Escola de chicago

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Falarei hoje a respeito da Escola de Chicago, mais conhecida por seu nome do que pelo conteúdo do que efetiva- mente fez. Mas, quero abordar este tema como uma pequena história den- tro de uma história mais ampla da so- ciologia. Geralmente conta-se a histó- ria da sociologia como a história das grandes idéias sobre a sociedade e das grandes teorias a respeito da socieda- de. Quando estudei esse assunto, ainda na universidade, meu professor, Louis Wirth, começava por Heráclito e Tucí- dides, ou seja, pelos antigos gregos. Outros, mais modestos, começavam por Maquiavel ou mesmo Khaldun. No en- tanto, esse é um tipo de apropriação do passado que não tem muito a ver com a realidade. Poderíamos apenas dizer, desse ponto de vista, que a história da sociologia, como história das idéias e teorias, começou, talvez, em algum momento do século XIX. Nomes como os de Durkheim, Marx, Weber e outros são, de fato, nomes do século XX e do final do XIX. Há, contudo, pelo menos duas ou- tras histórias da sociologia que preci- sam ser contadas, o que deve ocorrer simultaneamente com a história das idéias. Uma delas é a história da práti- ca da sociologia, dos métodos de pes- quisa e das pesquisas realizadas, por- que não se deve tomar como óbvio que as idéias foram as forças motrizes ou a principal realização de qualquer escola sociológica. De um determinado ponto de vista, que defendo com firmeza, a história da sociologia não é a história da grande teoria, mas a dos grandes traba- lhos de pesquisa, dos grandes estudos sobre a sociedade. A terceira história da sociologia é a das instituições e or- ganizações, dos locais onde o trabalho sociológico foi realizado, porque ne- nhuma idéia existe por si mesma, em um vácuo; as idéias só existem porque são levadas adiante por pessoas que trabalham em organizações que perpe- tuam essas idéias e as mantêm vivas. Começarei pela história das organi- zações. A Universidade de Chicago foi fundada em 1895 a partir de uma gran- de doação feita por John D. Rockefel- CONFERÊNCIA A ESCOLA DE CHICAGO Howard Becker* MANA 2(2):177-188, 1996 Em 24 de abril de 1990, durante sua última visita ao Brasil, Howard Becker pronunciou, no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (Museu Nacional, UFRJ), uma conferência sobre a história da Escola de Chicago de sociologia. Tendo permanecido inédita, é esta conferência que Mana tem o prazer de publicar agora. Howard Becker é professor de Sociologia da Universidade de Washington, Seattle, EUA, e autor de extensa e influente obra. Dentre seus inúmeros livros destacam-se: Outsiders: Studies in the Sociology of Deviance (1973) e Art Worlds (1982). Em português, foram publicados: Uma Teoria da Ação Coletiva (1977) e Métodos de Pesquisa em Ciências Sociais (1993).

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Falarei hoje a respeito da Escola deChicago, mais conhecida por seu nomedo que pelo conteúdo do que efetiva-mente fez. Mas, quero abordar estetema como uma pequena história den-tro de uma história mais ampla da so-ciologia. Geralmente conta-se a histó-ria da sociologia como a história dasgrandes idéias sobre a sociedade e dasgrandes teorias a respeito da socieda-de. Quando estudei esse assunto, aindana universidade, meu professor, LouisWirth, começava por Heráclito e Tucí-dides, ou seja, pelos antigos gregos.Outros, mais modestos, começavam porMaquiavel ou mesmo Khaldun. No en-tanto, esse é um tipo de apropriação do

passado que não tem muito a ver com arealidade. Poderíamos apenas dizer,desse ponto de vista, que a história dasociologia, como história das idéias eteorias, começou, talvez, em algummomento do século XIX. Nomes comoos de Durkheim, Marx, Weber e outrossão, de fato, nomes do século XX e dofinal do XIX.

Há, contudo, pelo menos duas ou-tras histórias da sociologia que preci-sam ser contadas, o que deve ocorrersimultaneamente com a história dasidéias. Uma delas é a história da práti-ca da sociologia, dos métodos de pes-quisa e das pesquisas realizadas, por-que não se deve tomar como óbvio queas idéias foram as forças motrizes ou aprincipal realização de qualquer escolasociológica. De um determinado pontode vista, que defendo com firmeza, ahistória da sociologia não é a história dagrande teoria, mas a dos grandes traba-lhos de pesquisa, dos grandes estudossobre a sociedade. A terceira históriada sociologia é a das instituições e or-ganizações, dos locais onde o trabalhosociológico foi realizado, porque ne-nhuma idéia existe por si mesma, emum vácuo; as idéias só existem porquesão levadas adiante por pessoas quetrabalham em organizações que perpe-tuam essas idéias e as mantêm vivas.

Começarei pela história das organi-zações. A Universidade de Chicago foifundada em 1895 a partir de uma gran-de doação feita por John D. Rockefel-

CONFERÊNCIA

A ESCOLA DE CHICAGO

Howard Becker*

MANA 2(2):177-188, 1996

Em 24 de abril de 1990, durante sua última visita ao Brasil, Howard Becker pronunciou, no Programa de Pós-Graduaçãoem Antropologia Social (Museu Nacional,UFRJ), uma conferência sobre a história da Escola de Chicago de sociologia. Tendopermanecido inédita, é esta conferência que Mana tem o prazer de publicar agora.Howard Becker é professor de Sociologia da Universidade de Washington, Seattle,EUA, e autor de extensa e influente obra.Dentre seus inúmeros livros destacam-se:Outsiders: Studies in the Sociology ofDeviance (1973) e Art Worlds (1982). Emportuguês, foram publicados: Uma Teoria da Ação Coletiva (1977) e Métodos de Pesquisa em Ciências Sociais (1993).

