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ESCOLA SEM PARTIDO: UM OLHAR FOUCAULTIANO SOBRE A DISCIPLINA E O CONTROLE NA ESCOLA Marcelo Tomaz de LIMA [email protected] (Grupo de Pesquisa em Linguagem, Enunciação e Interação GPLEI/UFPB) Pedro Farias FRANCELINO [email protected] (Grupo de Pesquisa em Linguagem, Enunciação e Interação GPLEI/UFPB) Resumo O presente artigo tem como objetivo refletir sobre disciplina e controle no Projeto Escola Sem Partido (ESP), utilizando-se, para isso, de alguns conceitos do arcabouço teórico produzido por Michel Foucault acerca das relações de poder em sociedade. Para tanto, apresenta-se como corpus um conjunto de nove imagens retiradas da página de Facebook do ESP, que nos últimos anos dialoga abertamente com a sociedade brasileira, expondo suas visões de mundo sobre dispositivos como a escola, a sexualidade e a política. O ESP toma partido pelo conservadorismo e pelo total controle do professor e da escola, controle a que se tem tentado resistir. Entretanto, o processo de educação é o processo de cuidado de si, e de resistir e re-existir. Os resultados preliminares mostram que se o jogo que nós enfrentamos é o jogo da biopolítica, é o jogo do poder/ do governo que se exerce sobre a vida, então o grande lance de pensar a resistência no âmbito da governamentalidade escolar, e especificamente, em relação ao ESP, é a resistência como re-existência, é a afirmação da vida/ de mais vida/ de uma nova vida, a afirmação de nossas diferenças como forma de recusar o controle e inventar novas formas de pensar, sentir e agir. Palavras-chave: Escola Sem Partido. Disciplina. Controle. Resistência. INTRODUÇÃO O Projeto Escola Sem Partido (ESP) nasceu em 2004, tendo sido idealizado pelo advogado Miguel Nagib e apoiado nos últimos anos por dois deputados de direita, os irmãos Flávio e Carlos Bolsonaro. De 2014 para cá, o ESP tem influenciado projetos de lei (PL) municipais, estaduais e federais, tendo atualmente onze PLs em tramitação nos estados. Na Câmara dos Deputados, está tramitando o PL 867/20151, apensado ao PL 7180/2014, de autoria do deputado Erivelton Santana (PSC/BA), ao mesmo tempo em que no Senado tramita o PLS n. 193/2016. Os proponentes, defensores e apoiadores do ESP, reclamam que as escolas públicas brasileiras estão sendo alvo de uma doutrinação ideológica de esquerda, e que o poder público tem por obrigação fiscalizar e controlar o trabalho dos professores, impedindo-os legalmente de ensinar sempre que sejam constatados casos de abusos em

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ESCOLA SEM PARTIDO: UM OLHAR FOUCAULTIANO SOBRE A

DISCIPLINA E O CONTROLE NA ESCOLA

Marcelo Tomaz de LIMA

[email protected]

(Grupo de Pesquisa em Linguagem, Enunciação e Interação – GPLEI/UFPB)

Pedro Farias FRANCELINO

[email protected]

(Grupo de Pesquisa em Linguagem, Enunciação e Interação – GPLEI/UFPB)

Resumo

O presente artigo tem como objetivo refletir sobre disciplina e controle no Projeto

Escola Sem Partido (ESP), utilizando-se, para isso, de alguns conceitos do arcabouço

teórico produzido por Michel Foucault acerca das relações de poder em sociedade. Para

tanto, apresenta-se como corpus um conjunto de nove imagens retiradas da página de

Facebook do ESP, que nos últimos anos dialoga abertamente com a sociedade

brasileira, expondo suas visões de mundo sobre dispositivos como a escola, a

sexualidade e a política. O ESP toma partido pelo conservadorismo e pelo total controle

do professor e da escola, controle a que se tem tentado resistir. Entretanto, o processo de

educação é o processo de cuidado de si, e de resistir e re-existir. Os resultados

preliminares mostram que se o jogo que nós enfrentamos é o jogo da biopolítica, é o

jogo do poder/ do governo que se exerce sobre a vida, então o grande lance de pensar a

resistência no âmbito da governamentalidade escolar, e especificamente, em relação ao

ESP, é a resistência como re-existência, é a afirmação da vida/ de mais vida/ de uma

nova vida, a afirmação de nossas diferenças como forma de recusar o controle e

inventar novas formas de pensar, sentir e agir.

