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Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro
Contratação Direta na Administração Pública por Dispensa Emergencial de Licitação:
requisitos e limites
Paulo Fraiz Maudonnet
Rio de Janeiro
2015
PAULO FRAIZ MAUDONNET
Contratação Direta na Administração Pública por Dispensa Emergencial de Licitação:
requisitos e limites
Artigo científico apresentado como exigência de
conclusão de Curso de Pós-Graduação Lato Sensu
da Escola da Magistratura do Estado do Rio de
Janeiro em Direito Administrativo.
Professor Orientador:
Rafael Iório
Rio de Janeiro
2015
2
CONTRATAÇÃO DIRETA NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA POR DISPENSA
EMERGENCIAL DE LICITAÇÃO: REQUISITOS E LIMITES
Paulo Fraiz Maudonnet
Graduado pela Universidade Candido Mendes.
Ex-Assessor Jurídico na Secretaria de Estado
de Saúde e Defesa Civil do Rio de Janeiro. Ex-
Assessor Jurídico na Secretaria de Estado de
Fazenda do Rio de Janeiro. Ex-Assessor-
Jurídico Chefe na Fundação Saúde do Estado
do Rio de Janeiro. Analista Processual da
Procuradoria Geral do Estado do Rio de
Janeiro. Advogado.
Resumo: O trabalho proposto enfoca a hipótese de dispensa emergencial de licitação, prevista
no art. 24, IV, da Lei n. 8.666/93, buscando analisar os requisitos e limites necessários para
que a Administração Pública utilize legitimamente dessa autorização excepcional.
Palavras-chave: Direito Administrativo. Licitação. Dispensa. Emergência.
Sumário: Introdução. 1. Disciplina constitucional e legislativa da licitação. 2. A licitação
como regra. 3. Exceções ao dever de licitar: contratação direta. 3.1. Licitação inexigível. 3.2.
Licitação dispensada. 3.3. Licitação vedada. 3.4. Licitação dispensável. 4. A dispensa
emergencial de licitação – Art. 24, IV, da Lei n. 8.666/93. 5. Requisitos e limites da dispensa
emergencial de licitação. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
A Constituição da República Brasileira de 1988 estabelece como regra, em seu art.
37, XXI, o dever de a Administração Pública promover processo de licitação para a
contratação de obras, serviços, compras e alienações, ressalvados os casos específicos na
legislação.
Regulamentando o referido dispositivo, foi editada em 1993 a Lei n. 8.666/93, que
instituiu normas gerais para licitações e contratos na Administração Pública, dispondo sobre
as regras e as exceções acerca do dever de licitar.
3
Dentre as exceções ao dever de licitar, chama atenção e merece destaque a chamada
dispensa emergencial de licitação, de que trata o art. 24, IV, da Lei n. 8.666/93.
De acordo com o dispositivo legal em questão, é dispensável a licitação nos casos de
emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de
situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras,
serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para os bens
necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras
e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias
consecutivos e ininterruptos, contados da ocorrência da emergência ou calamidade, vedada a
prorrogação dos respectivos contratos.
Tal hipótese de contratação direta suscita polêmicas e acende discussões doutrinárias
e jurisprudenciais, notadamente no que tange à identificação dos limites e condições a que
deve se ater a Administração Pública para que possa dispensar de forma legítima a
instauração de licitação com fundamento no mencionado dispositivo legal.
O presente trabalho pretende analisar a norma do art. 24, IV da Lei Geral de
Licitações e compreender, a partir de pesquisa doutrinária e jurisprudencial, quais os
requisitos e limites que permitem à Administração Pública, em cada caso, prescindir do
processo licitatório e, afastando-se da regra imposta pela Constituição da República, celebrar
contrato sem prévia licitação em situações emergenciais com fulcro na referida norma.
Busca-se, ainda, verificar se o administrador público está adstrito apenas aos
requisitos estabelecidos no art. 24, IV da Lei nº. 8.666/93 ou se a tais requisitos somam-se
também exigências previstas em outras normas, bem como conhecer quais as principais
orientações da doutrina, da jurisprudência e dos órgãos de controle, investigando-se, em
última análise, os limites da discricionariedade do administrador público ao realizar a
contração direta por dispensa emergencial de licitação à luz das regras e princípios incidentes.
4
Em síntese, o objetivo deste trabalho consiste em refletir criticamente sobre quais são
os requisitos e limites que a jurisprudência, a doutrina e os órgãos de controle têm
identificado para a contração direta por dispensa emergencial de licitação a partir da
interpretação da norma insculpida no art. 24, IV, da Lei Geral de Licitações e Contratos e de
outras pertinentes.
A pesquisa que se pretende realizar seguirá a metodologia bibliográfica, de natureza
descritiva – qualitativa e parcialmente exploratória.
1. DISCIPLINA CONSTITUCIONAL E LEGISLATIVA DA LICITAÇÃO NO
BRASIL
No Brasil, o instituto da licitação é objeto de normatização desde o Império, época
em que foi assinado pelo ministro Manoel Felizardo de Souza e Mello e rubricado pelo
imperador Dom Pedro II o Decreto n. 2.926/1862, que aprovou o regulamento para as
arrematações dos serviços a cargo do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas.
