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ESPAÇOS URBANOS NA “ALDEIA GLOBAL”: REFLEXÕES SOBRE A CONDIÇÃO URBANA NO CAPITALISMO NO FINAL DO SÉCULO XX 1 David Harvey 2 A cidade contemporânea tem muitas camadas. Forma o que poderíamos chamar de palimpsesto, uma paisagem composta de várias formas construídas, sobrepostas umas às outras ao longo do tempo. Em alguns casos, as camadas anteriores são de origem realmente antiga, enraizadas nas civilizações mais velhas, cujas marcas ainda podem ser percebidas por trás do tecido urbano de hoje. Mas mesmo cidades relativamente recentes contêm camadas distintas acumuladas em fases diversas no tumulto do crescimento urbano caótico gerado pela industrialização, pela conquista colonial e pelo domínio neocolonial, em ondas de mudança especulativa e modernização. Nos últimos duzentos anos, as camadas parecem ter se acumulado de forma ainda mais compacta e rápida, como reação ao crescimento da população, ao forte desenvolvimento econômico e a consideráveis mudanças tecnológicas. Os planejadores, arquitetos e desenhistas urbanos reunidos para demonstrar suas aptidões e idéias criativas na Bienal de Milão, este ano, enfrentam um problema comum: como planejar a construção da próxima camada no palimpsesto urbano de forma a combinar aspirações e necessidades futuras sem violentar em demasia tudo o que já foi feito antes. Parte do legado do passado terá que ser obviamente descartado. Construções degradadas e em ruínas certamente devem ser demolidas, e locais abandonados merecem uma revitalização. Além disso, serão poucos a reclamar do desaparecimento de favelas apodrecidas, indústrias poluidoras, esgotos abertos ou becos infestados de ratos. 1 Conferência proferida no Primeiro Congresso Pan-Americano de Arquitetura, Ouro Preto MG, 24 set. 1992. Publicada nos Cadernos de Arquitetura e Urbanismo, - n.1, ago. 1994. Belo Horizonte. PUC-MG. 2 David Harvey é geógrafo, professor da Universidade de Oxford. Escreveu entre outros livros: Condição pós-moderna, publicação de Edições Loyola, Social Justice and the city, The limits to capital e The urban experience.

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ESPAÇOS URBANOS NA “ALDEIA GLOBAL”: REFLEXÕES SOBRE A CONDIÇÃO URBANA NO

CAPITALISMO NO FINAL DO SÉCULO XX1

David Harvey2

A cidade contemporânea tem muitas camadas. Forma o que poderíamos chamar de palimpsesto, uma paisagem composta de várias formas construídas, sobrepostas umas às outras ao longo do tempo. Em alguns casos, as camadas anteriores são de origem realmente antiga, enraizadas nas civilizações mais velhas, cujas marcas ainda podem ser percebidas por trás do tecido urbano de hoje. Mas mesmo cidades relativamente recentes contêm camadas distintas acumuladas em fases diversas no tumulto do crescimento urbano caótico gerado pela industrialização, pela conquista colonial e pelo domínio neocolonial, em ondas de mudança especulativa e modernização. Nos últimos duzentos anos, as camadas parecem ter se acumulado de forma ainda mais compacta e rápida, como reação ao crescimento da população, ao forte desenvolvimento econômico e a consideráveis mudanças tecnológicas.

Os planejadores, arquitetos e desenhistas urbanos reunidos para demonstrar suas aptidões e idéias criativas na Bienal de Milão, este ano, enfrentam um problema comum: como planejar a construção da próxima camada no palimpsesto urbano de forma a combinar aspirações e necessidades futuras sem violentar em demasia tudo o que já foi feito antes. Parte do legado do passado terá que ser obviamente descartado. Construções degradadas e em ruínas certamente devem ser demolidas, e locais abandonados merecem uma revitalização. Além disso, serão poucos a reclamar do desaparecimento de favelas apodrecidas, indústrias poluidoras, esgotos abertos ou becos infestados de ratos. Mas a opinião pública, por razões que discutirei mais tarde, tem se oposto amplamente à tendência modernista de varrer o passado e reconstruir a vida e paisagem urbana segundo uma imagem totalmente diferente. Atualmente, tendemos a acreditar que a história merece mais respeito do que isso. A preservação, a intensificação ou mesmo a reconstrução de camadas anteriores está muito mais em moda, contanto, é claro, que questões atuais urgentes possam ser resolvidas. O potencial de conflito nessa situação é enorme. Podemos achar meios de criar paisagens completamente novas que, entretanto, possam complementar e intensificar as velhas? Podemos adaptar, exumar ou mesmo copiar camadas anteriores para satisfazer necessidades atuais respeitando, ao mesmo tempo, a integridade de realizações e intenções passadas?

Entretanto, as realidades da política e da economia do final do século vinte nos pressionam, demandando soluções urgentes para inúmeras questões tão definidas que o leque de possibilidades é mantido dentro de limites igualmente definidos. O efeito na área de planejamento e desenho urbano é a criação de uma diversidade limitada dentro de uma conformidade excessiva, sugerindo que a próxima camada a ser superposta no palimpsesto urbano apresentará tantas semelhanças quantas diferenças em lugares tão diversos quanto o México, Itália, Colômbia, França e Finlândia. É tão importante

1 Conferência proferida no Primeiro Congresso Pan-Americano de Arquitetura, Ouro Preto MG, 24 set. 1992. Publicada nos Cadernos de Arquitetura e Urbanismo, - n.1, ago. 1994. Belo Horizonte. PUC-MG. 2 David Harvey é geógrafo, professor da Universidade de Oxford. Escreveu entre outros livros: Condição pós-moderna, publicação de Edições Loyola, Social Justice and the city, The limits to capital e The urban experience.

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apreciar as forças em favor da homogeneidade quanto celebrar as diversidades superficiais e individuais.

l. O COLAPSO DAS BARREIRAS ESPACIAIS

A superação das barreiras espaciais através da produção de um espaço específico para transporte e comunicações (e a conseqüente "aniquilação do espaço através do tempo", na expressão tão adequada de Marx) tem sido altamente significante na dinâmica histórica do capitalismo, fazendo desta uma questão bastante geográfica. Muitas, senão todas, ondas de inovação que têm moldado o mundo desde o século dezesseis são baseadas em revoluções no transporte e nas comunicações, a saber: os canais, pontes e turnpikes3 do início do século dezenove; a estrada de ferro, o navio a vapor e o telégrafo dos meados daquele século; os sistemas de transporte em massa do final do mesmo século; o automóvel, o rádio e o telefone do início do século vinte; o avião a jato e a televisão dos anos cinqüenta e sessenta; e a recente revolução em telecomunicações. Cada grupo de inovações significou uma mudança radical na maneira de se organizar o espaço, deixando, portanto, marcas muito distintas no palimpsesto urbano.

Desde os meados dos anos sessenta, temos presenciado uma reorganização de configurações espaciais e formas urbanas como conseqüência de mais um ciclo significativo na redução de barreiras espaciais. A "aldeia global" sobre a qual Marshal McLuhan especulou nos anos sessenta tornou-se realidade, pelo menos em certo sentido. McLuhan acreditava que a televisão seria o veículo, mas, na verdade, foi provavelmente o lançamento do Sputnik em 1957 que prognosticou a ruptura, anunciando uma nova era de comunicação via satélite. Contudo, como em outras eras, o que mais conta não é uma única invenção, mas o conjunto delas. Acondicionamento em containers, sistemas de frete a jato, serviço intercontinental de transportes e outros reduziram radicalmente o tempo e o custo do transporte. A televisão e o vídeo ajudam a divulgar informações via satélite, enquanto o processamento automático facilita a coleta e análise de informações com rapidez, tornando o micro-chip tão importante quanto o satélite para entendermos como ambientes urbanos podem ser planejados e a vida urbana concebida na fase final do capitalismo. Essas são as novas forças de produção espacial que devem ser entendidas se quisermos compreender as cidades de hoje.

