Errância, Símbolo e Rivalidade Em Scliar
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Errncia, smbolo e rivalidade na saga de um diamanteUma anlise de Na noite do ventre, o diamante, de Moacyr Scliar
rafael bn jacobsenGraduado e mestre em Fsica pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, professor,
pianista e escritor1; trabalha como fsico na Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Com a morte do esCritor moaCyr sCliar, em fevereiro de 2011, abriu-se
uma lacuna no panorama das letras brasileiras; todavia, a falta que esse prosador far
literatura gacha em particular ainda mais significativa. De fato, o prolfico autor
do Bom Fim ocupava, j h vrios anos, a simblica posio de locomotiva do bele-
trismo sul-riograndense. Como afirmou o escritor Jos Antnio Silva, em seu artigo
Scliar e a sucesso literria:
Porto Alegre e o Rio Grande, creio eu, tm dimenso para suportar (em todos os sentidos) um
grande nome da literatura por vez ideia que me vem mente agora com a morte de Moacyr
Scliar. (...) O fenmeno de um grande nome por poca, no sistema literrio, talvez seja tpico
de culturas menos cosmopolitas. (...) Fato que a morte de Scliar, como toda a morte, deixa
um vcuo. No caso dele, no cenrio das letras. (SILVA, 2011)
Jos Antnio Silva observa que, nas ltimas dcadas, trs escritores alternaram-se
como figura de proa de nossa literatura: Erico Verissimo, Mario Quintana e Scliar. Es-
sas trs figuras destacaram-se sobremaneira porque foram capazes de personificar alguns
atributos essenciais, raramente encontrados conjuntamente em outros autores: talento,
reconhecimento crtico e, principalmente, forte empatia popular. Enquanto o Rio Gran-
de do Sul se pergunta quem ser o prximo escritor a ocupar a cabeceira na mesa de
nosso festim das letras, fica, em nossas mos, o testamento esttico representado pelas
ltimas obras publicadas por Scliar. Entre elas, uma das mais ricas em possibilidades
de leituras Na noite do ventre, o diamante.
O romance Na noite do ventre, o diamante, que viria a ser um dos finalistas do
48 Prmio Jabuti de Literatura, foi lanado em 2005, encerrando a srie Cinco Dedos
de Prosa, um projeto da Editora Objetiva no qual cinco autores convidados deveriam
conceber uma narrativa longa inspirada em cada um dos dedos da mo. Sobre o escri-
tor gacho, recaiu o desafio de ficcionalizar o anular, e, para cumprir tal misso, Scliar
aproveitou uma ideia que j h algum tempo lhe instigava: contar a histria de um
diamante que percorresse o mundo e atravessasse geraes, testemunhando fatos hist-
ricos, gerando conflitos, revolvendo sentimentos e vidas.
A narrativa se inicia in medias res, quando, no comeo do sculo XX, em Vlado-
vanka, pequena aldeia no sul da Rssia, seguindo a tradio de todas as sextas-feiras, o
casal Itzik e Esther Nussembaum se prepara para receber o shabat junto com os filhos
Guedali e Dudl. Diante da mesa posta e das velas acesas, Esther costumava exibir sua
mo maltratada pelos trabalhos domsticos e, erguendo o anular, indagava: Olhem e
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me digam o que este dedo? Hein? O que este
dedo? (SCLIAR, 2005, p. 09). Ela mesma respon-
dia: no era nada aquele dedo. A seguir, colocando
um antigo anel de diamante no anular, exultava:
Agora eu sou outra. Agora, sim, eu sou uma mu-
lher. () Este diamante me transforma numa da-
ma. Por isso, queridos, sou grata a esta pedra. Ela
veio de longe, de muito longe, para me dar um
pouco de alegria, um pouco de conforto. (SCLIAR,
2005, p. 10-11) Na sequncia, uma longa analepsis
conduz s aventurescas origens do diamante no
Brasil do sculo XVII e a seus caminhos tortuosos
da Amrica Rssia, passando pela Holanda.
