Escritos1

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  • ESCRITOS 1

    Publicao do LABORATRIO DE ESTUDOS URBANOS

    LABEURB - NUDECRI - UNICAMP

    PROJETO TEMTICO APOIO FAPESP

  • A DESORGANIZAO COTIDIANA

    Eni P. Orlandi*

    A cidade organizao, injuno a trajetos, a vias, a reparties, a programas, a traados e a tratados. Do ponto de vista simblico, entretanto, organizao e desorganizao se acompanham. Assim, pensando os sentidos da/na cidade, e procedendo a uma observao sustentada na anlise de discurso, nossa apresentao visa mostrar como as relaes sociais (urbanas) se significam na reproduo e na ruptura, atravs da emergncia de falas desorganizadas que significam lugares onde sentidos faltam, incidncia de novos processos de significao que perturbam ao mesmo tempo a ordem do discurso e a organizao do social. O conhecimento desses processos contribui para a melhor compreenso do que tem sido tratado sob o nome genrico de conflito social. A linguagem, nessa nossa perspectiva, no trabalhada para enumerarmos as vrias funes da linguagem na cidade mas ela nos permite compreender o funcionamento do urbano, do citadino, do social nesse espao simblico especfico que a cidade.

    Analisaremos situaes discursivas em que irrompem falas desorganizadas que consideramos como indcios do estar fora do discurso: politicamente, historicamente, linguisticamente. Essas rupturas se do movidas pela falta ou pelo excesso, mecanismos de que daremos alguns exemplos.

    Como o consenso imaginrio, o discurso social no homogneo dando lugar a diferentes movimentos de discurso que se cruzam na incompreenso. espera dos sentidos, o sujeito se desorganiza. O discurso social, nessa perspectiva, apresenta-se como metfora da diviso social. Nesse cenrio, o urbano aparece como catalizador do social. Em consequncia, o urbanismo se apresenta como complemento do imaginrio que interpreta o que o urbano, sobrepondo-se cidade, de-limitando-a, desenhando seus sentidos (significando-a), assim como ao social.

    A cidade, significada pelo que chamo discurso (do) urbano, abriga o social - o polido - que, no entanto, se realiza administrativamente como o policiado, referido (manuteno da) organizao

  • urbana. Quer dizer que o social passa a significar pela urbanidade (planejamento, tecnologia) e perde suas caractersticas materiais estruturantes.

    Ao mesmo tempo em que colocamos questes a respeito da relao cidade/urbanidade, tambm colocamos em questo a cidadania. Pensando o habitante da cidade como sendo uma posio-sujeito significativa, podemos consider-lo na perspectiva dos estudos da linguagem em que se afirma que no sujeito que o mundo faz sentido e que a linguagem se diz, se realiza como discurso. Desse modo, o objetivo de nossa reflexo pensar como a cidade faz sentido no sujeito, como ela se diz nele.

    Em minha hiptese de trabalho, o discurso da cidade, assim como a materialidade da prpria cidade, seriam constitudos de falhas, de possveis, de sentidos ainda irrealizados que sustentam na incompletude a possibilidade de novos sentidos. Correspondentemente, esses so os vestgios de novas posies-sujeito possveis, sujeitos simblicos, sujeitos scio-polticos, cidados. Essa materialidade prpria da cidade tem, segundo o que penso, uma ancoragem simblico-poltica na quantidade. Isso quer dizer que a quantidade constitutiva do processo de significao da cidade e da cidadania: a cidade supe muitos do mesmo no mesmo lugar. Essa ancoragem simblico-poltica da cidade se metaforiza nos diferentes gestos de interpretao da cidade em seus diferentes modos de significar nos sujeitos e na histria. No entanto, a quantidade se metaforiza mal e o que seria a falha que faz parte da transformao se transmuda em violncia porque no acolhida pela histria. A algazarra do urbano (J.Rancire,1996) o muito cheio que silencia o sujeito e estanca o movimento em que o irrealizado da cidade viria fazer sentido em sua materialidade histrica contraditria. O que estou dizendo que a cidade um espao real de significao sujeito a transformao que, pela imposio do urbano, abafado, silenciado. A materialidade simblica da cidade contida pela urbanizao. H, assim, uma reduo significativa da cidade e do social ao urbanizado. A imagem que o sujeito-citadino tem da cidade atravessada pela discursividade urbanista que no deixa trabalharem muitos dos sentidos que materializam simblicamente a cidade. Nessa perspectiva, em que a cidade representada pela organizao urbana, o investimento de sentido na cidade tropea na quantidade que no se metaforiza como devia: o tempo o da urgncia e o espao urbano atulhado. O que conflito real e constitutivo do processo de produo de sentidos e das mltiplas formas de existncia da cidade deriva para a violncia. Estreita-se o sentido da cidadania (1).

    Quero aqui acrescentar que no concordo com duas espcies de falas que pairam sobre a cidade. Uma delas, subproduto dos discursos ecologistas (em que, na relao de perdio e de salvao,

  • o mundo seria salvo por uma romntica volta ao campo, este evidentemente puro e despoludo do prprio homem, voltando a ser significado pela Me Terra), a fala que refere ao catastrfico: a cidade seria uma monstruosidade da agresso do homem natureza. A isso eu responderia que ela uma forma do homem, definido no como espcie mas como ser histrico e simblico, produzir sua vida na convivialidade. E, a outra fala, que tambm alimenta o imaginrio negativista da cidade, um subproduto de posies tericas igualmente catastrficas (e nostlgicas) e que desemboca na naturalizao da violncia. So reflexes que colocam como princpio que a violncia necessria pois constitui a base de existncia da prpria cidade. No haveria assim cidade sem violncia. Segundo o que estou colocando, a violncia uma metaforizao mal sucedida da quantidade, essa sim constitutiva em primeira instncia do que o urbano. O deslizamento do conflito - este tambm constitutivo - para a violncia j um trabalho da histria, da sociedade, da ideologia. Confronto do homem com o simblico e com o poltico. A violncia no pois natural cidade, ela a confluncia de certas condies em que conta a m metaforizao da quantidade: ela poltica, ela se determina na histria das relaes sociais. Se assim , nossa proposta que se re-signifique o social como mediador, para se flagrar o real da cidade e poder trabalh-lo favoravelmente ao sujeito urbano. Nesse sentido, a mdia, embora no seja a instncia produtora do imaginrio da violncia, ela o acentua, na medida em que investe nesse processo de significao ao invs de procurar romp-lo. O que, alis, prprio ao funcionamento da mdia: ela, em geral, no reflete sobre os processos de significao sociais, ela os reflete.

    Nesse processo discursivo, as falas desorganizadas nos servem como observatrios que permitem ver esse jogo lingustico-histrico em que o simblico se confronta com o poltico nisso que significa o espao pblico, no modo como se constituem, se subjetivam os sujeitos sociais, na emergncia ou no silenciamento de outros sentidos e de outras posies-sujeito urbano.

    Esse aprisionamento da materialidade significativa da cidade pelo discurso (do) urbano que a imobiliza no enquadramento que a afasta de outros (novos) sentidos, destitui tambm o social de sua significncia mais prpria, reduzindo as possibilidades de sua historicizao. As condies materiais concretas da cidade antes de serem trabalhadas j so evitadas pelo planejamento, pela administrao. Os seus sentidos so domesticados por um gesto de interpretao urban(izad)o. Evitam-se os conflitos, silencia-se o que demanda sentido e evitam-se as transformaes.