Posteriormente, já na República, foi sancionado por Epitácio Pessoa, após aprovação
pelo Congresso Nacional, o Decreto n. 4.536/22, que organizava o Código de Contabilidade
da União e estabelecia a assinatura de contrato e realização de concorrência como condições
para o empenho da despesa pública.
Na época do regime autoritário da ditadura militar, o Presidente Castello Branco
baixou o Decreto-Lei n. 200/67 – que dispunha sobre a organização da Administração Federal
e estabelecia diretrizes para a Reforma Administrativa –, o qual instituiu a concorrência, a
tomada de preços e o convite como procedimentos prévios à contratação de serviços e à
compra de bens pela Administração Pública.
5
Já em 1986, no período de redemocratização, o Presidente José Sarney editou o
Decreto-Lei nº 2.300/86, que dispunha sobre licitações e contratos da Administração Federal,
acrescentando no ordenamento jurídico às modalidades previstas no Decreto-Lei n. 200/67 as
modalidades concurso e leilão.
A Constituição de 1988 trouxe, então, pela primeira vez na história constitucional
brasileira, a menção expressa ao dever de licitar, estatuindo, através do art. 37, XXI, o
seguinte:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União,
dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de
legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao
seguinte:
(...)
XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e
alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure
igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam
obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da
lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica
indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.
Além disso, a Constituição da República estabeleceu, no art. 22, XXVII1, ser de
competência privativa da União legislar sobre normas gerais de licitação e contratação, em
todas as modalidades, para a administração pública, direta e indireta, incluídas as fundações
instituídas e mantidas pelo Poder Público, nas diversas esferas de governo, e empresas sob seu
controle.
1 Com a promulgação da emenda constitucional nº 19, de 04 de junho de 1998, o inciso XXVII do artigo 22
passou a vigorar com a seguinte redação: “normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades,
para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e
Municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades de economia mista,
nos termos do art. 173, § 1°, III”.
6
A referida legislação, prevista no dispositivo constitucional em questão,
consubstancia-se, principalmente, na Lei n. 8.666/93, verdadeira lei geral na matéria2, que
institui normas para licitações e contratos da Administração Pública.
2. A LICITAÇÃO COMO REGRA
O Estado – organização juspolítica criada pela sociedade para desempenhar funções
em prol da coletividade, visando, em última análise, ao atingimento do bem comum – é um
dos maiores adquirentes de bens e serviços, celebrando diuturnamente, em cada uma de suas
esferas, inúmeros contratos com fornecedores privados para que possa satisfazer os diversos
interesses públicos a serem concretizados.
Justamente pelo fato de ser responsável pela gestão de interesses da coletividade, o
Estado não tem disponibilidade sobre eles3. Assim, como o dinheiro a ser despendido com a
contratação é público, não pode a Administração, submetida que está ao regime de direito
público, escolher, a seu bel-prazer, as empresas a serem por ela contratadas. Por esse motivo,
deve ser dada a mesma oportunidade a todos que sejam capazes de executar satisfatoriamente
o contrato pretendido4.
2 Digna de nota é a observação de Alexandre Santos de Aragão, que chama a atenção para o fato de que, apesar
de a Constituição ter atribuído competência para a União editar normas gerais, o fez no artigo 22 (competências
privativas da União), e não no artigo 24 (competências concorrentes entre a União – responsável pelas normas
gerais das matérias nele numeradas – e Estados, competentes para as normas específicas). Segundo o autor, não
se trata de má técnica do Constituinte, pois o que se quis foi possibilitar a todos os entes federativos editarem
normas específicas, já que, se a competência estivesse no artigo 24, apenas os Estados poderiam editá-las,
aplicando inclusive aos Municípios integrantes do seu território. Com a competência para editar normas gerais
da União estando prevista no artigo 22, fica sem referência constitucional a competência para editar normas
específicas na matéria. Nessa situação, de acordo com o autor, decorrendo da autonomia administrativa dos entes
federativos, exsurge a competência de todos os entes federativos (especialmente os Municípios) para editarem as
suas próprias normas específicas de licitações e contratos, desde que atendidas as normas gerais editadas pela
União. ARAGÃO, Alexandre Santos. Curso de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 285. 3 Como aponta Celso Antônio Bandeira de Mello, “na administração os bens e os interesses não se acham
entregues à livre disposição da vontade do administrador. Antes, para este, coloca-se a obrigação, o dever de
curá-los nos termos da finalidade a que estão adstritos”. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de
Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 46.
7
É possível afirmar, portanto, que os fundamentos mais substanciais da regra da
licitação são o da igualdade (impessoalidade) de todos perante a Administração Pública e o da
indisponibilidade do interesse público.
A própria Constituição da República de 1988, incorporando esses valores, consagra a
regra da licitação, estabelecendo no artigo 37, XXI5 que, ressalvados os casos específicos na
legislação, a Administração Pública está obrigada a formalizar processo licitatório que
assegure igualdade de condições a todos os licitantes.
