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175 OS TEMPOS DIFERENCIAIS DA MODERNIDADE EDUCACIONAL: ESBOÇO DE UM ESTUDO COMPARATIVO BRASIL / ARGENTINA Marlos Bessa Mendes da Rocha 1 Resumo Trata-se de confrontar dois contextos históricos, Argentina e Brasil, no processo de constituição da modernidade educacional, assim definida a partir de algumas questões relevantes que a demarcariam. No confronto, percebe-se a antecedência histórica da Argentina de pelo menos meio século em relação ao Brasil, a despeito deste ter antecipado aquela em 3 décadas no que diz respeito à consolidação da unidade nacional. Procurou-se perceber as temporalidades históricas distintas através da configuração ocorrida entre os dois países de alguns temas, tais como: unidade nacional, obrigatoriedade escolar, laicismo, federalismo e papel do Estado na promoção do ensino elementar. O confronto histórico torna-se possível por conta do projeto comum de nação que perpassa os dois países, qual seja de se constituírem como nação moderna, composta por sociedade civil e Estado de direito. O estudo conduz à percepção de uma temporalidade do presente histórico vivido pela educação na sociedade brasileira. Palavras-chave: modernidade educacional, temporalidade histórica Abstract It concerns the confrontation of two historical contexts, Argentina and Brazil in the process of the educational novelty, being defined as such from relevant issues it would abridge. In the confrontation, it has been noticed the Argentine historical precedence of at least half a century in relation to Brazil despite the fact its national unity consolidation is prior to Argentina’s in 3 decades. Distinctive historical temporariness of some issues is being perceived through configuration occurred 1 Prof Associado Departamento de Educação/FACED/UFJF - E-mail: [email protected]

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OS TEMPOS DIFERENCIAIS DA MODERNIDADE EDUCACIONAL: ESBOÇO DE UM ESTUDO COMPARATIVO

BRASIL / ARGENTINA Marlos Bessa Mendes da Rocha1

ResumoTrata-se de confrontar dois contextos históricos, Argentina e Brasil, no processo de constituição da modernidade educacional, assim defi nida a partir de algumas questões relevantes que a demarcariam. No confronto, percebe-se a antecedência histórica da Argentina de pelo menos meio século em relação ao Brasil, a despeito deste ter antecipado aquela em 3 décadas no que diz respeito à consolidação da unidade nacional. Procurou-se perceber as temporalidades históricas distintas através da confi guração ocorrida entre os dois países de alguns temas, tais como: unidade nacional, obrigatoriedade escolar, laicismo, federalismo e papel do Estado na promoção do ensino elementar. O confronto histórico torna-se possível por conta do projeto comum de nação que perpassa os dois países, qual seja de se constituírem como nação moderna, composta por sociedade civil e Estado de direito. O estudo conduz à percepção de uma temporalidade do presente histórico vivido pela educação na sociedade brasileira.Palavras-chave: modernidade educacional, temporalidade histórica

Abstract It concerns the confrontation of two historical contexts, Argentina and Brazil in the process of the educational novelty, being defi ned as such from relevant issues it would abridge. In the confrontation, it has been noticed the Argentine historical precedence of at least half a century in relation to Brazil despite the fact its national unity consolidation is prior to Argentina’s in 3 decades. Distinctive historical temporariness of some issues is being perceived through confi guration occurred

1 Prof Associado Departamento de Educação/FACED/UFJF - E-mail: marlos.bessa@ufj f.edu.br

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between both countries, and the issues are such as: national unity, compulsory schooling, laicism, federalism and the Role of State in promoting elementary teaching. Historical confrontation has been made possible due to a common project of nation passing by both countries, which accounts for the establishment of a modern nation, made up of civil society and democratic state. Th e study leads to a perception of education’s historical present temporariness in Brazilian society.Keywords: educational novelty, historical temporariness

INTRODUÇÃO

Partimos de um suposto histórico avaliativo de que a modernidade educacional brasileira é retardatária em relação a vizinhos próximos como Argentina, Uruguai, Chile. Tal modernidade ocorreu entre nós fundamentalmente a partir da década de 1930, embora se possa admitir que a década anterior é de transição. Falar em modernidade educacional é tratar de um tempo histórico fundado no surgimento de certas questões que demarcariam tal temporalidade. Essas questões seriam: 1) A compreensão do direito dos povos à educação, o que sinalizaria uma transformação do direito público à educação, não mais visto como razão de Estado, mas como direito dos indivíduos; 2) O papel defi nitivo do Estado como propositor, fi nanciador e regulador do sistema de ensino público, especialmente do ensino obrigatório; 3) O surgimento da preocupação pública com a abrangência pela escolaridade de todo o público em certa faixa de idade tomada como de educação obrigatória; 4) Finalmente, a questão da previsão constitucional de aplicação de recursos orçamentários no setor. Tais questões permanecem historicamente em aberto, vale dizer, continuam a reger o tempo presente, e a maior ou menor realização desses fundamentos demarcariam o grau de aprofundamento dessa modernidade educacional. No que diz respeito aos brasileiros quanto à realização da modernidade da educação, estamos correndo atrás dela ainda hoje. Com certeza a Constituição de 1988 e a LDB de 1996 são o que tivemos de mais pleno na conquista daquela modernidade, que se confi gurou inicialmente na Constituição de 1934.