  • Na contramo do silenciamento, a anlise de discurso, ao contrrio, prope expor o olhar opacidade do sentido e do sujeito, procurando observar, no sentido de acolher, a sua espessura semntica. Isto significa aceitar o no-sentido, a desordem, os sentidos outros. Isso significa dar lugar e tempo para a indistino, a ambiguidade, a hesitao dos sujeitos na relao entre o pblico e o privado, entre o que processo de individualizao dos sujeitos pelo Estado e os processos de socializao, entre aquilo que, na sociabilidade, incluso e o que conflito. Nessa disposio, restituir cidade a sua falta de sentido pode ser um incio para se deixar de esvaziar o sentido do que cidadania.

    A Anlise Tomaremos alguns exemplos de anlise que situam o que dissemos acima. Para tal, exploramos

    o corpus que segue: 1. Evento I: encontro de secretrio, na prefeitura, com pessoas que vm reivindicar melhorias

    nos seus bairros. Comentrio do secretrio: No adianta a gente receber essa gente. Eles falam de tudo e a gente no sabe o que eles esto querendo. Precisava organizar mais essa gente. Seno, eu fico aqui, perdendo meu tempo.(Ouvido de um secretrio de uma prefeitura de cidade pequena ao lado de Campinas).

    2. Evento II : em consultrio mdico. O paciente chega. O mdico o cumprimenta e diz : Tudo bem, fulano? Ele responde. Tudo. S que tem aquele cncer, doutor.... Pego de surpresa, o mdico v de novo o pronturio do paciente e l nada consta sobre um cncer. Ele demora uns dez minutos examinando o paciente, tentando recompor uma conversa que se desenrole normalmente. Chama a sua enfermeira pelo telefone e ela avisa: o paciente em questo est com forte depresso e no seu desequilbrio, que o afeta em relao a sua segurana fsica, acredita-se portador de um cncer. A o mdico retoma o controle da conversa mdico/paciente.

    3. Evento III. Na rua, na calada, prximo a uma parada de nibus. Uma senhora de aspecto mediano dirige-se a um transeunte: O senhor sabe, eu trabalho l no bairro x e tive de vir cidade para resolver uma questo no cartrio e etc etc etc.. Ela continua a falar ainda um tempo. O nibus chega e o transeunte toma o nibus e comenta: Coitada. Aquela mulher no bate bem. Tava ali perdida falando sem dizer coisa com coisa. Ser que ela no tem ninguem que cuida dela? . Na realidade a mulher

  • queria dinheiro pra voltar pra casa. S isso. Como no sabia pedir esmola, encompridava tanto o pedido, indeterminando-o, que as pessoas no sabiam o que ela queria.

    4. Evento IV. Num bar de classe mdia. Entra uma pessoa vestida como mendigo. Senta-se no balco espera de ser atendida. Com ares de mistrio, o garom vai ao telefone e chama a polcia. Enquanto a polcia no chega, a pessoa mal vestida estende o dinheiro e pede um refrigerante.

    Eu poderia fazer uma enorme lista de eventos em que vemos as falas se descosturarem, no que podemos chamar incompreenso, equvoco, falha de comunicao, j que como sabemos, em anlise de dicurso, a linguagem serve para comunicar e para no comunicar. Ficaremos nesses exemplos, procurando compreender o que do urbano, do citadino, de cidadania, do social a est posto.

    No evento I est em questo o fato de que, separados pelos diferentes modos de se significar o poltico, o administrador s entende aquilo que faz parte de seu script, ou seja, de seu programa. O que no entra nele, no significa. A fala daquela gente deveria estar organizada, administrada pelo seu programa poltico e no pelo real concreto da necessidade que aquela gente expunha, a partir de sua real condio social. A cidade, para o administrador, um plano, um projeto. Para as pessoas, a vida cotidiana, no disciplinada. Faltou disciplina (no sentido foucaultiano). Ou faltou escuta, eu diria. Eles esto em presena mas o imaginrio que os separa, separa a situao concreta do cotidiano da rua de sua configurao enquanto espao da administrao urbana (questo de poltica pblica).

    No evento II , a relao mdico/paciente aqui se desenha tpicamente pelo fato de que s ouvido pelo mdico o que est de acordo com seu diagnstico. O que cai fora no faz sentido ou no deve ser dito. No caso que analisamos, o que se configura a vontade da verdade. Quando um mdico pergunta, ele e seu paciente esto comprometidos na busca da verdade que vai se realizar no diagnstico. Uma perturbao no paciente, leva a engano. O equvoco aqui joga no fato de que a doena imaginria e isto suficiente para desorganizar a fala do mdico que s poder retom-la convenientemente dentro de sua posio de mdico, depois de certificar-se da perturbao mental de seu paciente. O diagnstico estava certo. Seu paciente no tem cncer. No tem nada?...

    No evento III, trata-se de uma interpretao, a do transeunte, que faz intervir a separao entre razo e loucura. O modo de se pedir esmola j est estabelecido, de tal modo que algum que, por vergonha ou por falta de hbito, no segue os parmetros dessa fala, considerado fora da norma , fora da normalidade. A senhora, em questo, vista como quem no diz coisa com coisa.

  • No caso IV trata-se do que venho dizendo mais acima sobre a relao entre o polido e o policiado. Uma quebra de espectativa, a de uma pessoa convenientemente (?) vestida - e aqui as fronteiras do discurso social so cruis - resvala o polido (o atendimento do fregus) para o sujeito polcia ( a expulso do recinto).

    Indcios Podemos perceber essas falas desorganizadas do cotidiano das cidades como lugares em que

    irrompe a diferena que demanda sentidos. So lugares de resistncia. A qu? Ao j significado, ou seja a isso que chamamos discurso do urbano e que se abate sobre o discurso da cidade. O discurso do urbano, para ns, o discurso constitudo a partir da sobreposio do conhecimento urbano sobre a prpria materialidade urbana (da cidade). Nessa indistino, o real urbano substitudo pelas categorias do saber urbano, seja em sua forma erudita (discurso do urbanista), seja no modo do senso comum em que esse discurso incorporado pela poltica, pelo administrador, pela comunidade, convertendo sentidos no imaginrio urbano.

    O mecanismo discursivo que a joga o das formaes imaginrias e o que chamamos antecipao. Como sabemos (Pcheux, 1969, 1975), h regras de projeo imaginrias que fazem com que passemos da situao dos falantes para suas posies representadas, mas transformadas, no discurso. Assim, no o operrio emprico que interessa mas sua posio discursiva, trabalhada por formaes imaginrias que so preenchidas (significadas) pela ideologia social, ou seja, a imagem que se faz de um operrio em uma sociedade determinada, tomada na histria. E isto de tal modo, que muitas vezes essa posio no corresponde ao operrio emprico ou a sua situao objetiva mas a sua imagem discursivamente significada, onde conta fundamentalmente a ideologia enquanto imaginrio que se constitui do confronto do simblico com o poltico (da linguagem com o poder, scio-historicamente considerado). Por seu lado, a antecipao significa que todo sujeito falante capaz de se antecipar a seu ouvinte, atravs desse imaginrio, e experimentar seu lugar de sentido. Desse modo, temos pela antecipao, por exemplo, no caso do evento I : alm da imagem que o secretrio faz das pessoas do bairro x temos a imagem que o secretrio faz da imagem que dele fazem as pessoas do bairro x. Pois bem, em relao a esse imaginrio que funciona o discurso do urbano saturando com suas imagens j significadas: a imagem que o administrador tem das pessoas que o procuram j vem

  • atravessada pelo discurso do urbano. Essa imagem que ele faz atravessada pelo imaginrio urbano apaga, silencia, no deixa ver os outros sentidos que permitiriam elaborar com mais realidade os sentidos da cidade, de seus espaos a serem significados, do cidado. Com a sobreposio do urbano sobre a cidade e deste sobre o social, deixa-se de significar a cidade em sua dimenso social sujeita histria.