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ler, o milionário americano que fez for-tuna na indústria do petróleo ao fundara Standard Oil. Ele devia ter a cons-ciência pesada e em determinado mo-mento da vida quis fazer alguma coisacom seu dinheiro. Uma das coisas quefez foi beneficiar a Universidade deChicago com uma enorme doação. AUniversidade começou com um peque-no número de professores. Um deles,Albion Small, havia sido diretor de umapequena faculdade do estado do Mai-ne. Small foi o primeiro professor desociologia e chefe do primeiro Departa-mento de Sociologia dos Estados Uni-dos. Outras pessoas já haviam dado au-las sobre esse assunto, principalmenteWilliam Graham Sumner, cujo livroFolkways é comparável aos grandesclássicos de nossas disciplinas. Smallcriou um Departamento de Sociologiacom a intenção de formar alunos se-gundo o modelo alemão, produzindodoutores e criando um grupo de profes-sores que saísse pelos Estados Unidosensinando essa ciência. Ele não só fun-dou o primeiro departamento como aprimeira revista de sociologia dos Esta-dos Unidos, a American Journal ofSociology – que começou a ser editadalogo no início do século e existe atéhoje, sendo publicada seis vezes porano. A American Journal of Sociology éuma das duas ou três maiores revistasdos Estados Unidos, provavelmente domundo, na publicação de idéias e pes-quisas sociológicas.

Small, como muitos dos primeirossociólogos americanos, era pastor pro-testante, do tipo interessado na reformasocial, voltado para o equacionamentodos problemas sociais que afligiam asgrandes cidades americanas. Seu pen-samento, assim como o de outras pes-soas que trabalhavam com ele, e o deestudantes que foram para Chicago –muitos deles pastores de uma ou outra

confissão protestante –, foi muito in-fluenciado pela idéia que tinham doque precisava ser feito, dos problemascom os quais a sociedade se defronta-va, do que teria de ser enfrentado. Osgrandes desafios dos Estados Unidosnaquela época eram a pobreza – aindahoje o principal deles – e a imigração –até o presente considerada um grandeproblema. Havia, ainda, outros que setornaram menos relevantes. Toda aquestão da eugenia, por exemplo: im-pedir pessoas física e mentalmente in-capacitadas de se reproduzirem. Esteera um assunto relevante naquele tem-po, ainda que atualmente só escutemosfalar um pouco sobre isso na ciência dasociobiologia, se é que esta pode serconsiderada uma ciência.

Small reuniu ao seu redor um gru-po de pessoas e elas começaram não sóa ensinar sociologia como a editar aAmerican Journal of Sociology e a fazerpesquisa – quase sempre na cidade deChicago. Ao produzir a revista, eles tor-naram acessível ao público americanouma boa parte da literatura sociológicaeuropéia, principalmente da França eda Alemanha. Assim, as obras de GeorgSimmel foram traduzidas antes de 1900– muitos dos seus ensaios, especialmen-te sobre a importância do número navida social e na transmissão da cultura,sobre o problema do segredo e outrosforam traduzidos e vários deles publi-cados na American Journal of Socio-logy. Presumo que eles tenham tido di-ficuldades para encontrar um númerosuficiente de artigos de sociólogos ame-ricanos e, por isso, fizeram traduções.

Uma das primeiras pessoas a in-gressar no corpo de professores do De-partamento de Sociologia da Universi-dade de Chicago foi William I. Thomas.Mesmo que um aluno não saiba maisnada sobre Thomas, ele provavelmenteconhece a frase que o tornou famoso:

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“se um homem define uma situaçãocomo real, ela se torna real em suasconseqüências”. Esta foi sua primeiraelaboração do conceito de “definiçãode situação” como elemento crucialpara a compreensão da sociedade e daação social. Thomas, Small e outros de-ram início a um programa de pesquisas.Estudaram as comunidades de imigran-tes e a pobreza – principalmente Tho-mas, que sempre imagino como umhomem muito vigoroso, corpulento edinâmico. Ao lado do polonês FlorianZnaniecki, Thomas iniciou uma pesqui-sa que veio a se tornar um dos primei-ros grandes trabalhos de campo publi-cados: The Polish Peasant in Europeand America reuniu um grande núme-ro de entrevistas e histórias de vida depessoas que viviam na Polônia e dasque haviam emigrado para os EstadosUnidos. Foi publicado em cinco gran-des volumes que, suponho, algumaspessoas leram. Confesso que nunca osli, ainda que tenha lido outros trabalhosseus.

O Departamento cresceu sob a dire-ção de Thomas e tornou-se muito im-portante, tendo gerado diversos depar-tamentos. Alunos de Chicago foram pa-ra outras universidades americanas,onde instalaram departamentos desociologia. Em um curto espaço de tem-po, essas unidades também estavamformando doutores na disciplina: aColumbia University, sob a direção deFranklin Giddings, e, logo depois, LosAngeles, Seattle, Washington e algunsoutros centros passaram a desenvolverprogramas de pesquisa e ensino parasociólogos. Assim, em pouco tempo pro-fissionais dessa área começaram a ocu-par o país. Pois bem, o que é que elesfaziam e o que caracterizava seu traba-lho?