Obviamente, esses não são os únicos valores dos quais a obrigatoriedade de licitação
decorre, podendo ser citados, ainda, a economicidade e a moralidade, uma vez que a abertura
de oportunidades aos interessados aptos propiciará, em tese, maior segurança para que a
Administração selecione a melhor proposta do mercado.
De todo modo, cumpre notar que, como a licitação surgiu justamente pelo fato de
que o agente público não tem liberdade de escolher, sem a adoção dos critérios definidos em
lei, com quais fornecedores a Administração vai celebrar contrato, as situações que excluem o
dever de licitar surgem do reconhecimento de que a licitação, em certas situações, significaria
– efetiva ou potencialmente – verdadeiro prejuízo ao interesse almejado pela Administração
Pública.
Indubitavelmente, trata-se de um dever apenas relativo, pois a promoção da licitação
não é imposta em toda e qualquer situação, conforme revela a própria Constituição, que já no
início da norma do inciso XXI do artigo 37 estabelece uma ressalva.
A razão de ser de tal ressalva é o reconhecimento de que há situações em que há
impossibilidade fática de competição ou até mesmo de que, em certos casos, a licitação deve
5 Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e
eficiência e, também, ao seguinte: [...] XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços,
compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de
condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as
condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica
e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.
8
ser excepcionada em virtude da ponderação de outros princípios constitucionalmente
consagrados, aos quais deve-se ceder lugar.
Note-se que, embora a Constituição tenha acolhido a presunção de que a prévia
licitação gera, em tese, a melhor contratação – entendida como aquela que assegura a maior
vantagem possível à Administração Pública –, o próprio Constituinte parece não ter perdido
de vista que a licitação não deve ser considerada como um fim em si mesmo, mas sim como
um meio de se chegar a um resultado específico, voltado ao atingimento de uma finalidade
pública.
3. EXCEÇÕES AO DEVER DE LICITAR: CONTRATAÇÃO DIRETA
Conforme já assinalado, a Constituição de 1988 introduziu, definitivamente, a
questão das licitações em sede constitucional. No art. 37, XXI, estabeleceu expressamente, em
contraponto à regra da licitação, a ressalva para determinadas situações, a serem especificados
em lei federal, consoante disposto no art. 22, XXVII.
A Lei n. 8.666/93, no uso da competência que a Constituição lhe conferiu, previu,
segundo Hely Lopes Meirelles6, exceções de quatro ordens: licitação dispensada (pela própria
lei); licitação dispensável (a lei faculta à autoridade administrativa dispensar a licitação);
licitação inexigível (em hipóteses em que não há possibilidade de competição) e licitação
vedada (quando houvesse possibilidade de comprometer-se a segurança nacional).
Traçam-se, a seguir, breves apontamentos sobre cada uma dessas hipóteses de
contratação direta, antes de se adentrar na análise específica da licitação dispensável nas
situações de emergência e calamidade, objeto da norma do art. 24, IV, da Lei n. 8.666/93.
6 MEIRELLES apud SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direito Administrativo Contratual. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2004, p. 91.
9
3.1 LICITAÇÃO INEXIGÍVEL
A inexigibilidade da licitação ocorre nos casos em que a competição é inviável em
razão da inexistência de concorrentes ou da impossibilidade de serem comparados itens
heterogêneos7. Não havendo a viabilidade de se instaurar procedimento competitivo, já que o
bem singular não pode ser oferecido por mais de uma pessoa, não tem sentido a licitação.
Interessante notar que, diferentemente do que ocorre nos casos de licitação
dispensada (pela lei) e de licitação dispensável (pela autoridade competente, com previsão na
lei), as hipóteses de inexigibilidade de licitação não se encontram taxativa e exaustivamente
previstas na Lei n. 8.666/93. O art. 25 do Estatuto constitui enunciação exemplificativa, como
se infere da expressão “em especial”8.
3.2 LICITAÇÃO DISPENSADA
Os casos de licitação dispensada são aqueles relacionados com a dação em
pagamento, doação e permuta de bens. Nessas hipóteses, previstas no art. 17 da Lei Geral de
Licitações e Contratos, como o destinatário é certo, não há razão para se instaurar o processo
licitatório, pelo que a própria lei encarregou-se de dispensá-lo.
7 Como bem exemplifica Marcos Juruena Vilella Souto, “não se compara uma letra de música de Tom Jobim
com uma de Vinicius de Moraes, ou um parecer de Celso Ribeiro Bastos com um de Celso Antonio Bandeira de
Mello” (Ibid., p. 127). 8 Art. 25. É inexigível a licitação quando houver inviabilidade de competição, em especial: I - para aquisição de
materiais, equipamentos, ou gêneros que só possam ser fornecidos por produtor, empresa ou representante
comercial exclusivo, vedada a preferência de marca, devendo a comprovação de exclusividade ser feita através
de atestado fornecido pelo órgão de registro do comércio do local em que se realizaria a licitação ou a obra ou o
serviço, pelo Sindicato, Federação ou Confederação Patronal, ou, ainda, pelas entidades equivalentes; II - para a
contratação de serviços técnicos enumerados no art. 13 desta Lei, de natureza singular, com profissionais ou
empresas de notória especialização, vedada a inexigibilidade para serviços de publicidade e divulgação; III - para
contratação de profissional de qualquer setor artístico, diretamente ou através de empresário exclusivo, desde
que consagrado pela crítica especializada ou pela opinião pública.
