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Erotismo e transgressão no filme Filho de Saul
Leyla Brito1
1. Introdução
O direito ao sepulcro e às honrarias fúnebres constitui um dos temas repetidamente
discutidos pela tradição literária e artística ocidental. Desde a Ilíada de Homero, com todo o
conflito em torno dos funerais do herói troiano Heitor, salvaguardar a sacralidade e dignidade
do corpo consiste numa preocupação fundamental ao ser humano, em sua pulsão de atribuir
significado à vida própria e à morte. Não diferente disso, o filme húngaro, Filho de Saul (2015),
do diretor Lázló Nemes, traz para o cinema do século XXI mais uma reflexão delicada sobre a
sacralidade do cadáver e a importância dos funerais, na necessidade humana de atribuir
sentido às suas experiências, sobretudo às mais dolorosas.
O corpo morto compõe o jogo de significados em torno do qual se opera o enredo do
filme, e as atitudes para a realização de honrarias fúnebres constituem o impulso existencial
do protagonista. Diante disso elegemos, como escopo teórico, as reflexões sobre o conceito
de “erotismo”, do filósofo francês George Bataille (1897-1962), na medida em que a narrativa
fílmica traz como mote as relações conflitantes entre amor e morte, nas instâncias do rito e
os significados sagrados que sustentam toda ação do protagonista.
Portanto, faremos uma leitura de Filho de Saul dando relevo aos signos e símbolos
poéticos que assinalam o erotismo sagrado do protagonista em relação ao corpo do morto,
enquanto uma experiência transgressora, que se opera pela busca de sentido à vida, através
do amor.
O eixo da narrativa fílmica apresenta a trajetória do personagem Saul Ausländer, que
busca realizar o sepultamento do corpo de um garoto, tido como seu filho. Prisioneiro no
1 Profª Drª do Departamento de Ciências das Religiões - UFPB
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campo de extermínio de Auschwitz, na condição de sonderkommando, que consistia num
status especial de prisioneiro, submetido a trabalhos nas sedes de extermínio da segunda
guerra mundial, também chamados de “portadores do segredo”. Esses prisioneiros, em alguns
meses, seriam também mortos.
Saul tem um cotidiano marcado pela atrocidade dos assassinatos em massa dos
judeus, nas câmaras de gás. O personagem, enquanto um sonderkommando, é obrigado a
trabalhar tanto na desinfecção dessas câmaras, quanto na posterior incineração dos corpos.
A rotina cruenta está marcada nas feições de Saul, sempre sujo e com uma expressão facial
assinalada pelo sofrimento. Contudo, essa rotina macabra será abalada pela resistência de um
jovem, que mesmo após o banho de gás, continua a respirar em meio a centenas de cadáveres.
Os soldados nazistas, diante do evento inusitado, terminam o “serviço”, sufocando o garoto
com as próprias mãos. Posteriormente, exigem a autópsia do corpo para entender tal
excepcionalidade. A partir de então começa a trajetória heroica do protagonista, em busca de
preservar o corpo e de realizar o sepultamento conforme a tradição religiosa judaica. Para
tanto, Saul afirma que o menino era seu filho e pede ao médico legista, também judeu e
prisioneiro, para não cumprir com o procedimento da autópsia. Acordo feito, o corpo será
preservado pelo protagonista em seu leito de repouso. Como pede o costume, é
imprescindível a participação de um rabino, no rito fúnebre, para orientar a limpeza do corpo
e para entoar as rezas dignas do momento. Portanto, grande parte da caminhada de Saul, no
enredo, é a busca dessa figura religiosa, responsável por convocar a presença do sagrado no
funeral.
2. Problemática: Saul, um transgressor?
O corpo do garoto parece trazer uma nova modalidade de ação para Saul, até então
morto-vivo pela lógica desumana em que atua. Mesmo os planos de rebelião dos demais
prisioneiros não parecem surtir efeito sobre o novo Saul, amante de um corpo íntegro, que
traz ao protagonista valores transcendentes e humanos, totalmente diferentes do contexto
de Auschwitz. Por isso, supomos que a atitude de Saul, para com esse corpo, é inteiramente
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transgressora à lógica de extermínio do algoz, o qual trata os cadáveres dos judeus como
coisas esvaziadas de valor e de sentido. São apenas “peças”, conforme a designação dada
pelos nazistas.