Os critérios dessa modernidade, estabelecidos pelas questões, não são nem abstrações de um tipo ideal que forneça

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o critério comparativo, nem tampouco a efetivação, à moda hegeliana, de um princípio ideal (o conceito) que apontaria para a sua realização. As questões, para além de serem características, são registros de transformação histórica que a análise prévia dos acontecimentos conduziu a nossa compreensão. São, portanto, hipóteses constituidoras do círculo hermenêutico que se fecha, sempre provisoriamente, com a totalização interpretativa.

O trabalho proposto tem a pretensão de esboçar estudo comparativo entre duas nações, Argentina e Brasil, que constituíram o direito à educação dos seus povos em épocas distintas, a primeira antecedendo-nos em torno de meio século, se tomarmos a data de 1884 (lei comum de ensino Nº 1.420) como a referência fundamental para aquele primeiro país. A princípio, é preciso deixar claro a que tipo de comparação estamos nos pretendendo. O exercício da comparação, como defi ne João Barroso, é um “processo de construção daquilo que é comparável” (Souza / Martinez, 2009, p.10). Nesse sentido, a comparação não é simplesmente o confronto de características de duas formações sociais. Trata-se de buscar um terceiro elemento que torne comparáveis os dois primeiros.

Com certeza, ao assim proceder, não estamos buscando atender ao requisito de Marc Bloch de sociedades “vizinhas e contemporâneas” para melhor estabelecer o processo comparativo (Bloch,1983). O suposto da comparação estaria antes no fenômeno político mais profundo de formação dos Estados modernos nos séculos XVIII e XIX em algumas regiões do continente europeu e norte-americano, que servem de referência aos projetos de nação constituídos nesses dois países objetos da comparação, ao invés do contato entre os povos, como requerido pelo critério de Bloch, ainda que a exemplaridade de um deles exerça infl uência intelectual sobre o outro.

Não obstante o suposto de que ambos países são devedores de matriz política comum, as circunstâncias históricas de formação desses estados nacionais são inteiramente distintas. A nossa busca comparativa procurará encontrar as especifi cidades históricas das escolhas que se fi zeram nos termos das políticas públicas de educação. O critério do confronto serve para desnaturalizar as escolhas predominantes em certo país, além de aumentar as especifi cações de um contexto em contraste com

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outro, conforme destaca Reinhart Bendix na justifi cação do procedimento comparativo (Bendix, 1974).

UNIDADE NACIONAL E POLÍTICA DE EDUCAÇÃO

Na linha do contraste entre as duas nações, vale a pena destacar que se fomos retardatários na constituição do direito à educação no seu sentido moderno, como defi nimos acima, em relação à Argentina, fomos entretanto antecedentes no que diz respeito à formação do Estado nacional. Há consenso em nossa historiografi a de que adentramos a década de 1850 com as questões relativas à unidade nacional basicamente resolvidas. Em contraste, a Argentina somente resolverá essas questões na presidência de Júlio Rocca, em 1880 (Botana / Gallo, 1997). A hipótese que aventamos, entretanto, é a de que a nossa antecedência histórica na formação do Estado nacional não resultou em amadurecimento político institucional que culminasse numa modernidade educacional ainda no dezenove, tempo em que já se colocava no mundo ocidental, bem como em países do nosso entorno, um novo paradigma de compreensão e institucionalização da educação.

Na Argentina passa-se uma outra história. A educação constituiu-se precisamente como um dos elementos relevantes na política de unifi cação nacional, caso se tome a lei 1.420 de educação comum, de 1884, como marco constitutivo dessa modernidade, como acima se disse. Ali se estabeleceu, como se sabe, a educação obrigatória, gratuita e laica na Capital Federal e nos territórios subordinados ao poder federal, o que se estendeu logo depois às províncias. Ao longo da década de 1880, tomou-se uma série de medidas que resultaram em qualifi cação da escola de ensino comum (pública), tais como a qualifi cação dos mestres e da inspetoria escolar, assim como a melhoria dos prédios escolares. A política argentina preocupou-se não apenas com o estabelecimento da obrigatoriedade do ensino elementar, mas também em tornar atrativa a escola comum. O vínculo estreito entre expansão da escolaridade elementar e formação da nacionalidade é uma dimensão que distingue a política Argentina nos primórdios de constituição daquela modernidade (Bertoni, 2009, cap.II). Ora, sequer na República, na última década do dezenove, colocamos nós brasileiros em termos nacionais a questão da obrigatoriedade, relegando-a à competência dos estados; suprimiu-se a gratuidade que provinha da tradição do Império; realizou-se apenas a laicidade,

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porém com caráter bem distinto do caso argentino, como veremos. O que se passou entre nós que nos conduziu por caminhos tão díspares das experiências políticas de época de outros países vizinhos?

