa. Caía- lhe aos pingos pequeninos no cabelo revolto, saltava-lhe em gotas para a testa e, depois, era um lamber-lhe os olhos, o nariz, a boca. Quando chegava ao peito, já ia quente. Quente e doce. Doce de suor, de risos, e, às vezes, de lágrimas que saltavam de emoção ao senti-la cair devagarinho na pele, das faces sardentas, retesada de cieiro. Da chuva grossa não gostava. O ping... pong... ping... pong... parecia dizer: Espanta pardais... Espanta pardais... Era doloroso, simplesmente desesperador, ouvir essa cantiga rouca feita pelos pingos da chuva a tombarem no caldeiro ferrugento. Mas a chuva era toda boa. Boa e resignada. Melhor do que ele, Deus abria os braços e dizia às nuvens: - Chorai para refrescar a Terra. E as nuvens a tremer lá iam pressurosas mandar a chuva feita das suas lágrimas. E a chuva caía resignada e doce. Cumpria o seu dever. Mas ele... Ah, ele não. Quando de manhã se erguia, era sempre a mesma luta. Espreitava a seara ondulante, e se via os pardais aos saltos, tontos de alegria pela liberdade da colheita oportuna, mirava pelo canto dos olhos o catrapázio da escola e ficava indeciso, absorto, preso de pés e mãos entre o fel e o mel. Ah, que se ele mandasse, pegava no catrapázio e, zás, sumia-se pelo atalho e iria à escola. Nunca, nunca mais estaria ali à chuva, ao vento, ao sol escaldante, a gritar como um possesso, no meio da seara madura: -Oh... ôh... Eh, pardêlhô...ô...ô...

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Mais um conto de Maria Helena Amaro. http://mariahelenaamaro.blogspot.com/

Transcript of Espanta pardais

Espanta pardais - Ah! Ah, que se mandasse não seria assim... Nem a Rosa teria «tinha» na cabeça, nem o Nelo a perna partida , nem o Zé as mãos pisadas de amassar barro todo o dia... Ah, que se ele mandasse, a vida não seria tão dura... E a antena de televisão deixaria de brilhar lá por cima da casa do Tio Jé Tendeiro... Ah, que se ele mandasse... Acabava com tudo, pronto! Nem ninhos roubados, nem vidros partidos, nem água desviada, nem palmatória nas mãos do Celso, nem nada... pronto! Ah! Ele... Ah, que ele por certo... Ele por certo, não estaria ali todo o dia, no meio da seara, a gritar como um possesso, a fazer gestos, a bater caldeiro, a perguntar ao Sol e ao vento quando viria a chuva miudinha. A chuva miudinha era doce, fresca, cariciosa e boa. Caía-lhe aos pingos pequeninos no cabelo revolto, saltava-lhe em gotas para a testa e, depois, era um lamber-lhe os olhos, o nariz, a boca. Quando chegava ao peito, já ia quente. Quente e doce. Doce de suor, de risos, e, às vezes, de lágrimas que saltavam de emoção ao senti-la cair devagarinho na pele, das faces sardentas, retesada de cieiro. Da chuva grossa não gostava. O ping... pong... ping... pong... parecia dizer: Espanta pardais... Espanta pardais... Era doloroso, simplesmente desesperador, ouvir essa cantiga rouca feita pelos pingos da chuva a tombarem no caldeiro ferrugento. Mas a chuva era toda boa. Boa e resignada. Melhor do que ele, Deus abria os braços e dizia às nuvens: - Chorai para refrescar a Terra. E as nuvens a tremer lá iam pressurosas mandar a chuva feita das suas lágrimas. E a chuva caía resignada e doce. Cumpria o seu dever. Mas ele... Ah, ele não. Quando de manhã se erguia, era sempre a mesma luta. Espreitava a seara ondulante, e se via os pardais aos saltos, tontos de alegria pela liberdade da colheita oportuna, mirava pelo canto dos olhos o catrapázio da escola e ficava indeciso, absorto, preso de pés e mãos entre o fel e o mel. Ah, que se ele mandasse, pegava no catrapázio e, zás, sumia-se pelo atalho e iria à escola. Nunca, nunca mais estaria ali à chuva, ao vento, ao sol escaldante, a gritar como um possesso, no meio da seara madura: -Oh... ôh... Eh, pardêlhô...ô...ô...