Assim a problemática despertada com Filho de Saul dá-se a partir da constatação de
que o corpo do menino não é apenas uma peça como os outros cadáveres, mas sim é
elemento de transgressão, porque se configura como uma afronta direta ao ultraje aos
cadáveres. A devoção de Saul, em sua busca por um rabino, não é apenas um compromisso
dogmático, mas nos parece uma forma de protesto humano ao horror dirigido aos corpos
humilhados e desonrados nas câmaras de gás. É através do amor a este corpo, ou melhor do
erotismo sagrado, que o protagonista, em sua caminhada solitária, transgride os códigos da
barbárie dos alemães. No espaço em que a perversidade e a desumanidade são centrais, é o
amor de Saul em sua valorização a um outro, que sugere o lugar da religiosidade intima, para
além do institucional, como arma humana de afronta à estupidez dos campos de extermínio.
3. Objetivos: A transgressão erótica de Saul
O erotismo de Saul, que corresponde ao amor que dedica ao corpo do garoto morto,
lhe tira da rotina do trabalho na incineração dos cadáveres e, também, das estratégias de
rebelião que o grupo de prisioneiros judeus, do qual Saul faz parte, intenta contra os nazistas.
O protagonista já não enxerga sequer utilidade na possibilidade concreta de lutar pela
liberdade do grupo de companheiros. A sua práxis passa a se concentrar totalmente na busca
pelo rabino e na realização do enterro do menino.
Nesse sentido, o objetivo principal desse artigo está em compreender como se
processa a transgressão erótica de Saul, tanto contra os nazistas quanto contra os próprios
companheiros judeus, em função de seu investimento nas imanências do sagrado, em
detrimento da exploração sofrida com o trabalho espúrio que lhe foi submetido e dos
interesses libertários dos colegas. Para tanto, definir os conceitos de erotismo, transgressão
e de sagrado, a partir das proposições de George Bataille, aparecerá como objetivo específico
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para o entendimento de como se processa a ação do protagonista, na perspectiva de sua
conduta erótica e transgressora.
4. Metodologia: imagem como poesia
Assim, como as outras artes, o cinema é exposição de pensamento. Como a
efabulação, na sétima arte, dá-se através de imagens, nossa leitura da narrativa fílmica de
Filho de Saul dará enfoque à poética de suas imagens-símbolos e metáforas, na medida em
que verificamos a existência de uma estrutura poética moldada por imagens
plurissignificativas, que rementem às instâncias do sagrado e do erotismo.
É partir da modulação desses componentes poéticos que se processa a autenticidade
dos significados transgressores e eróticos do filme. Objetos, imagens-palavra, são os
componentes que o diretor Lázló Nemes utiliza para moldar a matéria poética que mobiliza a
atuação de Saul ao longo da trama. Sob o escopo da teoria do erotismo de George Bataille,
essas imagens recolhidas do enredo tornar-se-ão mais compreensíveis à leitura do esteio
poético de Filho de Saul.
5. Discussão/resultados: corpo e erotismo como afirmação da vida
O Erotismo, segundo George Bataille, “é a aprovação da vida até na morte”. Mesmo as
instâncias de morte são reveladoras de vida, quando se entra em cena a entrega da
individualidade a um ser amado. O erotismo surge, segundo Bataille, de uma “experiência
interior” de angústia, dúvida, de falta de sentido à vida cotidiana, que irá resultar numa atitude
erótica de violência e de rompimento com essa modalidade de existência angustiante.
É através do desejo erótico de entrega a um outro, seja no âmbito do sexo, da
fraternidade ou na devoção ao Deus, que uma forma de viver anterior, já esvaziada de desejo
e prazer, será destruída, uma vez que não dá mais o mínimo alívio da constante condição
humana de angústia.