Estudos preliminares realizados por nós sobre os decretos-leis do Império, o Couto Ferraz de 1854 e o Leôncio de Carvalho de 1879, bem como sobre os projetos de lei discutidos na Assembleia Geral, especialmente o Paulino de Souza (1870) e o João Alfredo (1874), nos dão algumas diretrizes para essa análise.2 Embora tais decretos e tais projetos de lei sejam quase totalmente restritos ao município da Corte, estendendo-se às demais províncias em muito poucos artigos, eles são entretanto expressivos do andamento da discussão nacional sobre educação. Na compreensão que obtivemos com o estudo do decreto-lei Couto Ferraz, chegamos à conclusão que também ele constituiu um paradigma propositivo por parte do Estado na construção educacional, num contexto histórico em que as questões da unidade nacional encontravam-se equacionadas. A esse período a nossa historiografi a chamou de “pós-Maioridade”. As características dessa primeira grande matriz reguladora da política de educação são a de um Estado fortemente proponente da educação, visto o caráter ativo muito mais pela regulação e fi scalização do que propriamente pelo investimento público, embora este seja também instigado por ministros e políticos em geral comprometidos no entendimento do papel da educação na formação da sociedade civil.3 Ali se estabeleceu pela primeira vez uma sistemática de inspetoria do ensino, bem como uma estruturação funcional da educação, via ordenação

2 Dois trabalhos compõem esses estudos: 1) O decreto Couto Ferraz num contexto de transformação da res-pública, apresentado no V Congresso da SBHE (Aracaju, 2008), em vias de publicação; 2) O ensino elementar no Decreto Leôncio de Carvalho: “visão de mundo” herdada pelo tempo republicano? Revista Brasileira de Educação, V. 15, N. 43, Jan. / Abr. 2010.

3 A nossa interpretação da razão de ser da abundante legislação educacional ao longo do dezenove fundamenta-se na compreensão de que o projeto de nação independente que se forjou esteve pautado pela preocupação da constituição de uma sociedade civil, fundada nos direitos civis estabelecidos em 1824, e numa sociedade política que justifi casse uma política parlamentar. O estabelecimento de direitos civis em 1824, estendidos a todos os cidadãos sem qualquer distinção de cor ou renda, pois apenas os direitos políticos sofriam a última discriminação, trouxe profundas implicações na sociedade brasileira, pois suspendeu a “marca de sangue” das antigas Ordenações Filipinas (1607), não totalmente revogadas pelas reformas de Pombal de 1776. Como revela uma historiografi a contemporânea oitocentista, isso marcou signifi cativamente o desenvolvimento social no Império. Ver a respeito, especialmente: MATTOS, Hebe. Racialização e cidadania no Império do Brasil. Em: Carvalho / Neves (2009)

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de suas instâncias. Deu-se o controle sobre o ensino privado, especialmente pelas exigências de exame de capacidade intelectual dos candidatos a mestres. Defi niu-se a obrigatoriedade escolar, ainda que de forma frouxa, sem estabelecer sequer a faixa de idade. Outro aspecto fundamental para caracterizar essa fase histórica é a atribuição ao Estado da responsabilidade na construção educacional. A educação é obrigatória, porém o princípio somente se aplicará com o aprimoramento da oferta estritamente pública ou com apoio público. Nesse sentido, a obrigatoriedade não é uma dimensão crucial a ser regulamentada, pois a responsabilização da oferta é fundamentalmente estatal.

Ressalte-se também que o argumento predominante nessa fase histórica, justifi cador da ampliação da educação pela população livre, é o de que se trata de formar o cidadão político, capaz de exercer com civilidade e consciência o seu direito participativo. Por mais que a sociedade política seja censitária (formada a partir da renda), e este aspecto é mais decisivo do que a formação educacional (não há qualquer restrição política à participação do analfabeto até então), há a compreensão da comunicação entre a sociedade civil dos homens livres e a sociedade política dos que tem renda, até porque esta não é muito seletiva. Até a reforma eleitoral de 1881, que estabeleceu o voto direto, excluiu os analfabetos e aumentou o padrão de renda para a participação eleitoral, dizia-se que somente os mendigos estavam excluídos do corpo de eleitores (Holanda, 1972, p.180).

Embora sem a mesma pujança política da lei 1.420 da Argentina, de 1884, o decreto Couto Ferraz, trinta anos antes daquela, não deixou de ser a nossa versão de uma política de educação comprometida com a construção de um Estado nacional que então se voltava para a formação da nação. Naturalmente que a nossa interpretação contraria um suposto muito consagrado na historiografi a brasileira que afi rma que a construção da nação é um projeto apenas republicano. Ocorre que esse paradigma sofreu uma erosão ao longo das duas décadas seguintes. As discussões acontecidas no parlamento do Império em torno do projeto de lei João Alfredo, proposto em 1874, já revelava que havia uma nova matriz de compreensão da política de educação nessa outra fase histórica.