Quanto a isso, eu gostaria de fazerduas distinções. A primeira é sobre o

que se costuma dizer a respeito da Es-cola de Chicago. A palavra escola geramuita confusão, porque é possível dis-tinguir pelos menos dois tipos de esco-la. Recorro aqui ao trabalho de umestudante da Northwestern University,Samuel Guillemard, que estudou os com-positores contemporâneos e fez essadistinção. De um lado, temos as chama-das escolas de pensamento e, de outro,as escolas de atividade. Uma escola depensamento, na terminologia de Guil-lemard, consiste em um grupo de pes-soas que têm em comum o fato de queoutras pessoas consideram seu pensa-mento semelhante; é possível que nun-ca tenham se encontrado, mas o quecaracteriza uma escola de pensamentoé que alguém, geralmente muitos anosmais tarde, decide que essas pessoasestavam fazendo a mesma coisa, pen-sando da mesma maneira, que suasidéias eram semelhantes. É muito co-mum na história das idéias definir esco-las de pensamento dessa maneira, fre-qüentemente em relação às circunstân-cias históricas em que esse pensamen-to se formou. Uma escola de atividade,por outro lado, consiste em um grupode pessoas que trabalham em conjunto,não sendo necessário que os membrosda escola de atividade compartilhem amesma teoria; eles apenas têm de estardispostos a trabalhar juntos. Certasidéias vigentes na Universidade de Chi-cago eram compartilhadas pela maioriadas pessoas, mas não por todas; certa-mente não era preciso que todos con-cordassem com essas idéias para se en-gajarem nas atividades que realizavam.

Gostaria agora de introduzir outroimportante personagem, Robert E. Park,que era uma pessoa muito interessante.Ele e Thomas foram, sem dúvida, osmembros mais influentes e autorizadosdo grupo que organizou as atividadesdo Departamento e as manteve de pé.

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Park nasceu em Omaha, Nebraska, nocentro dos Estados Unidos e fazia partede uma família de ricos comerciantes.Estudou, se não me engano, na Har-vard University e depois foi para Hei-delberg, onde estudou com Simmel.Logo nos primeiros anos deste século,voltou de Heidelberg com um doutora-do cuja tese era um ensaio sobre asmassas e o público como formas dife-rentes de organizar a sociedade de lar-ga escala. De volta a Harvard, lecionoufilosofia durante alguns anos. Todavia,Park parece não ter gostado muito davida acadêmica, ingressando, então, nojornalismo. Primeiro foi repórter, depoiseditor de vários jornais americanos,chegando a ser editor chefe do FreePress de Detroit, o mais influente jornalda cidade. Trabalhou durante anos nes-sa profissão, tornando-se, posterior-mente, ghost writer dos mais famososlíderes negros da época, como BookerT. Washington, famoso educador. Parkescreveu ensaios e livros para Was-hington, inclusive seu livro mais conhe-cido, The Man Farthest Down. Mais tar-de, foi secretário executivo da Organi-zação para a Libertação do Congo Bel-ga. Ele teve, pois, uma vida muito ativae movimentada. Escreveu e publicoualguns ensaios com seu próprio nome,não em revistas de ciências sociais, masnaquelas de opinião que tratavam dequestões sociais. Foi desse modo quechamou a atenção de Thomas, que, aoconhecê-lo, sugeriu que ele talvez seinteressasse em ensinar sociologia naUniversidade de Chicago e lhe ofere-ceu um cargo por um ano. Há uma his-tória engraçada sobre Park: ele era umhomem rico, como já disse, mas se ves-tia muito mal quando chegou a Chica-go. Usava um terno velho e Thomasachou que ele não tinha a aparênciaadequada para um professor. Assim,Thomas levou Park até a cidade e com-

prou-lhe dois ternos. Park costumavacontar essa história como uma piada,dizendo que nunca contou a Thomasque bem poderia ter comprado os ter-nos com seu próprio dinheiro!

Ao chegar a Chicago, Park mos-trou-se uma pessoa muito dinâmica, or-ganizando quase toda a Universidade,pelo menos na área de ciências sociais.Parecia que ele vinha pensando háanos no tipo de trabalho que precisavaser feito. Logo em seus primeiros tem-pos em Chicago, Park escreveu um en-saio sobre a cidade, encarando-a comoum laboratório para a investigação davida social. Ele tinha uma idéia centralsobre a história do mundo naquela épo-ca, sobre o que estava ocorrendo, idéiaque resumiu ao dizer: “hoje, o mundointeiro ou vive na cidade ou está a ca-minho da cidade; então, se estudarmosas cidades, poderemos compreender oque se passa no mundo”. Assim, Parkorganizou seus alunos para esse em-preendimento. O ensaio que resultoudesse trabalho é muito interessante:consiste em uma série de tópicos, qua-se todos constituídos de perguntas cu-jas respostas se desejava conhecer eque só podiam ser encontradas pormeio da pesquisa empírica. Cada umadessas questões poderia, por si mesma,servir de base para toda uma subáreade pesquisa sociológica – aliás, muitasse tornaram exatamente isso. Por exem-plo, uma delas, que muito me impres-sionou, observava que “na cidade, to-dos os tipos de trabalho tendem a setornar uma profissão, quer dizer, a serextremamente organizados, a incluirposições socialmente definidas, a terregras de conduta que regulam o traba-lho nessa ocupação”. Park cita especi-ficamente a mendicância como umaforma de trabalho muito organizadanas cidades, resumindo sua posição aosustentar que “é muito importante e in-

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teressante conhecer a maneira comotodos os trabalhos são organizados nacidade segundo esse modelo”. É claroque, em certo sentido, isso se relacionacom o pensamento de Durkheim expos-to em Da Divisão do Trabalho Social, ePark tinha consciência dessa ligação.