Saul, em sua devoção ao “filho” morto, parece romper com a vazies de sentido humano
do seu trabalho na barbárie de Auschwitz. O personagem põe em risco a própria vida, que,
diga-se de passagem, já não se configura como tal, na medida em que sua liberdade, desejos,
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sonhos foram totalmente comprometidos pelo horror da guerra. Se é para morrer, que se
morra em função de um ato legitimamente humano e amoroso. A entrega erótica aos
cuidados com o corpo do menino põe o protagonista em situações extremas de risco. É
exatamente esse arriscar-se, colocar-se em situação de morte que delineia os primeiros
aspectos do erotismo de Saul.
No seu livro O Erotismo, George Bataille compreende que a disposição erótica de
destruição de um determinado modo de vida trata-se de uma experiência sagrada, para além
de qualquer denominação religiosa específica. Consiste muito mais numa experiência íntima,
do que numa afirmação institucional e dogmática. Assim afirma Bataille: “exprimo em meu
livro, uma experiência, sem apelar ao que quer que seja de particular, tendo essencialmente
a preocupação de comunicar a experiência interior – quer dizer, a meus olhos a experiência
religiosa – por fora das religiões definidas.” (BATAILLE, 2014, p. 58).
Essa experiência religiosa, à qual se refere Bataille, é melhor compreendida a partir da
noção de “sagrado”, assim como esclarece Rudolf Otto, em seu livro O sagrado. Segundo Otto,
a realidade sagrada estaria em camadas mais profundas do que as linguagens que orientam
as religiões e suas doutrinas. O aspecto “numinoso” seria o que melhor se aproxima de uma
definição para o sagrado, uma vez que não diz respeito ao valores morais e racionais que
envolvem as crenças religiosas, mas consiste num mistério tremendo (mysterium
tremendum), numa experiência de arrebatamento, que, no fim de contas, está no cerne de
todas as religiões. (OTTO, 2007, p. 38) Para Bataille, o princípio do sagrado se opõe ao mundo
utilitarista do trabalho. É, na verdade, um retorno a esse mistério numinoso, uma “volta à
intimidade do mundo divino, da imanência profunda a tudo aquilo que é.” (Bataille, 2015,
p.40)
A partir dessas reflexões batailleanas sobre o erotismo enquanto uma experiência
sagrada, de saída do mundo utilitarista do trabalho, das coisas e das individualidades
objetivas, a práxis erótica de Saul torna-se melhor apreensível. Antes da cena em que surge o
garoto resistindo à morte, Saul encontra-se, de um certo modo, envolvido com a rebelião dos
companheiros, que intentam uma fuga coletiva. Entre uma atividade e outra, os judeus
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conspiram negociações de fuga, de armamento e dinheiro. Porém esse mundo das
deliberações e estratégias é inteiramente abandonado por Saul, a partir do momento em que
é impulsionado a preservar o corpo do menino. Sim, a atitude de Saul é de um arrebatamento
profundo, todas as suas forças, impensadamente, passam a se voltar na busca por realizar as
honrarias fúnebres ao corpo, o qual lhe impulsionara a entrega ao sagrado. Saul deixa de
pensar em si, na sua individualidade para dedicar-se à atividade sagrada do rito de inumação,
de modo que há um “perder-se” erótico na preservação do corpo amado.
Na perspectiva do erotismo, essa entrega de Saul é um processo de dissolução de si
nas instâncias do sagrado. O erotismo, em Bataille, tem como principal significado, a
passagem da condição de descontinuidade dos seres (a individualidade) à “continuidade”, que
é exatamente a dissolução dessa individualidade no ser amado. “Entre um ser e outro, há um
abismo, uma descontinuidade.” (BATAILLE, 2014, p. 38.) Esse abismo impede um comunicação
total entre os seres humanos. Mas esse abismo sugere sempre uma vertigem, que fascina e
que pode levar o “eu” e o “outro” a um mergulho em comum, pondo as individualidades
descontínuas em perigo, uma vez que “esse abismo é a morte, e a morte e vertiginosa e
fascinante.” (BATAILLE, 2014, p. 37.)