A histria da pedra comea em um esquecido
vilarejo de Minas Gerais, o Arraial da Cabra Bran-
ca, fundado por lvaro Gis, um bandeirante que,
tendo partido de So Paulo em busca de esmeral-
das, acabara por se desgarrar do seu grupo e se es-
tabelecera na regio para criar cabras. nesse lugar
que, dcadas depois, Gaspar Mendes, um cristo-
novo, descobre uma mina de diamantes e, escapan-
do da Inquisio, leva consigo algumas pedras pa-
ra a Holanda. Em Amsterd, Gaspar Mendes en-
trega os diamantes aos cuidados de seu afilhado
Rafael Fonseca, exmio lapidador e discpulo do
filsofo Spinoza. O famoso pensador racionalista,
alis, desponta como uma das personagens mais
marcantes da obra, tanto pelo retrato humano e,
em certos aspectos, quase corriqueiro que Scliar
faz dele quanto pelas reflexes acerca da existncia
humana, do conhecimento e dos valores sociais e
religiosos que o escritor insere em suas falas, con-
sideraes absolutamente atuais, como aquela que
Spinoza tece acerca das habilidades polticas do
Padre Antonio Vieira: Fazer poltica diferente
de filosofar, meu caro; em filosofia, podemos tra-
balhar com ideias puras, em poltica h que fazer
concesses. (SCLIAR, 2005, p. 53) Diogo Morei-
no, outro discpulo e frequentador da casa de Spi-
noza, encanta-se obsessivamente pelos diamantes
que Rafael lapida e foge da cidade, levando um
deles consigo. Aps andar quase sem rumo e atra-
vessar vrios pases, remodo por um sentimento
de culpa cada vez maior, Diogo chega aldeia de
Vladovanka, onde acolhido pelo nico judeu do
lugar, um velho e solitrio carpinteiro. Porm, pou-
co tempo depois, Diogo cai doente e morre, dei-
xando, com seu benfeitor, o diamante roubado e
um dirio no qual havia registrado parte de suas
memrias e tudo o que sabia sobre a origem da
pedra preciosa. A partir da, nas palavras do pr-
prio Scliar, diamante e caderno foram passando
de gerao em gerao, na remota Vladovanka, at
chegar a Itzik Nussembaum, que, ao casar, deu a
pedra, agora engastada em anel, mulher. (SCLIAR,
2005, p. 69)
De volta ao ponto de partida, a narrativa apre-
senta a famlia Nussembaum em fuga depois da
revoluo de 1917. Para evitar os saqueadores, os
pais obrigam os filhos a engolir seu nico bem va-
lioso: Dudl engole o aro de ouro do anel; Guedali,
o diamante. Esperava-se que, passado o perigo, os
meninos evacuassem e, assim, restitussem o tesou-
ro famlia. De fato, o anel recuperado; no en-
tanto, o diamante fica preso no intestino de Gue-
dali, retido em um divertculo, e, j estabelecidos
em So Paulo, os pais procuram um mdico para
extra-lo da barriga do filho, mas Guedali, em p-
nico, foge da sala de cirurgia. Esse episdio acirra
a rivalidade entre os irmos, e Dudl, sempre inve-
joso das atenes recebidas pelo primognito, v,
na recusa do corpo de Guedali em devolver o dia-
mante, um ato de traio dele contra a famlia.
Aps a morte dos pais em um acidente, os irmos
so separados; porm, a inimizade entre eles se
mantm. Passados dez anos, Dudl processa judi-
cialmente o irmo, exigindo o diamante sob a ale-
gao de este ser parte da herana familiar. A par-
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tir de ento, a vida de Guedali sofrer novas revi-
ravoltas, e o diamante que ele carrega nas entranhas
se revelar, ao mesmo tempo, constante atrator de
perigos e fora motora que impele seu involunt-
rio portador ao encontro de um destino que h
muito parecia traado.