Uma das características peculiares da comunicação via satélite, por exemplo, é que custa exatamente a mesma coisa enviar informações a uma distância de 750 km ou de 7.500 km. Quando combinado com automatização e sistemas de produção auxiliados pelo computador isso permite a reorganização da produção em linhas muito mais flexíveis e de maior mobilidade geográfica. Uma grande multinacional como a Texas Instruments consegue coordenar produção e tomada de decisões em mais de cinqüenta fábricas em cinqüenta lugares diferentes no mundo todo. Um único processo pode ser decomposto em seus elementos constitutivos que, por sua vez, são distribuídos em subempreitadas entre várias firmas e localidades. O "carro global", com peças produzidas em vários países, equipara-se à "televisão global" numa nova distribuição internacional de mão-de-obra que transformou a geografia da produção mundial.

Os antigos centros de crescimento econômico do pós-guerra (o meio-oeste americano, o centro-oeste da Inglaterra, o Rhur, etc.) foram reduzidos a pálidos vestígios de sua antiga identidade após a onda de desindustrialização ter demolido "indústrias de chaminé" (aciarias, fábricas de automóveis e de aparelhos elétricos,

3 Turnpikes - Termo utilizado para designar o uso de portões que se abriam com o pagamento de pedágios em estradas da Grã Bretanha no início do século XIX.

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estaleiros, etc.). Vários centros recentemente industrializados, como Hong Kong, Taiwan, Cingapura, Coréia do Sul, Brasil, Índia, etc., começaram a penetrar no mercado do Primeiro Mundo ao mesmo tempo em que, repentinamente, surgiram novos tipos de desenvolvimento industrial em regiões anteriormente ignoradas por capitais multinacionais (os vários Vales do Silício, a "Terceira" Itália, Flandres, o sul da França, e até a parte rural de Vermont). Tudo isso, combinado com a primazia competitiva do Japão em muitas linhas de produção tradicionais, minou as bases econômicas de inúmeras cidades tradicionalmente industriais (Detroit, Pittsburgh, Baltimore, Lille, Manchester, Liverpool, Sheffield...a lista é infinita). Mesmo quando indústrias mais antigas não eram fechadas, o desemprego aumentava drasticamente apesar de a produção se manter constante. A cidade industrial, que funcionava tão bem quanto as oficinas do capitalismo do século dezenove e do início do século vinte, tornou-se, certamente, coisa do passado.

A descentralização global, mudanças inter-regionais e a desconcentração urbana tanto da população quanto da atividade econômica ameaçaram os modelos anteriores de vida urbana. Entretanto, seria falso pensar que essa descentralização foi moldada através da dispersão do poder econômico. Companhias multinacionais e transnacionais aumentaram seu poder justamente por conseguirem coordenar tomadas de decisões e mantê-las internas num contexto mundial instável. A tendência a fundir e encampar (como, por exemplo, a tentativa de De Benedetti, da Olivetti, de assumir o controle do Union Générale Bank, da Bélgica, que controla um terço da produção daquele país) reforça uma centralização maior do capital no topo da escala da empresa, ao lado de uma proliferação marcante de pequenas companhias trabalhando em regime de subempreitada, algumas delas firmas familiares, na base. Muitas unidades de pequeno porte, e até firmas independentes, agora podem se integrar num amplo sistema de marketing de produção, que coloca um produto da Benetton ou de Laura Ashley em todos os shopping-centers de alto nível do mundo ocidental. O sistema financeiro mundial também se revolucionou. "O sistema bancário", diz o Financial Times de 8 de maio de 1987, "está se tornando rapidamente indiferente aos limites temporais, geográficos e monetários. Numa época em que um consumidor inglês pode obter uma hipoteca japonesa, um americano movimenta sua conta bancária em Nova Iorque através de um caixa eletrônico em Hong Kong, e um investidor japonês compra ações num banco escandinavo com sede em Londres e cotação em dólares esterlinos, marcos alemães e flancos suíços, os acontecimentos são desconcertantemente rápidos."

Com é necessário ter crédito para se hipotecar uma casa, construir uma escola, fazer uma praça e criar um parque industrial de alta tecnologia ou um complexo de escritórios, o desenvolvimento local depende, basicamente, de um sistema global de financiamento em que bilhões de dólares podem ser transferidos de Londres para Hong Kong, Tóquio ou Nova Iorque num piscar de olhos vinte e quatro horas por dia.

Se o acesso ao capital excedente, onde quer que se encontre, é de grande valia, por outro lado, uma série de problemas surge do fato de estarmos vivendo em um mundo de fluxo irrestrito de capital. Todos se tornam vulneráveis à recente volatilidade e insegurança características dos mercados financeiros e monetários. A queda vertiginosa da bolsa de Nova Iorque em 19 de outubro de 1987 gerou efeitos em todos os mercados locais do mundo (ver tabela 1). Tal volatilidade não é a única desvantagem. As conseqüências destrutivas de um capital altamente móvel também são difíceis de se controlar Até o Estado parece ser tão determinado pelo fluxo de capital quanto determinante do mesmo. O resultado é uma insegurança e instabilidade geográfica crescentes na medida em que o dinheiro se move de uma área de influência para outra. Algumas cidades que se desenvolveram rapidamente há pouco tempo atrás, como

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Houston e Denver nos anos setenta, por exemplo, agora são lugares de depressão econômica: houve 5.000 execuções de hipotecas em Houston no ano passado. Por outro lado, cidades com grandes problemas há pouco tempo atrás, como Nova Iorque nos anos setenta, tecnicamente falida e aparentemente fadada a um declínio rápido, atualmente são centros de explosão de crescimento. A hipermobilidade do capital torna a previsão de sucessos e fracassos urbanos praticamente impossíveis.

O impacto causado por novos meios de comunicação e transporte na vida social e política tem sido igualmente marcante. Assistimos a eventos como os Jogos Olímpicos, campeonatos mundiais, revoluções, expulsão de ditadores, desastres e tragédias na mesma hora em que estão ocorrendo no mundo inteiro. Filmes, publicidade de turismo e folhetos de viagens de todos os tipos acumulam simultaneamente um volume enorme de informações geográficas numa série de imagens assimiláveis, embora não necessariamente corretas. Esse "banco de imagens" ou musée imaginaire de Christopher Jencks que carregamos em nossa cabeça provoca um "ecletismo de gosto" expresso de formas diversas no mercado. A homogeneidade e a moderação do consumo de massa nos Estados Unidos dos anos sessenta, por exemplo, mudaram totalmente. Com o advento de novas tecnologias e novas formas de organização empresarial, podemos imitar a arquitetura residencial de qualquer parte do mundo; mobiliar nossas casas com tapetes mexicanos, batiks indianos, móveis escandinavos e cortinas inglesas; comer pratos da cozinha chinesa, indiana, etíope, italiana, francesa, espanhola, mexicana, etc., em qualquer noite da semana, usando ingredientes como feijão branco do Quênia, aipo e cenoura da Califórnia, tomate do México, e cebola vinda dos arredores de nossa própria cidade. No bar encontramos uma variedade de cervejas da Polônia, Austrália, México, Bélgica, Canadá, China, Índia, etc., além da marca local, se é que ela ainda existe, e que, há apenas vinte anos, pensávamos ser a única escolha sensata num mundo onde o custo do transporte tornava inviável o transporte para longas distâncias de produtos de valor relativamente baixo mas muito pesados. Todo esse ecletismo de preferências não se limita aos famosos yuppies da cultura urbana, embora seja mais significativo entre eles. As tendências que acabei de mencionar são muito mais profundas. Ao mesmo tempo, testemunhamos uma transição do crescimento bastante estável de produção e consumo em massa do pós-guerra, baseado num sistema de pleno emprego, para sistemas mais flexíveis de produção, fundamentados em alto nível de desemprego, crescimento relativamente baixo, desindustrialização e reindustrialização. Percebemos, ao lado disso, uma mudança das indústrias pesadas para as chamadas indústrias de alta tecnologia ou prestação de serviços. também já não é possível manter a política de crescimento acelerado do pós-guerra, devido à erosão do poder dos sindicatos, ao constante remanejamento de alianças políticas, e à incapacidade do poder estatal de controlar o fluxo de capitais.