    Nossa proposta que se recupere o social pela historicizao das relaes sociais na cidade, criando condies para que elas trabalhem. Para que se atualizem sentidos. Como dissemos, h uma saturao pelas categorias do discurso do urbano que vo impedir que a cidade se diga. As falas desorganizadas so pistas, vestgios, indcios, desse pontos em que a cidade poderia se dizer, em seu real concreto. Para se governar, assim como para se ter um cotidiano possvel - com suas necessidades pragmticas e um mundo semnticamente normal - h coisas a saber e preciso se trabalhar a estabilizao. Por outro lado, em relao ao real da cidade, h sempre movimento (do sujeito e do sentido). Sendo a cidade um projeto em movimento, a estabilizao pode ser uma ruptura nesse movimento. Mas ela pode tambm guardar seus traos. A partir deles seria ento possvel se interferir na organizao urbana re-significando a ordem da cidade em suas necessidades materiais implementando e no subtraindo a capacidade que tem o sujeito-cidado de simbolizar e transformar. Da a idia justamente a de fazer virem tona esses processos silenciados, observando-se as falas desorganizadas como capazes de manifestar os traos desse movimento contido. Onde a cidade demanda sentido e onde os sujeitos da cidade - cidados - no esto sempre j significados mas eles tambm reclamam sentidos, novos sentidos, sentidos outros.

    Enfim, podemos pensar a cidade como parte fundamental de um processo em que se fazem presentes eventos no apenas empiricamente mas materialmente diferentes, constituindo novas formas sociais e representando um real deslocamento ideolgico nos modos de significar, e viver, a cidade. Produzindo-se desse modo novas formas de cidadania.

    Notas * Doutora no Instituto de Estudos da Linguagem e Coordenadora do Laboratrio de Estudos Urbanos Unicamp.

    1 No pensamos a cidadania como uma essncia. O sentido da cidadania no se faz por si mesmo, mas no cruzamento da histria com

    o como o social se significa nos sujeitos nos diferentes sentidos da cidade governada pelo Estado. Ou seja, a cidadania se significa nos

  • modos como o Estado subjetiva as relaes sociais na relao do poltico com o simblico. Esses modos administram fortemente os processos de significao que dizem respeito ao espao pblico.

    Bibliografia E. P. Orlandi (1999) (N)os limites da Cidade in nmero especial, revista RUA Unicamp, Campinas. M. Pcheux (1969) Analyse Automathique du Discours , Dunod, Paris. M. Pcheux (1975) Les Vrits de la Palice, Maspero, Paris. J. Rancire ( 1996) Os Nomes da Histria, Educ, So Paulo, trad. bras. Eni Orlandi e Eduardo Guimares.

  • DENTRO E FORA:VIOLNCIA E IRRUPO URBANA EM CIDADES MDIAS

    Pedro de Souza*

    Minha preocupao, desde que venho trabalhando no projeto Os sentidos do pblico no espao urbano, desenvolvido coletivamente no Laberurb/Unicamp, o surgimento de uma nova modalidade de limite intermediando espaos abertos e fechados, mediante a implantao de grades de ferro cercando praas pblicas, jardins, monumentos, entradas de edifcios. Dado seu porte de grande metrpole , entre as grandes cidades brasileiras, So Paulo o referencial modelar desta prtica de interveno no fluxo dos pedestres em espao urbano.

    O interesse recai sobre os efeitos enunciativos de produo de sujeitos relativamente s prticas sociais de circulao na cidade. Interesso-me enfim pela interpelao do indivduo pedestre como suposto agressor, ou suposto agredido, j que os acercamentos visam a impedir a introduo do inimigo em equipamentos coletivos como praas, abrigos sob marquises em caladas. As grades so parte de uma ordem simblica que promove o barramento da circulao e sob efeito transverso de discursos sociais. Deste modo, instaura posies de discurso nos quais os indivduos podem, de um certo modo, referir-se a si como cidados. Ocorre que os passantes na rua, a cada vez que se deparam com uma grade ou um porto interrompendo a passagem ou a entrada em um parque, do ponto de vista do direito cidade, so constitudos em sujeitos na exterioridade, ou seja, so levados a identificar-se como os que ficam do lado de fora.

    Nesta medida, os equipamentos urbanos, ou seja, tudo aquilo que prov um espao das caractersticas do que designa a urbanidade,podem indicar um sistema simblico, a partir do qual possvel depreender um discurso sobre a cidade. O ponto principal desta maneira de pensar o problema vem a propsito do estatuto coletivo e pblico de logradouros como praas, jardins, monumentos, vias de circulao e passagem. Assim que estes espaos so problematizados a partir do momento em que comeam a ser rodeados por grades de ferro. Incorporarei minha abordagem a idia segundo a qual esses acercamentos podem imprimir um carter desptico a esses equipamentos coletivos, na medida

  • em que irrompem violentamente impostos por instncias alheias aos sujeitos que fazem uso destes espaos.

    guisa de contribuio para esta reflexo, quero abordar, na referida trama simblica vinculada problematizao da violncia, as insgnias da fala da cidade antes da cidade. Ou seja, a violncia urbana no s pre-existe, mas enquanto discurso condio de existncia da cidade. Trata-se dos referenciais interdiscursivos que condicionam a elaborao de uma identidade constituitiva necessria ao conceito de cidade; trata-se precisamente da historicidade que permeia a converso de um espao rural em espao urbano.

    Assim o fio condutor deste processo discursivo de produo cognitiva da cidade tem a ver fundamentalmente com o urbano e a urbanidade, tal como pode-se abordar metaforicamente o tema na bifurcao de dois modos de cidade e, metonimicamente, de dois modos de ser morador na cidade. A primira bifurcao tematiza , no bojo das instituies competentes, o parmetro sob o qual investe-se na urbanizao de determinados logradouros tomados ainda em seu estgio pr-urbano, isto sempre em termos discursivos. O segundo modo relativo descorberta e/ou inveno de um jeito de habitar o lugar tomado em seu estgio indeterminado de transio. Tenho aqui como foco dessa considerao o caso do territrio insular de Florianpolis, capital do estado de Santa Catarina.

    Em Florianpolis, a dificuldade que a administrao pblica, notada- mente no mbito institucional competente do IPUF-Instituto de Planejamento Urbano de Florianpolis, encontra para instituir um plano diretor aponta para um referencial simblico que intervm na identificao do que seja paradigmaticamente uma cidade.

    Teoricamente, pretendo buscar em Guattari1 o conceito de desterrritorializao que, cruzado com o conceito de deslocamento de Pcheux, me permite falar na emergncia da cidade como problemtica de transio no linear e no-cronolgica. Ou seja, quero evitar pensar o aparecimento de algo que se chama cidade em um determinado instante do territrio numa perspectiva cronolgica temporal, a que possibilita o discurso da urbanidade tomando a fugacidade da paisagem na lacuna temporal do antes e do depois.