A trama de Na noite do ventre, o diamante
concerta uma mirade de temticas, e, dentre elas,
trs se destacam sob a ptica de uma leitura judai-
ca: a rivalidade entre irmos, o estigma da errncia
e a secular relao entre os judeus e os diamantes.
Guedali e Dudl reencarnam o clssico conflito en-
tre homens gerados pelo mesmo ventre, tema pre-
sente em diversas mitologias, inclusive nos mitos
etiolgicos do Judasmo. Na Tor, encontramos a
histria de Caim e Abel na qual Caim, irado por
Deus no ter atentado para sua oferta, apenas para
a oferta de seu irmo, volta-se a este com fria ho-
micida (Gnese, 4,1 4,18) , o episdio de Esa
e Jac em que se conta como o mais novo, Jac,
predileto de sua me Rebeca, decide enganar o ve-
lho pai Isaac por cimes dos direitos que cabem
ao primognito Esa (Gnese, 27,1 33,17) e,
ainda, a saga de Jos o filho temporo que, por
conta dos sonhos premonitrios que tem e do fa-
voritismo do pai, trado e vendido como escravo
pelos prprios irmos (Gnese, 37,1 50, 26). E,
como ocorre em tais narrativas, a ligao entre
Guedali e Dudl firma lastro nos sentimentos da
inveja e do cime, porque Dudl tinha com o ir-
mo, dois anos mais velho, uma relao complica-
da; amava Guedali, que cuidava dele e contava-lhe
belas histrias, mas ao mesmo tempo invejava-o
por ser o primognito, e invejava-o sobretudo pela
ateno que a me lhe dava. Assim como na nar-
rativa de Caim e Abel, Dudl ameaa a vida de Gue-
dali, mas de modo menos direto, na medida em
que, exigindo a cirurgia para remoo do diaman-
te, expe o irmo a um risco real; todavia, no ro-
mance de Scliar, o desenlace no trgico: est
mais prximo do desfecho das duas outras hist-
rias cannicas, culminando em perdo e reconci-
liao. Desse modo, livres do peso do dio, da vin-
gana e da morte, Dudl e Guedali so poupados
da trgica sina de Caim, que, em punio por seu
pecado, foi enviado por Deus a errar por toda a
Terra, ad aeternitatem.
A histria de Caim guarda afinidades com a
lenda medieval do Judeu Errante, um morador de
Jerusalm que ali trabalhava em um curtume, ou
oficina de sapateiro, e que, ao ver Jesus carregando
sua cruz pela rua, teria escarnecido do condenado.
Jesus, ento, o teria amaldioado a vagar pelo mun-
do, sem nunca morrer, at a sua volta, no fim dos
tempos (UNTERMAN, 1992, p. 140). Se, por um
lado, historicamente, tal lenda supriu uma funda-
mentao antissemita para a expulso dos judeus
dos pases cristos, a carga alegrica inerente fi-
gura de um pecador condenado a percorrer o mun-
do sem esperana de descansar em paz levou, por
outro lado, o personagem do Judeu Errante lite-
ratura, enriquecendo-a, inspirando poemas de Shu-
bart, Schreiber, Schlegel, Goethe, Pierre Dupont e
Castro Alves, contos e romances de Andersen, Ale-
xander Pushkin, Rudyard Kipling, Charles Dickens,
H.G. Wells, Manuel Mujica Linez, Jorge Luis Bor-
ges e at mesmo Machado de Assis, alm dos de-
senhos de Gustave Dor e dos quadrinhos de Will
Eisner todos fizeram uma verso ou colocaram
o personagem em seus textos. No livro de Scliar,
o mito do Judeu Errante transportado para a
prpria pedra preciosa. O diamante, na trama, cris-
taliza elementos cruciais ao enredo maldio,
medo, vaidade e, por conta de sua onipresena e
fora simblica, adquire status de personagem in-
dependente, uma personagem errante que torna
tambm errantes todos aqueles que dela se apos-
sam, de Gaspar Mendes a Guedali Nussembaum,
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passando por Diogo Moreino; portanto, o diaman-
te e a dinmica que ele estabelece na narrativa me-
taforizam a prpria dispora do povo judeu, que
saiu do Egito, fixou-se na Terra Prometida, onde
edificou o prspero reino de Davi e Salomo, para
depois sofrer com o exlio em duas ocasies (de-
pois da destruio do Primeiro Templo, no sculo
VI a.C., e aps o fim do Segundo Templo, em 70
d.C.), ocasies que deram incio a quase dois mil
anos de errncia, perseguies e fugas.