Veja-se que o erotismo, a busca de comunicação integral com outro só é possível com
a morte das descontinuidades em jogo. Há uma perda das garantias da vida individual, quando
se é levado, por um desejo premente, ao um encontro abismal com o objeto de desejo. Desse
modo, Saul sai das margens da sua individualidade, já totalmente massacrada, para um
mergulho mortal no desejo de cuidar e enterrar o corpo do garoto. Sua vida passa a ser a
vivência do amor e da morte inscritos no cadáver. Veja-se como, no filme, é complexo o jogo
de sentido do erotismo de Saul. A sua vida descontínua já foi desfeita, mas não pelo seu desejo
e sonho, pela sua poesia interna, como ocorre com o mergulho erótico, mas pela ignomínia
nos campos de concentração. Saul irá viver seu erotismo pela construção de significados
poéticos e sagrado a sua práxis e à morte do filho.
Embora Saul esteja a cumprir um ritual judaico, sua caminhada é solitária, não há
adesão do grupo em que está inserido. Não se trata apenas do judaísmo, mas sim de uma
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experiência erótica, no sentido de transgressão à realidade estabelecida. Num mundo
dessacralizado, o sagrado é rebeldia. No jogo de ironias do filme, o rito aparece como
transgressão num contexto que tem como principal atividade o ultraje aos corpos. No estado
de guerra, a atrocidade é cotidiana, rotineira. No entanto, a religiosidade do judeu, rompe
frontalmente com a atividade que movimenta Auschwitz. Um único corpo será limpo e
inumado, em oposição a toda a sujeira e indigência dos demais corpos. Essa ironia é flagrantes
em várias simbologias e metáforas usadas para demarcar esses dois polos em que o signo
“corpo” está inserido: o do sagrado e o da profanação.
Ironicamente, assim como na tragédia Antígona, o ato de Saul contradiz o estado de
poder atuante. Antígona desobedece a interdição do rei de Tebas, para que o corpo do irmão
Polinices não seja enterrado, Saul, põe sua vida e a dos colegas em risco, para executar o que
entende como vida/morte digna. Para ele, todos os prisioneiros, ele e seus colegas, os quais
mantém a logística de extermínio de Auschwitz, já estão mortos, mesmo que corporalmente
vivos. O que lhe resta é o ato simbólico de transgressão contra toda a perversidade dirigida
aos corpos das vítimas.
Há ainda uma outra etapa no campo de extermínio que dá continuidade ao tom das
dualidades em que o signo corpo é elaborado, ao longo do filme. Após a incineração dos
corpos, as cinzas deverão ser lançadas num rio, para que sejam diluídas. Trata-se de um ato
de diluição e apagamento absoluto de qualquer rastro de existência desses cadáveres, ou seja,
uma forma que os nazistas encontraram para se livrarem do “estorvo” das carnes mortas.
Quando descobre que há um rabino trabalhando nos rios de cinzas, Saul vai ao seu
encontro e pede sua ajuda para o enterro do garoto. Mais uma ironia se constitui no enredo,
a partir do personagem desse rabino. Ele é um dos prisioneiros responsáveis pela imersão
dos restos mortais na água. Mas não há aqui qualquer sentido sagrado neste ato, o que ocorre
é o ultraje maior de apagamento total dos corpos e das identidades que eles carregam. Não
ocorre o sentido comum das águas batismais de morte, renovação e encontro com a
eternidade. A esse respeito, Mircea Eliade nos apresenta o simbolismo de imersão nas águas
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como a desintegração das formas para um renascimento, destituído das máculas que
assinalavam a vida anterior.
“Desintegrando toda forma e abolindo toda história, as águas possuem essa virtude de purificação, de
regeneração e de renascimento, porque o que é mergulhado nela “morre” e, erguendo-se das águas
é semelhante a uma criação sem passado e sem “história”, capaz de receber uma nova revelação e de
começar uma nova vida limpa.” ( ELIADE, M. 2002, p. 158)
Porém, em Filho de Saul, a imersão na água é ultraje. O rabino recebe ordens do algoz.
Não conhece as feições das vítimas, não sabe suas histórias, uma vez que não há qualquer
traço de humanidade nessas cinzas amontoados. É preciso apenas se livrar delas com uma pá.