A economia e a política mudaram radicalmente nos últimos vinte anos, principalmente a partir da primeira grande recessão do pós-guerra, de 1973 a 1975. Desde então, a insegurança, a fragmentação e a efemeridade tornaram-se, comuns, parcialmente devido à redução drástica de barreiras espaciais. Esse é, portanto, o contexto em que as camadas anuais do palimpsesto urbano estão sendo construídas. Qual é, então, o papel daqueles lugares específicos que chamamos de "cidades" nesse contexto global?

2. CIDADES COMO PONTOS DE ATRAÇÃO PARA O CAPITAL

A queda de barreiras espaciais reforçou, paradoxalmente, o significado do que o espaço contém. As qualidades do lugar tornaram-se mais significantes nas últimas décadas. É

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importante entender o porquê, para poder avaliar melhor as forças que reduzem as possibilidades de livre escolha para o futuro dos espaços urbanos.

Consideremos o assunto, em primeiro lugar do ponto de vista de capital multinacional altamente móvel. A redução de barreiras espaciais enfatiza as vantagens competitivas resultantes da localização da produção em um lugar mais do que em outro. Pequenas diferenças no fornecimento da mão-de-obra, na infra-estrutura e nos recursos, em regulamentações e impostos são muito mais significativas agora do que quando o alto custo do transporte criava monopólios "naturais" para a produção local em mercados locais. Da mesma forma, o capital multinacional agora consegue adaptar suas respostas a variações bastante locais do mercado através da produção em pequenas levas planejadas para satisfazer mercados locais. Num mundo de competição acentuada, semelhante ã que houve desde o crescimento do pós-guerra até a recessão de 1973 a 1975, pressões coercitivas forçam capitais multinacionais a serem muito mais sensíveis a essas pequenas variações locais.

Em segundo lugar, pensemos em regiões que aumentam ou diminuem sua vitalidade econômica de acordo com a oferta de pré-requisitos às empresas para mantê-las na cidade. Na verdade, a redução de barreiras espaciais acentuou a competição pelo capital entre localidades, estados e regiões. Gestões urbanas foram forçadas a prestar mais atenção ao "clima de negócios", qualidades de infra-estrutura, controle de mão-de-obra local, impostos e descontos. Disso resultou o surgimento do que estudiosos chamam de "cidade empresarial", cujo objetivo é definir uma estratégia de crescimento com o melhor potencial para funcionar considerando-se a combinação de recursos, condições e usuários potenciais de um local específico.

A tarefa da gestão urbana é atrair uma produção altamente móvel e flexível, bem como fluxos financeiros e de consumo. Pode-se fazer uma divisão, grosso modo, de quatro opções distintas mas, de forma alguma, exclusivas:

1. a capacidade de uma região urbana de produzir bens e serviços para uso local ou para exportação pode ser aumentada de várias maneiras. Fazer uso da mão-de-obra local para assegurar uma força de trabalho barata, confiável e bem disciplinada funciona em certas circunstâncias, mas outras formas de desenvolvimento demandam mão-de-obra altamente especializada, grandes investimentos em infra-estrutura (transporte, comunicações, educação, pesquisa e planejamento), e ajuda financeira do estado para tipos específicos de organização de negócios;

2. as cidades podem tentar melhorar seu desempenho como centros de consumo. O crescimento do turismo em massa e de indústrias ligadas ao lazer nos últimos anos tem reforçado a importância econômica das cidades como centros de compras, lazer, cultura e turismo. Essa é uma sólida base econômica para se resgatar o passado, melhorar a qualidade de vida e fornecer o tipo certo de infra-estrutura (hotéis, parques, centros culturais, museus de todos os tipos, lojas e áreas de lazer). A promoção de eventos tais como feiras, festivais, exposições, esportes e concertos ajudam a atrair pessoas para o consumo em centros urbanos;

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3. uma terceira opção é atrair funções de "comando e controle", tais como serviços financeiros e de negócios, seguros, pesquisa e desenvolvimento, e atividades administrativas em grande escala. Essas "indústrias de escritório" tornaram-se mais significativas nas duas últimas décadas, justamente porque o armazenamento e processamento de informações, serviços financeiros e de consultoria (indústrias de "toughtware") tornaram-se mais importantes. Isso requer uma combinação de estratégias públicas e privadas, que vão desde aeroportos e serviços de comunicação em alta velocidade até complexos de escritórios a prestação de serviços de todos os tipos.

4. numa economia moderna complexa, acontecem todas as formas de redistribuição de bens e rendas, organizadas através de instituições privadas (igrejas, instituições de caridade, sindicatos, partidos políticos, etc.), mas a fonte mais importante de redistribuição é o governo, através de sua política tributária ou de aquisições e investimentos. Nos Estados Unidos, por exemplo, gastos militares deficitários têm sustentado algumas economias urbanas. A estratégia urbana é muito importante aqui, pois abrir as torneiras dos fundos públicos para melhorar o mercado de trabalho e os bens locais demanda esforço e sofisticação.

Estas quatro opções não são, de forma alguma, mutuamente exclusivas. A história recente de áreas urbanas fornece uma medida de como elas têm sido utilizadas e de como o sucesso em uma dimensão pode resultar em determinadas circunstâncias, em sucesso nas outras dimensões. Los Angeles, para se dar um exemplo, atraiu funções de comando e controle com o desenvolvimento do Pacific Rim Trade, ele próprio um reflexo da queda de barreiras espaciais e da nova divisão internacional do trabalho, que tornaram o sudeste da Ásia e o Japão zonas vitais do comércio mundial. Além disso, a cidade possui uma indústria de defesa importante, e Hollywood e a Disneylândia são símbolos de possibilidades de consumo. Por trás dessa história de sucesso, ficou provado que é possível manter ou construir uma base industrial fundada sobre subempreitadas, mão-de-obra imigrante e sistemas de mão-de-obra familiar importados do sudeste da Ásia e da América Latina. A história recente de Nova Iorque, ao contrário, mostra como a cidade saiu da crise fiscal de 1975 principalmente através da expansão rápida do mercado de trabalho em atividades financeiras sem conseguir reverter sua rápida desindustrialização, particularmente no setor de vestuário, tradicionalmente poderoso. A volta da oferta de trabalho braçal e atividades informais de grupos de imigrantes, tais como marceneiros do Haiti, teve grande força mas não foi suficiente para compensar a queda em outros empregos. Voltou o temor pela saúde econômica de Nova Iorque desde a queda da bolsa porque a redução do mercado de trabalho no setor financeiro tornou-se geral. A cidade industrial dos séculos dezenove e vinte funcionava como uma arena para a produção de capital. Isso ainda existe, mas, numa época de desindustrialização e hipermobilidade de capital, a sobrevivência das regiões urbanas depende de sua eficiência como "fontes de atração e de retenção" de capital. As cidades precisam se transformar em mercados e competir entre si muito mais do que no período de crescimento do pós-guerra. Essa prática de controle urbano

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certamente não é nova: a participação cívica é constante na história urbana dos Estados Unidos, e a celebrada rivalidade mercantil entre cidades européias a partir do século catorze é uma tradição que muitos consideram com simpatia. Mas as armas da competição mudaram.

3. A BUSCA DE IDENTIDADE E A POLÍTICA DE LUGAR

A redução de barreiras espaciais deveria congregar os diversos povos do mundo, ajudar a cooperação internacional, e talvez promover um sentido comum da vida humana nessa "aldeia global" ou "nave espacial terrestre". Embora haja sinais dessa sensibilidade emergente, na forma de uma cooperação intergovernamental imprescindível para combater a degradação ambiental global ou de uma preocupação internacional pelas vítimas da fome, pode-se perceber uma reação igual, senão mais forte, no sentido exatamente oposto. A diminuição de barreiras espaciais cria uma sensação de insegurança e ameaça que, ao lado da intensificação da competição espacial entre os países, regiões e cidades, resulta num recuo em direção à geopolítica de localização, do protecionismo, da xenofobia, e do "espaço defensável". "O outro" está perto demais, colocando em risco nosso conforto. O espaço aberto que, durante tanto tempo, simbolizou a liberdade parece cada vez mais ameaçadoramente fechado. Emigrantes parecem ameaçar nossos empregos e modo de viver em nossos espaços, enquanto que eventos distantes e aparentemente incontroláveis, tais como o crescimento industrial, mudanças tecnológicas e acidentes iguais a Chernobyl, adquirem um poder externo imediato e forte sobre nossas vidas. Ironicamente, o colapso das barreiras espaciais reforçou a política de localização e a importância do lugar.