Nesse contexto de insegurana, especialmente
durante a Inquisio, os diamantes se tornaram
um bem de grande valor para os judeus. Pequenos
o suficiente para ser escondidos no corpo (e at
mesmo engolidos, como narrado em Na noite do
ventre, o diamante), os diamantes podiam ser tro-
cados por dinheiro em qualquer pas da Europa.
Para quem vivia sob a ameaa e o medo da expul-
so de sua prpria casa, as preciosas gemas repre-
sentavam um meio eficaz de preservar e acumular
riqueza. Contudo, a relao entre os judeus e os
diamantes vem de ainda antes do estabelecimento
das vrias instituies dedicadas supresso da he-
resia no seio da Igreja Catlica e se prolonga at a
atualidade, com a indstria de diamantes de Israel,
pas que, alm de sua movimentada Bolsa de Dia-
mantes, conta com oficinas de corte e lapidao
concentradas na regio de Tel Aviv e Natnia. Na
Idade Mdia, as ndias eram o grande fornecedor
de diamantes. Atravessando a Arbia, as caravanas
transportavam os diamantes at Aden ou Cairo,
onde eram trocados com mercadores judeus por
ouro ou prata. Estes, por sua vez, as revendiam a
seus correligionrios de Veneza, Litunia ou Frank-
furt. Alm disso, na Europa crist, a lapidao de
diamantes era um dos poucos ofcios permitidos
aos judeus pelas corporaes de artes e ofcios me-
dievais. No sculo XVI, quando os portugueses
conseguiram alcanar as ndias por rota transoce-
nica, os judeus portugueses firmavam acordos com
os capites dos navios para que comprassem os
diamantes diretamente dos mineiros de Goa. As-
sim, Lisboa acabou por se transformar na princi-
pal porta de acesso dos diamantes na Europa, e,
nessa cidade, foram montadas vrias oficinas de
lapidao. A indstria de diamantes de Portugal
prosperou at o final do sculo XVI, quando, com
o estabelecimento da Inquisio em Portugal, mui-
tos mercadores judeus deixaram Lisboa para se es-
tabelecer, num primeiro momento, em Amsterd,
localidade que logo se converteu em centro dia-
mantrio da Europa (MORASH, 2010, p. 71).
Em Na noite do ventre, o diamante, como ocor-
re em vrios outros livros de Scliar, todo esse arca-
bouo histrico no surge apenas como adereo
ou cenrio; os elementos da realidade factual mes-
clam-se de maneira natural e indissocivel com a
urdidura ficcional, constituindo um amlgama vi-
vo e pulsante. Os desmandos e a insana obsesso
do Santo Ofcio em sua caa aos hereges encon-
tram precisa personificao em Pedro do Carmo,
o agente inquisidor obcecado em descobrir novos
mtodos de tortura, mandar infiis s fogueiras e
criar pombos-correio, o perseguidor de marranos
que, cegamente, vai ao encalo de Gaspar Mendes,
o qual, por sua vez, encarna o tpico judeu portu-
gus da poca, refugiado nos Pases Baixos, envol-
vido com a indstria de diamantes, ao mesmo
tempo aventureiro, libertrio, e apegado comu-
nidade e religio. Portanto, em Na noite do ven-
tre, o diamante, personagens ficcionais extraem
parte de sua ontologia da conjuntura histrica em
que esto imersas; mas o movimento oposto tam-
bm se verifica no texto: personagens reais como
Padre Antonio Vieira, Baruch Spinoza e Leon Trotsky
acenam com naturalidade nas linhas e entrelinhas,
e a presena de cada um deles no enredo, transcen-
dendo a mera citao, justifica-se ao longo livro
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atravs da repercusso dos ditos e feitos de cada
um deles sobre a vida das demais personagens.