Palavras-chave: Escola Sem Partido. Disciplina. Controle. Resistência.

INTRODUÇÃO

O Projeto Escola Sem Partido (ESP) nasceu em 2004, tendo sido idealizado pelo

advogado Miguel Nagib e apoiado nos últimos anos por dois deputados de direita, os

irmãos Flávio e Carlos Bolsonaro. De 2014 para cá, o ESP tem influenciado projetos de

lei (PL) municipais, estaduais e federais, tendo atualmente onze PLs em tramitação nos

estados. Na Câmara dos Deputados, está tramitando o PL 867/20151, apensado ao PL

7180/2014, de autoria do deputado Erivelton Santana (PSC/BA), ao mesmo tempo em

que no Senado tramita o PLS n. 193/2016.

Os proponentes, defensores e apoiadores do ESP, reclamam que as escolas

públicas brasileiras estão sendo alvo de uma doutrinação ideológica de esquerda, e que

o poder público tem por obrigação fiscalizar e controlar o trabalho dos professores,

impedindo-os legalmente de ensinar sempre que sejam constatados casos de abusos em

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torno da doutrinação ideológica de esquerda. Tendo por base todo o ideário dos partidos

progressistas que orbitam em torno da filosofia de Marx, a escola pública brasileira, na

visão do ESP, vem cometendo o pecado do que eles chamam laicismo, com exacerbada

tendência à negação da dimensão moral-religiosa dos alunos e afloramento de condutas

radicalmente indignadas ante as desigualdades sociais, de gênero e de sexualidade.

O presente trabalho, utilizando o arcabouço de ideias de Michel Foucault (1926-

1984), pretende apresentar uma série enunciativa contendo alguns dos memes postados

em 2017, na página do Facebook do ESP, a qual, mediante uma relação interdiscursiva,

evidencia as diversas relações de sentidos que se instauram nesses memes. Na ótica de

Deleuze (1992), Foucault é o pensador das sociedades disciplinares. Não obstante,

Foucault também é um dos primeiros a ressaltar que as sociedades disciplinares seriam

aquilo que estaríamos deixando para trás, ainda que não encontremos em Foucault

(HARDT, 2000) uma clara formulação da passagem da sociedade disciplinar à

sociedade de controle.

Em seu artigo “Pós-scriptum sobre as sociedades de controle”, Deleuze formula

esta passagem e esclarece que já estamos vivendo numa sociedade de controle que

funciona não mais por confinamento, mas através de controle contínuo e comunicação

instantânea.

FOUCAULT E A ESCOLA

Nesta sociedade de controle em que vivemos atualmente, o aspecto disciplinar

não desaparece, mas apenas muda a atuação das instituições e, no nosso caso, a

instituição escolar. Ao contrário do que se tinha nas sociedades disciplinares, o poder

não se circunscreve apenas aos espaços fechados das instituições, mas passa a adquirir

total fluidez. Há agora uma vigilância que é contínua, concretizada pela propagação das

câmaras espalhadas por toda a parte: no comércio, bancos, ruas, escolas e faculdades.

Para Dreyfus & Rabinow (1995), a história é o jogo de rituais de poder, é a

humanidade avançando de uma dominação para outra. Os últimos anos no Brasil têm

sido marcados por uma grave crise econômica e instabilidade política, cenário propício

para investidas conservadoras e fascistas, advindas de diversos setores da sociedade, e

que possibilitaram a emergência dos discursos do ESP. Essa onda de ataques

conservadores é uma resposta às políticas públicas progressistas implementadas nos

últimos governos, que retiraram milhões da pobreza, ampliaram o número de vagas do

ensino infantil ao superior, geraram mais empregos, concederam mais autonomia aos

movimentos sociais e populares, bem como a órgãos federais de fiscalização e controle,

como Polícia Federal e Controladoria Geral da União.