São profundas as raízes dessa reação, e podem ser detectadas em vários domínios da vida diária. Em primeiro lugar a necessidade crescente de fazer das cidades pontos de atração para o capital e para as pessoas leva a uma ênfase cada vez maior da qualidade de um lugar.

Numa época de comunicação de massa, telecomunicações e intensa produção cultural, a imagem de uma cidade torna-se tão importante quanto a realidade.

Cidades são anunciadas em revistas e periódicos comerciais como lugares de investimento; em brochuras de viagem como locais de entretenimento, interesse, cultura e lazer; e em filmes, fotografias ou na televisão, como pontos de interesse para se viver trabalhar aposentar etc.

A projeção de uma imagem urbana, como o orgulho cívico ou o domínio empresarial urbano, não é novidade. Nomes como Paris, Roma, Rio de Janeiro, Nova Iorque e São Francisco evocam uma série de conotações positivas e negativas. Entretanto, um intenso trabalho ideológico tem sido desenvolvido na produção, transmissão e manutenção de uma imagem de cada cidade em particular Mal apareceu o slogan "Eu amo Nova Iorque" impresso em brochuras, cartões, camisetas e adesivos em carros, numa aura de sucesso, quase toda cidade do mundo começou a usá-lo: "Eu amo Paris", "Eu amo Copenhagen", "Eu amo Londres", etc. Mas é difícil projetar uma imagem sem substância para sustentá-la. De qualquer forma, a imagem é um chamariz inicial que atrai o capital e as pessoas, mais do que uma razão para mantê-los naquele espaço. Uma das tarefas do planejamento urbano é construir uma imagem urbana em termos tangíveis. Museus de história local, de indústria local, e de fenômenos culturais específicos têm aparecido nos últimos anos, e, a cada duas semanas, aparece um novo museu na Inglaterra. Casas velhas, depósitos, fábricas, e até bairros inteiros recebem o título de "históricos" e se integram na vasta indústria da "cultura hereditária" que estende seu domínio de New Orleans a Newcastle e de Florença a Hokkaido. Quando

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não há uma herança real suficiente para fundamentar uma imagem urbana atraente, torna-se imprescindível a construção de uma pseudo-imagem nos moldes da imitação de uma vila de pescadores de Port Grimaud, no sul da França, ou de um sentido especial de um lugar, através do planejamento urbano de características especiais, sejam elas movimento e agitação ou aprazibilidade e calma.

Esta é parte da razão lógica do abandono das regras do modernismo arquitetônico universalizante e desprovido de um sentido local, bem como do surgimento dos historicismos ecléticos da arquitetura pós-moderna.

Se tudo isso falhar, ainda existe a possibilidade de se organizar espetáculos urbanos: festivais, feiras, desfiles, concertos, jogos olímpicos e eventos esportivos fantásticos; o espetáculo relativamente permanente de promoção e venda de mercadorias e amplo shopping-centers; as muitas Disneylândias e cenas de rua; e a diversão de participar de um happening especial mas que celebra, ao mesmo tempo, aquele local em particular.

Tudo isso desempenha um papel importante na produção de uma imagem especial de uma cidade específica.

Assim, os limites da arquitetura modernista tiveram que ser ultrapassados no sentido de uma arquitetura de espetáculo, de ornamento e de interação social, com atenção especial para a imagem do lugar como os espaços íntimos e os átrios permeando os edifícios ao longo da Avenida das Américas ou os prédios pós-modernos da AT&T ou da IBM na Avenida Madison, em Nova Iorque. A tendência pós-modernista para a exumação de estilos passados, para a reconstrução, imitação e referências históricas, e para a réplica direta de estilos vernaculares locais pode ser interpretada como parte essencial de um grandioso empreendimento ideológico no sentido de se criar, com resultados lucrativos, um sentido de lugar individualizado num mundo em processo de encolhimento. Entretanto, a produção de uma imagem urbana distinta tem outras finalidades. Ajuda a contrabalançar o senso de anomia, alienação e objetificação que Simmel identificou, há muito tempo, como uma característica tão problemática da vida urbana moderna. Isso acontece principalmente quando uma área urbana é aberta para exposição, moda e "apresentação do eu". Se todos, desde os punks e artistas do rap até os yuppies e a alta burguesia, podem participar da produção de uma imagem urbana em particular todos podem ter pelo menos uma sensação de pertencer a aquele lugar Em certo sentido, a imagem de São Francisco, Chicago, Londres ou Roma é uma construção popular A produção orquestrada de uma imagem condutora, se bem sucedida, também contribui para a solidariedade social através do orgulho cívico e da lealdade a um lugar Mais importante do que isso, em minha opinião, é o modo como a imagem urbana oferece um refúgio mental num mundo que se tornou pequeno a ponto de parecer quase sem lugar.

O raciocínio é muito simples. Se as distâncias encolheram e o temor do "outro" tornou-se mais forte na aldeia global em constante mudança, necessariamente temos que compensar e buscar raízes, fontes de identidade e segurança psicológica. Afinal de contas, é difícil saber exatamente em que espaço vivemos enquanto vemos a turbilhão de imagens do mundo no noticiário noturno. Existe alguma forma de se usar a imagem de um local específico para nos assegurarmos de quem somos realmente? Como Aldo Rossi observa, as pessoas têm o hábito de criar monumentos em espaços e edificações específicos que se tornam espaços de memória coletiva, símbolos estáveis num mundo em mutação. Esses "monumentos" assim designados popularmente, e que podem ser uma simples casa em ruínas, um muro em pedaços ou a taberna local, não correspondem, necessariamente, a espaços construídos como monumentos. Na verdade, monumentos "oficiais" podem ser ultrajados, atacados por atos de vandalismo ou

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destruídos, enquanto protestos populares se opõem a tentativas oficiais de re-desenvolver o que pessoas de fora consideram locais degradados e habitantes locais veneram como símbolos da memória e do acervo coletivos.

Numa época de insegurança, conflito social e fluxo rápido, a tarefa ideológica de construção de uma imagem urbana torna-se tão complexa quanto socialmente significante. É possível mobilizar os poderes do planejamento e da arquitetura urbana para criar um senso de lugar, de pertencer a esse lugar, de raízes, de memória coletiva? Uma linha de planejamento urbano acreditava que sim. É possível combinar a produção dessa imagem com a necessidade igualmente premente de criar uma imagem vendável de um lugar como local de investimento, troca de mercadorias e realização pessoal? Esses objetivos tão divergentespodem ser conciliados? Ou reduzimos a memória histórica ao kitsch e ao pastiche de uma indústria de cópia e nostalgia que apenas usa nosso desejo de segurança e identidade, sem oferecer satisfação real a essa necessidade? Esse me parece ser o projeto geral em que o movimento pós-moderno na arquitetura e no planejamento urbano se empenhou desde a primeira grande recessão do pós-guerra em 1973 e todos os males urbanos dela resultantes.