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A CORROSÃO DO PARADIGMA EDUCACIONAL BRASILEIRO CONSTITUINTE DA NAÇÃO

A nossa hipótese é a de que há duas dimensões corrosivas do velho paradigma. A primeira é de caráter pragmático, vale dizer, decorrente das difi culdades e dos impasses de implementação da política pública na antiga regulamentação. É visível a incapacidade do Estado em alargar o atendimento do público em idade escolarizável, por maior que fosse o empenho dos Ministros dos Negócios do Império, ao qual estavam vinculados os serviços de educação, dirigidos à Assembleia Geral, destacando a importância do ensino para a nação e procurando transformar os seus projetos de lei em lei, através de votação em plenário, sem no entanto obter sucesso na empreitada. Não é por acaso que também as duas grandes referências de regulamentação do setor na segunda metade do séc. XIX, a Couto Ferraz e a Leôncio de Carvalho, limitam-se a ser decretos-leis, ou seja, nunca foram votados pela Assembleia Geral, limitando a sua efi cácia apenas naquilo que não implicava a verba pública. Ao lado dessa difi culdade, que decorre do descompasso entre o projeto de nação idealizado pelos estadistas do Império e as bases de sustentação social e de representação que deveriam apoiá-los, há ainda as outras difi culdades decorrentes da própria morfologia espacial e demográfi ca do país, de tamanho continental e com rarefação populacional em imensos espaços.4 É esse campo de experiência ou “espaço de experiência”, no dizer de Reinhard Koselleck (Koselleck, 2006), criando difi culdades na implementação das políticas, que constitui o ambiente favorável à redefi nição de concepções.

E aqui ingressamos na segunda dimensão corrosiva do velho paradigma Couto Ferraz: a mudança de concepção de educação. Se no velho paradigma tinha-se nas instituições públicas a atribuição de culpa pela pouca expansão da educação, daí então a pouca ênfase na questão da obrigatoriedade, como acima dissemos, na nova matriz, que começou a se esboçar com o projeto de lei João Alfredo, temos a culpa atribuída à “negligência” de pais, tutores e responsáveis. Somente então a obrigatoriedade da frequência no

4 No que diz respeito ao descompasso entre a elite estatal (ministros de Estado) e a representação parlamentar que entravava a aprovação de políticas de expansão da educação, ver a respeito uma tentativa de teorização em Rocha (2010, p.134).

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ensino elementar assumiu uma dimensão fundamental na política de educação, sendo regulamentada estritamente. A atribuição de culpa à sociedade combina muito bem com o outro aspecto novo que surge nessa pretensão de regulamentação do ensino, qual seja o aparecimento de uma concepção de que não cabe ao Estado o principal esforço pela educação, mas à sociedade. Estimular-se-á a iniciativa privada com ou sem apoio público. Juntam-se as duas pontas: a iniciativa educacional compete fundamentalmente à sociedade e a carência educacional também dela decorre.

Outra dimensão que já aparece no projeto João Alfredo é a preocupação em dar à educação elementar um caráter fi nalístico. A tradição do Império no que diz respeito à educação institucionalizada, estatal ou com apoio do Estado, é a de atender os segmentos populares, mais do que aos fi lhos das classes patriarcais. Com relação a estes, não há preocupação pública, porque se supõe que as famílias terão recurso para atender a educação dos seus fi lhos, seja na própria casa, seja em colégios particulares, de modo geral religiosos. A educação pública torna-se sinônimo de educação para pobres. Não por acaso há na própria legislação a preocupação de garantir meios (roupas, sapatos e material didático) para aqueles segmentos da população que tenham difi culdades de obtê-los para a frequência à escola. João Alfredo preocupar-se-á então em dar formação profi ssional a esta população. O seu projeto de lei é minucioso nessa exigência, estendendo a obrigatoriedade dessa formação até os dezoito anos, inclusive aos trabalhadores empregados até esta faixa de idade, punindo patrões desses trabalhadores que não providenciem escolaridade aos seus funcionários. O ensino elementar, nesta concepção, comunica-se com o ensino profi ssional, constituindo-se aí o germe do que mais tarde será chamado pelos educadores renovadores da década de 1930 de dualismo educacional: educação propedêutica para as elites X educação elementar e profi ssional para a população em geral.

No nosso entendimento o decreto Leôncio de Carvalho de 1879 é a culminância desse processo que começou a se esboçar naquele projeto de lei de 1874. No novo decreto a ênfase já não está no argumento pragmático, como naquele projeto, mas no argumento doutrinário. É nesse sentido que atribuímos a ele o sentido de uma nova “visão de mundo”, utilizando o conceito de

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Wihelm Dilthey.5 É interessante destacar que o processo corrosivo, que levou um quartel de século para se instalar plenamente, parece ser a expressão do esgotamento de um projeto centralizado de Estado vigorante em todo período imperial. A consigna do “ensino livre”, que se tornou ponto doutrinário crucial no último decreto-lei, ali entendido como livre oferta de ensino, é uma resposta política a esse esgotamento. Quem bem percebeu esse sentido foi Roque Spencer de Barros ao atribuir o não surgimento de universidade entre nós no dezenove à desconfi ança que pesava contra a iniciativa pública.6 O esgotamento da centralidade acabou por confundir a esfera pública com a política monárquica.

Voltando a dimensão comparativa, parece-nos que a juventude do Estado unitário argentino em relação ao Estado imperial brasileiro lhe foi favorável para pensar a educação e desenvolver política institucional sintonizada com um tempo em que a educação já se colocava nos modernos estados europeus e na América do Norte como iniciativa pública, especialmente no nível elementar, constituindo-se como um direito da cidadania. Entre nós a interpretação prevalecente dessa modernidade do mundo que nos servia de referência assumiu outros ares, tomando-se a iniciativa privada como o fator impulsionador dos novos tempos. Não faltou quem denunciasse o equívoco. Não apenas Rui Barbosa em seus “Pareceres de 1882-83” o fez, como toda uma escola de pensamento ligada à Escola de Direito de Recife o fez (Carvalho, 1999). Mas esses foram os derrotados naquele contexto.