Porém Saul, ao se confrontar com o rabino, lança ao rio a tal pá, possivelmente como ato de
revolta contra a atividade imposta. Saul quer evocar o horror dessa pá. No rompante de
sofrimento, o rabino tenta suicidar-se, lançando-se no rio. A água suja é símbolo de morte e
diluidora dos corpos, da história de cada vítima. Em oposição ao batismo judaico, o mergulho
do rabino, em meio às águas impuras, marcadas pelo crime, não condiz com o sagrado da
água batismal. Parece estar aí mais um jogo de significados, em que os símbolos sagrados
são corrompidos pela injúria ocorrida em Auschwitz.
Apesar de sua dedicação integral à busca por um rabino, Saul é convocado pelo
esquema de rebelião a pegar pólvora com a personagem Ella, uma prisioneira que trabalha na
cozinha da sede de extermínio, e com a qual Saul parece ter tido algum tipo de história
amorosa. Essa ligação entre eles está sugerida, quando a personagem entrega a encomenda
a Saul e esboça um ato de carinho. Porém ele reage de forma arredia.
Logo após receber a munição entregue por Ella, Saul se depara com a chegada de um
novo comboio de judeus, no qual vê a possibilidade de encontrar um novo rabino, já que, até
então, suas investidas com os outros rabinos fracassaram. Relegando a missão de entregar a
pólvora aos companheiros, Saul infiltra-se no comboio dos prisioneiros a serem assassinados
e pergunta se há algum rabino. Como o filme é desenvolvido com um tom de sugestão, o
protagonista olha para um dos prisioneiros e o identifica como um rabino. Sem sequer
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perguntar, imprime o status de “Rabbi!”, a um homem que lhe aparece face a face. Saul
entrega-lhe a jaqueta em que esta assinalado com uma letra X (xis) vermelha, que designa a
condição de sonderkommando. Com essa atitude, o personagem termina por ser confundido
como um dos integrantes do comboio, e, por pouco, não é exterminado.
A perda da pólvora é flagrante da verdadeira atuação de Saul. Não lhe interessa as
armas, a guerra, mas apenas a reza de uma autoridade religiosa para que se realize o rito
fúnebre do garoto, em sua completude. Ainda que o homem que Saul denomina “rabbi”, não
seja um rabino, a sua realidade já foi criada, pelo impulso erótico. Não importa a realidade
externa para o amante, mas sim dar vasão ao desejo. É pela fruição imaginária que Saul
reconhece este homem anônimo como rabino.
Ao levar o rabino ao encontro do corpo, ocorre uma das cenas mais delicadas e eróticas
do filme. Em meio à sujeira do espaço fílmico, Saul limpa, com uma toalha umedecida os
braços e as mãos do corpo do filho. Um momento silencioso de extremo afeto. Porém a
realidade da rebelião surge como contraponto à realidade sagrada de Saul. Um dos líderes, de
nome Abraão, pergunta pela pólvora, Saul se dá conta de que perdeu o pacote. Abrão verifica
o corpo do garoto e afirma “Nuca tiveste um filho, e este aí é um ladrão e não um rabino”.
Tendo limpado o corpo, Saul se encaminha para a inumação do filho. A utilização de
uma pá para cavar o túmulo evoca outras imagens anteriores, em que esse instrumento
aparece no núcleo da exploração dos prisioneiros nos fornos e nos rios, em que as cinzas dos
cadáveres eram lançadas. A pá é trabalho e a atividade de inumação não se insere no
utilitarismo do trabalho. Saul é impedido por um dos judeus a terminar a escavação.
Diante de um confronto inesperado entre os nazistas e um outro grupo de
sonderkomanndos, uma confusão se instala no campo de concentração, possibilitando a fuga
de inúmeros judeus. Saul foge, carregando o corpo e o “rabino”, para enfim realizar a
inumação. Parece que não lhe interessa a fuga, mas a garantia de um enterro digno ao garoto.