Mas esse projeto também não é novidade. O arquiteto austríaco Camillo Sitte, por exemplo, começou a construir, no final do século dezenove, em Viena, espaços que fizessem as pessoas se sentirem "seguras e felizes". Decidiu criar um conjunto de largos e praças que favorecessem o senso de comunidade. O arquiteto tinha que "superar a fragmentação" através da arte na configuração do espaço, criar uma imagem, promover um mito para compensar a perda de um mundo "que aqueles sem raízes, em busca da ciência e do comércio, tinham destruído". O mito tomado por Sitte é o de Richard Wagner e os Herrenvolk4. Podemos interpretar a preocupação de Sitte como uma reação à comercialização, ao racionalismo utilitário, e a todas as fragmentações e inseguranças que, já naquela época, eram percebidas como resultado de um mundo em processo de encolhimento. Por outro lado, o curso da história chama a atenção para a política conservadora e, em alguns casos, claramente reacionária resultante da busca de uma solução apenas para a estética de um lugar e a celebração da memória coletiva. Grande parte da classe de artesãos de Viena defendida por Sitte veio a adotar um anti-semitismo virulento, talvez porque os judeus simbolizavam o dinheiro apátrida que rompia a comunidade, preferindo os mitos do nazismo ao utilitarismo racional, e se aglomeravam nas praças tão queridas de Sitte em espetáculos dramáticos que certamente simbolizavam a comunidade, porém, uma comunidade de natureza reacionária. Certamente, não culpo Sitte ou suas idéias por isso. Mas acredito ser preciso reconhecer as conseqüências trágicas e violentas que podem advir da produção de uma imagem do lugar psicológica e política que, embora poderosa, é unilateral num mundo em processo de encolhimento.

4 A PRODUÇÃO DE UMA IMAGEM URBANA: O CASO DO REDESENVOLVIMENTO DO PORTO DE BALTIMORE

Muitos dos temas examinados até aqui podem ser ilustrados através da história da revitalização do porto de Baltimore. Quero enfatizar que as "estratégias" a serem citadas não foram conscientemente planejadas, mas aconteceram caoticamente como

4 Herrenvolk - Termo referente à classe dominante e que, em Wagner, está ligado aos grandes mitos nórdicos construídos em torno da figura do guerreiro sublime e da soberania do próprio povo. Resgatado por Hitler, passou a ser usado a serviço de um nacionalismo exacerbado para fins de unificação da Alemanha, criando o mito da hegemonia racial.

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reação às forças poderosas que remodelaram a urbanização por volta de 1970.Os tumultos que se seguiram ao assassinato de Martin Luther King em 1968

deixaram muitos mortos e destruíram muitas propriedades. Os tanques e soldados patrulhando as ruas criaram uma imagem do centro urbano, já dominada pelo desemprego e pela privação, como um lugar incontrolável, perigoso e, portanto, inviável para a massa da população. A viabilidade de renovação do centro urbano nos anos sessenta estava ameaçada. No início dos tumultos, políticos locais, líderes empresariais e profissionais interessados reuniram-se para encontrar meios de recuperar o senso de coesão civil, justiça e estabilidade comercial. A mentalidade de estado de sítio do cidadão comum ao se aproximar do centro urbano tinha que ser modificada e a crença na cidade recuperada. Foi nesse clima que surgiu a idéia de uma feira na cidade, uma feira a ser construída na tradição da boa vizinhança e das diferenças étnicas, mas que também celebrasse um propósito comum.

A primeira feira foi em 1970. Apesar do temor da violência, foi um sucesso e atraiu mais de 250.000 pessoas num final de semana. O sucesso consistiu, principalmente, em trazer as pessoas de volta ao centro da cidade. Isso se consolidou com festivais étnicos semanais no centro urbano nos meses de verão. A feira contribuiu para o resgate do orgulho cívico numa cidade de reputação nacional como um dos ambientes urbanos mais lúgubres dos Estados Unidos, a “axila do leste”, segundo pessoas de outros lugares. Baltimore havia redescoberto parte da fórmula de “pão e circo da Roma antiga” como meio de enfrentar os descontentes, promover a revitalização do centro urbano e recuperar o senso de orgulho e propósitos cívicos. Infelizmente, a queda econômica de 1973-75 causou desindustrialização e desemprego em massa numa cidade cujo centro havia decaído na medida em que a indústria, a população e o comércio tinham se suburbanizado, deixando, em grande parte, abandonado e pronto para a reconstrução urbana. Foi exatamente nesse momento que o governo federal, devido a dificuldades fiscais e tendências política, decidiu cortar drasticamente verbas para melhorias sociais em cidades. A partir daquele momento, o governo municipal entrou em parceria com a iniciativa privada e assumiu uma postura muito mais empresarial. Sua capacidade de competir na divisão internacional do trabalho era limitada, e uma série de fatores interna e externa impedia que desempenhasse um papel decisivo de comando e controle. A estratégia urbana gravitava inexoravelmente em torno da opção de exploração do consumo. Com a multidão que chegava, era fácil comercializar e institucionalizar o que a feira havia começado. Iniciou-se rapidamente a construção do Maryland Science Centre, do Aquário Nacional, de um Centro de Convenções, de uma marina, de vários hotéis e centros de lazer de todos os tipos. Ao lado disso, começaram a florescer investimentos no comércio a varejo localizado, a princípio, nos pavilhões do Habour Place e, posteriormente, no interior do shopping-center Gallery. Complexos empresariais de luxo também foram construídos. Tudo isso implicava numa mudança arquitetônica da austeridade de Mies van der Rohe e de outros arquitetos "modernistas" dos anos sessenta para o kitsch de Scarlett Place, uma combinação da réplica de uma cidade nas encostas do Mediterrâneo com a preservação histórica de um armazém do século dezenove. Assim, uma arquitetura de diversão e prazer que enfatiza a ficção e a fantasia, substitui a arquitetura funcional.

O resultado foi uma reconstrução radical da imagem de Baltimore. A televisão e a imprensa locais fizeram uma superprodução da revitalização gloriosa de Baltimore e, com o passar do tempo, havia mais do que se vangloriar O prefeito foi considerado o melhor dos Estados Unidos pela Esquire Magazine em 1984, e a cidade foi capa do Time Magazine com o título de "cidade do renascimento", deixando sua imagem de

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melancolia e aparecendo como um espaço dinâmico e cheio de energia, preparado para receber capital externo, estimular essa entrada de dinheiro e acolher o tipo "certo" de pessoas. Não importa que a realidade seja o empobrecimento crescente da maioria dos bairros (ver Tabela 2), e que a cidade seja considerada por pesquisadores do Congresso como uma das mais necessitadas dos Estados Unidos em termos de moradia precária, empobrecimento, educação deficiente e outros itens. De acordo com um relatório recente, há "muito podre por baixo do brilho".

Entretanto, a imagem prevalece. O Sunday Times de Londres (29 de novembro de 1987) confirma o mito sem nenhuma crítica:

"Baltimore, apesar do alto nível de desemprego, transformou seu porto abandonado num playground. Turistas significam compras, alimentação e transporte, o que implica em construção, distribuição, e fabricação, gerando mais empregos, mais residentes e mais atividade. A decadência da velha Baltimore diminuiu, parou e, então, retrocedeu. A região do porto, agora, é um dos principais centros turísticos do país, e a taxa de desemprego urbano está caindo rapidamente".

Entretanto, é claro que colocar Baltimore no mapa dessa forma, fortalecendo o senso de identidade do lugar consolidou politicamente o poder e a influência de uma parceria local governante entre os setores público e privado. Conseguiu atrair investimentos para a cidade, embora seja difícil dizer se entrou mais dinheiro do que saiu através de pagamentos de juros, lucros de exportação e aquisição de produtos importados. A população em geral também adquiriu certo senso de identidade local. O circo faz sucesso mesmo sem pão.

