ESCOLA SEM PARTIDO: UM OLHAR FOUCAULTIANO SOBRE A DISCIPLINA E O...
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ESCOLA SEM PARTIDO: UM OLHAR FOUCAULTIANO SOBRE A
DISCIPLINA E O CONTROLE NA ESCOLA
Marcelo Tomaz de LIMA
(Grupo de Pesquisa em Linguagem, Enunciação e Interação – GPLEI/UFPB)
Pedro Farias FRANCELINO
(Grupo de Pesquisa em Linguagem, Enunciação e Interação – GPLEI/UFPB)
Resumo
O presente artigo tem como objetivo refletir sobre disciplina e controle no Projeto
Escola Sem Partido (ESP), utilizando-se, para isso, de alguns conceitos do arcabouço
teórico produzido por Michel Foucault acerca das relações de poder em sociedade. Para
tanto, apresenta-se como corpus um conjunto de nove imagens retiradas da página de
Facebook do ESP, que nos últimos anos dialoga abertamente com a sociedade
brasileira, expondo suas visões de mundo sobre dispositivos como a escola, a
sexualidade e a política. O ESP toma partido pelo conservadorismo e pelo total controle
do professor e da escola, controle a que se tem tentado resistir. Entretanto, o processo de
educação é o processo de cuidado de si, e de resistir e re-existir. Os resultados
preliminares mostram que se o jogo que nós enfrentamos é o jogo da biopolítica, é o
jogo do poder/ do governo que se exerce sobre a vida, então o grande lance de pensar a
resistência no âmbito da governamentalidade escolar, e especificamente, em relação ao
ESP, é a resistência como re-existência, é a afirmação da vida/ de mais vida/ de uma
nova vida, a afirmação de nossas diferenças como forma de recusar o controle e
inventar novas formas de pensar, sentir e agir.
Palavras-chave: Escola Sem Partido. Disciplina. Controle. Resistência.
INTRODUÇÃO
O Projeto Escola Sem Partido (ESP) nasceu em 2004, tendo sido idealizado pelo
advogado Miguel Nagib e apoiado nos últimos anos por dois deputados de direita, os
irmãos Flávio e Carlos Bolsonaro. De 2014 para cá, o ESP tem influenciado projetos de
lei (PL) municipais, estaduais e federais, tendo atualmente onze PLs em tramitação nos
estados. Na Câmara dos Deputados, está tramitando o PL 867/20151, apensado ao PL
7180/2014, de autoria do deputado Erivelton Santana (PSC/BA), ao mesmo tempo em
que no Senado tramita o PLS n. 193/2016.
Os proponentes, defensores e apoiadores do ESP, reclamam que as escolas
públicas brasileiras estão sendo alvo de uma doutrinação ideológica de esquerda, e que
o poder público tem por obrigação fiscalizar e controlar o trabalho dos professores,
impedindo-os legalmente de ensinar sempre que sejam constatados casos de abusos em
torno da doutrinação ideológica de esquerda. Tendo por base todo o ideário dos partidos
progressistas que orbitam em torno da filosofia de Marx, a escola pública brasileira, na
visão do ESP, vem cometendo o pecado do que eles chamam laicismo, com exacerbada
tendência à negação da dimensão moral-religiosa dos alunos e afloramento de condutas
radicalmente indignadas ante as desigualdades sociais, de gênero e de sexualidade.
O presente trabalho, utilizando o arcabouço de ideias de Michel Foucault (1926-
1984), pretende apresentar uma série enunciativa contendo alguns dos memes postados
em 2017, na página do Facebook do ESP, a qual, mediante uma relação interdiscursiva,
evidencia as diversas relações de sentidos que se instauram nesses memes. Na ótica de
Deleuze (1992), Foucault é o pensador das sociedades disciplinares. Não obstante,
Foucault também é um dos primeiros a ressaltar que as sociedades disciplinares seriam
aquilo que estaríamos deixando para trás, ainda que não encontremos em Foucault
(HARDT, 2000) uma clara formulação da passagem da sociedade disciplinar à
sociedade de controle.