    Diz Guattari que as condies de surgimento da cidade acontecem no momento em que se totalizam os equipamentos coletivos: a cidade o lugar onde so desterritorializadas as comunidades primitivas

  • (...), e o fluxo que permite esta passagem , a sobrecodificao, (...) um fluxo de escritura desptica, assinala o autor.

    H vrias formas pelas quais se d este fluxo de desterritorializao. Guattari cita como exemplo os impostos, o estatuto da moeda, do capital, no contexto da Idade Mdia. Estas modalidades equivalem a equipamentos que, concomitantemente emergncia da cidade, existem como estruturas de poder poltico, e no mesmo instante em que impera o regime urbano, passam a sobre-existir como equipamentos coletivos, ou significantes despticos. Da que as definies ou discursos possveis da cidade vo depender dos fluxos desterritorializados. Apagam-se umas, levantam-se outras insgnias do que significa morar, habitar um espao. Em sntese, equipamentos coletivos so aqui definidos como o universo da representao, que necessariamente constitui-se atravs de prticas lingsticas.

    certo que Guattari tematiza a lngua como o primero equipamento coletivo, porque dela que o inconsciente social se serve para codificar o sistema urbano. O autor no acredita na existncia de uma cidade sem escritura. O interessante a deduo do autor, a saber, que o fluxo de escritura leva simbolicamente descoberta de uma superfcie de inscrio. Sustento aqui a idia de tomar os lugares de circulao pblica como pontes, viadutos, marquises e seus acercamentos que, enquanto subsistem como tipos de equipamentos coletivos da cidade, expem-se na qualidade de superfcie material da escrita da cidade.

    Entendo que, nos dias atuais, um dos modos de dar forma enunciativa questo urbana aparece no ponto em que se perde a familiaridade e surge a viso inquieta do que no se conhece. Este um ponto, frequentemente evocado na literatura historiogrfica sobre o nascimento das cidades e cujo avatar aloja-se contemporanemanete na violncia como uma propriedade constitutiva do ser urbano.

    Neste entremeio, observo que nas falas dispersas entre os moradores nativos da Ilha de Santa Catarina, tematiza-se o temor que vem junto com o crescimento econmico e demogrfico do lugar onde se vive. No falo do temor como fato exterior ao discurso, mas enquanto objeto de que trata uma srie de discursos associados ao domnio da construo e gesto da cidade. Isto significa ainda dizer que o mbito de exterioridade na qual se coloca o sujeito para se referir ao conceito de cidade que concerne diz respeito ao domnio pertinente de validade discursiva. Da decorre que se a urbanidade que est por vir, no contexto das cidades mdias, existe na forma da violncia, da vigilncia e do medo,

  • porque h um grande nmero de outros discursos que sustenta a concepo e a imagem deste real de cidade.

    A forma imaginria da violncia que valida esse temor da perda, no de algo que at ento se detm e que escapa das mos, mas pontualmente a perda do espao extensivo e da liberdade de andana que se esvai com ele. A espontaneidade, os encontros na praa, o passeio pelas ruas, conforme aquilo de que falam os sujeitos constitudos margem deste processo urbano em questo, do lugar a exerccios de vigilncia, aqui considerado no pelo confronto da palavra com o perigo em si, mas como referente de um discurso annimo e alhures . a isto que referem enunciados como o do taxista que comenta:

    - melhor que Florianpolis no cresa, porque o crescimento traz tudo de ruim para c. Antigamente a gente podia andar livremente na rua sem medo de assalto.. Nunca foi preciso colocar uma grade de ferro na porta de casa como est acontecendo em muitas casas de praia e prdios do centro. Todo mundo tem que se trancar dentro de casa

    Nesta fala ocasional, expresses lingsticas estruturando gramaticalmente modos de referncia ao lugar , tais como tudo de ruim para c, andar livremente na rua, grade de ferro na porta de casa, se trancar dentro de casa, indicam a perspectiva na qual o sujeito se coloca em relao cidade. Estas expresses no s apontam para o lugar onde est o sujeito que fala, conforme aludi anteriormente, mas tambm para como se estabelece simbolicamente a relao espacial entre sua posio de sujeito e a cidade de que fala. Nesta posio, o sujeito aparece na medida em que observa a cidade acontecer, colocado em plano exterior a ela.

    V-se que, evocadas pelo discurso, as cercas ao redor de monumentos e praas pblicas mostram ao morador nativo o parmetro da distncia entre estar no campo e estar na cidade. De fato, quando a imprensa fala do aumento populacional da cidade o faz numa forma de narrar em que o lugar dos protagonistas distribui-se entre os estrangeiros que chegam e colocam-se no centro da cena urbana em construo e os nativos que passam a circundar margem de um cenrio que deixa de ser o seu. Exemplo disso o de uma pequena reportagem aparecida em um jornal comunitrio distribudo em um bairro central de Florianpolis:

    A maioria dos novos migrantes que engrossam o contingente dos atuais 270 mil habitantes escolhe Florianpolis para viver em razo da qualidade de vida e do jeito sossegado de cidade pequena sem perder os confortos de capital. O Instituto de

  • Planejamento Urbano j comea a se preocupar com essa nova leva de moradores e tenta implantar, apesar de muita polmica e da resistncia das comunidades do sul da ilha, o plano diretor de desenvolvimento do Campeche.(Jornal Imagem, no. 4 - agosto/1998, p.4)

    O trecho um exemplar de fragmento discursivo em que se mostra o escalonamento das posies de sujeito em um campo de confronto onde o que est em jogo o delineamento entre o que est no interior e no exterior relativamente ao que se deve chamar de cidade. Por quanto, neste caso, o mal da cidade grande nada mais do que aquilo de que fala o discurso do sujeito na condio de nativo, se o lugar da violncia o que se vislumbra na cidade nascente, ento tudo se representa como se o acesso urbanidade a anunciada no fosse possvel sem que esta passasse antes pela recusa.

    Tomados como unidades fragmentrias que se conectam por um horizonte de significao estes exemplos de fala constituem, segundo dadas condies de produo do dizer, a imagem de cidade emergente em determinado contexto histrico-social. A anlise deve resultar em elementos para a compreenso de como, em cidades mdias, ao contrrio das grandes metrpoles, as grades aparecem como um dispositivo de representao, no da mudana, mas do que est por vir. Neste sentido, o que significam as grades para uma grande metrpole no o mesmo que significam para as cidades mdias. Enquanto para o primeiro modo de urbanizao, o sentido o da proteo, portanto, expresso de amor cidade, para o segundo o efeito de sentido o da recusa, portanto do temor ao que no se conhece.

    Em sntese, enquanto parte de um equipamento coletivo, as grades de ferro no funcionam do mesmo modo em diferentes contextos urbanos. Penso aqui no que concerne s cidades mdias. Em cidades grandes, as grades que envolvem os lugares de circulao pblica funcionam como investimentos sobre dispositivos urbanos pr-existentes,ou seja, enquanto regimes simblicos j re-significados. Dito de outro modo, ideologicamente, a metrpole sobrevive como se sempre j existisse como tal. Nestes termos, o rural e o metropolitano, entrecruzam-se em uma mesma dimenso discursiva, ou mesma perspectiva de significao. Da resulta que a cidade grande e o campo emergem como espaos cuja ordem simblica do j dado, o desde sempre institudo. Diferentemente, o simblico que institui certo territrio como cidade mdia o do horizonte incerto do vir a ser, estgio entremeio ao rural e o urbano propriamente ditos. Trata-se do encontro entre uma memria e uma atualizao: os sentidos no se efetivam independentemente dos que j se historicizaram. Por isso mesmo, com a irrupo da

  • urbanidade associada a uma forma invasiva de violncia, os sujeitos nativos representam-se como os que so lanados para fora.