10
Cumpre registrar que, apesar de alguns autores sustentarem que a diferença entre
licitação dispensável e licitação dispensada decorre de mera má redação – pois o legislador
não poderia ter imposto ao administrador a não realização da licitação quando a mesma
poderia, em tese, ser realizada – grande parte da doutrina9 entende que, nos casos de licitação
dispensável, a lei, por uma série de razões (dentre as quais, situação emergencial, por
exemplo), permite que o administrador público realize ou não a licitação, conforme seu juízo
de conveniência.
Já nos casos de licitação dispensada, apesar de semelhantes aos de licitação
dispensável – pois, faticamente, a licitação seria possível – o legislador se antecipa à
discricionariedade que seria da Administração Pública e, ele próprio, a exerce para já
preestabelecer a inconveniência da licitação, vedando-a.
Nesse sentido, anota NIEBUHR10
:
É solar a diferença de sentido entre algo que se declara dispensado e outro que se
declara dispensável. Dispensada significa que a licitação pública já foi efetivamente
afastada pelo legislador, em virtude do que a competência do agente administrativo
é vinculada, cabendo-lhe, diante de uma das figuras contratuais enunciadas, apenas
reconhecer a dispensa. A discricionariedade do agente administrativo, nesses casos,
resume-se na avaliação da oportunidade e conveniência de realizar uma das espécies
de contrato qualificadas, efetivamente, como de licitação dispensada. Realizado esse
juízo, tendo-se decidido a respeito da celebração de tais contratos, a dispensa se
impõe.
3.3 LICITAÇÃO VEDADA
Parcela da doutrina11
entende que, como hipótese de licitação dispensável, incluiu o
legislador um caso de licitação vedada. Trata-se da norma prevista no inciso IX do art. 24 da
Lei n. 8.666/93, que se refere às situações em que “houver possibilidade de comprometimento
9 Por todos, ARAGÃO, op. cit., p. 296-297.
10 NIEUHR, Joel de Menezes. Dispensa e inexigibilidade de licitação pública. 3. ed. Belo Horizonte: Forum,
2011. 11
Por todos, SOUTO, op. cit. p. 110-111.
11
da segurança nacional, nos casos estabelecidos em decreto do Presidente da República,
ouvido o Conselho de Defesa Nacional”.
Embora inserida no rol do art. 24 – que trata de licitação dispensável – e não
empregando a lei o termo “vedada”, essa hipótese é assim considerada por parte da doutrina
justamente por se referir a casos em que a publicidade, inerente à licitação, pudesse
comprometer a segurança nacional.
De todo modo, parece-nos que a nomenclatura utilizada nesse caso é de menor
relevância, haja vista estar a norma inserida no rol de hipóteses de dispensa de licitação, sendo
certo que deverão ser adotados os procedimentos estabelecidos na lei para esses casos12
.
3.4 LICITAÇÃO DISPENSÁVEL
Para não emperrar a Administração Pública, cuidou-se de quebrar a rigidez do
processo, cabendo à lei eleger hipóteses em que a autoridade administrativa competente
poderia excepcionar a regra da licitação diante do fato concreto, sem desrespeitar os
princípios da isonomia e da moralidade. Tais hipóteses são chamadas de licitação dispensável.
A dispensa é uma exceção ao princípio da obrigatoriedade da licitação, que
pressupõe, contudo, a possibilidade de competição, de sorte que a licitação seria possível, mas
as circunstâncias fáticas e/ou jurídicas justificam que se deixe de efetuá-la em nome de outros
interesses públicos.
Assim, pode-se afirmar que a dispensa consiste na possibilidade legal de a
Administração Pública deixar de proceder à licitação diante de determinadas hipóteses
12
O dispositivo legal em comento foi objeto de regulamentação pela Presidência da República, que editou o
Decreto n. 2.295/97, o qual estabeleceu, no parágrafo único do art. 1º, que “as dispensas de licitação serão
necessariamente justificadas, notadamente quanto ao preço e à escolha do fornecedor ou executante, cabendo sua
ratificação ao titular da pasta ou órgão que tenha prerrogativa de Ministro de Estado”. Tais elementos, por serem
praticamente idênticos àqueles já estabelecidos no parágrafo único do art. 26 da Lei n. 8.666/93, que determina a
observância de determinadas condições para a eficácia dos processos de dispensa e de inexigibilidade de
licitação, permite concluir que a distinção prática entre a licitação dispensável e a chamada licitação vedada é,
senão irrelevante, ao menos mínima em termos práticos.
12
previstas taxativamente na lei, devendo, de todo modo, atender aos requisitos legais
estabelecidos.