Em seu artigo “Pós-scriptum sobre as sociedades de controle”, Deleuze formula
esta passagem e esclarece que já estamos vivendo numa sociedade de controle que
funciona não mais por confinamento, mas através de controle contínuo e comunicação
instantânea.
FOUCAULT E A ESCOLA
Nesta sociedade de controle em que vivemos atualmente, o aspecto disciplinar
não desaparece, mas apenas muda a atuação das instituições e, no nosso caso, a
instituição escolar. Ao contrário do que se tinha nas sociedades disciplinares, o poder
não se circunscreve apenas aos espaços fechados das instituições, mas passa a adquirir
total fluidez. Há agora uma vigilância que é contínua, concretizada pela propagação das
câmaras espalhadas por toda a parte: no comércio, bancos, ruas, escolas e faculdades.
Para Dreyfus & Rabinow (1995), a história é o jogo de rituais de poder, é a
humanidade avançando de uma dominação para outra. Os últimos anos no Brasil têm
sido marcados por uma grave crise econômica e instabilidade política, cenário propício
para investidas conservadoras e fascistas, advindas de diversos setores da sociedade, e
que possibilitaram a emergência dos discursos do ESP. Essa onda de ataques
conservadores é uma resposta às políticas públicas progressistas implementadas nos
últimos governos, que retiraram milhões da pobreza, ampliaram o número de vagas do
ensino infantil ao superior, geraram mais empregos, concederam mais autonomia aos
movimentos sociais e populares, bem como a órgãos federais de fiscalização e controle,
como Polícia Federal e Controladoria Geral da União.
Foucault, em Vigiar e Punir (2014), apresenta procedimentos de disciplina que
nos estimulam a pensar sobre estratégias de utilização do espaço, do tempo e do corpo
da disciplina, auxiliando-nos a caracterizar as estratégias e as operações do controle do
ESP. Só há disciplina porque há poder, porque na sociedade uns agem sobre outros
exercendo o poder de modo contínuo e assimétrico. Em A vontade de saber, que
constitui o volume I de sua História da sexualidade, Foucault assim explica:
Dizendo poder, não quero significar “o Poder”, como conjunto de
instituições e aparelhos garantidores da sujeição dos cidadãos em um
Estado determinado. Também não entendo poder como modo de
sujeição que, por oposição à violência, tenha a forma da regra. Enfim,
não o entendo como um sistema geral de dominação exercida por um
elemento ou grupo sobre outro e cujos efeitos, por derivações
sucessivas, atravessem o corpo social inteiro. A análise em termos de
poder não deve postular, como dados iniciais, a soberania do Estado, a
forma da lei ou a unidade global de uma dominação; estas são apenas
e, antes de mais nada, suas formas terminais. (FOUCAULT, 1988, p.
102).
Além disso, para Foucault (1995), o poder não suprime a liberdade dos sujeitos.
Do contrário, só se pode exercer o poder sobre sujeitos livres, enquanto livres.
De fato, aquilo que define uma relação de poder é um modo de ação
que não age direta e imediatamente sobre os outros, mas que age sobre
sua própria ação. Uma ação sobre a ação, sobre ações eventuais, ou
atuais, futuras ou presentes. Uma relação de violência age sobre um
corpo, sobre as coisas; ela força, ela submete, ela destrói; ela fecha
todas as possibilidades; não tem, portanto, junto de si, outro pólo
senão aquele da passividade; e, se encontra uma resistência, a única
escolha é tentar reduzi-la. Uma relação de poder, ao contrário, se
articula sobre dois elementos que lhe são indispensáveis por ser
exatamente uma relação de poder: que “o outro” (aquele sobre a qual
ela se exerce) seja inteiramente reconhecido e mantido até o fim como
o sujeito da ação; e que se abra, diante da relação de poder, todo um
campo de respostas, reações, efeitos, invenções possíveis.
(FOUCAULT, 1995, p. 243, destaque do autor).
O poder, portanto, é uma relação de forças em determinado tempo e sociedade.
Não é algo que alguma pessoa ou grupo detenha em detrimento de outros. Em todo
ponto onde há poder, há sempre resistência, há sempre insubmissão.