    Nota * Doutor da Universidade Federal de Santa Catarina

    1 Em FOUCAULT, Dits et crits. VIII. 1976-1979. Paris, Galimmard, 1994.

  • PONTUANDO SENTIDOS EM TRNSITO

    Bethania Mariani*

    Pode-se compreender a cidade como espao em que se realizam movimentos de confrontos e alianas entre o poder pblico e movimentos sociais, organizados ou no. De um lado, depreende-se a administrao pblica buscando um controle da vida coletiva e, de outro, encontram-se os movimentos sociais refratrios ou solidrios a esse controle. Por outra via, pensando discursivamente a cidade, pode-se compreend-la como espao urbano de produo, disputa e circulao de sentidos, espao onde o confronto entre os sentidos produzidos pelas instncias do Aparelho de Estado na administrao da ordem pblica e os constitudos na dimenso privada nem se instaura sempre e nem sempre de modo visvel1 .

    Quando se fala em sentidos no espao urbano porque pode-se estar tematizando tanto a produo discursiva sobre a cidade (e neste caso se enquadram, por exemplo, as polticas pblicas urbanas mencionadas anteriormente) quanto a tematizao do modo como a cidade se diz, a partir das prticas discursivas vigentes. Em uma situao como na outra, relevante a compreenso do modo como so produzidos sentidos na cidade em termos de prticas discursivas especficas que organizam as relaes cotidianas entre os habitantes, sem apagar a heterogeneidade social constitutiva do espao urbano2 . Trabalhar com discurso urbano, desse ponto de vista, conceb-lo como efeitos de sentidos resultantes das interaes entre posies de sujeito distintas no espao da cidade. Lembremos, aqui, que no se trata de sentidos autnomos ou transparentes em si mesmos, mas sim de sentidos enquanto efeitos constitutivos das prticas sociais que se materializam na linguagem. Assim sendo, a questo da produo/circulao/disputa de sentidos uma questo crucial quando se analisa o discurso urbano.

    Tendo como objetivo, portanto, compreender prticas discursivas urbanas que ao se confrontarem scio-historicamente vo configurando o sentido do pblico e vo significando a vida do cidado3 , algumas observaes preliminares so necessrias.

  • Ao normatizar polticas pblicas para o urbano, o Aparelho de Estado projeta sobre a cidade como um todo uma rede homogeneizadora de prticas de organizao e de controle que se encontram inscritas em imaginrios j constitudos. Isso quer dizer que as instncias pblicas de administrao legislam genericamente, muitas vezes aplicando no espao urbano determinados projetos s porque foram bem sucedidos em outras cidades. No levando em considerao especifidades locais, so polticas pblicas que apagam o poltico, pois atuam sob o efeito da evidncia/transparncia dos sentidos. para isso que Orlandi4 chama a ateno, ao dizer que uma reflexo sobre a cidade realizada com categorias do urbano previamente dadas produz uma indistino do social e, conseqentemente, a no escuta dos modos sociais de produo dos diferentes sentidos que circulam.

    Evitando ficar nos efeitos discursivos do discurso do poder pblico sobre a cidade, evitando o imaginrio j constitudo sobre o discurso privado e a fim de apreender o funcionamento do discurso urbano, trabalhamos com o paradoxo cidade una/cidade fluida proposto por Zoppi-Fontana (1998). O que est em jogo nesta dicotomia so processos discursivos e efeitos de sentido que resultam deles. Assim, de acordo com a autora, a noo de cidade una recobre as representaes homogeneizantes que tentam fixar e sistematizar determinados sentidos, disciplinarmente identificados (racionais, funcionais, higinicos, econmicos), para o espao urbano enquanto que com a noo de cidade fluida podem ser compreendidas as mltiplas representaes de origens diversas que, atravs de um movimento constante de interpretao, re-significam o espao urbano sem desconhecer ou apagar sua heterogeneidade constitutiva. (Zoppi-Fontana, 1988:52)

    Em uma cidade como o Rio de Janeiro, considerando-a nesta tica da fluidez das representaes, muitas e distintas so as relaes de fora entre o pblico e o privado. So relaes de fora que produzem e colocam em circulao diferentes sentidos em um processo de fluxos que integram e desintegram, enlaam e separam diferentes comunidades discursivas. Nestes fluxos, as comunidades discursivas delimitam aes e dizeres que aderem ou ignoram ou resistem s normas urbanas em funo do cotidiano. Estamos nos referindo, por exemplo, s normas que, mesmo na forma de lei, pegam ou no, e, se no pegam, freqentemente porque produzem sentidos des-colados das prticas sociais, isto , sentidos que no colam porque no tm como se historicizar no cotidiano.

    Quero trazer para discusso aqui uma forma local e especfica de micro-relaes de fora, aquela que coloca em relao normas que emanam do poder pblico, de um lado, e de outro as interpretaes

  • produzidas por moradores de pequenas regies exclusivamente residenciais de bairros classe mdia. Parece-me ser possvel, a partir da anlise destas micro-relaes, discutir o real da cidade (Orlandi, 1998), quer dizer, as situaes em que na cidade imaginria, una, irrompem as contradies, os equvocos histricos que, fraturando as regularizaes propostas (e impostas) pelo Aparelho de Estado, tocam no nervo urbano. Tratar do real da cidade considerar o imprevisvel das formas de ocupao do espao urbano, ou seja, mapear o modo como os sujeitos, na posio de usurios deste espao, circulam e imprimem suas marcas.

    interessante retomar, neste ponto, a conceituao de Mayol (1994) para a noo de bairro. Quase por definio, diz o autor, um bairro

    um lugar em que se pode manifestar um engajamento social. (...) O bairro pode ser apreendido como esta poro de espao pblico em geral (annimo para todo mundo) no qual se insinua pouco a pouco um espao privado particularizado do fato do uso cotidiano deste espao. (Mayol, 1994:185 ).

    Em um bairro, ento, possvel entrever a organizao e administrao dos sentidos feitas pelas instncias de poder para regular o espao pblico coexistindo com uma apropriao particularizada, privada, destes mesmos sentidos. Assim sendo, o sair de casa inscreve o sujeito em uma rede de sentidos urbanos normatizados que pr-existem a ele e sobre as quais ele no tem necessariamente nem total conhecimento nem completo controle. Mas, ao mesmo tempo, esses sentidos j vo sendo re-significados em funo das prticas sociais que vigoram no bairro. A trajetria do sujeito pelo prprio bairro, portanto, j o insere em uma socializao em que os limites da gesto simblica das prticas pblicas e privadas coexistem e, ao mesmo tempo, se encontram muitas vezes indefinidos6 .

    Pergunto: Como os sentidos produzidos pela instncia pblica circulam de modo a regular o cotidiano dos habitantes? Ou seja, de que forma se processa o gerenciamento dos sentidos da ordem pblica urbana de modo a produzir a permanncia de sentidos que estariam em movimento?