O rol elencando as situações nas quais a Administração Pública está autorizada a
efetuar a contratação direta por dispensa de licitação está positivado no art. 24 da Lei n.
8.666/93.
Esse rol, como já dito, é taxativo, isto é, diferentemente do que ocorre nos casos de
inexigibilidade de licitação, em que a lei não esmiuçou todas as situações nas quais é possível
prescindir da instauração do procedimento licitatório – justamente pela circunstância de que,
nesses casos, está-se diante de uma inviabilidade fática de competição –, nos casos de
dispensa o administrador só poderá deixar de licitar quando estiver configurada alguma das
hipóteses previstas no art. 24 da Lei Geral de Licitações e Contratos.
4. A DISPENSA EMERGENCIAL DE LICITAÇÃO – ART. 24, IV, DA LEI N.
8.666/93
A Lei n. 8.666/93 estabelece, em seu art. 24, IV, o seguinte:
Art. 24. É dispensável a licitação:
(...)
IV - nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada
urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a
segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou
particulares, e somente para os bens necessários ao atendimento da situação
emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser
concluídas no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias consecutivos e
ininterruptos, contados da ocorrência da emergência ou calamidade, vedada a
prorrogação dos respectivos contratos.
Trata-se da hipótese de licitação dispensável chamada pela doutrina de dispensa
emergencial de licitação (ou dispensa por urgência).
13
Como se verifica, a norma em questão comporta elementos subjetivos e de
significativa amplitude hermenêutica – que permitem certo grau de interpretação e valoração13
– e elementos objetivos, para os quais, em tese, não existe espaço para elasticidades
interpretativas14
.
Passa-se, então, à análise desses elementos inseridos na norma sob exame, buscando-
se verificar de que modo a doutrina, a jurisprudência e os órgãos de controle têm interpretado
os limites e requisitos abarcados no art. 24, IV, da Lei nº. 8.666/93.
5. REQUISITOS E LIMITES DA DISPENSA EMERGENCIAL DE LICITAÇÃO
O primeiro dos elementos a ser identificado diz respeito à caracterização de situação
emergencial ou de calamidade.
Definir se determinada situação é emergencial ou calamitosa para fins de contração
direta com fundamento no art. 24, IV é tarefa abrigada no espaço de discricionariedade que
detém o gestor público. Exatamente por isso, deverá fazê-lo com cautela e boa dose de
razoabilidade, para que não se desvirtue do objetivo da norma, que é justamente garantir o
direito à vida e a incolumidade das pessoas, bem como proteger o patrimônio público e o
privado em situações catastróficas, emergenciais e calamitosas.
Ressalte-se que, por força do parágrafo único do art. 26 da Lei n. 8.666/93, o
processo de dispensa emergencial de licitação deverá ser, necessariamente, instruído com os
seguintes elementos: caracterização da situação emergencial ou calamitosa que justifique a
13
Exemplos disso são conceitos abertos e indetermináveis, como “emergência” e “calamidade pública” e da
expressão “somente para os bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa”. Afinal,
como se caracterizar uma situação de emergência ou de calamidade? Como valorar quais os bens estritamente
necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa? 14
É o caso do estabelecimento do prazo máximo de cento e oitenta dias consecutivos e ininterruptos, contados da
ocorrência da emergência ou calamidade (embora nem sempre seja tão simples definir precisamente o momento
em que se inicia a situação de emergência ou calamidade) e o da vedação da prorrogação dos respectivos
contratos.
14
dispensa, quando for o caso; razão da escolha do fornecedor ou executante; justificativa de
preço e documento de aprovação dos projetos de pesquisa aos quais os bens serão alocados.
Há de se reconhecer, contudo, que, embora as normas do art. 24, IV e do art. 26 da
Lei n. 8.666/93 se apliquem de forma idêntica a qualquer situação considerada emergencial
pela Administração Pública, existem diferentes graus de urgência e emergência.
Determinados acontecimentos não deixam qualquer dúvida quanto ao seu caráter
emergencial, suficientes para permitir a contratação direta com fulcro no art. 24, IV, da Lei n.
8.666/93. Como exemplo concreto, citam-se os desastres naturais ocorridos na região serrana
do Estado do Rio de Janeiro no ano de 2011, ocasião em que dez municípios foram castigados
pela força das chuvas e decretaram estado de calamidade.
Por outro lado, há situações que, embora não se possa negar que demandam urgência
de atendimento, sob pela de ocasionarem prejuízo e poderem comprometer a segurança de
pessoas e bens, têm grau muito menor de urgência. Seria o caso, por exemplo, de existirem
elevadores quebrados em um prédio onde se situe determinada repartição pública.
É fácil perceber que, embora ambas as situações descritas possam ser enquadradas
pelo gestor público como emergenciais, a primeira delas reclama soluções muito mais céleres
e urgentes. Nesse caso, a catástrofe já ocorreu, de modo que o prejuízo à segurança das
pessoas e dos bens já está caracterizado.