Foucault, em Vigiar e Punir (2014), apresenta procedimentos de disciplina que

nos estimulam a pensar sobre estratégias de utilização do espaço, do tempo e do corpo

da disciplina, auxiliando-nos a caracterizar as estratégias e as operações do controle do

ESP. Só há disciplina porque há poder, porque na sociedade uns agem sobre outros

exercendo o poder de modo contínuo e assimétrico. Em A vontade de saber, que

constitui o volume I de sua História da sexualidade, Foucault assim explica:

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Dizendo poder, não quero significar “o Poder”, como conjunto de

instituições e aparelhos garantidores da sujeição dos cidadãos em um

Estado determinado. Também não entendo poder como modo de

sujeição que, por oposição à violência, tenha a forma da regra. Enfim,

não o entendo como um sistema geral de dominação exercida por um

elemento ou grupo sobre outro e cujos efeitos, por derivações

sucessivas, atravessem o corpo social inteiro. A análise em termos de

poder não deve postular, como dados iniciais, a soberania do Estado, a

forma da lei ou a unidade global de uma dominação; estas são apenas

e, antes de mais nada, suas formas terminais. (FOUCAULT, 1988, p.

102).

Além disso, para Foucault (1995), o poder não suprime a liberdade dos sujeitos.

Do contrário, só se pode exercer o poder sobre sujeitos livres, enquanto livres.

De fato, aquilo que define uma relação de poder é um modo de ação

que não age direta e imediatamente sobre os outros, mas que age sobre

sua própria ação. Uma ação sobre a ação, sobre ações eventuais, ou

atuais, futuras ou presentes. Uma relação de violência age sobre um

corpo, sobre as coisas; ela força, ela submete, ela destrói; ela fecha

todas as possibilidades; não tem, portanto, junto de si, outro pólo

senão aquele da passividade; e, se encontra uma resistência, a única

escolha é tentar reduzi-la. Uma relação de poder, ao contrário, se

articula sobre dois elementos que lhe são indispensáveis por ser

exatamente uma relação de poder: que “o outro” (aquele sobre a qual

ela se exerce) seja inteiramente reconhecido e mantido até o fim como

o sujeito da ação; e que se abra, diante da relação de poder, todo um

campo de respostas, reações, efeitos, invenções possíveis.

(FOUCAULT, 1995, p. 243, destaque do autor).

O poder, portanto, é uma relação de forças em determinado tempo e sociedade.

Não é algo que alguma pessoa ou grupo detenha em detrimento de outros. Em todo

ponto onde há poder, há sempre resistência, há sempre insubmissão.

Ainda em Em Vigiar e Punir (2014), Foucault coloca uma questão

imprescindível a todo o seu empreendimento intelectual, qual seja, o de que o poder

incide diretamente sobre o corpo. Sobre ele investem, marcam-no, dirigem-no,

sujeitando a trabalhos, obrigando a cerimônias, exigindo-lhe signos, uma vez que o que

se busca é o corpo produtivo, submisso, força útil.

Vigiar e punir e o primeiro volume da História da Sexualidade, duas obras da

década de 1970, fazem parte do projeto foucaultiano de uma genealogia do poder. A

genealogia (Poder-Saber) se pauta pela análise do surgimento dos saberes, que são

dados a partir de “condições de possibilidade externas aos próprios saberes”. Essa fase

genealógica complementa e dá continuidade à fase anterior, a fase arqueológica (Ser-

Saber), que analisava a arqueologia dos saberes não no sentido de buscar origens, mas o

arquivo, isto é, a lei do que pode ser dito ou o sistema que rege o aparecimento dos

enunciados como acontecimentos singulares.