Nosso entendimento é de que o ideário prevalecente nessa última década do Império trouxe profundas infl uências na política educacional republicana. As discussões sobre educação na constituinte de 1891, como bem esclareceu Carlos Jamil Cury (Cury, 2001), são bem expressivas de uma continuidade valorativa de ênfase na iniciativa da sociedade em detrimento da pública na matéria educacional, assim como da exacerbação, em nome do federalismo, da autonomia dos estados no ensino elementar,

5 Dilthey assim defi ne “visão de mundo”: “Na estrutura da visão de mundo está sempre contida uma relação íntima entre experiência vital e imagem de mundo, uma relação a partir da qual pode ser incessantemente derivado um ideal de vida.” (Das Wesen der Philosophie, apud Heidegger, 2008, p.254). Utilizamos a defi nição de Dilthey sem nos comprometer com a sua epistemologia histórica, apenas para avaliar uma confi guração discursiva e nela buscar perceber de que mundo e de que tempo provém.

6 Ver a respeito: Barros, 1987, parte II, cap. I.

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abdicando-se de fundamentar a obrigatoriedade e a gratuidade, que foram heranças do Império, em grande medida expressando ainda o esgotamento da política da centralidade que vigorou no tempo do império. A vigência dessa matriz foi sufi cientemente forte para deter o impulso publicista na política de educação do início da república, especialmente em São Paulo quando da criação da escola normal e dos primeiros grupos escolares.

A OBRIGATORIEDADE ESCOLAR COMO REGISTRO DE TEMPORALIDADES HISTÓRICAS DISTINTAS

Retomando uma possibilidade de confrontação entre os dois países, assinalemos a questão da obrigatoriedade de frequência escolar no ensino elementar público. Na Argentina, a expansão do ensino elementar colocou-se como exigência de formação da nacionalidade, como se sabe.7 Para além da relevância da educação popular no discurso civilizatório de Domingo Sarmiento e nas implementações institucionais do seu governo (1868-74) e do de Avellaneda, que se seguiu, o país enfrentou na década de 1880 exigências de expansão, qualifi cação e nacionalização do “ensino comum”. A emigração europeia ocorrida em larga escala especialmente nesse período logo se constituiu em ameaça à formação da cidadania nacional. Assim, qualifi car o ensino comum, tornar os prédios escolares higienicamente saudáveis, enfrentar a questão da repetência escolar, a qualidade e acessibilidade do material didático, nacionalizar o conteúdo curricular foram questões que desafi aram aquela geração que estava à frente do Estado. A obrigatoriedade escolar foi uma das questões que se colocou nesse bojo, com a fi nalidade precípua de enfrentar a descrença da população numa instituição (a escola) que ainda não havia se afi rmado socialmente como necessária na consciência popular, além de sofrer as resistências das famílias acostumadas a utilizar os fi lhos, ainda em idade escolar, na sobrevivência familiar. A escola comum tornou-se assim ao longo daquela década uma escola de qualidade e com notória pretensão de abrangência da população em idade escolar (Bertoni, 2007, cap. II).

7 Ver a respeito: Bertoni, Lilia Ana, 2007 ; Botana, Natalio R. / Gallo, Ezequiel, 1997; Tedesco, 2003.

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Ora, nada mais diverso ocorreu entre nós. A obrigatoriedade escolar colocou-se já no Império no âmbito das províncias. Em Minas Gerais, p.ex., ela já está prevista mesmo antes do Ato Adicional de 1834, como na regulamentação mineira de educação de 1833, promovida por Bernardo Pereira de Vasconcelos. Na primeira lei provincial de 1835 a obrigatoriedade vem prevista até com certo rigor, estabelecendo punibilidade aos pais descuidados. No município da Corte, ela está prevista desde o decreto Couto Ferraz (1854), mas com muito mais acento e regulamentação no último decreto, o Leôncio de Carvalho (1879). O que motivava a obrigatoriedade escolar no nível elementar entre nós naquela primeira fase do Império?

A nossa linha interpretativa segue o argumento de que se tratou de razão decorrente da natureza de sociedade civil que aqui se pretendeu instalar. Como afi rma uma historiografi a mais contemporânea, a extensão de uma sociedade civil aos homens livres, sem qualquer outra discriminação, traz fortes consequências no âmbito jurídico e social à nação brasileira, como já nos referimos em nota acima. Entretanto, a relativamente ampla extensão da sociedade civil não a fazia expressiva do espaço da representação política, pois há clara distinção entre cidadania passiva e cidadania ativa. A educação justifi ca-se na formação desta última. E, entre nós, não houve fator histórico que impulsionasse a maior universalização da representação, via educação, como ocorreu na Argentina na penúltima década do dezenove. Se a representação política é restrita, a educação também o será. A preocupação apenas com a ampliação da educação, porém não com a abrangência da população livre, conota uma temporalidade histórica ainda voltada para a compreensão da obrigatoriedade escolar como razão de Estado, vale dizer, como exigência de se constituir como Estado moderno composto por sociedade civil da qual se extrai a sociedade política. A educação, portanto, não é um direito dos cidadãos.