5. CONCLUSÃO

Cada um de nós, na vida diária, registra sua marca no ambiente urbano em que circula, contribuindo, assim, para a definição do futuro urbano. Planejadores urbanos procuram moldar esse futuro, dando-lhe forma e coesão, mas não o fazem, como dizia Marx, segundo condições de sua própria escolha. O tema predominante das diversas exposições da Bienal de Milão este ano é um testemunho vivo da força das condições em que a próxima camada do palimpsesto urbano está se formando. O exemplo de Baltimore, apesar de sua especificidade, é aclamado como modelo de regeneração urbana justamente por focalizar um problema comum. Entretanto, apresenta grande diversidade de esforços e de ênfases. Considero importante, também, distinguir o trabalho ideológico intenso para a produção de uma imagem urbana que nos atraia em vez de nos causar aversão, da busca sincera de soluções para o desafio de se criar algo novo de forma socialmente responsável sem violentar o que existia antes. O problema dessa distinção é investigar além da aparência e tentar definir o sentido profundo do processo urbano contemporâneo, construindo, a partir dessa compreensão crítica, as possibilidades de escolha do futuro urbano. Estariam escondidas aqui, na forma de revelações mal definidas, possibilidades que possam desafiar fundamentalmente as condições restritivas que impõem tanta homogeneidade a uma diversidade desejada? O "ecletismo de gostos" celebrado por Christopher Jencks como "a evolução natural de uma cultura com escolha" parece menos atraente quando as escolhas são forjadas de tal forma que a função, a ficção e até a fantasia são determinadas pelo lucro. Do mesmo

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modo, nossa busca sincera de identidade e segurança num espaço em implosão torna-se vã quando é adulterada como falsa nostalgia e mito caprichoso, de forma a obscurecer ao invés de iluminar as verdadeiras qualidades de nossa condição histórica. Aqui, como sempre, a liberação da imaginação depende da liberação política, econômica e material, mesmo se for preciso mais do que a simples imaginação para enfrentar tal desafio.

Os espaços urbanos atuais são marcados constantes alterações de ordem econômica, social e política... O desenvolvimento de novas tecnologias das mais diversas ordens proporcionou alterações significativas nas últimas décadas que fizeram como que, hoje, fosse necessário repensar os espaços, os contextos em que estão inseridos e os caminhos que se pretende tomar...

O texto “ESPAÇOS URBANOS NA “ALDEIA GLOBAL”: REFLEXÕES SOBRE A CONDIÇÃO URBANA NO CAPITALISMO NO FINAL DO SÉCULO XX” de David Harvey traz uma abordagem bastante interessante sobre como essas novas tecnologias afetam diretamente os espaços urbanos de maneira positiva e negativa na mesma proporção.

O autor, primeiramente, aborda a questão do colapso das barreiras espaciais e modo com as cidades de organizaram depois disso. Muito adequadamente, o autor expõe que não é tão somente uma invenção que proporcionou a reorganização de configurações espaciais e formas urbanas mas sim um conjunto de invenções que em conjunto fazer a grande diferença na diminuição das barreiras espaciais.

A descentralização global, mudanças inter-regionais e desconcentração urbana tanto quanto da atividade econômica ameaçaram os modelos anteriores de vida urbana. (...) Companhias multinacionais e transnacionais aumentaram sue poder justamente por conseguirem coordenar tomadas de decisões e mantê-las internas num contexto mundial instável.

Acertadamente, também é colocada em pauta pelo autor os problemas advindos desse colapso de barreiras. Todos de tornam vulneráveis a recente volatilidade e insegurança características dos mercados financeiros e monetários. Os problemas ganham maior dimensão e amplitude e atingem com maior força outros mercados de modo bastante rápido o quem, por muitas vezes, inviabiliza uma ação defensiva efetiva. “O resultado é uma insegurança e instabilidade geográfica crescentes na medida em que dinheiro se move de uma área de influência para outra”

Nessa questão, o autor se utiliza dos aspectos positivos para enforcar o quão vulneráveis ficam os espaços urbanos e o quão negativo isso pode ser... Cabe ressaltar, porém, que o lado positivo vai muito alem da globalização de idéias, comunicações e mercados. O risco de instabilidade é válido pois a regra é prosperidade e não a crise. Crises sempre vão ocorrer mas, em sendo elas de cunho global, é desse modo que serão superadas. Esse é um ponto que convém explanar para além da abordagem do autor.

A queda das barreiras acabou por dar um significado ainda mais forte a questão do espaço. Ficou mais fácil atingir outros mercados nas mais diversas localidades, a competição ficou ainda maior. Assim, fez-se necessário aprimorar os produtos e dar a eles a singularidade necessária a competição efetiva na localidade em que se serão oferecidos. Cada povo tem sua particularidade, cada espaço tem sua característica e isso deve ser respeitado e apreendido por quem ali deseja estabelecer relações sociais, comerciais e etc...

As cidades-alvo, porém, deve, estar atentas a uma adequada gestão urbana. Nesse aspecto o autor divide em 4 as opções para essa gestão que podem ser assim sintetizadas

- capacidade de produção de bens e serviços para uso local e para aumento e exportação de várias maneiras;

- melhoria no desempenho como centro de consumo como, por exemplo, incremento do turismo em massa, valorização de centros de compras, lazer, cultura e turismo, melhoria da infra-estrutura;

- atração de funções de “comando e controle” como serviços financeiros, negócios, pesquisa e desenvolvimento de atividades administrativas em grande escala para tanto combinado estratégias públicas e privadas.

- redistribuição de bens e rendas por instituições privadas e, principalmente pelo governo por meio de uma política tributária eficiente e de aquisições e investimentos palpáveis.

Esses 4 pontos não são excludentes, mas devem ser estudados e aplicados em conjunto sempre atendendo a realidade local, ao espaço urbano local.

Depois da apresentação do colapso das barreiras espaciais e da importância do crescimento dos mercados e da consciência da questão urbana, acertadamente observa-se o aspecto social de todas essas alterações no que diz respeito a busca da identidade ante todo o contexto da globalização.

Todo o crescimento atual com a “invasão” de outros espaços com nova ideias, tecnologias, produtos levou uma reflexão sobre a necessidade de se realizar um intenso trabalho ideológico na produção, transmissão e manutenção de uma imagem de cada cidade em particular. É necessário que a

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cidade tenha uma identidade, uma característica – seja ela qual for – pela qual é reconhecida. Essa imagem é importante para que os habitantes saibam suas raízes e para que os “forasteiros” saibam aonde estão chegando e o que encontraram. Um povo com identidade, com história, com cultura, é um povo que tem raízes profundas e tendem a se manter um mesmo rumo ao longo do tempo.

Mas é difícil projetar uma imagem sem substância para sustentá-la. De qualquer forma, a imagem é um chamariz inicial que atrai o capital e as pessoas, mais do que uma razão para mantê-los naquele espaço. Uma das tarefas do planejamento urbano é construir uma imagem urbana em termos tangíveis.

É nesse aspecto que se enquadram as idéias de resgate de estilos arquitetônicos passados para a reconstrução, imitação e referências histórias no intuito de reviver o passado para assim construir o futuro. Se as distâncias encolheram e o temos do “outro” tornou-se mais forte na aldeia global em constante mudança, necessariamente há que se compensar e buscar raízes, fontes de identidade e segurança psicológica.

Ressalte-se que não há uma regra única a ser seguida. Cada povo, em cada espaço urbano e em cada contexto deverá fazer o estudo do seu passado e do que deve ser resgatado para se fortalecer. Numa época de insegurança, conflito social e fluxo rápido, a tarefa ideológica de construção de uma imagem urbana torna-se tão complexa quanto socialmente significante.

Assim, todas essas transformações terminaram por sobrepor cada vez em menos tempo novas camadas sobre uma mesma sociedade. O difícil é saber como planejar a construção na nova camada desse palimpsesto diante de tantas mudanças cada vez mais rápidas e cada vez com maior dimensão. Faz-se necessário investigar além da aparência e tentar definir o sentido profundo do processo urbano contemporâneo, construindo, a partir dessa compreensão crítica, as possibilidades de escolha para o futuro urbano. Não há respostas, só o tempo dirá.

Com o advento da globalização que ocasionou o colapso (e por conseqüência a quebra) das barreiras espaciais, projetam-se os espaços urbanos para um novo paradigma, o do “pós-cidade”, do “pós-urbano”. Na Europa, era comum ver a cidade como um espaço circunscrito no qual se desenvolve uma vida cultural, social, política, tornando possível uma integração cívica dos indivíduos... Agora confronta-se de um lado metrópoles gigantescas e sem limites, e de outro o surgimento de entidades globais, em rede, cortadas de seu ambiente. A reconfiguração que ora ocorre suscita inquietação: assistir-se-á ao declínio irremediável dos valores urbanos que acompanharam a história ocidental? Prevalecerão inelutavelmente a fragmentação e o estiramento caótico? O que pode ser feito para frear isso ou para tornar o planejamento urbano algo efetivo de resultados positivos?