  • Poderamos tomar a mdia (falada/impressa) como meio cuja funo seria a de publicizar as polticas pblicas vigentes para o urbano. Ou seja, caberia mdia dar a conhecer os discursos urbanos que regularizam a cidade em termos mais abrangentes. No entanto, se tomamos a questo de modo mais estrito, e se consideramos que as relaes de fora se estabelecem tambm com base em relaes de saber, de que forma se configura o trnsito de determinados sentidos das normas urbanas que deveriam ser comuns e conhecidos de todos os habitantes mas que se tornam repertrio exclusivo de alguns, provocando, deste modo, situaes sociais em que podemos nos tornar infratores de normas que desconhecemos, e por cujo desconhecimento podemos ser punidos?

    Tenho pensado como lugar estratgico para refletir sobre esta questo em uma posio discursiva mediadora entre o pblico e o privado, ou seja, em uma posio de onde pode se promover um trnsito entre os sentidos, tornando conhecidas prticas significativas especficas: a dos usurios/profissionais da calada.

    Muito genericamente tenho chamado de usurios da calada queles que, em funo da atividade profissional que exercem, tanto do visibilidade aos sentidos produzidos pelas polticas pblicas so porteiros e seguranas, por exemplo como contribuem para a disseminao de sentidos que vo compondo o rumor urbano (penso, aqui, no caso dos pipoqueiros e jornaleiros).7 Interessam-me, portanto, experincias locais de relao entre saber e poder, posto que podem ser reveladoras de um certo modo da produo de sentidos no espao urbano.

    Este campo de observaes sobre a forma de ocupao do espao das caladas e sobre o modo de circulao dos sentidos, considerando uma cidade como o Rio de Janeiro, se impe pelo contraste existente entre as favelas e os bairros classe mdia. Nas favelas, no existem caladas delimitando o espao entre as residncias e as ruas. Estas ltimas so, na realidade, estreitssimos caminhos, onde no possvel duas pessoas caminharem lado a lado. Entre as casas, as biroscas, as escolas e os caminhos no h mediao, o que faz com que os sentidos circulem de outro modo. Foi, portanto, por contraste entre duas historicidades distintas no modo de ocupao do espao pblico que essa funo mediadora exercida pelos profissionais da calada se tornou projeto e objeto de minha investigao.

    Cumpre notar que estes profissionais das caladas no tm uma funo de porta-voz8 . No foram oficialmente incumbidos pelo poder pblico de fornecer informaes ou explicaes sobre as novas normas urbanas para a coleta noturna do lixo, por exemplo, nem sobre os procedimentos para o

  • recadastramento do gs de cozinha ou, ainda, sobre as instrues da sade pblica para eliminar o mosquito da dengue. Mas, com certeza, eles atuam como mensageiros9 uma vez que contam o que no se sabe. Sem o compromisso de ter de contar, esses mensageiros urbanos do a conhecer: promovem para os moradores dos edifcios (e, tambm, para outros sujeitos, moradores ou no do bairro) um conhecimento que realiza uma travessia da indistino dos sentidos do pblico para uma determinada interpretao dos mesmos. Esses mensageiros ocupam um lugar entre, lugar intervalar, ou seja, funcionando como um courrier no autorizado e temporrio, tornam alguns dos sentidos da norma pblica visveis no tempo histrico.

    nas pequenas cenas do cotidiano que se pode entrever o funcionamento desse discurso entre. Cito, para exemplificar, um rpido episdio que aconteceu numa minscula regio de Copacabana denominada Bairro Peixoto.

    De acordo com o Cdigo Nacional de Trnsito, proibido estacionar a menos de 200 metros das esquinas. No Bairro Peixoto, porm, tal norma nunca obedecida pelos moradores em funo das especificidades do local: trata-se de uma regio construda na dcada de 50, comportando apenas pequenos prdios residenciais, de quatro andares, em sua maioria sem garagem. A regra, no Bairro Peixoto, justamente a infrao do Cdigo. E a peculiaridade desta situao est, em parte, no fato de ser uma prtica admitida pelo policiamento feito no bairro, ou seja, o guarda responsvel pela rea no interfere neste estacionamento irregular. Menos nas quartas-feiras, dia para o qual foi transferida uma feira livre que acontecia em outra regio de Copacabana. A novidade do acontecimento urbano feira produziu nos moradores, desta forma, a necessidade de variadas adaptaes, dentre elas, o tal do estacionamento. Com as ruas ocupadas desde a madrugada pelas Kombis e caminhes dos feirantes, os moradores e usurios do bairro acabaram ficando sem opo para estacionar e, durante aproximadamente um ms, desorientados, prosseguiram tentando manter o hbito cotidiano. Neste momento, a atuao dos porteiros foi fundamental. A cena descrita a seguir envolve trs personagens: um porteiro, um guarda de trnsito e a pesquisadora. Afobado e nervoso, o porteiro discutia com um guarda de trnsito pedindo que ele (o guarda) no rebocasse um carro estacionado na esquina. Ao ser indagado pela pesquisadora sobre o que estava ocorrendo, o porteiro disse que era proibido o uso daquela vaga da esquina nos dias de feira e que o morador, dono do carro no tendo conhecimento da regra, tinha estacionado justamente ali.. Disse, ainda, que j havia tentado contactar o dono do carro, mas que este, pelo visto, no se encontrava em casa. Invocando um testemunho futuro, contou que

  • tambm tinha procurado o sndico do edifcio e pedido que ele (sndico) confirmasse as tentativas dele (porteiro) no sentido de evitar o reboque.

    Assim sendo, o porteiro, ao mesmo tempo serviu de mensageiro, informando a pesquisadora sobre uma norma pblica que ela tambm poderia desconhecer e, em funo de tal desconhecimento tambm poderia vir a ter seu carro rebocado , e mensageiro junto ao policial e ao morador.

    Neste lugar intermedirio, ocorreu uma reorganizao dos discursos, uma re-significao dos sentidos da ocupao daquele pequeno trecho de espao pblico.

    O que importante, neste caso, o deslocamento do cotidiano da produo de sentidos provocado pela sucesso dos acontecimentos urbanos feira e reboque. Assim, inscrito no jogo entre as regras do poder pblico e a prtica efetiva dessas regras e fazendo uma travessia da indistino dos sentidos em direo regulao dos mesmos, o que o porteiro em questo faz enunciar a transformao dos sentidos. A partir deste lugar entre, no legitimado oficialmente (lembremos que o porteiro toma o sndico como testemunha) deve-se valorizar, sobretudo, o trnsito, o pr em circulao os sentidos no espao pblico. Processo que se torna possvel em funo desses usurios da calada, com seu ir-e-vir constante.

    Em resumo, a ocupao deste lugar intervalar torna visvel a tenso entre o saber e o no-saber que atua na construo dos sentidos do pblico nas prticas sociais.

    Bibliogrfia Pcheux, Michel . Delimitaes, inverses, deslocamentos. In: Cadernos de Estudos Lingsticos. Campinas, (19), jul/dez, 1990:7-24. Rolnik, Raquel. O que cidade. So paulo, Brasiliense, 1994. Zoppi-Fontana, Monica. Cidade e discurso paradoxos do real, do imaginrio, do virtual. In: Rua. Revista do Ncleo de Desenvolvimento da Criatividade, UNICAMP. Campinas, SP, n. 4, maro, 1998: 39-54.

  • Nota * Doutora da Universidade Federal Fluminense 1 Ser habitante da cidade, conforme Rolnik (1998), significa participar de alguma forma da vida pblica.