Ainda em Em Vigiar e Punir (2014), Foucault coloca uma questão
imprescindível a todo o seu empreendimento intelectual, qual seja, o de que o poder
incide diretamente sobre o corpo. Sobre ele investem, marcam-no, dirigem-no,
sujeitando a trabalhos, obrigando a cerimônias, exigindo-lhe signos, uma vez que o que
se busca é o corpo produtivo, submisso, força útil.
Vigiar e punir e o primeiro volume da História da Sexualidade, duas obras da
década de 1970, fazem parte do projeto foucaultiano de uma genealogia do poder. A
genealogia (Poder-Saber) se pauta pela análise do surgimento dos saberes, que são
dados a partir de “condições de possibilidade externas aos próprios saberes”. Essa fase
genealógica complementa e dá continuidade à fase anterior, a fase arqueológica (Ser-
Saber), que analisava a arqueologia dos saberes não no sentido de buscar origens, mas o
arquivo, isto é, a lei do que pode ser dito ou o sistema que rege o aparecimento dos
enunciados como acontecimentos singulares.
Não mais o arquivo (fase arqueológica), mas as relações de força que atuam em
acontecimentos particulares e movimentos históricos constituem a força motriz do
pensamento foucaultiano desse período. Os sujeitos emergem no campo de batalha, sem
preexistirem a ele. É preciso atentar para os papeis desempenhados por sujeitos dentro
dessas relações de poder. Há que se buscar a superfície dos acontecimentos, os detalhes
e os contornos mais sutis que possibilitam os programas explícitos e implícitos, as
estratégias políticas fixadas no espaço-tempo, que possibilitam decifrar a lógica que está
por trás de todas as práticas dominantes de um determinado contexto histórico.
De acordo com Veiga-Neto (2003), na produção foucaultiana, há três domínios
de produção: o do ser-saber, o do ser-poder e o do ser-consigo. Os três versam sobre o
sujeito, sendo que o último é o que analisa o sujeito pelo prisma de sua força, de seu
cuidado de si e de suas práticas e liberdade, algo que diz respeito diretamente ao sujeito
aluno, ao sujeito educando, ainda que Foucault não tenha tratado diretamente deste
tema. Esse é o momento em que Foucault se debruça sobre as práticas sexuais entre os
gregos e romanos da antiguidade e recupera dos estóicos o conceito de cuidado de si, a
preocupação já arraigada com as técnicas de si, não significando apenas o cuidado com
o corpo, mas o cuidado de si como um cultivo de si. Algo que tem a ver com o corpo,
mas também com a mente, o espírito, a cultura. Então, cuidado de si é cultivar-se.
No terceiro volume de sua História da Sexualidade (2014), intitulado O cuidado
de si, Foucault relembra Epicuro, que dizia que nunca é demasiado cedo nem demasiado
tarde para ocupar-se com a própria alma. Foucault detecta esse conceito na antiguidade
grega e na transição do mundo grego para o mundo romano como um conceito que de
algum modo substitui outro conceito de suma importância para os gregos, que era o
conceito de conhecer-se a si mesmo. Era muito caro aos gregos esse trabalho sobre si
mesmo para se conhecer e Foucault vai mostrar que na história da cultura grega começa
a haver uma transição do princípio do conhecer-se a si mesmo para o princípio do
cuidar de si mesmo.
Esse cuidado de si e esse cultivar-se na sociedade de controle dos dias atuais se
inscrevem em relações de poder e são marcados pelo discurso (SARGENTINI e
NAVARRO, 2004), isto é, o conjunto de enunciados que se apoia em um mesmo
sistema de formação (discurso clínico, econômico, da história natural etc.). O discurso
é, portanto, ponto de encontro de uma materialidade linguística com a materialidade
histórica.
Já o enunciado, por sua vez, é concebido por Foucault como a modalidade de
existência própria de todo um conjunto de signos linguísticos, modalidade que lhe
permite ser algo diferente de uma série de traços ou de uma sucessão de marcas em uma
substância, e que também lhe permite estar em relação com um domínio de objetos,
prescrever uma relação definida a qualquer sujeito possível, estar situado entre outras
performances, e dotado, enfim, de uma materialidade repetível.