Sob a orientação de Park, duas outrês gerações de cientistas sociais seformaram e iniciaram sua vida profis-sional. Ele não teve influência apenassobre a sociologia: os historiadores, porexemplo, começaram a estudar a histó-ria de Chicago; os cientistas políticos,as organizações políticas da cidade e anatureza da máquina política local –um importante estudo sobre os políticosnegros em Chicago foi elaborado; oseconomistas voltaram sua atenção paraa economia da cidade. Quando Parkchegou, o Departamento era de socio-logia e antropologia, de modo que mui-tos antropólogos de sua geração rece-beram sua influência, particularmenteRobert Redfield, conhecido por seu tra-balho sobre a cultura folk e as socieda-des camponesas. De certa forma, o tra-balho de Redfield derivou diretamenteda maneira como Park entendia a rela-ção entre a cidade e o campo.

Há uma longa lista de pessoas queestudaram com Park e participaramdesse trabalho de pesquisa, e eu gosta-ria de mencionar algumas delas. Nessaépoca, eles adicionaram à infra-estru-tura institucional da sociologia a Uni-versity of Chicago Press, uma editoraque, sob a direção de Park, publicouuma série de estudos na área. Muitosdos ensaios mais interessantes de Parkforam publicados como introduções aoslivros da série e vários desses livroseram dissertações dos alunos. Destaco,em primeiro lugar, um nome que estoucerto ser bem conhecido aqui, o deDonald Pierson, que estudou as rela-ções raciais no Brasil a partir, penso, da

leitura do ensaio de Park sobre o ho-mem marginal. Pierson veio para o Bra-sil, escreveu um livro muito conhecidoe ficou muitos anos orientando pesqui-sas em São Paulo.

Acredito ser correto afirmar que ca-da aluno de Park absorveu uma de suasidéias e levou-a adiante. O pensamen-to de Park sobre as relações sociais foidesenvolvido por autores como Piersone Wirth, que também se interessou mui-to pela teoria do urbanismo e pelo es-tudo das sociedades urbanas. Um dostemas considerados mais importantesnaquele tempo era o da delinqüênciajuvenil, que afetava especialmente osfilhos dos grupos de imigrantes de Chi-cago, que não eram criados da maneiraque a população dominante da cidadeconsiderava apropriada. Muitos delespraticavam pequenos delitos e isso eratido como um grande problema. A ques-tão era considerada, em parte, comoum problema de reforma: o que vamosfazer com essas crianças? De outro lado,era tida como um problema de teoriasociológica. Dizia-se que, se concordar-mos que a sociedade é criada por pes-soas socializadas e treinadas nas ativi-dades que a farão se mover – esse co-nhecido processo circular –, então o fra-casso da sociedade em socializar ade-quadamente muitas crianças pode serum presságio de terríveis problemasque ocorrerão, assim como um índicedaqueles que já existem. Alguns alu-nos de Park, como Frederic Thrascher,puseram-se a estudar essa questão.Thrascher escreveu um livro intituladoThe Gang, que traz um subtítulo encan-tador: A Study of 1,313 Gangs. Não seicomo ele conseguiu contar todas essasgangues!

Dois outros alunos de Park, CliffordShaw e Henry MacKay, iniciaram umasérie de pesquisas de grande portesobre a delinqüência juvenil, cujos tra-

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ços centrais eu gostaria de ressaltar.Uma das características do pensamentode Park – e isso se aplica à Escola deChicago como um todo – era não serpuramente qualitativo ou quantitativo.Park era muito eclético em termos demétodo. Se achasse que era possívelmensurar alguma coisa, ótimo, se não ofosse, ótimo também. Havia ainda ou-tras maneiras de fazer essas pesquisas.Em certo momento, ele defendeu aidéia de que o espaço físico espelhavao espaço social, de modo que se se pu-desse medir a distância física entrepopulações, se saberia algo sobre a dis-tância social entre elas. É uma metáfo-ra interessante, que levou ao desenvol-vimento de uma área chamada ecolo-gia, não no sentido que usamos hoje, depreservação do meio ambiente, mas anoção de ecologia na forma usada pelabiologia vegetal daquela época, e quese referia à competição pelo espaço.Em outras palavras, os biólogos, queestudavam a biologia no mundo e nãoem laboratório, estavam muito interes-sados na concepção darwinista da ma-neira como diferentes tipos de animaise plantas ocupavam o território, o espa-ço físico. Park considerou que essaidéia podia ser uma excelente metáforae mandou seus alunos estudarem omodo como distintos grupos se locali-zavam na cidade de Chicago. Naquelaépoca, um aspecto típico das pesquisasera a confecção de mapas, onde se si-tuavam os diferentes tipos de popula-ção, grupos étnicos, raças, espécies deatividades: em que lugar da cidade, porexemplo, se concentravam as ativida-des criminosas? Como explicar essefato?