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Não mais o arquivo (fase arqueológica), mas as relações de força que atuam em

acontecimentos particulares e movimentos históricos constituem a força motriz do

pensamento foucaultiano desse período. Os sujeitos emergem no campo de batalha, sem

preexistirem a ele. É preciso atentar para os papeis desempenhados por sujeitos dentro

dessas relações de poder. Há que se buscar a superfície dos acontecimentos, os detalhes

e os contornos mais sutis que possibilitam os programas explícitos e implícitos, as

estratégias políticas fixadas no espaço-tempo, que possibilitam decifrar a lógica que está

por trás de todas as práticas dominantes de um determinado contexto histórico.

De acordo com Veiga-Neto (2003), na produção foucaultiana, há três domínios

de produção: o do ser-saber, o do ser-poder e o do ser-consigo. Os três versam sobre o

sujeito, sendo que o último é o que analisa o sujeito pelo prisma de sua força, de seu

cuidado de si e de suas práticas e liberdade, algo que diz respeito diretamente ao sujeito

aluno, ao sujeito educando, ainda que Foucault não tenha tratado diretamente deste

tema. Esse é o momento em que Foucault se debruça sobre as práticas sexuais entre os

gregos e romanos da antiguidade e recupera dos estóicos o conceito de cuidado de si, a

preocupação já arraigada com as técnicas de si, não significando apenas o cuidado com

o corpo, mas o cuidado de si como um cultivo de si. Algo que tem a ver com o corpo,

mas também com a mente, o espírito, a cultura. Então, cuidado de si é cultivar-se.

No terceiro volume de sua História da Sexualidade (2014), intitulado O cuidado

de si, Foucault relembra Epicuro, que dizia que nunca é demasiado cedo nem demasiado

tarde para ocupar-se com a própria alma. Foucault detecta esse conceito na antiguidade

grega e na transição do mundo grego para o mundo romano como um conceito que de

algum modo substitui outro conceito de suma importância para os gregos, que era o

conceito de conhecer-se a si mesmo. Era muito caro aos gregos esse trabalho sobre si

mesmo para se conhecer e Foucault vai mostrar que na história da cultura grega começa

a haver uma transição do princípio do conhecer-se a si mesmo para o princípio do

cuidar de si mesmo.

Esse cuidado de si e esse cultivar-se na sociedade de controle dos dias atuais se

inscrevem em relações de poder e são marcados pelo discurso (SARGENTINI e

NAVARRO, 2004), isto é, o conjunto de enunciados que se apoia em um mesmo

sistema de formação (discurso clínico, econômico, da história natural etc.). O discurso

é, portanto, ponto de encontro de uma materialidade linguística com a materialidade

histórica.

Já o enunciado, por sua vez, é concebido por Foucault como a modalidade de

existência própria de todo um conjunto de signos linguísticos, modalidade que lhe

permite ser algo diferente de uma série de traços ou de uma sucessão de marcas em uma

substância, e que também lhe permite estar em relação com um domínio de objetos,

prescrever uma relação definida a qualquer sujeito possível, estar situado entre outras

performances, e dotado, enfim, de uma materialidade repetível.

Além disso, os enunciados se inserem em uma formação discursiva, isto é, lei de

série, princípio de dispersão e repartição dos enunciados. Discurso é um conjunto de

enunciados na medida em que ele se apoia em uma formação discursiva. Ele é

constituído por um número limitado de enunciados, para os quais podemos definir um

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conjunto de condições de existência. O discurso é histórico, pedaço da história,

fragmento da história.

Sobre os enunciados em uma perspectiva foucaultiana, é importante salientar

ainda outras três características. São elas: raridade, exterioridade e acúmulo.