Lá em baixo, para os lados do rio, erguia-se o telhado rosado, novinho em folha da escola. Quase que sabia de cor as cantigas das pequenas no recreio: - Fui ao jardim das flores... Giró flé... flé... flá... Não via o pátio dos rapazes, mas ouvia-os cantar, gritar correndo; e, quantas vezes, aparecia no céu talhado em seda um papagaio vermelho de papel! Iam-lhe os olhos nele e esquecia os pardais. Ah, que se ele mandasse... Onde iria o papagaio de papel vermelho e dourado, suspenso no céu? Mais lindo que os pardais. Mas ao pé deles, no esvoaçar, parecia um burrinho saltitante. Ir à escola, ser como os outros... Deixar os pardais comer à vontade e a corda do gado do patrão moer-lhe o corpo, marcar-lhe o corpo por desobediente... Ainda lhe doía da última vez. Mas, pelo menos, ficara a querer um pouco à seara. Na escola, falava-se dessas coisas: «Seara é cereal, cereal é farinha, farinha é pão...». Apetecia-lhe dizer: - «Obrigada, seara, pelo pão!» Mas o sol queimava, a garganta doía e o vento cantava no catavento próximo: - Espanta pardais... espanta pardais...

.................................................................................................... - Mãe, deixe-me ir à escola! - Não pode ser, filho. O Tio Bento já cá veio perguntar por ti. - Deixe, Mãe! - ... - Deixe, Mãe! Deixe-me ir... - Queres ir, não queres? Vai, então vai! E que os teus irmãos morram de fome... E eu que trabalhe como uma moira... E tu feito fidalgo, de livros na mão, a deixar manter preguiça e crescer unto... Some-te mas é prá seara! Vês aquela passarada? O Tio Bento não tarda aí. E se te moer o corpo, é bem feito. Cá por mim dou ordem. Não te criei «pra» malandro, meu espantalho! Ah, que se o teu pai fosse vivo... Tu não vês que, se lhe foges tantas vezes, ele manda-te embora?! E depois? Quem te sustenta? Olha que são dez escudos... A escola é prós ricos! Os olhos do pequeno fecharam-se para suster as lágrimas, e as mãos sumiram-se nos bolsos. Depois, de cabeça curvada, arrumou ao canto do cortelho o saquitel e foi-se porta fora a soluçar, como se lhe tivessem batido.

A mulher voltou-se para chamá-lo, mas parou desencorajada. Puxou do lenço em farrapos e nele escondeu o rosto vincado de desespero, de inconformidade e desalento.