    2 Cf. Zoppi-Fontana, 1998, p. 49.

    3 Cf. Projeto O sentido do pblico no espao urbano, LABEURB.

    4 Orlandi em conferncia proferida na UFF ( setembro de 1998).

    5 A traduo minha.

    6 Penso, por exemplo, na situao dos moradores de Ipanema, Botafogo, Tijuca, Leme ou So Conrado, cujas residncias se encontram

    prximas ou de frente para as favelas e vice-versa, isto , na situao dos favelados frente s residncias classe mdia. No pequeno circuito de ruas que se situa nas adjacncias da entrada para o morro, vigora uma forma de vizinhana que no nem a instituda pela ordem pblica nem a preconizada pelos lderes da comunidade favelada. 7 A ttulo de curiosidade: o candidato ao governo do Estado do R J, Cesar Maia, em campanha durante o horrio poltico gratuito, pede

    - explicitamente - aos taxistas e aos jornaleiros que comentem, para que o povo tome conhecimento, sobre as fitas incriminadoras que ele, Csar Maia, alega possuir supostamente comprometedoras para o candidato adversrio. 8

    O destino do porta-voz circula assim entre a posio do profeta, a do dirigente e a do homem de Estado, visto que ele o ponto em que o outro mundo se confronta com o estado de coisas existente, o ponto de partida recproco no qual a contradio vem se amarrar politicamente a um negcio de Estado. (Pcheux, 1990:18)

    9O modo como M. Serres concebe o mensageiro.

  • LIMITES EM MOVIMENTO

    Suzy Lagazzi-Rodrigues*

    O trabalho que venho realizando com o assentamento do MST organiza meu olhar para a cidade a partir de sua exterioridade constitutiva, exterioridade esta pensada na relao de limites que confrontam diferenas e possibilitam mudanas.

    Para situar esta minha perspectiva, quero retomar aqui o jogo feito por Pcheux1 entre o alhures realizado e o realizado alhures. Quando discute a revoluo socialista, o autor mostra que o mundo socialista desenvolveu-se no que ele denomina a periferia do sistema capitalista, ficando a imagem do socialismo contido em um outro mundo pelo mundo capitalista, quando no dentro dele. O alhures realizado tomou a forma do realizado alhures, abafando-se a possibilidade de que o irrealizado fizesse sentido do interior do no-sentido. O mundo socialista, diz Pcheux, ao instalar-se em uma ordem natural sem espao para contradies, fez repetir o que todos sabiam e permitiu calar o que cada um entendia sem o confessar. No entanto, mostra o autor, no h rituais sem falha. O discurso que deu suporte revoluo socialista, e que pela repetio e pela censura levou cada vez mais conteno e estabilizao, continuou ainda exposto falha. A noo de efeito metafrico como transferncia, deslizamento de sentidos, permite que o irrealizado ocupe o lugar daquilo que, em outras condies materiais, pode vir a ser. Pcheux fala dos pontos de resistncia e de revolta que se incubam sob a dominao ideolgica e chama a ateno para o perigo de os discursos revolucionrios persistirem em no compreender os deslocamentos que trabalham sob sua prpria lgica estratgica, continuando a recobrir as resistncias e as revoltas que insistem em sair do lugar e incomodar a prpria ordem revolucionria: no entender ou entender errado; no escutar as ordens; no repetir as litanias ou repeti-las de modo errneo, falar quando se exige silncio; falar sua lngua como uma lngua estrangeira que se domina mal; mudar, desviar, alterar o sentido das palavras e das frases; tomar os enunciados ao p da letra; deslocar as regras na sintaxe e desestruturar o lxico jogando com as palavras... Vemos que a possibilidade da mudana presente na linguagem.

    Em minha anlise do assentamento2 fui movida pela busca da visibilidade do diferente, que muitas vezes se afirmava na ansiedade do novo. Compreender finalmente o assentamento como um

  • espao de contradio entre o individual e o coletivo, no qual o efeito da sempre possibilidade toma corpo em meio ao trabalho da resistncia do sujeito, foi fundamental para ver que olhar para fora do assentamento e olhar de fora o assentamento so movimentos que se completam na sua relao. Olhar para a cidade do assentamento. Olhar para o assentamento da cidade.

    Minha compreenso do assentamento me faz buscar, na relao com a cidade, o possvel confrontado no limite das diferenas.

    O assentamento significa na imbricao entre o discurso do MST e o discurso capitalista, instituindo uma voz para o assentado a partir da relao deste com o seu lote. Essa voz, porm, fala na contramo da lgica capitalista na qual para ser dono preciso ter o poder de compra. A relao com o lote se constitui na interseco entre o poltico afirmado pelo MST e o jurdico posto em pauta pela relao com a legalidade. Ao enunciar a sua terra o assentado historiciza diferentemente a relao com a propriedade. Sua enunciao no coincide com a de um proprietrio capitalista. Entendo que o assentamento restitui para o poltico um lugar de mudana possvel na relao de contradio entre posies sujeito.

    A contradio constitui o discurso dos assentados sobre a cooperativa. Nesse discurso, um dos efeitos dominantes o da relativizao do dizer, marcada, por exemplo no trecho a seguir, pela modalizao e pelo futuro do pretrito:

    - Entre as cooperativas assim, eu acho que a regional seria melhor, porque, pelo menos por enquanto, eu no sei se a gente teria condies de t tendo produto pra t comercializando sempre, n, e a partir do momento que a gente comear a comercializar eu acho que a gente teria que t comercializando, e a no caso, a local, no sei se poderia t cobrindo isso, e com a regional acho que seria mais fcil, porque teria produtos de outros assentamentos.

    interessante que embora extremamente relativizado, o dizer da assentada sobre a cooperativa um dizer estruturado, organizado argumentativamente pela conjuno porque. Se observarmos essa organizao argumentativa e compararmos as formulaes eu acho que a regional seria melhor porque (...) e com a regional acho que seria mais fcil porque (...), veremos que as duas formulaes caracterizam quase uma repetio uma da outra. Difere, no entanto, a justificativa que complementa cada uma dessas formulaes e a anlise dessa diferena nos mostra uma questo fundamental:

  • 1. porque, [pelo menos por enquanto, eu no sei se a gente teria condies de t tendo produto pra t comercializando sempre, n, e a partir do momento que a gente comear a comercializar eu acho que a gente teria que t comercializando, e a no caso, a local, no sei se poderia t cobrindo isso]

    2. porque [teria produtos de outros assentamentos]

    A razo apresentada em 2. - porque teria produtos de outros assentamentos tem seu sentido vinculado necessidade posta em 1: a partir do momento que a gente comear a comercializar, teria que t comercializando [sempre]. Para comercializar sempre preciso ter sempre produtos e portanto ter produtos de outros assentamentos pode ser importante, uma boa razo para optar pela cooperativa regional. No entanto, vejamos que a opo pela regional acontece porque a local, no sei se poderia t cobrindo isso, no sei se a gente teria condies de t tendo produto pra t comercializando sempre. Comercializar sempre aparece como uma razo inquestionvel, exterior ao assentamento, um pr-construdo que pe em causa a impossibilidade de o assentamento responder demanda imposta pela comercializao e torna necessria a opo por ter produtos de outros assentamentos. Discursivamente, fica caracterizada a impossibilidade presente do assentamento.