A partir dessas questões, Park ela-borou noções como a de região moral,a área da cidade onde uma populaçãose separava das demais. Uma caracte-rística do desenvolvimento das cidades

americanas – creio que as cidades sul-americanas são muito diferentes nessesentido – sempre foi a ocupação suces-siva de determinadas áreas por diferen-tes grupos étnicos, de modo que aquelaparte da cidade se torna ponto de atra-ção dos grupos étnicos de imigraçãomais recente. Em uma cidade comoChicago, isso significa que, primeirovieram os imigrantes irlandeses, depoisos suecos, os alemães e os judeus daEuropa Oriental. Cada um desses gru-pos, em épocas distintas, sofria a in-fluência dos acontecimentos em suaterra natal. Houve um certo afluxo deimigração alemã por volta de 1848,quando se agravou a repressão na Rús-sia – foi aí que chegou uma grande levade imigrantes judeus; depois foram ositalianos, os poloneses etc. E era possí-vel acompanhar essa seqüência pormeio dos dados censitários, demons-trando como as características de umadeterminada área da cidade mudavamde ano para ano, ou a cada dez anos.Outra pesquisa muito importante foirealizada por Robert Farisson e WarrenDanum, que estudaram a incidência ea localização da doença mental na cida-de. A pesquisa mostrou que havia umgrande número de doentes mentais emdeterminadas áreas da cidade, emboraa população dessas áreas se alterassede modo significativo.

Outra estratégia de pesquisa, aindaque no contexto de estudos quantitati-vos, era qualitativa. Muitos alunos dePark passavam um bom tempo fazendopesquisas de natureza quase antropo-lógica em áreas da cidade, abordandocertos fenômenos da mesma. Um doslivros mais famosos nessa linha, aindahoje publicado e lido, chama-se TheGold Coast and the Slum, que analisauma área próxima ao centro de Chica-go onde ficavam as casas mais ricas ealguns dos piores casebres de toda a ci-

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dade. Harvey Zorbaugh pesquisou essaárea. Aliás, não tenho nenhuma dúvidade que um dos resultados de todo essemovimento é que Chicago passou a sera cidade mais pesquisada do mundo eprovavelmente o será sempre. Por umbom tempo, estudar sociologia nosEstados Unidos era estudar a cidade deChicago. C. Wright Mills, por exemplo,quando estudante universitário nosanos 30, freqüentou a Universidade doTexas, em Austin. Sua família era deuma pequena cidade texana chamadaWaco. Ele nunca tinha saído do Texas eseu biógrafo, Irving Horowitz, procurouinvestigar os cursos que Mills freqüen-tou e os livros que leu para esses cur-sos, descobrindo que o conhecimentode sociologia de Mills – porque seu pro-fessor tinha sido aluno de Park – con-sistia quase inteiramente em estudossobre Chicago. Foi isso que ele estudoue era isso que todo mundo estudavaquando cursava sociologia na época.

Outra vertente explorada em Chi-cago foi a de psicologia social. O filóso-fo George Herbert Mead foi aqui muitoinfluente. Mead era um filósofo, não umsociólogo, e um de seus interesses era arelação entre a mente, o self e a socie-dade, o que, aliás, é o título de seu livromais conhecido. É preciso alertar a to-dos que desejam ler esse livro que eleé praticamente ilegível. Foi todo mon-tado a partir de aulas proferidas porMead porque seus alunos chegaram àconclusão de que ele jamais escreveriao livro. Alguém anotava o que ele diziae foi desse modo que o livro foi prepa-rado. Lê-lo é mais ou menos como lerum daqueles livros repletos de anota-ções e comentários feitos por outraspessoas. O aluno mais importante deMead, que também tinha estudado comPark, foi Herbert Blumer, da mesma ge-ração de Redfield, Wirth e outros. Blu-mer era um homem forte, jogador pro-

fissional de futebol. Era também umapessoa muito formal, de modo que eraengraçado vê-lo numa segunda-feira,depois de um domingo de futebol, che-gar de terno e gravata, cheio de espa-radrapos por todos os lados, e dar umaaula formalíssima sobre psicologia so-cial. Blumer é um autor de quem é maiscorreto se dizer que se tratava de umteórico. Embora tenha feito umas pou-cas pesquisas empíricas – por exemplo,sobre a influência do cinema nas crian-ças e na moda, tendo ido a Paris paraestudar a indústria da moda –, jamaisescreveu muita coisa sobre isso. Blu-mer, que tinha um evidente interesseem assuntos empíricos, na verdade, sóescreveu sobre temas teóricos. Aliás,ele também esteve no Brasil, se não meengano no final dos anos 30, tendo per-manecido aqui por cerca de um ano.Não sei bem o que fez, mas conheço oresultado de sua permanência porquemuitas pessoas foram para os EstadosUnidos estudar com ele. Seu livro foipublicado postumamente em 1988.