.................................................................................... - Eh! Pardê...lhô...ôôô...ô pardê...lhôô...ô... Não gosto de vós, não gosto de vós, não gosto de vós. Por vós, não vou à escola. É bom ir... é bom ir e aprender coisas lindas. Rezar e cantar: «Fui ao jardim das flores...». É bom ir!... Que pena a Rosa ter «tinha»!... Disse a Senhora que é de não lavar a cabeça. Chuvinha miudinha lava-me a cabeça! E lava a da Rosa, já que a tia não a lava... Onde vais pintassilgo? Por tua causa, é que o nosso Nelo partiu a perna. Foi castigo! Foi castigo! Foi castigo! És lindo pintassilgo. Leva-me contigo ao Céu! Onde vais? Onde vais? Onde vais? Quantos ovinhos tens no teu ninhinho? Sou teu amigo. Dá-me um para levar à minha professora! Do Tio Bento, não! Ele vem ? Sim... não... sim... não... Não! Que bom! O malmequer disse: - «Não»! Que mau é o Zé ter as mãos pisadas! Se o Tio Bento deixasse, quem ia amanhã servir o barro era eu. Eh! Pardê... lhô... ôôô... Se eu pudesse... Se eu pudesse ir à escola! Rei.. capitão... soldado... ladrão... Se eu pudesse... Giro... flé... flá... O nosso Celso é bom e apanhou de palmatória. Se eu lá estivesse, não levava não! Eu confessava quem mordeu a merenda ao Toino. Foi o Zé do Tio Bento! Foi o Zé do Tio Bento! Ele bateu-me, mas eu vi, mas eu vi! E hei de dizê-lo à Senhora da tarde. Gosto dela. O Zé mentiu, e o Celso apanhou; mas eu hei de contar à Senhora... «Acusa-pilatos... acusa-pilatos...». Hei de dizer mas é ao Senhor Prior... Não, antes digo à minha Senhora. É a melhor e perdoa. Eh! Pardê...lhô...ô...ô... Senhora da Benvindinha, fazei que eu vá à escola. A senhora vai aplicar a multa. Que será a multa? É dinheiro! É dinheiro! E a mãe não tem! E o Tio Bento não paga... Vai prá cadeia! É boa a Senhora. Melhor do que a das meninas. Melhor não! Igual! Igual! A de tarde mandou o Celso escrever cem vezes: «É pecado pegar nas coisas alheias... é pecado pegar nas coisas alheias...». E ele escreveu... Quem escreveu o resto? Fui eu! Fui eu! Mas ele não pegou. Quem pegou foi o Zé do Tio Bento. E foi... e foi... e foi... Vai pró inferno! Vai pró inferno! Eh! Pardê...lhô...ô...ô...ô... Ah! Que se o meu pai fosse vivo, eu não era espanta-pardais. Uma semana dez escudos... E a «tinha» da Rosa para curar? E a perna do Nelo para soldar? E as mãos pisadas do Zé do barro? E a cara da mãe carregadinha de

desgostos? E a campa do pai cheia de flores secas? Hei de levar... Hei de lá ir levar papoilas. Papoilas, não. Vermelhas parece mal. Hei de levar daquelas que a Senhora tem no pátio. Mas peço-lhas. É pecado pegar nas coisas alheias. Cem vezes! Cem vezes! É boa e dá-mas. E vai dizer para eu as pôr em jarrinhas brancas. Eh! Pardê...lhô...ô...ô...ô...

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- Mãe, hoje posso ir? - Ir aonde? - À escola, Mãe Deixe-me ir... O Tio Bento foi à vila... Deixe-me ir, que temos provas, deixe-me ir... - Pois vai... Mas logo que acabe, casa! Ouviste bem? Casa. Que eu saiba que ficas por aí na «choldra»! ... A manhã é azul. De sol e rosas. Junho de luz, de calor, alegria, fartura. Searas ceifadas, planícies reluzentes, luminosidade e sossego. E aos bandos, as crianças são pássaros pelos caminhos da aldeia, de olhos brilhantes e vozes soltas: «Somos um bando de passarinhos... Vimos agora dos nossos ninhos... Trá-lá-lá-lá... trá-lá-lá-lá...». Primeiro, o pátio extenso; depois, a porta; a seguir a sala de carteiras escuras e direitinhas. E depois, a voz da professora serena e musical: - Podem sentar-se. Quem falta? - Ninguém. - Vamos rezar. - Hoje, o Pedro veio, minha Senhora. A criança ergue-se do fundo e o rosto sardento é uma medalha esculpida em oiro escuro. - Bem, Pedro, ia mandar o aviso da multa à tua mãe! - Ó minha Senhora, não mande! A nossa Rosa tem «tinha». O nosso Nelo partiu a perna. O nosso Zé traz as mãos pisadas de dar barro. A minha Mãe não tem dinheiro. Só tem dez escudos por semana. Dez escudos por semana! E o Tio mói-me o corpo com pancada se... se eu não lhe faço a obrigação e fujo pr'a escola. Ó minha Senhora, não mande! - Julguei que eras tu que não querias vir....

- Eu querer, quero... Mas são dez escudos por semana... São dez escudos e a Mãe precisa. E diz que sou fidalgo. E o Bento mói-me o corpo com pancada. Não mande, não mande! - Bem, meu filho. Diz ao Tio Bento que venha falar comigo. E à tua mãe que mande cá a vossa Rosa.