Considerar os efeitos de raridade é de capital importância porque nem tudo é sempre

dito. Ao mesmo tempo em que plenitude, o discurso é riqueza indefinida. Assim, os

enunciados devem ser estudados nos limites do que não está dito. Quanto à

exterioridade, isso ocorre porque não nos situamos no nível de um cogito, do

pensamento, mas no conjunto das coisas ditas, buscando as relações, as regularidades e

transformações que aí podem ser observadas. Os enunciados estão em dispersão, em

descontinuidade, e a análise enunciativa foucaultiana objetiva apreender dos mesmos a

irrupção em lugares e momentos em que se produziram. E sobre o acúmulo, os

enunciados têm remanência, se conservam (nos livros, por exemplo). Têm também

aditividade, isto é, coexistem e se relacionam com os outros. E são também recorrentes,

isto é, todo enunciado compõe um campo de elementos anteriores, em relação aos quais

ele se situa.

Vejamos o quadro elaborado a partir de enunciados em torno de um mesmo

referencial discursivo: escola e ideologia.

Figura 01 Figura 02

Figura 03

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Figura 04

Figura 05

Figura 06 Figura 07

Figura 08

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Figura 09

Todos esses enunciados aqui apresentados foram postados na página do ESP no

Facebook a partir de abril de 2015. A figura 08, possivelmente a mais completa e mais

complexa, que se encontra no site oficial do ESP e também nos projetos de lei, resume

toda a bandeira de luta e plataforma ideológica do ESP. Ela apresenta os deveres do

professor num quadro que contém seis prescrições, todas elas objetivando o controle da

prática pedagógica dos docentes.

A primeira delas, e que é basilar, é a de que o professor não poderá se aproveitar

da audiência cativa dos alunos com o fito de cooptá-los para qualquer corrente política,

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ideológica ou partidária. Ora, se a escola brasileira, de acordo com a atual Lei de

Diretrizes e Bases da Educação Nacional, e também de acordo com a Constituição

Federal, é democrática, ficando apenas nessa primeira prescrição, poderíamos guardar

uma ótima impressão do ESP. A segunda prescrição, ou o segundo dever do professor

descrito nessa imagem, reitera e reforça o conteúdo democrático descrito na prescrição

1. Ora, se o que se quer instaurar é um clima de democracia nas escolas, nada mais justo

do que o professor que não coopta seus alunos para suas ideias não favorecer e nem

prejudicar tais alunos em razão das convicções que o aluno possui ou não possui.

A relação entre cuidado de si e educação se reporta à crítica que Foucault fez à

instituição escolar e aparenta comungar dos mesmos ideais que o ESP, pelo menos

considerando apenas esses dois deveres do professor na ótica do ESP tomados

isoladamente dos outros deveres prescritos pelo ESP. A educação não pode ser

conformação do sujeito, uma construção externa do sujeito, segundo determinados

princípios e modos sociais, mas é um dos instrumentos do cuidado de si. É um modo de

o sujeito cultivar a si mesmo. O educando não é um depositório de transmissão de

conhecimentos, mas um sujeito que se faz, se constrói, se cultiva mediante o processo

educativo. A tarefa do educador é exatamente a tarefa de cuidar do outro. O educador é

aquele que cuida dos estudantes, está velando pelo processo de desenvolvimento deles.

Não obstante, ao mesmo tempo em que o educador cuida dos alunos, ele está cuidando

de si mesmo, porque ele só pode cuidar do outro se ele cuida de si. Ademais, à medida

que ele cuida dos alunos, ele abre o espaço para que cada sujeito-educando esteja

também entrando nesse processo de se cultivar e cuidar de si mesmo.

A partir da terceira prescrição, a concepção de professor e de escola na visão do

ESP vai destoar das duas primeiras prescrições e se afastar do ideal de

governamentalidade democrática da sala de aula e da escola previsto por Foucault. Nela

lê-se que o professor não poderá fazer propaganda político-partidária em sala de aula.

Ora, se como preconiza a prescrição 04, o professor deve tratar de forma justa e com a

mesma profundidade de questões políticas, socioculturais e econômicas, apresentando

as principais versões, teorias e opiniões concorrentes a respeito, é mais do que esperado

que, sendo a escola democrática (ainda que mais em tese do que na prática) e, tendo o

professor a possibilidade de usufruir de sua liberdade de expressão e de opinião

garantida a ele pela Constituição e LDB, a sua opinião sobre os fatos ganhe destaque em

sala de aula, uma vez que a voz do professor é a voz de um sujeito que tem o poder de

coordenar as atividades pedagógicas em sala de aula (bem ou mal, dado o agravo dos

casos de indisciplina nos últimos anos notificados).