Essa geração de cientistas sociais,que incluía Wirth, Redfield, Blumere outros, incluía igualmente EverettHughes, meu professor. Também filhode um pastor protestante, Hughes cos-tumava dizer que esse fato tinha sidomuito importante em seu desenvolvi-mento pessoal, pois ser filho de pastorem uma pequena cidade do Centro-Oeste americano, de certo modo o afas-tava das outras crianças, principalmen-te porque seus pais se mudavam muito,já que o pastor cuidava de muitas igre-jas. Por se tratar de um homem comconvicções mais liberais que a maioriada população das cidades onde se ins-talava, as pessoas vinham fazer confi-dências ao pastor e as crianças ouviamo que se dizia; daí se davam conta deque nem tudo é como aparece à super-fície. Hughes foi para a Universidade

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de Chicago e desenvolveu as concep-ções de Park a respeito das profissões.Sua primeira pesquisa tratou do depar-tamento de terras da cidade, onde serealizavam as transações de compra evenda de terras.

Passo agora a discorrer sobre a his-tória da nova geração da Escola de Chi-cago. Hughes foi para o Canadá, ondejá se encontrava um ex-aluno de Park,Carl Garson, na McGill University. Nes-sa época, quando os alunos termina-vam seus estudos e procuravam empre-go, um dos principais professores, comoPark ou Burgess, pegava o telefone, li-gava para algum lugar e dizia: “nós te-mos aqui um jovem sociólogo muitobom; acho que vocês deviam contratá-lo”, e ele era contratado. É por isso quesustento que a Universidade de Chica-go era, de longe, a instituição mais im-portante da época, na área de sociolo-gia, nos Estados Unidos. Quer dizer, eraa instituição número um, e a númerodois ficava muito atrás. Vocês podemimaginar como essa situação causavaressentimentos nos outros programas,que também formavam doutores, demodo que isso só durou até o final daSegunda Guerra Mundial. Hughes foipara o Canadá e, de certo modo, fez oque Park tinha feito. Em pouquíssimotempo, elaborou um esquema de pes-quisas sobre o Canadá francês que ain-da está sendo desenvolvido. Até hoje,as pessoas executam as pesquisas queHughes achava que deveriam ser fei-tas: estudos sobre a distribuição dapopulação, estudos de comunidade, es-tudos sobre várias profissões, sobre aorganização política e econômica doCanadá francês etc. Ele mesmo escre-veu um importante livro – a meu ver,um estudo de comunidade clássico –,intitulado French Canada and Transi-tion. Publicado em 1943, ainda está àvenda e é muito lido – muitos dos meus

alunos o leram. Esse pequeno livro tra-ta de um grande número de temas, en-tre os quais a estrutura econômica e adistribuição ocupacional dos francesese ingleses nos diversos tipos de empre-go no Québec; além disso, estuda a ci-dade que Hughes denominou Carton-ville, uma pequena cidade em vias deindustrialização. O livro é também umdos grandes trabalhos sobre o processode industrialização, sobre o que acon-tece quando se instala uma grande fá-brica bem no meio de uma antiga co-munidade tradicional, uma espécie depequeno centro regional, que tem seuspróprios líderes etc., e que passa a teruma fábrica atraindo as pessoas do cam-po para trabalhar na cidade, em que osgerentes franceses deslocam a elite fran-cesa da cidadezinha e tudo o mais. É umestudo notável! Trata das conseqüên-cias políticas desses fatos, dos movi-mentos políticos no Québec e de comoestes são alimentados por esse tipo deprogresso; trata da religião, do papel daIgreja Católica na província e nas cida-des desse tipo, e trata de muito mais.

No final dos anos 30, muito tempodepois da saída de Thomas da Univer-sidade, em 1919, Park se aposentou,aliás de modo muito curioso. Eu já tinhadito a vocês que Park era um homemmuito dinâmico. Certo dia, os cidadãosde Chicago abriram o jornal e se depa-raram com a notícia de que um profes-sor da Universidade de Chicago tinhasido preso com uma prostituta. Parkestava fazendo uma pesquisa com jo-vens prostitutas, moças que viajavampelas estradas ou iam de cidade em ci-dade, onde quer que houvesse um acam-pamento de soldados para exercer oofício da prostituição. Park estava en-trevistando uma dessas moças dentrode um quarto de hotel quando a políciao descobriu. Ele já tinha arrumado ou-tros problemas e então a Universidade

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achou conveniente pedir que se apo-sentasse. Essa história, porém, tem umfinal feliz, porque Park era muito criati-vo: inventou um novo tipo de bola degolfe que todo mundo adotou, fazendocom que ele ganhasse muito dinheiro.Não tenho provas concretas dessa his-tória, mas Everett Hughes a contou pa-ra mim com grande convicção, e sem-pre acreditei nela. Periodicamente,Park aparecia na Universidade de Chi-cago; não ia ao campus, mas ficava pe-las redondezas, e as pessoas faziam se-minários secretos com ele. Park apo-sentou-se e se transferiu para a FiskUniversity em Nashville, que era umauniversidade para negros, tendo aí per-manecido por muitos anos.

Como eu dizia, a nova geração dealunos de Park constituiu o corpo do-cente do Departamento de Sociologiada Universidade de Chicago: Hughes,Blumer, Wirth e Redfield, que estava naantropologia, além de outros. Depois daSegunda Guerra, eles formaram umaoutra geração. Mas Chicago não erauma instituição totalmente fechada: oDepartamento trouxe pessoas de fora,entre elas William Ogburn, conhecidopor seu livro sobre mudança social.Ogburn era um homem muito alto, umsulista muito sério, um gentleman. Ti-nha uma fé quase religiosa na ciência ena ciência quantitativa. Por isso, é sur-preendente saber que ele foi o primeiropresidente do Instituto Psicanalítico deChicago.