Atravs dessa construo dialgica, Scliar con-
segue, nas pouco mais de 160 pginas do livro,
passar, com agilidade, por pontos histricos como
as bandeiras, a busca por pedras preciosas no s-
culo XVII no Brasil, a perseguio da Inquisio
contra os judeus, o florescimento da indstria de
diamantes na Europa e a Revoluo Russa de 1917.
Mas a virtude da agilidade tambm implica certas
fragilidades. O texto enxuto enfraquece as relaes,
deixando-as menos consistentes. O leitor sente-se
carente de certos aprofundamentos, do mais cui-
dadoso desenvolvimento de algumas tramas e per-
sonagens. Exemplos disso so a pouca elaborao
psicolgica do que h por trs do comportamento
do irmo invejoso Dudl e a frustrantemente rpi-
da apario do revolucionrio Avrum na trama, o
irmo mais moo de Esther Nussembaum, ardo-
roso admirador de Trotsky que acaba se alistando
na Cavalaria Vermelha e morre antes mesmo de
entrar em combate, ao cair de um cavalo, porque
assim pondera Itzik judeus e cavalos nunca se
deram bem. (SCLIAR, 2005, p. 76)
A caracterizao do diamante como riqueza fa-
cilmente transportvel, mote central de Na noite
do ventre, o diamante, pavimenta o caminho pa-
ra interpretaes ulteriores da simbologia presente
no subtexto do livro. A errncia, fator determinan-
te para o valor (simblico e material) atribudo aos
diamantes pelo povo judeu, foi tambm decisivo
na formatao das prticas religiosas e at mesmo
da f entre os judeus. Se os exlios, as expulses e
a ancestral jornada pelo deserto em busca de uma
terra de paz e repouso trouxeram a necessidade de
uma riqueza material que pudesse ser carregada
sem dificuldades, esses mesmos fatores contribu-
ram para a necessidade de uma riqueza espiritual
igualmente porttil. Sem lar fixo e seguro, a divin-
dade adorada pelos hebreus jamais poderia ser iden-
tificada com algum lugar especfico (ao contrrio
dos hindus, por exemplo, que, h milnios, consi-
deram sagrado o Rio Ganges, venerando-o na for-
ma da deusa Ganga) ou tampouco poderia habitar
um ponto geogrfico preciso (ao contrrio dos gre-
gos, cujo panteo habitava o Monte Olimpo); quan-
do muito, o deus do povo de Israel poderia habitar
um templo mvel, como o tabernculo, santurio
porttil onde, durante o xodo e at os tempos do
Rei Davi, os israelitas guardavam e transportavam
a arca da aliana, a menor e demais objetos sagra-
dos, alm de ali celebrarem os rituais religiosos
(xodo, 25,1 39,38). Mais ainda, a errncia pelo
deserto sedimentou a f em um deus nico, e o
prprio Scliar, em seu livro Judasmo Disperso
e Unidade, analisa tal correlao:
(...) recuando at os tempos bblicos de Cana,
(Scliar) desenha com palavras a monotonia do
deserto e o Deus nico que dele s poderia emer-
gir. fcil ser politesta quando a natureza em
volta reflete riqueza e diversidade. Mas, no de-
serto, monotonia monotesmo. (COUTINHO,
2011)
Portanto, para o povo judeu, a condio de er-
rncia determinou duas necessidades paralelas, a
de riqueza material e a de riqueza espiritual trans-
portveis, o que coloca, em um mesmo patamar
dentro de seus respectivos domnios, a figura do
diamante e a noo de um deus nico, imaterial,
invisvel, no identificado com fenmenos ou ele-
mentos da natureza. Da mesma maneira que cabe
a um lapidador dar forma aos diamantes brutos,
cabe, em ltima anlise, a cada judeu dar forma
ao deus nico de seu povo. Ao longo do tempo, a
indstria israelense de diamantes se especializou
nas pedras mele, formadas por duas pirmides
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que produzem um brilhante redondo de 57 face-
tas, e nas formas chamadas fantasia, como as
navettes, as baguettes e outras formas patente-
adas; de modo anlogo, desde o incio dos tempos,
diferentes pessoas, em diferentes experincias reli-
giosas, vivenciaram distintas formas para o Deus
nico: uma chama que arde no meio de uma sara
(xodo, 3,2 3,4), um humano voltado de costas
(xodo, 33,18 33,23), uma nuvem fulgurante (xo-
do, 40,34 40,38), o torvelinho de uma tempesta-
de (J, 38,1), dedos de uma mo humana (Daniel,
5,5), etc.