Ao lado dessa dimensão geral decorrente da natureza da sociedade civil que se procurou instalar ao longo do dezenove, há ainda a mudança de matriz de política pública de educação, como é reveladora a alteração ocorrida entre as regulamentações do município da Corte entre os decretos Couto Ferraz e o Leôncio de Carvalho, a que já nos referimos acima. Tal mudança

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signifi cou a alteração dos argumentos nas razões que difi cultavam a ampliação do ensino. Também aí não se buscou a abrangência das populações livres. Apenas passou-se da responsabilização das instituições públicas para a imputação de incúria ao povo que temos. A ampliação da educação passa a se justifi car não mais como razão política de formação do eleitor, mas razão estritamente social: “... a educação, diminuindo consideravelmente o número de indigentes, dos enfermos e dos criminosos, aquilo que o Estado despende com escolas poupa em maior escala com asilos, hospitais e cadeias” (Moacyr, 1937, p.183). O caráter fi nalístico da educação elementar, de formação profi ssional, da mesma forma que no projeto João Alfredo, é acentuado, levando inclusive à formulação de um decreto específi co que antecede o próprio decreto de 1879. Trata-se, portanto, na nova matriz do fi nal do Império, também de uma razão de Estado, pois a educação cumpre a exigência do Estado de fornecer meios assistenciais às camadas pobres da população, recursos de formação profi ssional e formas de deter as ameaças que a situação de miséria do povo possam trazer aos segmentos sociais privilegiados. Cabe destacar que esse tipo de entendimento da obrigatoriedade, seja como exigência da natureza da nação que se pretende constituir, seja como política assistencial do Estado às camadas populares, nada tem de semelhante à obrigatoriedade escolar como se colocou no tempo da modernidade educacional. Somente então ela se expressará como constituição de um novo direito social que deve abranger todos os indivíduos da nação.

O que se pode pensar neste tópico é como essa confi guração de pensamento fundada na razão de Estado, característica da educação ao longo do Império, e com amplas repercussões na república que se avizinha, difi cultou a formação entre os brasileiros da compreensão da educação como direito da cidadania, portanto, como direito dos indivíduos da nação. Diga-se que no caso argentino também é uma razão de Estado que impulsiona a busca pela universalização da educação elementar, qual seja a exigência de formação da nacionalidade. Porém, neste caso, o impulso primordial acaba por confi gurar a educação como um direito da cidadania, expressando plenamente a temporalidade moderna que afi rmamos acima. A discussão que se segue explicitará melhor a questão.

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Os tempos diferenciais da modernidade educacional: esboço de um estudo comparativo Brasil / Argentina

LAICISMO, FEDERALISMO E ENSINO LIVRE

Uma interessante dimensão a ser confrontada entre os dois países, para bem perceber o signifi cado histórico diferencial entre eles, é aquela relativa à discussão sobre o caráter laico do ensino, ocorrida na Argentina quando da discussão da lei comum do ensino, de 1884, e ocorrida entre nós durante a Constituinte republicana de 1891. No caso argentino, como se sabe, a lei de 1884 estabeleceu o ensino obrigatório, gratuito e laico apenas para as escolas da Capital Federal e para os territórios nacionais. Porém, a lei comum torna-se efetivamente matriz para outras províncias. (não esquecer que o movimento unifi cador de 1880 é uma vitória das províncias sobre Buenos Aires, provocando o que se chamou de “capitalização” desta cidade). Mas o cerne dessa discussão sobre a laicidade do ensino naquele contexto está fundado na liberdade de consciência e na importância da neutralidade do país na questão religiosa “em um país que se propôs como uma das suas metas prioritárias a atração massiva de imigrantes para povoar seu imenso território.” (Botana / Gallo, 1997, p.34 - tradução nossa) Portanto, trata-se da questão da universalização do ensino que está em voga nesta discussão, sem qualquer pretensão antirreligiosa católica, até porque a Constituição de 1853, ainda em vigor em 1884, a despeito das alterações constitucionais de 1860, estabelece a religião católica como ofi cial (diga-se que o ofi cialismo católico argentino nada tem a ver com o sistema de padroado que existiu entre nós no império). É justamente esse universalismo pretendido à educação obrigatória que está na raiz constitutiva do direito à educação como novo direito da cidadania, e que marca a temporalidade moderna nesse campo da política pública.

Também nós enfrentamos a discussão do laicismo educacional quando se estabeleceu a primeira constituinte republicana. E aqui nos baseamos no livro de Carlos Jamil Cury (Cury, 2001). O que ali se pretendeu, entretanto, não foi apenas tornar a educação laica nas instituições públicas, mas tornar o país laico. Como diz o autor acima, “O Brasil tornava-se jurídica e politicamente um país laico.”(p.223) Vale dizer, não é apenas o ensino que se torna laico, mas simultaneamente estabelece-se o casamento civil precedendo o religioso, seculariza-se os cemitérios, veda-se qualquer subsídio público a culto religioso,

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proíbe-se tornar-se eleitor a qualquer religioso submetido ao voto de obediência que implique em renúncia à liberdade individual. Até mesmo a expulsão de ordem religiosa católica chegou a ser discutida no processo constituinte. Como destaca Cury, o radicalismo laico republicano não se deveu à infl uência do sectarismo do Apostolado positivista, que se manifestara contrário a tal radicalização. Ele com certeza é fruto do profundo desgaste político da Igreja católica no antigo regime.