Além disso, os enunciados se inserem em uma formação discursiva, isto é, lei de
série, princípio de dispersão e repartição dos enunciados. Discurso é um conjunto de
enunciados na medida em que ele se apoia em uma formação discursiva. Ele é
constituído por um número limitado de enunciados, para os quais podemos definir um
conjunto de condições de existência. O discurso é histórico, pedaço da história,
fragmento da história.
Sobre os enunciados em uma perspectiva foucaultiana, é importante salientar
ainda outras três características. São elas: raridade, exterioridade e acúmulo.
Considerar os efeitos de raridade é de capital importância porque nem tudo é sempre
dito. Ao mesmo tempo em que plenitude, o discurso é riqueza indefinida. Assim, os
enunciados devem ser estudados nos limites do que não está dito. Quanto à
exterioridade, isso ocorre porque não nos situamos no nível de um cogito, do
pensamento, mas no conjunto das coisas ditas, buscando as relações, as regularidades e
transformações que aí podem ser observadas. Os enunciados estão em dispersão, em
descontinuidade, e a análise enunciativa foucaultiana objetiva apreender dos mesmos a
irrupção em lugares e momentos em que se produziram. E sobre o acúmulo, os
enunciados têm remanência, se conservam (nos livros, por exemplo). Têm também
aditividade, isto é, coexistem e se relacionam com os outros. E são também recorrentes,
isto é, todo enunciado compõe um campo de elementos anteriores, em relação aos quais
ele se situa.
Vejamos o quadro elaborado a partir de enunciados em torno de um mesmo
referencial discursivo: escola e ideologia.
Figura 01 Figura 02
Figura 03
Figura 04
Figura 05
Figura 06 Figura 07
Figura 08
Figura 09
Todos esses enunciados aqui apresentados foram postados na página do ESP no
Facebook a partir de abril de 2015. A figura 08, possivelmente a mais completa e mais
complexa, que se encontra no site oficial do ESP e também nos projetos de lei, resume
toda a bandeira de luta e plataforma ideológica do ESP. Ela apresenta os deveres do
professor num quadro que contém seis prescrições, todas elas objetivando o controle da
prática pedagógica dos docentes.
A primeira delas, e que é basilar, é a de que o professor não poderá se aproveitar
da audiência cativa dos alunos com o fito de cooptá-los para qualquer corrente política,
ideológica ou partidária. Ora, se a escola brasileira, de acordo com a atual Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional, e também de acordo com a Constituição
Federal, é democrática, ficando apenas nessa primeira prescrição, poderíamos guardar
uma ótima impressão do ESP. A segunda prescrição, ou o segundo dever do professor
descrito nessa imagem, reitera e reforça o conteúdo democrático descrito na prescrição
1. Ora, se o que se quer instaurar é um clima de democracia nas escolas, nada mais justo
do que o professor que não coopta seus alunos para suas ideias não favorecer e nem
prejudicar tais alunos em razão das convicções que o aluno possui ou não possui.
A relação entre cuidado de si e educação se reporta à crítica que Foucault fez à
instituição escolar e aparenta comungar dos mesmos ideais que o ESP, pelo menos
considerando apenas esses dois deveres do professor na ótica do ESP tomados
isoladamente dos outros deveres prescritos pelo ESP. A educação não pode ser
conformação do sujeito, uma construção externa do sujeito, segundo determinados
princípios e modos sociais, mas é um dos instrumentos do cuidado de si. É um modo de
o sujeito cultivar a si mesmo. O educando não é um depositório de transmissão de
conhecimentos, mas um sujeito que se faz, se constrói, se cultiva mediante o processo
educativo. A tarefa do educador é exatamente a tarefa de cuidar do outro. O educador é
aquele que cuida dos estudantes, está velando pelo processo de desenvolvimento deles.
Não obstante, ao mesmo tempo em que o educador cuida dos alunos, ele está cuidando
de si mesmo, porque ele só pode cuidar do outro se ele cuida de si. Ademais, à medida
que ele cuida dos alunos, ele abre o espaço para que cada sujeito-educando esteja
também entrando nesse processo de se cultivar e cuidar de si mesmo.
A partir da terceira prescrição, a concepção de professor e de escola na visão do
ESP vai destoar das duas primeiras prescrições e se afastar do ideal de
governamentalidade democrática da sala de aula e da escola previsto por Foucault. Nela
lê-se que o professor não poderá fazer propaganda político-partidária em sala de aula.