Falarei agora das minhas impres-sões acerca da vida intelectual na Uni-versidade de Chicago naquele tempo.Quando cheguei à Universidade, de-pois da Segunda Guerra Mundial, olugar tinha mudado muito desde a últi-ma geração de estudantes. Um dos as-pectos dessa transformação é que apósa guerra homens que tinham estado noExército puderam freqüentar a Univer-

sidade, uma vez que o governo pagavaseus estudos e sua manutenção. Muitaspessoas de classe baixa, que nuncateriam conseguido entrar em uma uni-versidade, ingressaram e concluíram agraduação. Muita gente passou a fre-qüentar o college ou a graduação na-quele momento. Quando entrei para oDepartamento de Sociologia, como alu-no de graduação, havia muitos estu-dantes, uns duzentos alunos. Imaginemsó, apenas dez professores e duzentosalunos! A conseqüência disso foi muitoboa: embora influenciados pelos pro-fessores, acabávamos ensinando unsaos outros. Na minha geração, muitagente se tornou famosa. O mais conhe-cido de todos vocês – assim imaginopois isso acontece em muitos outroslugares no mundo – é Erving Goffman,que veio do Canadá em virtude, indire-tamente, dos contatos de Hughes. Ou-tro que integrava o corpo docente naépoca, na antropologia e na sociologiaao mesmo tempo, era o antropólogo W.Lloyd Warner, que se formara em antro-pologia em Harvard e realizara umapesquisa etnológica clássica sobre umgrupo de aborígines, os Murngin, quedeu origem a um importante estudosobre parentesco. De volta aos EstadosUnidos, em vez de prosseguir nessamesma linha de trabalho, Warner dedi-cou-se a pesquisar, de uma perspectivaantropológica, as sociedades modernas.Escolheu uma pequena cidade perto deBoston, chamada Newburyport, e, jun-to com um grupo grande de alunos,estudou-a durante alguns anos. Nadécada de 50, havia um romance muitopopular, de um escritor norte-america-no chamado John Marquand, cujo títu-lo era Point of No Return. Neste roman-ce, Marquand, que nasceu em New-buryport, fala de um antropólogo quechegou para estudar a cidade. O antro-pólogo é retratado de maneira muito

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crítica porque se, de um lado, Mar-quand parece admirá-lo, por outro,detesta sua visão científica, distancia-da, da cidade. O trabalho de Warnerresultou em uma obra intitulada Yan-kee City, na verdade uma série queteve cinco ou seis volumes publicados.Outros pesquisadores que trabalhavamcom Warner realizaram estudos decomunidade em Natchez, no Mississipi,uma comunidade muito antiga, conser-vadora, reacionária, onde as relaçõesentre negros e brancos eram as pioresde todo o país. A pesquisa foi publica-da com o título de Deep South. Outrosalunos de Warner estudaram a comuni-dade negra de Chicago, principalmen-te St. Clair Drake e Horace Cayton, queescreveram um livro intitulado BlackMetropolis. A influência desses estudosfoi expressiva.

Embora muitos de nós, alunos deHughes, Blumer, Warner, pensássemosque não tínhamos nada a ver com aspessoas de nossa geração que faziamsociologia quantitativa em Chicago,mais tarde, depois que saímos da Uni-versidade, demo-nos conta de que éra-mos mais parecidos com eles do quecom os outros que tinham ido paraColumbia, Michigan ou Harvard. Achá-vamos que, de alguma maneira, éramosdiferentes. Vejamos, então, em poucaspalavras, o que me parece ser esse nos-so modo de pensar. A noção de intera-ção simbólica pode dar conta do quequero dizer, exceto pelo fato de que aexpressão tem muitos significados dife-rentes, uma série de nuanças que po-dem enganar. Uma das idéias certa-mente predominantes referia-se à opo-sição a noções como as de organizaçãosocial e estrutura social, muito comunsno pensamento dos egressos de Har-vard ou Columbia, entre os alunos deRobert Merton, Talcott Parsons, bemcomo no pensamento de certos antro-

pólogos ingleses, que usavam a metá-fora da estrutura social de modo exces-sivamente reificado. Penso que paranós, ao contrário, uma das idéias maisimportantes era a de que a organizaçãosocial consiste apenas em pessoas quefazem as mesmas coisas juntas, de ma-neira muito semelhante, durante muitotempo. Ou seja, para nós a unidade bá-sica de estudo era a interação social,pessoas que se reúnem para fazer coi-sas em comum – exemplificando comum tema antropológico, para constituiruma família, para criar um sistema deparentesco. Disso decorre que um sis-tema de parentesco é formado pelasações de pessoas que fazem as coisasque se supõe que parentes devam fa-zer, e que, enquanto o fizerem, teremosum sistema de parentesco. Quando nãoo fizerem mais, o sistema de parentes-co se torna outra coisa. Portanto, o quenos interessava eram os modos de inte-ração, especialmente as interações re-petitivas das pessoas, modos estes quepermanecem os mesmos dia após dia,semana após semana. Às vezes, essesmodos de agir se alteram substancial-mente, devido a uma revolução oudesastre natural, mas, outras vezes, amudança se dá muito lentamente, àmedida que as circunstâncias se modi-ficam.