Voltando ao confronto com a Argentina, lá não ocorre o laicismo simultâneo em várias instituições públicas. O processo é gradativo. O casamento civil, p.ex., só ocorre no fi nal da década de 1880. Toda a discussão sobre laicidade inicialmente centra-se na questão educacional e com a fi nalidade precípua da sua universalização. Exatamente por isso é que entre os nossos vizinhos tal debate resultou em transformação do direito público da educação, enquanto isto não ocorreu entre nós.

Outro aspecto a destacar nesse confronto é quanto à questão federativa. Enquanto no caso argentino a lei de 1884, restrita à Capital Buenos Aires e aos territórios subordinados ao governo federal, efetivamente é seguida pelas demais províncias do país, no nosso caso o federalismo republicano constituiu um verdadeiro entrave em questões chaves da modernidade educacional. Em nome da autonomia dos estados deixa-se de legislar em âmbito nacional sobre a questão da obrigatoriedade e da gratuidade do ensino elementar, retrocedendo-se inclusive em relação à tradição do império que estabeleceu em 1824 a gratuidade.

A prevalência da ideia de “ensino livre” no fi nal do império, herdada pela república, que entre nós assumiu o caráter de livre oferta, mais do que de livre pensamento, ameaçou diretamente a constituição de um elemento fundamental da modernidade educacional que é o compromisso do Estado com a oferta do ensino. No caso argentino, ao contrário, estabeleceu-se um grande consenso entre os atores, liberais e católicos, de que a educação básica teria caráter público. Na Constituinte brasileira, por sua vez, como diz Cury, prevaleceu a ideia de educação como virtus, vale dizer, como esforço individual para adquirir a cidadania, já que a exclusão dos analfabetos, advinda da reforma eleitoral do Império de 1881, foi mantida pela Constituição republicana. E essa ideia de aquisição da educação como virtus é

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incompatível com a formação do direito à educação. Nos termos de Cury: “A ideia de que a instrução do cidadão era mais moral que jurídica fazia parte da visada (da educação) como virtus e não como jus.” (p.270). Portanto, acoplou-se à concepção de ensino livre o suposto de um individualismo que descola os indivíduos do seu meio, tornando-os seres genéricos, incapaz de serem percebidos nas suas contingências de mundo. As duas dimensões, ensino livre e indivíduo genérico impulsionado por um virtus, ajudam a confi gurar também, por sua vez, uma ideologia impeditiva da formação do direito público à educação.

MINAS VERSUS SÃO PAULO

Enfi m, essas considerações comparativas têm a fi nalidade de perceber que temporalidade histórica corresponde à política de educação nos primórdios do republicanismo brasileiro. O parâmetro comparativo nos fornece algum critério para compreendermos porque não constituímos uma educação moderna ainda no dezenove, à semelhança do país vizinho. No entanto, o processo de constituição dessa modernidade acaba por se instalar, porém de forma não contínua no tempo e de forma não homogênea na nação. Aqui, neste segundo momento da pesquisa, caberiam estudos de confronto já não mais entre nações, mas entre os estados regionais nacionais.

Nossos estudos mais recentes têm nos levado a perceber a antecedência de Minas em relação a São Paulo, senão na constituição da modernidade, pelo menos em sua formulação, justo no contrapé do que costuma afi rmar a nossa historiografi a. Se São Paulo teve nos primórdios da república um impulso publicista, com a antecedência na criação dos grupos escolares e na reforma da Escola Normal, no entanto, ao longo das primeiras décadas republicanas, o impulso parece ter arrefecido. A herança ideológica advinda do Império, especialmente de sua fase fi nal, e o federalismo republicano, que só reforçou a tradição educacional advinda do Ato Adicional de 1834, certamente estão na raiz desse arrefecimento. Não obstante, talvez se possa encontrar razões próprias ao contexto paulista que reforçaram a perda da pujança pública dos primeiros anos republicanos. Uma hipótese seria localizar nos movimentos cívico-nacionalistas, que

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ali se expressaram com mais intensidade, a responsabilidade pelo atraso. Isto certamente é um paradoxo, pois foram justamente esses movimentos patrióticos que quiseram colocar a questão da educação na ordem do dia, como questão prioritária. Porém, ao fazê-lo, não colocaram a educação na concepção moderna que afi rmamos acima, mas como questão de combate ao analfabetismo. Isso resultava num apelo amplo à mobilização da sociedade e não propriamente à constituição de uma educação sistemática e regular que somente o Estado seria capaz de oferecer. São Paulo somente desperta para uma educação no sentido moderno, com preocupação de abrangência da população e oferta pública, com a reforma Sampaio Dória, em 1920. Ainda aí perpassa um sentido civilista que comprometia a qualidade da educação em si mesma, como muitos reformadores da década de 1920 souberam perceber.

Já em Minas, a concepção dessa modernidade começa a se esboçar pelo menos com dez anos de antecedência em relação a São Paulo. É muito signifi cativo o discurso do então Secretário do Interior do estado, Delphim Moreira, em 1912, na abertura do 2º Congresso de Instrução Primária e Secundária, ocorrido naquele ano em Belo Horizonte. Alguns traços desse discurso identifi cam a expressão não apenas do que especifi ca a proposta mineira de educação, mas também o momento histórico que se vive no contexto da política pública de educação, qual seja a consciência de um momento jurídico novo em que o direito à educação estende-se universalmente, e cuja tarefa de estendê-lo cabe fundamentalmente ao Estado.