De fato, em Na noite do ventre, o diamante,
a pedra preciosa surge, em diversos momentos, co-
mo uma metfora de Deus, unificando as duas ri-
que zas do povo de Israel, e no apenas por conta do
fascnio misterioso (quase sobrenatural) que exerce
sobre as personagens ou pela capacidade de con-
duzir as suas vidas o diamante, no livro, objeto
de culto, venerao e indagaes tpicas da inquie-
tao humana ante o desconhecido e o sagrado:
Rafael era um artfice dedicado e, sobretudo, ins-
pirado (...). Quando recebia um diamante bruto,
no se atirava de imediato tarefa, mesmo que
lhe cobrassem urgncia. Colocava o diamante
sobre a mesa forrada de veludo negro e, verda-
deiramente transfigurado, ficava a olh-lo, a dia-
logar com ele. Dialogar, sim. Quem s, diamante?
De onde vieste? Que forma aspiras a ter? (...) En-
quanto isto, a polpa de seus dedos longos, finos,
dedos de artista acariciava a superfcie da pe-
dra que, garantia ele, emitia sinais quase imper-
ceptveis, tnues vibraes que o orientavam (...).
Ah, sim, e como os antigos escribas que copia-
vam a Bblia, s comeava a trabalhar depois de
fazer suas oraes e de um ritual de jejum. (SCLIAR,
2005, p. 36)
Nesse sentido, emblemtica uma passagem
em que Rafael Fonseca e Spinoza debatem sobre o
valor dos diamantes:
Spinoza mirou as pedras de soslaio, fez um co-
mentrio qualquer, casual, e voltou s suas lentes.
Evidentemente no estava interessado nas pe-
dras. (...) Mesmo assim Rafael ficou magoado.
Spinoza sabia que lapidar diamantes era impor-
tante para ele (...). Voltou carga, lembrando a
Spinoza que para um grupo humano perseguido,
como eram os judeus, diamantes eram mais do
que o testemunho de vaidade, eram uma garan-
tia, uma proteo uma ddiva divina, quase (...).
(SCLIAR, 2005, p. 56-57)
O filsofo racionalista e pantesta, que foi ex-
comungado pela Sinagoga Portuguesa de Amsterd
em 1656 por defender que Deus , de fato, toda a
natureza e no algo apartado a ela, um ser infinito
e eterno, simtrico e assombroso, que abarca todas
as coisas, e do qual somos efmeras manifestaes,
retruca a Rafael, contrapondo os diamantes (e tu-
do o que simbolizam) s verdades racionais:
O nico poder vlido aquele que emana da ra-
zo, mais preciosa do que qualquer diamante. A
busca da verdade d sentido vida. E a verdade
nasce do exame da realidade. mais importante
trabalhar o real do que trabalhar os diamantes.