Relembrando os elementos distintivos que compõem a experiência da urbe, a obra A Condição Urbana de Olivier Mongin assenta os fundamentos de uma reflexão atual sobre a condição urbana. Em numa época na qual a informação se troca de forma imaterial, mais de acordo com os fluxos do que com os lugares: como, nessas condições, refundar e reformular espaços urbanos de acordo com nosso tempo? Aliás, colocando em foto a luta de classes, como tornar a sua atual luta dos lugares em algo palpável?

Em pauta nessa obra, encontra-se o capítulo Recriar comunidades políticas – Da luta de classes a luta dos lugares. Esse é uma assunto que causa boas discussões pois tem temática social e cujo o andamento e realização muitas vezes não possível prever... Muitas vezes ações e planejamentos têm efeito diverso ao pretendido. Claro, polícia política e social deve sempre se tratados em conjunto vez que um influi direto no outro e vice versa mas por vezes eles caminham em direções divergentes.

Se a experiência política contemporânea convida a instituir lugares inéditos, a refazer lugares, a repensar uma política da cidade, seja qual for, não se pode reduzir a política urbana e urbanidade a uma território singular. (...)Reencontrar o território, o lugar para melhor desenvolver sentido à política duplamente entendida como quadro territorial e como espaço e participação, não exclui nunca o apelo externo, porque um lugar urbano exige uma dupla mobilidade em relação ao exterior. Esse é o imperativo do urbano: inventar lugares que permitam reencontrar o sentido dos limites.

Em sua abordagem, o autor faz um comparativo bastante elucidativo entre as políticas adotadas na França e nos Estados Unidos. Por meio desse comparativo, vê-se que os países adotaram políticas diferentes sobre o modo de tratar, principalmente, aquelas classes sociais que estão a margem.

A França apresenta uma política da cidade voltada a discriminação positiva territorial oposta às políticas conduzidas nos Estados Unidos onde é valorizada a etnia, o gueto numa chamada affirmative action. Enquanto França luta contra a formação dos guetos pretende a unificação dos espaços num mesmo valor, os Estados Unidos tendem a mantê-los vivos e individualizados. São políticas bastante divergentes

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de discriminação que tem possuem raízes históricas distintas, ações distintas e resultados distintos. Cabe entender cada um para tirar melhor proveito de cada “modelo”.

Nos Estados Unidos, além da affirmative action também têm-se as experiências do desenvolvimento comunitário. Nessas, o que prepondera é a especificação de métodos e finalidade de uma estratégia nova e diretamente voltada a esses espaços e acaba por conseguir elevar a condição dos mais pobres por meio da organização das comunidades e dos poderes locais (não o que está ocorrendo com as UPPs). Porém, apesar de métodos diferentes, eles possuem pontos convergentes e que diferem da proposta francesa.

Tanto affirmative action quanto o desenvolvimento comunitário não visam resultados diretos. Nessa política da cidade não se atribui prioridade aos atores pois permanece muito ligada à ação unilateral do Estado e da administração que privilegia o território (place) em detrimento das pessoas e de sua capacidade de ação (people). (verifica-se isso no Rio de Janeiro. Em Belo Horizonte, o exemplo do Orçamento Participativo trabalha uma lógica contrária)

Há ainda o procedimento norte-americano das empowerment zones que consegue associar diversos atores com a finalidade de abrir o espaço local e impedir que a comunidade seja identificada com um território fechado obrigado fica a margem e responsável por resolver seus próprios problemas.

Eis que na França o ocorre no modelo francês o diverso do americano pois não há foco no envolvimento dos atores locais. O foco é no lugar, no espaço como um todo. O que se pretende é acabar com a marginalidade e integrar aquele ao espaço urbano total. Os guetos não são considerados bons lugares favoráveis a cidades em seu todo.

Nesse aspecto, há outro fator a se considerado, o da mobilidade. A mobilização tem que caminhar junto com a mobilidade. Uma política que favoreça a mobilidade que possibilite o aceso aos empregos deve se basear em uma representação dos atores entendidos como “móveis” e “mobilizáveis” e não como vítimas imóveis. No caso das empowerment zones, insiste-se em programas para criação de oportunidades econômicas para os habitantes daquela localidades.

Na experiência norte-americana, um lugar é considerado um território aonde se pode chegar, um espaço onde se pode entrar e de conde se pode sair, um espaço que caminha junto com uma mobilidade. Na experiência francesa, a cidade é vista pelo ponto de vista place, do lugar, e não pelo people, que é o da participação democrática. Vê-se, que nesse segundo modelo, o foco não está no subjetivo mas no objetivo porém os espaços urbanos são formados primeiramente por pessoas pois o lugar em si, sem pessoas, sem sociedade, é um nada sem representatividade relevante. O Estado francês acaba por gerar uma discriminação ainda maior por não respeitar as diferenças dos espaços marginalizados. A exemplo disso, cita-se a lei francesa sobre proibição do uso véu pelas mulheres mulçumanas me localidades públicas. Essa norma, dita em prol da igualdade, acaba por exercer a violência sobre a minoria a que atinge. A norma não agrega nada, mas incita a diferença e a violência social. Nesse aspecto, remetemo-nos a cultura marxista que desejava transformar a vida na cidade negligenciando a participação diferenciada dos pobres na troca produtiva.

Em conjunto com as diferenças existentes no espaço urbano acima apontadas, deve ainda ser tratada a questão do acesso e da mobilidade. São esses que propiciam a circulação dentro de um espaço urbano maior e evita que as comunidades fiquem isoladas e vivam somente dentro de um único contexto e assim escapar ao cerceamento de um território mediante a ação coletiva que remeta a participação dos habitantes. Sem uma prática de mobilidade-mobilização, o lugar e prática democrática que subentende a experiência urbana levam ao fechamento territorial.

Faz-se necessário focar nessa facilidade de mobilidade coletiva. Trata-se de efetivar práticas que exigem que os indivíduos possam ter acesso aos mais diversos lugares, seja para quais fins forem exercendo o direito amplo a liberdade e a livre locomoção – é pois a hipermobilidade. A condição humana é, ela própria, uma condição da capacidade democrática entendida em duplo plano: individual (a equidade) e coletivo (a responsabilização). É a mobilidade plena que leva a conquista de novos espaços e o desenvolvimento de todos nos aspectos sociais, econômicos, financeiros, culturais dentre tantos outros...

Diante de todo o contexto e aspectos tão divergentes apontados pelo autos, o que se conclui que são as pessoas (people) que fazem a cidade. E que se apreende do presente capítulo e que as medidas políticas que pretendem ser bem-sucedidas deve ter o foco nas pessoas devendo respeitar as diferenças entre as pessoas – sua cultura e localidade – e, ao mesmo tempo, propiciar a integração entre as pessoas e diferentes espaços que ocupam. Os espaços urbanos, principalmente nas grandes cidades, são formados pelas divergências e não se pode tornar homogêneo aquilo que em sua essência é heterogêneo. O que se deve fazer é suavizar a heterogeneidade social por meio da mobilidade e do acesso. Mais que os lugares as pessoas são geradoras da cidade

As grandes metrópoles do mundo, e em especial as brasileiras, são marcadas por fortes divergências políticas, econômicas e sociais em seus espaços urbanos. A formação de áreas voltadas às

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classes abastadas e bem como a exclusão das classes mais pobres para locais “não desejados por outras classes” é uma constante – gerando tanto a marginalidade benéfica e escolhida como a marginalidade maléfica dos excluídos, reciprocamente.

Dialogando com o texto Recriar comunidades políticas – Da luta de classes a luta dos lugares da obra A Condição Urbana de Olivier Mongin, fica clara a passividade brasileira no intuito de realizar políticas urbanas que promovam melhorias aos excluídos. Em regra geral, não há ações afirmativas que tenham por finalidade facilitar o acesso, a mobilidade e integração dessas classes a outros locais do espaços urbanos.