Apesar disso, os órgãos de controle, não raro, têm responsabilizado os gestores pelo
não cumprimento das formalidades legais mesmo nas situações de extrema calamidade.
O Tribunal de Contas da União, por meio do Acórdão nº 1.264/2011, alertou ao
Estado do Rio de Janeiro e a outros sete municípios afetados pela já mencionada catástrofe
ocorrida na região serrana em 2011 acerca de diversas providências que deveriam ter sido
tomadas quando das contratações emergenciais levadas a cabo naquela ocasião. Dentre elas,
destacam-se as seguintes: os pagamentos realizados à conta dos recursos federais repassados
15
com o objetivo de atender às situações emergenciais na Região Serrana devem estar em
consonância com o preceituado na legislação que rege o tema, precipuamente as Leis n.
8.666/93 e 4.320/64, fazendo-se necessária a adequação dos procedimentos inicialmente
adotados em caráter emergencial aos preceitos legais estabelecidos; razão circunstanciada da
escolha do fornecedor ou executantes, nas situações de dispensa de licitação; justificativa dos
preços contratados e necessidade de formalização de contrato, observada a vedação da
existência de contrato verbal.
Sabe-se que tais providências são decorrentes da legislação vigente e, portanto, a
rigor, devem ser cumpridas. No entanto, a crítica que uma parcela da doutrina costuma fazer
em tais situações é no sentido de que, diante de situações dessa magnitude, uma interpretação
meramente literal da legislação, desvinculada do princípio da instrumentalidade dos
procedimentos das contratações públicas e dos valores traçados pela Constituição da
República levaria a consequências jurídicas inaceitáveis, tais como o descumprimento do
dever de socorro à vida, que seria imputável ao gestor público e às sociedades empresárias
capazes de iniciar uma execução imediata de obras e serviços, em meio ao caótico estado de
emergência e de calamidade pública defrontado.
Diogo de Figueiredo Moreira Neto e Flavio Amaral Garcia, em artigo publicado na
Revista de Direito Administrativo15
, criticam a postura extremamente rigorosa dos órgãos de
controle em situações como a apontada acima, asseverando que, à luz do princípio da
isonomia, não seria razoável pressupor que as formalidades exigidas no parágrafo único do
art. 26 da Lei n. 8.666/93 sejam cumpridas do mesmo modo e na mesma intensidade em
situações com graus distintos de urgência.
Segundo os mencionados juristas, quanto maior a urgência, mais flexíveis devem ser
as exigências formais, sob pena de se sobrepor a forma à finalidade ou subjugar valores
15
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo; GARGIA, Flavio Amaral. Desastres naturais e as contratações
emergenciais. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 265, p. 149-178, jan/abr. 2014.
16
fundamentais constitucionalmente tutelados à forma prescrita na legislação ordinária para
hipóteses comuns.
Na mesma esteira é a percepção de Marçal Justen Filho, conforme se depreende da
lição transcrita a seguir:
Deve destacar-se que as situações reconduzíveis à hipótese do in. IV não são
idênticas entre si. Em todos os casos, a emergência significará a impossibilidade de
aguardar o decurso do prazo normal da licitação. Mas o risco de consumação de
danos irreparáveis nunca apresentará dimensão temporal idêntica. Em certas
hipóteses, a Administração disporá de alguns dias para promover a contratação. Em
outros casos, a contratação deverá ocorrer no prazo de horas (senão minutos). A
avaliação das formalidades cabíveis para produzir a contratação deverá tomar em
vista essas circunstâncias. Quanto maior a extensão temporal de que dispuser a
Administração, tanto mais extensas e cuidadosas deverão ser as formalidades da
Administração para evitar contratação nociva e assegurar a mais ampla participação
possível de interessados. Isso significa que, dispondo de alguns dias para formalizar
a avença, a Administração deverá obrigatoriamente adotar um procedimento aberto a
todos os possíveis interessados, divulgando pelos meios disponíveis o interesse em
realizar a contratação, inclusive para o fim de obter propostas diversas. Mas se pode
imaginar situação de emergência de tal ordem que todas as formalidades sejam
impossíveis de ser atendidas. Nesses casos, a situação pode beirar à própria figura da
requisição de bens. Imagine-se hipótese de risco de desabamento de uma construção,
que exige imediata intervenção para salvar vidas e bens. Não se poderá exigir que a
Administração produza formalismos que delonguem o início da execução das
providências indispensáveis. A hipótese não pode afastar nem sequer a contratação
verbal, a ser formalizada por escrito posteriormente. A tanto não é obstáculo a
determinação do art. 60, parágrafo único, da Lei de Licitações, eis que nenhum
dispositivo infraconstitucional poderia impedir o cumprimento de deveres de
diligência impostos constitucionalmente à Administração Pública. Entre realizar o
contrato escrito, propiciando a ocorrência de dano irreparável, e evitar o dano
mediante contratação verbal põe-se relação equivalente ao falso dilema entre
cumprir determinações da Lei ou as da Constituição. É evidente que prevalecem as
determinações constitucionais sobre as legais16
.