.............................................................................................. - Vai, boizinho, vai.. Que eu também vou... À escola sabes? Se visses, «manso» a cara do Ti Bento... E a Senhora sem medo nenhum. Com os olhos (são azuis, sabes? Como os do menino da D. Mercês) a rirem-se para ele. «Tenha paciência, senhor (e chamou-lhe senhor). Senhor Bento! E ele ficou com melhor nariz. Tenha paciência, mas o pequeno é obrigado a vir à escola e o senhor é (disse uma coisa que eu não sei, mas era parecida com ále...) e pode ser incomodado... Quer espantar os pardais do campo? Arme bonecos de panos velhos e ponha-os lá; mas a criança, não! Tenho pena mas primeiro está a escola. Pode ficar sem o criado. Fidalgo? Não, não é fidalgo saber ler. O seu filho, esse, está a ver, criado com tanto mimo e custa-lhe tanto a aprender, coitado! E o Pedro é mais despachado. Se vierem os dois até podem ajudar um ao outro. Custa-me ser dura; mas, se o caso se repete, não digo que não serei capaz de voltar a incomodá-lo...». Havias de ver, «manso», havias de ver... O Tio Bento pôs-se a esfregar a testa com a mão e suava muito. Olhou para a minha carteira. Parecia que estava a escrever palavras até cem. Isso mesmo, até cem! Depois, deu dois passos para a secretária e disse: «Pois, minha Senhora, não será por mor de mim que o rapaz ficará sem exame. A mãe é pobre e quatro bocas de crianças comem muito. Fora a dela. Que eu mal sei ler, mas, pronto, o pequeno nunca mais falta à escola. Palavra do Tio Bento, Senhora!». A Senhora ria-se, sabes, «manso»? Ria-se devagar com os olhos postos na testa do Tio Bento. Depois disse: - «O senhor é um homem de bem. E o Pedro será um bom criado e há-se ser seu amigo toda a vida». Amigo do Tio Bento, «manso»? Sim faço isso. Fico, então. Então, não fico? Aquela corda do gado é dura e dói como sal nas fendas do cieiro, mas eu agora já posso ir à escola. Posso ir à escola, repara bem, «manso». Havias de ver, «manso»! Hei de ser grande, hei de agradecer ao Tio Bento! E já que... já não vou dizer que foi o filho dele que comeu a merenda do Toino. E hei de pedir ao Celso para

perdoar a palmatória e as cem vezes que escreveu... E hei de levar à Senhora um raminho de papoilas, porque o pai não se zanga de ter na campa flores secas. Hei de ir puxar com força a roda para o Tio Bento ficar com a alface toda regadinha... meter lenha... ir à erva... tudo... para ele me dar na mesma os dez escudos. São dez escudos, «manso», e a Mãe é pobre! Mas, os deveres, hei de fazê-los de manhãzinha. Antes de o Tio Bento ir chamar por mim... E o primeiro pintainho que nascer da ninhada da «choca» há de ser para a Senhora. É tão boa, e não teve medo do Tio Bento, «manso»! Puxa, puxa «manso», puxa que eu também tenho que puxar pela cabeça nas contas. Mas, é bom, sabes? Três... vezes... oito... vinte e quatro... Vês como é lindo e bom? E vão dois... Seara é cereal, cereal é farinha, farinha é pão... e pão custa dinheiro... São dez escudos por semana, dez escudos por semana. Quando sair da escola vou pedir ao Tio Bento pra me deixar fazer-lhe as contas do leite. Olha, «manso», tu sabes quando vem chuva miudinha? Tão doce, tão doce! É que está calor, não está? Mas, é bom «manso», é bom! Eu já posso ir à escola! E rezar à Senhora da Benvindinha. E já não... Ah! É um grilinho... Grilinho lindo, tu já não chamas «Espanta-pardais... espanta-pardais... espanta-pardais...»??? Ah! Que se eu mandasse, punha uma antena de Televisão em cima do telhado do Tio Bento... Igualzinha à do Tio Jé Tendeiro!

Maria Helena Amaro

In, «Maria Mãe», 1973, p. 121-126. Data da conclusão da edição no blogue – 23 de janeiro de 2014

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