E, com relação ao texto “ESPAÇOS URBANOS NA “ALDEIA GLOBAL”: REFLEXÕES SOBRE A CONDIÇÃO URBANA NO CAPITALISMO NO FINAL DO SÉCULO XX” de David Harvey, pode-se dizer que, no caso específico das metrópoles brasileiras, a “aldeia global” – aqui considerada como a cidade em si – acaba por ser afetada pela falta de ações que propiciariam as melhorias citadas. Em outras palavras, somente são realizadas políticas urbanas efetivas em áreas marginalizadas quando os acontecimentos desse locais extrapola suas “fronteiras” e afeta outras áreas – políticas, econômicas e socais – em que o Estado possui mais interesse e está sendo atingido em seu poderio.

Um bom exemplo disso são as chamadas UPPs – Unidades de Polícia Pacificadora – tão faladas na mídia nos últimos tempos e tão em voga na cidade do Rio de Janeiro. Publicado em Março/2010 no site www.observatoriodasmetropoles.ufrj.br, o texto Afinal, qual é a das UPPS? de Luiz Antônio Machado da Silva faz uma análise do contexto em que essas unidades policiais bem como os reflexos que tem não só para a comunidade em que estão inseridas.

As UPPs constituem uma forma inovadora do governo do Rio de Janeiro de repressão ao crime e, nas comunidades em que foram instituídas, houve uma melhora significativa dos indicadores além de diminuir com a criminalidade e colaborar para o sentimento de segurança dos moradores. Nos dizeres do autor

O que sustenta o entusiasmo acrítico com as UPPs é a esperança de uma cidade calma e serena, que é o outro lado do medo do vizinho que há décadas nos assola a todos. Infelizmente, esta expectativa é um mito inatingível que pode por a perder a própria experiência das UPPs. Estas, na vida real, constituem a expressão de uma política pública muito recente que ainda carrega o peso de sua própria origem e, como qualquer nova iniciativa, precisa ser acompanhada, criticada e orientada para se estabilizar como uma forma de intervenção pública democrática, eficiente e eficaz.

As UPPS nasceram como modo de concretizar a paz que se pretende realizar naquele lugar. Antes

é realizada a “guerra” por meio das famigeradas operações policiais no intuito de varrer com bandidos e crimes. [será isso mesmo? Elas nasceram para concretizar a paz? As UPPs não estariam mais para uma mudança estratégica na forma de coeção do Estado fluminense? Como mencionado abaixo (concordo com autor) as UPPs na realidade estão remodelando o espaço urbano do tráfego, pulverizando, principalmente, sobre as comunidades mais carentes. Aqui encaixa um gancho com o texto de Olivier Mongin, “as UPPs estariam condicionando novos fluxos de mobilidade sobre os territórios dominados pelo tráfego. A iniciação de políticas públicas pela recente democracia brasileira tem criado novos paradigmas de atuação/relação do Estado e a sociedade, mas que preservam velhas contradições inerentes a cultura brasileira e a dinâmica das cidades no processo capitalista”.] Posteriormente, a fim de se consolidar a conquista, faz-se necessário “manter o domínio” sobre o local e sendo a pacificação mais lenta, a polícia tem que continuar ali atuando por mais um longo tempo sob pena de se retroceder ao caos anterior.

Essas unidades se integram a comunidade mantendo com ela um relação civilizada contribuindo para uma mudança na cultura policial tida, historicamente, como autoritária e violenta.

Ocorre que esse “projeto” é, pois, relativamente novo e não se sabe ao certo se a longo prazo efetivamente contribuirá para uma significativa redução das desigualdades. Outro ponto a ser pensado é sobre o quantitativo dessas unidades. Como tantos espaços urbanos marginalizados e submetidos a ausência total de políticas públicas, a sairá será a instalação de UPPs em todas? Sempre se agirá repressivamente? Ou não seria melhor que as políticas públicas atuassem preventivamente?

Aliás, qual é o critério para a instalação das unidades? Na experiência do Rio de Janeiro, vê-se que as unidades estão nas comunidades que permeiam localidades de visibilidade tais como “as favelas da zona sul, próximas da região turística e por onde circulam os “formadores de opinião” ou a Cidade Deus, que se tornou internacionalmente famosa” – nos dizeres do autor.

Fica, pois, clara que a intenção do governo vai muito além da simples pacificação da comunidade diretamente atingida. A intenção é o exercício de uma política publica que gere frutos em outras áreas. A violência afasta o turismo e as UPPs trazem de volta a sensação de segurança servindo de chamariz aos

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turistas nacionais e internacionais. Aqui há uma pequena confusão sobre o que seriam políticas públicas e ações governamentais. A partir de suas colocações, talvez, não seria as UPPs uma nova roupagem para alguns dos ideais racionalistas e positivistas que influenciaram a forma de se pensar as cidades brasileiras no fim do século XIX e início do século XX, como homogeneidade, ordem e higienicidade, miscigenada com vários outros conceitos, inclusive alguns ligados ao pensamento do economista estadunidense Steven Levitt e seus polêmico livro “Freakonomics - O lado oculto e inesperado de tudo que nos afeta”. Seriam apenas apontamentos, pois não caberia aqui um aprofundamento teórico.

Ocorre que ao efetivar uma UPP, outra comunidade que ainda sofre com a ausência do poder público será o novo alvo de bandidos das mais diversas ordens... O próprio agente publico, ao setorizar onde serão implementadas as melhorias, acaba por jogar ainda mais na marginalidade comunidades já marginalizadas. O que de fato ocorre não é uma redução dos índices mas uma migração para outros espaços urbanos. Isso, com o tempo, pode causar danos na imagem de segurança hoje criada pelas UPPs.

O autor ainda discorre sobre o “tamanho” das UPPs. Correto ele ao dispor que as UPPs são tão somente uma pequena parte de uma política repressiva de manutenção da ordem. Outras ações e outras medidas têm que ser adotadas em conjunto, realizando uma efetiva inclusão social.

As autoridades reiteram com insistência que elas serão acompanhadas de políticas sociais e oferta de serviços públicos de melhor qualidade. (...) O controle “pacífico” do crime é apresentado como condição para a ampliação dos demais bens da cidadania.

Nota-se, ainda, que as UPPs estão desenvolvendo um papel de mediador político-administrativo relevante nas comunidades pois há uma espécie de “extensão” do poder estatal diretamente em contato com a comunidade. Assim, as unidades estão ganhando força e legitimidade internamente e, externamente, confiabilidade junto a opinião pública e proximidade político-administrativa com outros órgãos do governo para expressar com sucesso as empreitadas. Nesse caso, cabe um lembrete, pois estar-se-á transformando um braço de repressão ao crime em organização política quando não é esse o papel de fato a ser desempenhado pois corre-se o risco de a UPPs atuarem como instrumento de dominação (e até mesmo de domesticação) dos habitantes das comunidades. Creio que aqui cabe uma leitura mais aprofundada que conecte este artigo com o texto de Olivier Mongin. Uma vez que as associações de moradores estão vivendo uma crise de legitimidade, perdendo espaço de atuação política, pode-se fazer referencia ao imaginário social brasileiro que associa criminalidade e pobreza (retratados nos filmes Tropa de Elite e Cidade de Deus), conectar essa especificidade brasileira com a realidade francesa e aquela onda de ataques ocorridas em 2005 (A questão dos guetos e os imigrantes), aqui também é possível perceber que a realidade brasileira se aproxima mais da realidade francesa que estadunidense, embora haja diversas políticas públicas no campo dos direitos civis baseadas nas ações afirmativas. Infelizmente temos em nosso imaginário a visão que o que vem de fora é bom, melhor, em suma, padecemos do “mal do forrasteiro”.

Vê-se, portanto, que as UPPs tem sim desempenhando um importante papel nos espaços urbanos mas que não se pode limitar o campo de visão a tão somente isso... É necessário acompanhar e sempre repensar a finalidades e os objetivos dessas bem como a adoção de efetivas políticas urbanas que vão além dos interesses próprios.

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