A fala de um professor se propaga, influencia. Professores ainda são um

importante ponto de referência para os nossos alunos, e a tentativa de proibir o professor

de supostamente fazer propaganda político-partidária configura uma ameaça a sua

liberdade de cátedra, confirmada pela parte final da prescrição 03 que trata exatamente

da proibição aos professores de incitar seus alunos a participar de manifestações, atos

públicos e passeatas. Por que é tão urgente proibir professores de incitarem seus alunos

a manifestações mais organizadas, mais intensas? Foucault (2013) nos adverte que todo

sistema de dominação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação

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dos discursos. Certamente é a manutenção de discursos já tradicionalmente

consolidados em âmbito da sala de aula, mantenedores de uma ordem em essência

conservadora, que atende aos anseios do ESP.

Já na prescrição 05 podemos confirmar, nas entrelinhas, o espírito de

conservadorismo que perpassa toda a proposta do ESP. Se é para ser direito dos pais

que seus filhos recebam na escola uma educação moral que esteja de acordo com suas

convicções, e considerando que o Brasil é marcado por uma diversidade cultural imensa

e por um gigantesco processo de exclusão social que produz pais irresponsáveis,

deseducados, que não proporcionam a seus filhos a devida educação, ou, ainda, se

recordamos que o fundamentalismo religioso de determinadas correntes leva pais a

incutirem na cabeça de seus filhos estudantes uma série de ideias preconceituosas e

intolerantes sobre indivíduos e grupos sociais (LGBT, mulheres, ateus), então as escolas

brasileiras não cumprirão com a função de ensinar e educar o cidadão para a vida em

uma sociedade, de buscar os ideais de democracia e liberdade, ainda que percebamos

acontecer o contrário: abusos, violência e todo um espectro de falsos moralismos em

volta da sociedade, principalmente de sua ala mais conservadora.

As políticas públicas brasileiras de educação, em seu conjunto, têm a cidadania

colocada como pedra de toque. Há um encadeamento na legislação brasileira

contemporânea que interliga a LDB, a Constituição de 1988, os PCN’S dos anos 1990,

as OCN’s, políticas específicas para a educação infantil, e mais recentemente, a Base

Nacional Comum Curricular.

Todos os municípios do Brasil foram obrigados a fazer seus Planos Municipais

de Educação (PME) e não foram poucas as polêmicas em torno da chamada “ideologia

de gênero”, que é uma das ideologias que o ESP evita e pretende combater. Alguns

municípios pelo Brasil se negaram a incluir a ideologia de gênero em seus PMEs,

gerando protestos, calorosos e polêmicos debates e audiências públicas em casas

legislativas. A ideologia de gênero, ou melhor dizendo, a ideologia da ausência de sexo,

é a crença segundo a qual os dois sexos (masculino e feminino) são considerados

construções culturais e sociais, e que por isso os chamados papeis sociais de gênero, que

decorrem das diferenças de sexos alegadamente construídas – e que por isso, não

existem –, são também construções sociais e culturais.

A educação com a ideologia de gênero freia a produção em larga escala de

sujeitos sexual e socialmente heteronormativos. Há todo um discurso heteronormativo

permeando a sociedade brasileira desde os primórdios da colonização, e que toda essa

documentação do MEC supracitada mais as políticas públicas de educação progressistas

dos últimos governos perseguiram combater. Nesse discurso, veicula-se a ideia de que a

relação entre os sexos construiu-se sobre bases heterossexuais e falocêntricas. Assim,

pessoas com genitália masculina devem se comportar como machos, e as com genitália

feminina devem se comportar como pessoas delicadas. Para Foucault (1988), a

sexualidade, entendida como um ponto de passagem denso pelas relações de poder entre

homens e mulheres, jovens e velhos, pais e filhos, entre educadores e alunos, torna-se

um instrumento no qual se apoiam e se articulam as mais variadas estratégias. Assim, a

redução do sexo unicamente à sua forma heterossexual, adulta e com função

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reprodutiva, tendo no casamento seu único lugar legítimo, não dá conta, como salienta

Navarro (2016), dos mais variados objetivos e ações nas políticas sexuais no que tange

aos dois sexos.