(SCLIAR, 2005, p. 58)
Ao ouvir tais observaes, Rafael quase vai s
lgrimas: o desprezo de seu mentor pelos diaman-
tes significa, para ele, muito mais do que o despre-
zo pelo valor econmico ou pela importncia es-
tratgica das gemas significa o desprezo por uma
f e uma noo de divindade tradicionais e muito
caras a Rafael, um judeu bastante religioso. F, ri-
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queza, deus, diamante: todas essas palavras esto,
portanto, em um mesmo campo associativo ou
conceitual justificado intratextualmente em Na
noite do ventre, o diamante.
Em entrevista jornalista Mona Dorf, o escri-
tor mineiro Luiz Ruffato afirmou que existem os
escritores que contam histrias e os escritores que
escrevem histrias. Sem estabelecer qualquer julga-
mento de valor ou hierarquia entre esses dois tipos
de autores, Ruffato explicou:
Um bom autor aquele que consegue um equi-
lbrio entre forma e contedo. Mas, em geral, al-
guns tendem a valorizar mais o contedo (o o
qu) e outros mais a forma (o como). No pri-
meiro caso, ento, temos os escritores que contam
uma histria (como Jorge Amado e Jos Lins do
Rego, por exemplo) e, no segundo, autores que
escrevem uma histria (como Machado de Assis
e Guimares Rosa, entre outros). (DORF, 2010,
p. 141)
Moacyr Scliar, sem dvidas, pertence primei-
ra categoria. Ele prprio se dizia um contador de
histrias. Portanto, para o leitor que busca maior
elaborao de linguagem, que deseja experimentar
transcendente enlevo esttico a cada pgina, que
anseia por mergulhar vertiginosamente na psique
das personagens, vislumbrando, assim, insuspeita-
das filosofias e caleidoscpicos rasgos de compre-
enso acerca da condio humana e de outras ques-
tes metafsicas, Scliar no ser um autor de cabe-
ceira. Ele , antes de mais nada, um autor de estilo
lmpido, claro, escorreito, um criativo inventor de
enredos, um escritor extremamente culto, capaz de
conceber tramas envolventes, conduzidas por ca-
rismticas personagens.
notas
1 Ver, entre seus trabalhos, Tempos & Costumes (Editora
Alcance, 1998) e Solenar (Editora Movimento, 2005), ambos
agraciados com o Prmio Aorianos de Literatura (destaque
em narrativa longa e melhor narrativa longa,
respectivamente); e Uma Leve Simetria (No Editora,
2009), sobre o qual Fabio Prikladnicki elaborou uma
resenha, publicada em WebMosaica, v.2 n.1, 2010, p. 139-
140.
referncias
BOTELHO, Jos Francisco. Spinoza: com sua tica, uma
obra rigorosa, o filsofo judeu perscrutou a realidade e
desfez algumas de nossas mais caras iluses. Revista Vida
Simples, So Paulo, n. 94, jul. 2010.
COUTINHO, Joo Pereira. Elogio a Moacyr Scliar. Folha de
So Paulo Ilustrada, So Paulo, 8 mar. 2011.
DORF, Mona. Autores e ideias. So Paulo: Editora Benvir,
2010.
MORASH. Os Judeus e a Indstria dos Diamantes.
Revista Morash, So Paulo, n. 68, jun. 2010.
SAND, Shlomo. Como surgiu o povo judeu? Le Monde
Diplomatique Brasil, So Paulo, 4 set. 2008.
SCLIAR, Moacyr. Na noite do ventre, o diamante. Rio de
Janeiro: Editora Objetiva, 2005.
SILVA, Jos Antnio. Scliar e a sucesso literria.
Disponvel em: . Acesso em: 27 jun. 2011.
TOR A LEI DE MOISS. Traduo de Meir Matzliah
Melamed. So Paulo: Editora Sfer, 2001.
UNTERMAN, Alan. Dicionrio Judaico de Lendas e
Tradies. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.