“(...) Só assim a República Brasileira, que já deve ter a consciência de si mesma, porque já entrou na idade viril, e sabe o que quer a respeito do ensino público, poderá concluir a sua missão civilizadora e educadora pela construção parcelada deste vasto edifício da instrução pública do qual é pedra angular a escola primária.”“Antes a instrução era privilégio e hoje todos proclamam que é bem comum, ao qual devem aspirar todas as classes da sociedade nova. Por isso vemos, com satisfação, esse despertar solene de consciências esclarecidas, em torno deste pavilhão.” “A instrução pública, organizada ou pelo menos em formação, é obra salutar, é criação inestimável do moderno estado de cultura humana, que os publicistas

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cognominam – estado jurídico, em que o espírito da liberdade e da independência, depois das formidáveis lutas organizadoras e presidido pelas sabias regras do direito moderno, conseguiu garantir aos povos cultos uma paz relativa, dando tempo a que cuidem destas salutares cogitações morais. (Vocabulário atualizado, destaques do original, p.163)

Tudo nos indica que aí se formula uma transição de épocas. O que torna o sentido dessa proposição de política de educação mineira algo mais universal à nação brasileira é precisamente o fato de revelar um novo horizonte de expectativa, correspondente a uma modernidade educacional do país e do mundo, qual seja o de uma educação já não simplesmente elementar, mas primária, de oferta pública regular, com preocupação de abrangência da idade escolarizável, de caráter comum, extensivo a todas as classes, já evelando uma transformação do direito público à educação – não mais uma razão de Estado, mas um direito dos indivíduos.8

A despeito da transição apontada, trata-se de uma demorada transição. Somente vinte anos após, o novo paradigma esboçado encontrará a sua formulação mais completa no Manifesto dos Pioneiros de 1932, defi nindo-se então uma visão integrada de todo o sistema de ensino.9 Já há um relativo consenso em nossa historiografi a educacional a respeito da importância daquele manifesto de 1932 na implantação da modernidade educacional brasileira, do ponto de vista jurídico-constitucional, em 1934.10A nossa compreensão é a de que o

8 Horizonte de expectativa é uma categoria constituída por Reinhard Koselleck, em obra indicada, ao lado de outra categoria por ele designada como espaço de experiência. São categorias transcendentais, meta-históricas, da esfera de uma Antropologia fi losófi ca, que indicam uma condição humana universal “sem a qual a história não seria possível ou não poderia sequer ser imaginada” (p.308). A última remete ao “passado atual, aquele no qual acontecimentos foram incorporados e podem ser lembrados” (p.309). A primeira é “futuro presente, voltado para o ainda não, para o não experimentado, para o que apenas pode ser previsto” (p.310).

9 Diga-se que nas teses apresentadas no II Congresso de 1912 já aparecem compreensões sobre ensino normal, ensino técnico e ensino secundário afi nadas com a modernidade do ensino primário que ali se propôs, contrapondo-se a outras teses que estariam ainda nos marcos do paradigma anterior.

10 Sobre o considerando historiográfi co, remeto as observações de Jorge Nagle, em mesa-redonda comemorativa do septuagésimo aniversário do Manifesto dos Pioneiros, durante o II Congresso Brasileiro de História da Educação ( Natal, 2002), considerando o dito manifesto o documento político mais importante da educação brasileira já formulado, a despeito das interpretações dos seus “arroubos de juventude”, como ele mesmo o disse.

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manifesto não é apenas importante naquele primeiro arreglo jurídico moderno, mas daí em diante, já que ele é a expressão mais acabada daquele novo horizonte de expectativa do qual não há mais retorno historicamente possível enquanto paradigma de referência.11 Entretanto, a nossa historiografi a também nos indica o processo de idas e vindas jurídico-constitucionais em tantos aspectos, só para nos limitarmos às instâncias institucionais, sem adentrarmos propriamente as políticas de implementação efetiva da educação.12 Por conta disso, talvez se possa pensar que somente após a percepção da enorme delonga do processo histórico de implementação moderna da educação, frente ao desafi o político do tempo presente que quer implantá-lo em defi nitivo, nos ocorra a compreensão de nossa temporalidade do presente, somente possível situando-a no conjunto desse longo processo histórico de transformação.

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11 Sobre a continuidade do paradigma do Manifesto para além do contexto das disputas da primeira metade dos anos de 1930, envolvendo o período do Estado Novo, ver a respeito: Rocha, 2000, especialmente os capítulos I e III. Sobre a continuidade desse mesmo paradigma ainda no contemporâneo, a despeito da exigência de superação do seu universalismo de tipo iluminista, vale a observação de que não se trata propriamente de uma troca de paradigma, mas da realização adequada aos problemas contemporâneos do valor mais fundo que o perpassa, qual seja o valor da igualdade de oportunidades.

12 Ver a respeito: Horta (2001); Fávero (2001); Boaventura (2001); Cury (2000)

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Data recebimento - fevereiro/2010Data de aceite - maio/2010