Constatamos, nas figuras 03 e 07, uma clara referência à luta do ESP contra a

ideologia de gênero. No tocante à imagem 03, uma Portaria publicada em 14 de

setembro de 2016 lista o uniforme, no tradicional carioca Colégio Pedro II, sem

distinguir que peças são para uso masculino ou feminino. Ou seja, na prática, o uso de

saias está liberado para os meninos. Em 2014, estudantes fizeram um "saiato", depois

que uma aluna transexual vestiu a saia de uma colega e teve de trocar o uniforme. Já a

figura 07 reitera: “Ninguém nasce homem ou mulher!”, em uma imagem que apresenta

o contraste de luz e sombra, com a luz projetada sobre o estudante, que na ótica do ESP,

é alvo de doutrinação, e a sombra incidindo sobre três homens vestindo roupa preta e

chapéu preto cobrindo metade das suas faces, sugerindo que a doutrinação em sala de

aula e na escola é feita por várias pessoas, vários adultos, que ficam incutindo frases de

teor político-partidário na cabeça das crianças, como o “Diga: fora Temer”, na margem

esquerda, ou a que mais abaixo incita os alunos a desconsiderarem as orientações de

seus pais, em detrimento das opiniões dos “doutrinadores” da escola.

As figuras 01, 02, 04, 05, 06 e 09 reivindicam uma escola que supostamente seja

neutra e sem doutrinação. A própria figura 05, que em abril de 2015 ganhou o destaque

de postagem papel de parede na página do ESP no Facebook, contendo um quadro de

escrever de sala de aula, já apresenta a sua militância por uma escola sem doutrinação.

Na figura 06, postada em 27 de abril de 2017, há o estímulo para que se

fotografem as faixas e cartazes colocados em escola os quais se posicionam contra as

Reformas da Previdência e Trabalhista, que retiram direitos dos trabalhadores

brasileiros já consagrados na Constituição Cidadã de 1988. Ou seja, o sujeito aluno

fica, pelo ESP, terminantemente proibido de lutar pelos seus próprios direitos, os quais

foram bandeiras de lutas de personagens da história, de projeção internacional, a

exemplo de Paulo Freire, mal visto pelos adeptos do ESP, como percebemos nas figuras

02 e 09, ou Karl Marx, cuja imagem aparece na figura 09. A imagem 02 também tem o

agravante de apresentar frases que associam a pedagogia de Paulo Freire, patrono da

educação brasileira, ao fracasso do Brasil nas últimas avaliações internacionais sobre

aprendizagem das matérias básicas.

A figura 09 pretende instaurar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI)

com o fim de investigar, processar, julgar e condenar todos os defensores das ideias de

Paulo Freire e Karl Marx, e que se acham organizados nas diversas entidades

partidárias, sindicais e universitárias citadas em seus slogans. Na figura 04, a professora

passa como tarefa de casa uma atividade a ser pesquisada em veículos alternativos e

independentes de inclinação socialista, como o 247 e Mídia Ninja, com o fito de que os

alunos aprendam sobre vários temas, como a formação do estado burguês, numa relação

que inclui a ginástica e adestramento da classe trabalhadora servindo ao capital.