Nós éramos muito mais ecléticos emrelação a métodos do que as pessoasque conhecíamos e que estavam emoutras instituições. Assim, achávamosque era preciso fazer entrevistas, cole-tar dados estatísticos, ir atrás de dadoshistóricos. Não havia nada demais nis-so, tudo isso me parece puro bom sen-so, mas muitas pessoas tinham umaespécie de apego religioso a métodosde pesquisa. Entendíamos também, de-vido à circunstância da maior parte daspesquisas ter sido realizada em Chica-go, que era fundamental compreender

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o contexto em que se davam os fatosestudados. Porque quando fizemos nos-sas pesquisas de doutorado, era naturalque as fizéssemos em Chicago, e assimjá dispúnhamos de uma enorme quan-tidade de informações reunidas e publi-cadas sobre a cidade. Um exemplo mui-to simples e muito engraçado: durantemuito tempo, a cada dez anos após arealização de recenseamentos, o De-partamento de Sociologia publicava oque se chamava de Local CommunityFact Book. Neste livro, que cobria todasas comunidades da cidade de Chicagoconforme definidas pelo censo, cadacomunidade recebia duas páginas deinformações básicas extraídas das esta-tísticas censitárias, incluindo temas co-mo delinqüência juvenil, criminalida-de, estatísticas sanitárias, tudo o que sepodia saber a respeito de uma determi-nada área. De modo que quando se es-tudava uma área em particular, bastavapegar o livro e, com dados dos últimosquarenta anos, dispor de uma visão his-tórica e estatística de tudo o que se pas-sara naquela região. Também consta-vam informações sobre etnicidade. Eraum recurso fantástico, mas nunca meocorreu que essa informação não exis-tisse para todas as cidades, apenas paraChicago. Assim, quando me mudeipara São Francisco para fazer pesqui-sas e quis começar um trabalho, per-guntei, candidamente, onde estava o“community fact book” de São Francis-co: “não temos esse livro aqui, só emChicago”, me responderam. Bem, nãose tratava apenas dos dados estatísticosdas comunidades, era todo um enormearsenal de dados de pesquisa quepodia servir de base para conferir umadimensão histórica ao nosso trabalho.

Mais recentemente, esse fato gerouuma conseqüência muito interessante.Um jovem pesquisador interessado emsociologia industrial, Michael Burawoy,

foi estudar uma fábrica em Chicago.Encontrou a fábrica, começou a estudá-la, a entrevistar pessoas e arranjou umemprego. Algumas coisas nessa fábricalhe pareciam muito familiares, ele sen-tia que conhecia a disposição física dascoisas na fábrica, como se estivesse ten-do uma espécie de experiência mística.Como podia ser isso? Foi então que sedeu conta que alguns anos antes lera atese de um aluno de Hughes da décadade 40, Donald Roy, que havia escritoum importante trabalho sobre a redu-ção da produção em fábricas, sobrecomo os operários colaboravam a fimde obter controle sobre o sistema deincentivos praticado pelos empresários.Burawoy procurou a tese de Roy e per-cebeu que a fábrica era a mesma queele estava estudando, quarenta anosdepois. Ele então procurou Roy, quenão havia revelado o nome da fábrica,e perguntou: “a fábrica que você estu-dou tinha tais e tais características?“Mas é claro!”, respondeu Roy. Dessemodo, Burawoy teve uma excelenteoportunidade de dar uma dimensãohistórica ao seu trabalho, com informa-ções que eram efetivamente de cunhosociológico porque a parte históricafora realizada por um sociólogo, o quelhe permitiu obter uma visão compara-tiva de dois momentos no tempo.

Outro fato importante é que, termi-nada a Segunda Guerra Mundial, a Es-cola de Chicago, de certo modo, deixouChicago; o próprio Departamento vol-tou-se, como instituição, para uma pers-pectiva mais ligada ao survey e à pes-quisa quantitativa, tornando-se menosaberto a estudos com abordagem antro-pológica. No entanto, autores comoGoffman, eu mesmo, Eliot Freidson evários dos alunos de Hughes, Warner eBlumer saímos para outros centros nopaís e começamos a ensinar. De modoque em determinado momento as pes-

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soas começaram a dizer: não, a Escolade Chicago não está em Chicago, masna Califórnia; ou então, ela está emChicago, mas não na Universidade deChicago e sim na Northwestern Univer-sity, do outro lado da cidade. Nesse sen-tido, a Escola tornou-se uma espécie deperspectiva ou opinião global, e eu nãosei muito bem se seria honroso chamaressa perspectiva de teoria, ou se seria

Nota

* Ao revisar a transcrição de sua conferência, Howard Becker sugeriu, embenefício do leitor interessado, a menção de dois textos que tratam do tema aquiabordado: Herbert Blumer, Industrialization as an Agent of Social Change: A Cri-tical Analysis (edição e introdução de David R. Maines e Thomas J. Morrione),New York, A. de Gruyter, 1990; e Jean-Michel Chapoulie, “Everett Hughes andthe Chicago Tradition”, Sociological Theory, 14(1):3-29, 1996.

embaraçoso considerá-la assim, porquena verdade ela é um modo de pensar,uma maneira de abordar problemas depesquisa que estão muito vivos e pre-sentes em boa parte do trabalho feitohoje em dia.

Gostaria de terminar com um últi-mo comentário: antropologicamente fa-lando, descrevi minha linhagem naseguinte ordem: Simmel, Park, Hughes,Becker. Muito obrigado.

Tradução: Vera Pereira

Revisão do autor