Ora, se como preconiza a prescrição 04, o professor deve tratar de forma justa e com a
mesma profundidade de questões políticas, socioculturais e econômicas, apresentando
as principais versões, teorias e opiniões concorrentes a respeito, é mais do que esperado
que, sendo a escola democrática (ainda que mais em tese do que na prática) e, tendo o
professor a possibilidade de usufruir de sua liberdade de expressão e de opinião
garantida a ele pela Constituição e LDB, a sua opinião sobre os fatos ganhe destaque em
sala de aula, uma vez que a voz do professor é a voz de um sujeito que tem o poder de
coordenar as atividades pedagógicas em sala de aula (bem ou mal, dado o agravo dos
casos de indisciplina nos últimos anos notificados).
A fala de um professor se propaga, influencia. Professores ainda são um
importante ponto de referência para os nossos alunos, e a tentativa de proibir o professor
de supostamente fazer propaganda político-partidária configura uma ameaça a sua
liberdade de cátedra, confirmada pela parte final da prescrição 03 que trata exatamente
da proibição aos professores de incitar seus alunos a participar de manifestações, atos
públicos e passeatas. Por que é tão urgente proibir professores de incitarem seus alunos
a manifestações mais organizadas, mais intensas? Foucault (2013) nos adverte que todo
sistema de dominação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação
dos discursos. Certamente é a manutenção de discursos já tradicionalmente
consolidados em âmbito da sala de aula, mantenedores de uma ordem em essência
conservadora, que atende aos anseios do ESP.
Já na prescrição 05 podemos confirmar, nas entrelinhas, o espírito de
conservadorismo que perpassa toda a proposta do ESP. Se é para ser direito dos pais
que seus filhos recebam na escola uma educação moral que esteja de acordo com suas
convicções, e considerando que o Brasil é marcado por uma diversidade cultural imensa
e por um gigantesco processo de exclusão social que produz pais irresponsáveis,
deseducados, que não proporcionam a seus filhos a devida educação, ou, ainda, se
recordamos que o fundamentalismo religioso de determinadas correntes leva pais a
incutirem na cabeça de seus filhos estudantes uma série de ideias preconceituosas e
intolerantes sobre indivíduos e grupos sociais (LGBT, mulheres, ateus), então as escolas
brasileiras não cumprirão com a função de ensinar e educar o cidadão para a vida em
uma sociedade, de buscar os ideais de democracia e liberdade, ainda que percebamos
acontecer o contrário: abusos, violência e todo um espectro de falsos moralismos em
volta da sociedade, principalmente de sua ala mais conservadora.
As políticas públicas brasileiras de educação, em seu conjunto, têm a cidadania
colocada como pedra de toque. Há um encadeamento na legislação brasileira
contemporânea que interliga a LDB, a Constituição de 1988, os PCN’S dos anos 1990,
as OCN’s, políticas específicas para a educação infantil, e mais recentemente, a Base
Nacional Comum Curricular.
Todos os municípios do Brasil foram obrigados a fazer seus Planos Municipais
de Educação (PME) e não foram poucas as polêmicas em torno da chamada “ideologia
de gênero”, que é uma das ideologias que o ESP evita e pretende combater. Alguns
municípios pelo Brasil se negaram a incluir a ideologia de gênero em seus PMEs,
gerando protestos, calorosos e polêmicos debates e audiências públicas em casas
legislativas. A ideologia de gênero, ou melhor dizendo, a ideologia da ausência de sexo,
é a crença segundo a qual os dois sexos (masculino e feminino) são considerados
construções culturais e sociais, e que por isso os chamados papeis sociais de gênero, que
decorrem das diferenças de sexos alegadamente construídas – e que por isso, não
existem –, são também construções sociais e culturais.