    Observemos tambm que a formulao a partir do momento que a gente comear a comercializar contrasta com a relativizao discursiva que marca o dizer da assentada: eu acho que seria, eu no sei se teria, se poderia, teria que, seria... A expresso a partir do momento que institui um marco e a certeza de que a comercializao vai acontecer. Essa certeza atravessa a relativizao do dizer e configura uma interferncia discursiva que presentifica o dizer da cooperativa no dizer sobre a cooperativa.3

    Esse jogo discursivo entre a impossibilidade do assentamento, a certeza da comercializao e a relativizao da cooperativa aponta para uma transitividade temporal nas relaes imaginrias que determinam o assentamento. A comercializao uma razo que significa a prpria sobrevivncia no e do assentamento e precisa ser afirmada como uma certeza, embora futura. A certeza presente de que a comercializao precisa ser viabilizada. O presente no assentamento se move ancorado nessa certeza da necessidade de uma sada futura.

  • Na memria discursiva na qual se constitui o discurso sobre a cooperativa, fundamental o significado da comercializao e da produo. Produzir e comercializar no assentamento tm seus sentidos definidos na razo desse espao. A opo de ir para a terra impe uma determinao material que viver da terra. Embora os sentidos de viver possam deslocar-se desde sobreviver at progredir e desenvolver, todos esses sentidos passam pela condio de ser assentado, por produzir e comercializar tendo por referncia o assentamento. Viver da terra, ficar na terra, estar assentado na terra so gestos que significam no coletivo do assentamento.

    Num outro recorte do dizer sobre a cooperativa, encontramos o encadeamento entre a afirmao presente da recusa da cooperativa com base na experincia passada falta muita clareza ainda pro povo, a maioria do pessoal no quer saber de cooperativa, assustou o povo, pra forma de uma cooperativa, no agradou o povo, agora t difcil de se formar a cooperativa - e o resgate da possibilidade de a cooperativa vir a ser agora depois veio os grupos ... e o povo at ficou de olho: vamos ver, se sair bem esse grupo a vamos tentar , mas s que a gente v que no vai pra frente se a gente no se unir numa cooperativa, no vai, ns no vamos conseguir, como se diz, ditado, vencer a burocracia do governo, vencer a poltica do governo, se a gente, se forma uma cooperativa a gente pode at produzir as coisas que a gente pode competir, at vender fora n, vamos discutir pra ver se compensa ou no, ento a gente vai ver, ns vamos ser os fundadores dessa cooperativa.

    Essa oscilao discursiva mostra mais uma vez que o dizer sobre a cooperativa configura um espao de mobilidade nas relaes imaginrias. A cooperativa uma lembrana negativa, uma dificuldade presente, e sempre uma possibilidade a ser considerada, a ser discutida e avaliada, mas tambm a condio de ir pra frente, de conseguir vencer a burocracia e a poltica do governo, de poder competir.

    Assim como no recorte anterior observamos uma interferncia discursiva do dizer da cooperativa no dizer sobre a cooperativa, tambm aqui nos deparamos com as formulaes:

    - a gente v que no vai pra frente se a gente no se unir numa cooperativa, - ns no vamos conseguir, como se diz, ditado, vencer a burocracia do governo, vencer a poltica

    do governo, - eles querem esmagar a gente.

  • So afirmaes que na forma do discurso transverso introduzem o dizer da cooperativa, aqui falado pelo Movimento, como pr-construdo no dizer da assentada sobre a cooperativa. No jogo das relaes imaginrias, a fora do Movimento ressoa no presente do assentamento e afirma a cooperativa como uma necessidade presente para que as possibilidades futuras sejam viabilizadas: se a gente, se forma uma cooperativa a gente pode at produzir as coisas que a gente pode competir, at vender fora n, o pensamento da gente esse, a gente competir mesmo pra fazer coisas grandes mesmo.

    A cada nova perspectiva que se apresenta, o futuro parece deslocar a negatividade do passado. O discurso sobre a cooperativa d visibilidade transitividade temporal que marca as relaes imaginrias no assentamento permitindo que os sentidos se entrecruzem num percurso de ressignificao simblica que determina a busca por novas possibilidades.

    Nesses dois recortes do discurso sobre a cooperativa observamos a interferncia do discurso da cooperativa, uma irrupo ideologicamante dissonante. Quero ressaltar, no entanto, que a relao entre esses dois discursos nem sempre aparece como dissonncia no assentamento. Para outros assentados, o Movimento a referncia que significa o discurso sobre a cooperativa, sendo o cooperativismo o fundamento dessa referncia. Mas mesmo nesse processo de filiao ideolgica ao discurso do MST o sujeito afetado pelo confronto dos diferentes discursos, o que produz a contradio simblica e o movimento dos sentidos.

    O assentamento se mostra como um espao que se constitui temporalmente na diferena. O presente do assentamento se impe como fato discursivo e determina o dizer do assentado sobre a cooperativa. A realizao simblica do assentamento se d no jogo contraditrio da transitividade temporal imaginria. Nesse sentido, a espacializao do simblico no assentamento, a maneira como os sentidos a se organizam no dizer, e a simbolizao do espao4, os sentidos do dizer, constituem-se na relao de uma temporalidade discursiva ideologicamente determinada, marcada pelo confronto entre o fora e o dentro.

    O presente do assentamento impe-se como fato discursivo tambm cidade. Na indefinio do seu presente, o assentamento o outro que, no organizado, aponta para um

    possvel irrealizado, o coletivo, e irrompe os limites da cidade, provocando ressonncias. A cidade, ponto de partida no movimento para a terra e lugar da novoz para os Sem-Terra, no

    contraponto com o assentamento do MST tem seus limites afetados pela sempre possibilidade do

  • assentamento. Parte da exterioridade constitutiva da cidade, o assentamento do MST institui poltico-juridicamente uma nova voz na ordem da propriedade. Essa voz fala na contradio e intervm no imaginrio da cidade, produzindo parfrases que mantm o social em movimento. Uma dessas parfrases o Movimento dos Sem-Teto. A relao entre os Sem-Terra e os Sem-Teto est politicamente determinada na negao do social. Terra e Teto, na relao com o poltico, deslocam o emprico e significam simbolicamente no movimento.

    O assentamento, que pode parecer estranho cidade, o outro, provoca o retorno do olhar. No assentamento, olhamos a cidade do assentamento. Na cidade, olhamos o assentamento da cidade. A elipse desestabiliza os olhares e os sentidos. Voltamo-nos para o assentar da prpria cidade, para sua temporalidade imaginria que configura o assentamento do simblico, a realizao do poltico no espao das relaes sociais. O assentamento do simblico na simbolizao do assentamento.

    Nota * Doutora no Instituto de Estudos da Linguagem e pesquisadora do Laboratrio de Estudos Urbanos Unicamp

    1 PCHEUX, M. Delimitaes, Inverses, Deslocamentos. Em Cad.Est.Ling., Campinas, (19): 7-24, julh./dez. 1990.

    2 LAGAZZI-RODRIGUES, S. A Discusso do Sujeito no Movimento do Discurso. Tese de Doutorado. IEL, Unicamp, 1998.

    3 Entendo essa diferena entre o dizer da e o dizer sobre a como uma diferena na relao do sujeito com as filiaes que se articulam

    na memria discursiva. No dizer da cooperativa o sujeito tomado na relao de identificao simblica com os sentidos que imaginariamente do suporte cooperativa, enquanto no dizer sobre a cooperativa h uma relao de estranhamento a nvel simblico entre o sujeito e esses sentidos, o que permite o seu distanciamento no nvel da formulao. 4 Estas noes esto presentes no projeto temtico O Sentido Pblico no Espao Urbano, desenvolvido no Labeurb/ Nudecri/ Unicamp,

    financiado pela FAPESP (96/4136-7).