Para o ESP, o trabalho pedagógico das escolas brasileiras está insuportavelmente

partidário, esquerdista e tendencioso, motivo pelo qual, como alerta a figura 01, os pais

devem conferir o conteúdo do material de seus filhos já na preparação para a volta às

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aulas. Já as escolas e instituições de ensino no Brasil, todas as públicas e até mesmo

certo número de particulares, alegam carecer ainda bem mais de práticas pedagógicas

sob a égide do pensamento de Paulo Freire. Uma das dificuldades que atravessam o

ensino e a pedagogia no Brasil é o fato de Paulo Freire ter sido eleito patrono da

educação nacional, mas as suas ideias não terem ainda sido aplicadas na prática, na sala

de aula. Paulo Freire prega uma pedagogia crítica, libertadora, humanista, laica, e os

métodos de ensino no Brasil ainda são os de uma pedagogia bancária, acrítica,

conservadora e que não emancipa o sujeito cidadão. Essa desorientação no cenário

pedagógico brasileiro construiu um ambiente propício para que florescessem as ideias

do ESP.

RESISTIR?... A POSSIBILIDADE DE RESISTÊNCIA AO ESP E A ESSE JOGO

BIOPOLÍTICO QUE SE COLOCA NO BRASIL CONTEMPORÂNEO

O sujeito é o tema central do pensamento de Foucault, segundo ele próprio. Há

uma virada subjetiva no pensamento de Foucault porque, em princípio, ele está

pensando a questão do sujeito como efeito do poder nos jogos biopolíticos, e em

seguida ele vai demarcando essa importância da constituição do próprio sujeito. Para

pensar os processos de produção da subjetividade no âmbito da biopolítica, deveríamos

ficar num ziguezague entre um assujeitamento e uma subjetivação. A subjetividade na

biopolítica não é simples assujeitamento. Ainda havendo boas doses de assujeitamento

há subjetivação, ou seja, há governo de si mesmo enquanto se é governado pelos outros.

A biopolítica no Brasil nas últimas décadas é orientada para a cidadania, para o

cidadão, uma vez que a Constituição de 1988 elegeu como palavras-chave cidadania e

cidadão. Ou seja, temos de ser cidadãos para sermos governados democraticamente. No

Brasil somos assujeitados a sermos cidadãos. Somos compulsoriamente subjetivados

para obedecermos aos princípios básicos de uma sociedade democrática (desde bebê já

somos cidadãos de direitos), e o ESP, bem com como quaisquer movimentos da

sociedade brasileira, por lei, devem se submeter ao princípio da liberdade humana

presente na Constituição. Se professores e alunos de uma comunidade escolar se sentem

injustiçados com as Reforma da Previdência e Trabalhista, e investem em protestar, é

um direito que a Constituição lhes assegura.

A biopolítica é um fenômeno que se espalha e é preciso resistir. A relação de

obediência nos subjetiva, mas é preciso resistir de todas as formas, inclusive pela

linguagem. E resistir pela linguagem é resistir pelos processos de subjetivação e pelos

processos de construção de discursos, pelos processos do que Foucault chama de

veridicção. Se a obediência é inoculada, propagada, se subjetivando e assujeitando, nós

poderíamos, talvez, conseguir resistir dentro dessa dimensão de dizer a verdade de si

mesmo, colocar a verdade de si mesmo.

Para Aspis (2012), resistência é re-existência, apesar de em princípio ter uma

perspectiva de passividade, devido a que, na formulação foucaultiana, sempre que há

poder, há resistência, ou seja, há contrapoder, uma vez que há poder e há outro poder

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que resiste, então há re-existência, resistir de novo, algo como potencializar a vida. Se o

jogo que nós enfrentamos é o jogo da biopolítica, é o jogo do governo sobre a vida, o

jogo do poder que se exerce sobre a vida, então o grande lance de pensar a resistência

no âmbito da governamentalidade escolar, e em relação especificamente ao ESP, é a

resistência como re-existência, é a afirmação da vida, a afirmação de mais vida, a

afirmação de uma nova vida, a afirmação de nossas diferenças, como forma de recusar o

controle e inventar novas formas de pensar, sentir e agir. Quanto mais diferença

tivermos, quanto mais nos individualizamos, maiores as possibilidades de sairmos do

controle, de escaparmos ao controle.

REFERÊNCIAS

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