A educação com a ideologia de gênero freia a produção em larga escala de
sujeitos sexual e socialmente heteronormativos. Há todo um discurso heteronormativo
permeando a sociedade brasileira desde os primórdios da colonização, e que toda essa
documentação do MEC supracitada mais as políticas públicas de educação progressistas
dos últimos governos perseguiram combater. Nesse discurso, veicula-se a ideia de que a
relação entre os sexos construiu-se sobre bases heterossexuais e falocêntricas. Assim,
pessoas com genitália masculina devem se comportar como machos, e as com genitália
feminina devem se comportar como pessoas delicadas. Para Foucault (1988), a
sexualidade, entendida como um ponto de passagem denso pelas relações de poder entre
homens e mulheres, jovens e velhos, pais e filhos, entre educadores e alunos, torna-se
um instrumento no qual se apoiam e se articulam as mais variadas estratégias. Assim, a
redução do sexo unicamente à sua forma heterossexual, adulta e com função
reprodutiva, tendo no casamento seu único lugar legítimo, não dá conta, como salienta
Navarro (2016), dos mais variados objetivos e ações nas políticas sexuais no que tange
aos dois sexos.
Constatamos, nas figuras 03 e 07, uma clara referência à luta do ESP contra a
ideologia de gênero. No tocante à imagem 03, uma Portaria publicada em 14 de
setembro de 2016 lista o uniforme, no tradicional carioca Colégio Pedro II, sem
distinguir que peças são para uso masculino ou feminino. Ou seja, na prática, o uso de
saias está liberado para os meninos. Em 2014, estudantes fizeram um "saiato", depois
que uma aluna transexual vestiu a saia de uma colega e teve de trocar o uniforme. Já a
figura 07 reitera: “Ninguém nasce homem ou mulher!”, em uma imagem que apresenta
o contraste de luz e sombra, com a luz projetada sobre o estudante, que na ótica do ESP,
é alvo de doutrinação, e a sombra incidindo sobre três homens vestindo roupa preta e
chapéu preto cobrindo metade das suas faces, sugerindo que a doutrinação em sala de
aula e na escola é feita por várias pessoas, vários adultos, que ficam incutindo frases de
teor político-partidário na cabeça das crianças, como o “Diga: fora Temer”, na margem
esquerda, ou a que mais abaixo incita os alunos a desconsiderarem as orientações de
seus pais, em detrimento das opiniões dos “doutrinadores” da escola.
As figuras 01, 02, 04, 05, 06 e 09 reivindicam uma escola que supostamente seja
neutra e sem doutrinação. A própria figura 05, que em abril de 2015 ganhou o destaque
de postagem papel de parede na página do ESP no Facebook, contendo um quadro de
escrever de sala de aula, já apresenta a sua militância por uma escola sem doutrinação.
Na figura 06, postada em 27 de abril de 2017, há o estímulo para que se
fotografem as faixas e cartazes colocados em escola os quais se posicionam contra as
Reformas da Previdência e Trabalhista, que retiram direitos dos trabalhadores
brasileiros já consagrados na Constituição Cidadã de 1988. Ou seja, o sujeito aluno
fica, pelo ESP, terminantemente proibido de lutar pelos seus próprios direitos, os quais
foram bandeiras de lutas de personagens da história, de projeção internacional, a
exemplo de Paulo Freire, mal visto pelos adeptos do ESP, como percebemos nas figuras
02 e 09, ou Karl Marx, cuja imagem aparece na figura 09. A imagem 02 também tem o
agravante de apresentar frases que associam a pedagogia de Paulo Freire, patrono da
educação brasileira, ao fracasso do Brasil nas últimas avaliações internacionais sobre
aprendizagem das matérias básicas.
A figura 09 pretende instaurar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI)
com o fim de investigar, processar, julgar e condenar todos os defensores das ideias de
Paulo Freire e Karl Marx, e que se acham organizados nas diversas entidades
partidárias, sindicais e universitárias citadas em seus slogans. Na figura 04, a professora
passa como tarefa de casa uma atividade a ser pesquisada em veículos alternativos e
independentes de inclinação socialista, como o 247 e Mídia Ninja, com o fito de que os
alunos aprendam sobre vários temas, como a formação do estado burguês, numa relação
que inclui a ginástica e adestramento da classe trabalhadora servindo ao capital.