Interessante é a comparação, feita pelo citado autor, das situações emergenciais de
que cuida o art. 24, IV, da Lei n. 8.666/93 com o instituto da requisição, previsto
expressamente no art. 5º, XXV, da Constituição da República, que dispõe que “no caso de
iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar da propriedade particular,
assegurado ao proprietário indenização ulterior, se houver dano”.
É que, como bem observado por Marçal Justen Filho, foi a própria Constituição da
República que reconheceu que em situações de perigo iminente a forma é instrumental ao
16
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 15. ed. São Paulo:
Dialética, 2012. p. 348
17
atendimento do interesse público. Daí reconhecer-se que, assim como, em atenção ao
princípio da eficiência, na requisição, a ação deve anteceder a formalização, sob pena de não
se atingir o resultado pretendido, nas situações de emergência previstas no art. 24 da Lei n.
8.666/93 (especialmente naquelas de maior gravidade) deve ser aplicado o mesmo raciocínio.
Outra crítica que se faz aos órgãos de controle diz respeito à atuação rígida no que
diz respeito à seleção, pela Administração Pública, da sociedade empresária contratada em
regime emergencial.
Nos casos de grandes catástrofes naturais, nem sempre será possível que a
Administração se submeta a critérios exclusivamente econômicos, tampouco aguardar a coleta
de três propostas válidas para fins de justificativa de preços, como preconiza a jurisprudência.
Sobre tal questão, afirmam Diogo de Figueiredo Moreira Neto e Flavio Amaral
Garcia:
Ao ângulo dos princípios da razoabilidade e da realidade, a contratação emergencial,
nesses casos de calamidade pública, não deve obedecer à lógica procedimental
tradicional, sob pena de afronta aos direitos fundamentais e outros valores
constitucionalmente protegidos.
Outros critérios podem e devem nortear a escolha das sociedades empresárias em
situações de emergência decorrentes de catástrofes naturais e que deveriam ser
explicitados pela legislação apenas como forma de conferir maior segurança jurídica
aos agentes públicos e sociedades empresárias privadas envolvidas nessas situações
drásticas e que reclamam uma imediata e pronta atuação coordenada.
Pode-se cogitar, por exemplo, de contratação de sociedades empresárias que estejam
mais próximas da tragédia e que tenham maior facilidade de disponibilidade de
mobilização de mão de obra e equipamentos para um rápido e eficiente atendimento.
Trata-se de critério racional e ajustado à realidade dos fatos17
.
Na mesma linha é o entendimento de Jorge Ulisses Jacoby Fernandes, conforme se
depreende das palavras abaixo transcritas:
Em outras hipóteses, porém, evidenciada a situação que autoriza a contratação
direta, mostrar-se-á ainda imperioso que sejam explicitadas as razões que levaram a
contratar determinado profissional ou empresa. Assim ocorre, v.g., nas hipóteses III,
IV, V, VI, VII, IX, XII e XVIII do art. 24 e 25 inciso II, em que, mesmo
caracterizada a situação de dispensa ou inexigibilidade de licitação, restará certa
margem de subjetivismo para o administrador escolher quem contratar. É justamente
nessa justificativa que se pode avaliar a correção do procedimento do agente
público, seu discernimento elevado, sua aptidão para gerir interesses públicos. Para
essas justificativas são admissíveis motivos ou razões que, se incluídas em um ato
17
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo; GARGIA, Flavio Amaral, op.cit., p. 168.
18
convocatório, ensejariam sua nulidade. É o caso, por exemplo, da justificativa para
escolha do fornecedor que se faz pela proximidade do mesmo com a comunidade
afetada pela emergência. Enquanto em condições normais não poderia o
administrador pautar-se pela localidade da sede do estabelecimento do contratado
para promover a contratação, ou mesmo incluir essa condição para a habilitação no
processo licitatório, ou decisão, em caso de empate, aqui ela pode ser erigida como
critério para escolha de um entre vários possíveis fornecedores para a contratação
direta, desde que a localização geográfica possa contribuir para a rapidez no
atendimento das pessoas em situação de risco ou minorar-lhes o sofrimento18
.
De fato, é razoável considerar que em hipóteses de catástrofes naturais o critério
exclusivamente econômico na escolha da sociedade empresária a ser contratada não pode ser
sinônimo de proposta mais vantajosa.
No que tange à vedação da prorrogação dos contratos decorrentes de situações
emergenciais, expressamente prevista no art. 24, da Lei n. 8.666/93, cumpre registrar que o
próprio Tribunal de Contas da União vem relativizando a questão19
, admitindo que nem
sempre os riscos estarão afastados após o transcurso de cento e oitenta dias.
Realmente, se são contratados bens necessários para o atendimento de determinada
situação emergencial e essa situação ainda persiste, o interesse público primário demanda que
a execução contratual continue após o prazo legal para que sejam adequadamente tutelados os
bens jurídicos que a contratação sem licitação buscou preservar.