Dessa vez, em não havendo pá, Saul escava com as próprias mãos. Porém, perseguidos pelos
alemães, não há tempo de finalizar o rito. E Saul prossegue sua jornada, conduzindo o filho
nas costas. A necessidade de uma travessia por um rio faz com que Saul termine por perder o
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corpo, e quase se afogar. Em outros momentos, a água, como depósito das cinzas dos mortos
cremados, se configura como iniquidade e esquecimento. As águas do rio que levam o corpo,
contra a vontade Saul, impedem a realização do ritual. Parece não haver significados
amorosos nessas águas que roubam o corpo do filho de Saul. A fuga continua e Saul já não
tem mais ânimo para dar continuidade à jornada, por isso é conduzido por um dos
companheiros.
Num momento de descanso do grupo, Saul vê um garotinho, e pela primeira vez,
desenha um sorriso largo no rosto. Porém, a realidade da guerra faz desse garotinho um
joguete nas mãos dos nazistas, que fazem da criança uma espiã, para constatar a presença
dos judeus no abrigo provisório em que descansam. Na sequência, todos os fugitivos serão
exterminados a tiros.
Contudo, é o último sorriso de Saul, contrário ao tom nefasto da perversidade de
Auschwitz, que dá o tom do filme. O embevecimento de Saul ante a imagem da criança,
ironicamente, parece autenticar a humanidade do Saul amoroso, sonhador, que, em sua
fruição sagrada, transgride a o sistema de dominação do algoz.
6. Considerações Finais
O erotismo constitui um rompimento com a praticidade da vida cotidiana, está na
possibilidade humana de poetizar, de sonhar com outra vida, com uma nova existência. A
Segunda Guerra e seus campos de extermínio criaram um realidade atroz, muito bem
organizada e codificada. No recorte do filme, esse contexto estratégico de exploração é que
determina o tom das ações de sobrevivência humana. Não há escolha, todos, de algum modo,
colaboram com a atrocidade da guerra.
O komando em que Saul atua, dedica-se à morte e cremação dos cadáveres dos judeus. É
contra essa rotina com suas logística bem estruturada, de ultraje aos corpos, que a fruição de
Saul, a sua imaginação em assumir o papel de pai piedoso, que faz do filme uma afirmação do
direito de sonhar, de fruir como aquilo que é mais caro ao ser humano e como arma concreta
de rebeldia. A conduta de efabulação de Saul cria um enredo próprio, uma realidade em que
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a ética e a estética caminham juntas para dar o tom de humanidade ao filme. Se o erotismo é
afirmação da vida na morte, o amor de Saul ao corpo do filho atesta a dignidade, beleza e
liberdade da vida do personagem. Assim, é pela entrega da própria vida à instância sagrada
do ritual de morte que Saul nos ensina o quanto o arrebatamento amoroso pode surgir como
uma pulsão natural humana contra as situações de extrema ignomínia. O erotismo está sim
nas deliberações racionais, de dúvida e perquirição por sentido, mas, ao mesmo tempo, essa
racionalidade está inundada pelo desejo, que consiste num impulso de vida, numa
necessidade humana de transformação, mesmo que essa renovação se dê em instâncias de
morte.
7. Referências Bibliográficas
BACHELARD, G. O direito de sonhar. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1991.
BATAILLE, G. La litératture et le mal. Paris: Folio, 2010.
____________. Les larmes d’Éros. Paris: 20/18, 2012.
_____________. O Erotismo. Trad. Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
_____________. Teoria da Religião. Trad. Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
BRETON, David Le. Anthropologie de la douleur. Paris: Éditions Métailié, 1995.
BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? São Paulo: Boitempo,
2015.
CANDIDO, Antonio et al. A personagem de ficção. 9.ed. São Paulo: Perspectiva, 1992.
ELIADE, M. Tratado de História das Religiões. Trad. Fernando Tomaz & Natália Nunes. São
Paulo: Martins Fontes, 2002.
FILHO de Saul. Direção: Lázló Menes. Produção: Sipos Gábor, Rajna Gábor. Hungria: Laokoon
Filmgroup. 2015. DVD, (107 MI).
OTTO, R. O sagrado. Trad. Walter O. Schlupp. São Leopoldo: Sinodal/EST; Petrópolis: Vozes,
2007.