Para o ESP, o trabalho pedagógico das escolas brasileiras está insuportavelmente
partidário, esquerdista e tendencioso, motivo pelo qual, como alerta a figura 01, os pais
devem conferir o conteúdo do material de seus filhos já na preparação para a volta às
aulas. Já as escolas e instituições de ensino no Brasil, todas as públicas e até mesmo
certo número de particulares, alegam carecer ainda bem mais de práticas pedagógicas
sob a égide do pensamento de Paulo Freire. Uma das dificuldades que atravessam o
ensino e a pedagogia no Brasil é o fato de Paulo Freire ter sido eleito patrono da
educação nacional, mas as suas ideias não terem ainda sido aplicadas na prática, na sala
de aula. Paulo Freire prega uma pedagogia crítica, libertadora, humanista, laica, e os
métodos de ensino no Brasil ainda são os de uma pedagogia bancária, acrítica,
conservadora e que não emancipa o sujeito cidadão. Essa desorientação no cenário
pedagógico brasileiro construiu um ambiente propício para que florescessem as ideias
do ESP.
RESISTIR?... A POSSIBILIDADE DE RESISTÊNCIA AO ESP E A ESSE JOGO
BIOPOLÍTICO QUE SE COLOCA NO BRASIL CONTEMPORÂNEO
O sujeito é o tema central do pensamento de Foucault, segundo ele próprio. Há
uma virada subjetiva no pensamento de Foucault porque, em princípio, ele está
pensando a questão do sujeito como efeito do poder nos jogos biopolíticos, e em
seguida ele vai demarcando essa importância da constituição do próprio sujeito. Para
pensar os processos de produção da subjetividade no âmbito da biopolítica, deveríamos
ficar num ziguezague entre um assujeitamento e uma subjetivação. A subjetividade na
biopolítica não é simples assujeitamento. Ainda havendo boas doses de assujeitamento
há subjetivação, ou seja, há governo de si mesmo enquanto se é governado pelos outros.
A biopolítica no Brasil nas últimas décadas é orientada para a cidadania, para o
cidadão, uma vez que a Constituição de 1988 elegeu como palavras-chave cidadania e
cidadão. Ou seja, temos de ser cidadãos para sermos governados democraticamente. No
Brasil somos assujeitados a sermos cidadãos. Somos compulsoriamente subjetivados
para obedecermos aos princípios básicos de uma sociedade democrática (desde bebê já
somos cidadãos de direitos), e o ESP, bem com como quaisquer movimentos da
sociedade brasileira, por lei, devem se submeter ao princípio da liberdade humana
presente na Constituição. Se professores e alunos de uma comunidade escolar se sentem
injustiçados com as Reforma da Previdência e Trabalhista, e investem em protestar, é
um direito que a Constituição lhes assegura.
A biopolítica é um fenômeno que se espalha e é preciso resistir. A relação de
obediência nos subjetiva, mas é preciso resistir de todas as formas, inclusive pela
linguagem. E resistir pela linguagem é resistir pelos processos de subjetivação e pelos
processos de construção de discursos, pelos processos do que Foucault chama de
veridicção. Se a obediência é inoculada, propagada, se subjetivando e assujeitando, nós
poderíamos, talvez, conseguir resistir dentro dessa dimensão de dizer a verdade de si
mesmo, colocar a verdade de si mesmo.
Para Aspis (2012), resistência é re-existência, apesar de em princípio ter uma
perspectiva de passividade, devido a que, na formulação foucaultiana, sempre que há
poder, há resistência, ou seja, há contrapoder, uma vez que há poder e há outro poder
que resiste, então há re-existência, resistir de novo, algo como potencializar a vida. Se o
jogo que nós enfrentamos é o jogo da biopolítica, é o jogo do governo sobre a vida, o
jogo do poder que se exerce sobre a vida, então o grande lance de pensar a resistência
no âmbito da governamentalidade escolar, e em relação especificamente ao ESP, é a
resistência como re-existência, é a afirmação da vida, a afirmação de mais vida, a
afirmação de uma nova vida, a afirmação de nossas diferenças, como forma de recusar o
controle e inventar novas formas de pensar, sentir e agir. Quanto mais diferença
tivermos, quanto mais nos individualizamos, maiores as possibilidades de sairmos do
controle, de escaparmos ao controle.
REFERÊNCIAS
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