A contratação por emergência deve envolver a ponderação de interesses segundo o
princípio da proporcionalidade. Nessa esteira, Marçal Justen Filho afirma o seguinte:
As limitações impostas às contratações por emergência têm de ser interpretadas em
face do interesse a ser tutelado. Bem por isso, todas as regras do inc. IV são
instrumentais da proteção a interesses buscados pelo Estado. Não possuem fim
próprio e autônomo. Não podem ser aplicadas sem consideração aos fins buscados e
tutelados. Por isso, o próprio limite de 180 dias deve ser interpretado com cautela.
Afigura-se claro que tal dimensionamento pode e deve ser ultrapassado, se essa
alternativa for indispensável a evitar o perecimento do interesse a ser protegido20
.
18
FERNANDES, Jorge Ulisses Jacoby. Contratação direta sem licitação. 7. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p.
644. 19
Nesse sentido, ver Acórdão nº 3238/2010, rel. Min. Benjamin Zymler, publicado no Diário Oficial da União
de 14.10.2010. 20
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, op. cit. p. 345.
19
No âmbito do Estado do Rio de Janeiro, a Procuradoria Geral editou o enunciado
normativo nº 2021
, acerca da contratação emergencial. No que diz respeito ao prazo do
contrato, estabeleceu que o mesmo deve ser dimensionado considerando apenas o tempo
necessário para sanar a situação de urgência, limitado este a cento e oitenta dias. Ressalvou,
porém, que se a situação emergencial persistir ao final do contrato e ante a vedação de
prorrogação, a solução é a nova formalização de nova contratação com base no art. 24, IV, da
Lei nº 8.666/93, desde que, justificadamente, não seja possível realizar uma licitação durante
o período ou adotar as providências necessárias à regularização da contratação.
CONCLUSÃO
O instituto da dispensa emergencial de licitação suscita, além das discussões
apontadas no presente artigo, muitos outros debates no campo da doutrina e da jurisprudência
pátrios, permitindo-se que, assim, o tema ganhe relevância e aprofundamento necessário para
que sejam cada vez mais aprimorados os mecanismos de contratações e do necessário
controle.
Não se pode perder de vista que a contratação emergencial de que cuida o art. 24, IV,
da Lei nº 8.666/93 deve ser considerada sempre como instrumental à concretização de direitos
21
Eis o texto do enunciado na íntegra: “1. A emergência, a ensejar dispensa de licitação, é um conceito jurídico
indeterminado a ser valorado pelo administrador diante das especificidades do caso concreto, observados, em
especial, os princípios da razoabilidade, moralidade e eficiência. 2. A emergência decorrente da falta de
planejamento, incúria ou desídia do agente público não exclui a incidência do art. 24, inciso IV, da Lei n.°
8.666/93, mas deve ser objeto de rigorosa apuração com vistas à identificação dos responsáveis e aplicação das
sanções cabíveis. 3. A contratação direta (art. 24, inciso IV, da Lei n .° 8.666/93) deve ser efetivada somente
para a aquisição de bens e serviços estritamente necessários ao saneamento da situação emergencial, cabendo à
autoridade administrativa iniciar imediatamente o procedimento licitatório, adotando as providências necessárias
à regularização da contratação. 4. O prazo do contrato emergencial deve ser dimensionado considerando apenas
o tempo necessário para sanar a situação de urgência, limitado este a 180 (cento e oitenta) dias. 5. Se a situação
emergencial persistir ao final do contrato e ante a vedação da prorrogação, a solução é a formalização de nova
contratação com base no art. 24, inciso IV, da Lei n.° 8.666/93, desde que, justificadamente, não seja possível
realizar uma licitação durante o período ou adotar as providências necessárias à regularização da contratação”.
Disponível em http://www.rj.gov.br/web/pge/exibeconteudo?article-id=166770
20
fundamentais e valores assegurados pela Constituição da República e jamais como um fim em
si mesma.
A situação emergencial deve ser valorada, em cada caso, cautelosamente pelo gestor
público e pelos órgãos de controle, sendo certo que os requisitos, limites e formalidades
traçadas nas normas, sobretudo do art. 24, IV e parágrafo único do art. 26 da Lei n. 8.666/93,
hão de ser interpretadas com razoabilidade e proporcionalidade, conferindo-se graus distintos
de exigências formais na medida do grau de urgência de cada situação excepcional.
Assim, quanto maior a urgência, mais flexíveis devem ser as exigências formais, de
sorte que se atinja o verdadeiro fim traçado pela Constituição Federal e pela legislação
ordinária, que se consubstancia, em última análise, na proteção da segurança de pessoas e
bens em casos de emergência ou calamidade pública.
Isso não implica em aceitar o locupletamento ilícito de verbas públicas e a sua
malversação por agentes públicos ou empresas privadas, os quais, quando comprovada a má-
fé devem, evidentemente, ser responsabilizados.
O que se deve buscar é a concretização do interesse público primário, cabendo ao
intérprete identificar os critérios racionais, orientados pelos princípios informadores do
Direito Público, de modo que se evite, na aplicação do direito posto, as interpretações literais
e excessivamente formalistas, que colocam a todos, indistinta e acriticamente, no campo da
ilegalidade e da presumida imoralidade.
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