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ERICK FRANCE MEIRA DE SOUZA TEORIA E UMA TRADUÇÃO LINEAR DO CANTO I DA ILÍADA DE HOMERO Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras da UFPB (Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas) para a obtenção do título de "Mestre em Letras". Orientador: Juvino Alves Maia Júnior João Pessoa, 2006

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ERICK FRANCE MEIRA DE SOUZA

TEORIA E UMA TRADUÇÃO LINEAR DO CANTO I DA

ILÍADA DE HOMERO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras da UFPB (Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas) para a obtenção do título de "Mestre em Letras".

Orientador: Juvino Alves Maia Júnior

João Pessoa, 2006

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RESUMO: Como vem sendo, hoje em dia, a tradução de um texto clássico e, sobretudo, a tradução desse texto originariamente escrito em língua, hoje em dia, não mais falada? Haveria diferença entre uma tradução de um texto sob essas condições e um texto escrito em língua ainda, hoje em dia, falada? E, se haja diferença, qual seria? Essas questões fomentaram esta pesquisa, a qual procura examiná-las, para então, ir-se moldando uma espécie de teoria da tradução do texto escrito em língua não mais falada e, neste caso em particular, língua num texto clássico e em Grego antigo (Grego não mais falado). Seguem-se à teoria o texto original grego do canto I da Ilíada de Homero, uma respectiva proposta de tradução linear (um tipo de tradução de que também se tratará) com intuito eminentemente didático e, enfim, um conjunto de notas separadas num capítulo para esclarecimento paulatino da tradução. PALAVRAS-CHAVE: Grego antigo, tradução linear, etimologia, formação de palavras em indo-europeu e em Grego antigo.

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ABSTRACT: How is it, these days, the process of translating a classical text and, mainly, translating this text that is originally written in a language, these days, not spoken anymore? There might be difference between translating a text under these conditions and a text written in a languagem yet, these days, spoken? And, should there be any difference, what would it be? These questions warmed up this research, which attempts to examine them so that then it starts to acquire aspect of a kind of theory of translation of the text written in a language not spoken anymore and, in this particular case, a language in a classical text and in ancient Greek (Greek not spoken anymore). Follow the theory the original greek text of Homer's Iliad canto I, a respective proposal of linear translation (a kind of translation which will also be discussed) with an eminently didactic purpose and, at last, a set of separate remarks in a chapter for an slow-pacing clarification of the translation. KEYWORDS: ancient Greek, linear translation, etymology, word formation in Indo-european and in ancient Greek.

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A Juvino Alves, em quem encontrei serenidade, confiança e fomento para eu caminhar por mim próprio. A Henrique Murachco, pela vastíssima experiência a qual não me assolou, mas sim me contemplou a partilhar dela. A Fabrício Possebon, pelo senso prático, estímulo e sugestões generosos. A Milton Marques Júnior, mediante cujo entusiasmo pude exercitar o meu próprio. A meus pais, Francelino e Magna, pela possibilidade propiciada de eu seguir meu caminho com decência e dignidade.

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SUMÁRIO INTRODUÇÃO..........................................................................7 CAPÍTULO I TEORIA DE UMA TRADUÇÃO LINEAR............................9 1.1. Articulando-se um problema sobre

tradução.............................................................................10 1.2. Sondando-se o que há sobre o processo de tradução........................................................................16 1.3. Discernindo-se a tradução de uma língua falada da de uma não mais falada................................18 1.4. Tipos de tradução verificadas ao longo do tempo.................................................................................24 1.5. Procedendo-se uma tradução linear do canto I da Ilíada de Homero: pormenorizando.......................33

CAPÍTULO II CANTO I DA ILÍADA DE HOMERO TEXTO GREGO E TRADUÇÃO...........................................45 2.1. Observações...............................................................46 2.2. Texto grego e tradução.............................................48 CAPÍTULO III TRADUÇÃO DIRIGIDA........................................................70 3.1. Introdução..................................................................71

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3.2. Tradução dirigida do canto I da Ilíada De Homero........................................................................76 3.3. Comentários gerais.................................................117 CONCLUSÃO.........................................................................121 REFERÊNCIAS.......................................................................123

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TEORIA E UMA TRADUÇÃO LINEAR DO CANTO I DA

ILÍADA DE HOMERO

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INTRODUÇÃO Como vem sendo a tradução de textos clássicos (da Antigüidade clássica), ou melhor, como vem sendo o processo de preparação de uma tradução de um texto clássico? Além disso, costuma-se ou poder-se-ia falar de diferenças entre o processo de tradução de um texto clássico escrito em língua não mais falada hoje em dia e o processo de tradução de um texto escrito em língua ainda falada? Essas questões nos passaram pela mente quando organizávamos uma tradução do canto I da Ilíada de Homero, do Grego antigo (Grego não mais falado) para o Português, tendo em vista uma elaboração de uma espécie de tradução dirigida. Trata-se, na verdade, de um conjunto de notas que expliquem os porquês da tradução proposta por nós. Contudo, antes de nos debruçarmos nessa proposta de tradução e notas – em relação às quais nosso maior interesse é didático –, impôs-se-nos discutir idéias formadas que há sobre o processo de tradução não discernindo tradução de uma língua não mais falada e tradução de uma ainda falada. Com isso, coube desenvolvimermos uma espécie de teoria de tradução do texto clássico e em língua não mais falada, especificamente: é o nosso capítulo I, com alguns tópicos em que, dentre outras questões, discutem-se a noção de o que seja texto clássico, tipos de tradução (do texto clássico) verificadas ao longo do tempo, cuidados que propomos o tradutor deva ter etc. Nossa proposta de tradução, dentro de uma classificação em três tipos feita no capítulo I, está chamada linear. A pormenorização deles é feita no mesmo capítulo. É importante ratificarmos que, uma vez sendo didática a nossa preocupação, concentramo-nos nos aspectos

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eminentemente lingüísticos do processo orientado da tradução proposta. Isso significa que, mesmo se disso decorra uma interpretação literária, o objetivo maior deste trabalho é orientar o estudante ou pesquisador nas questões de vocabulário, uso de preposições, uso de casos (questão das declinações), etimologias... Vantagens e desvantagens são propostas quanto aos tipos de traduções apresentados, bem como quanto à nossa própria proposta. Nossa intenção, com isso, é sugerir que não haveria a tradução melhor, mas, mais provavelmente, tira-se aprendizado tanto das boas como das más, o conjunto e a complementação de uma a outra sendo algo valioso ao estudante ou pesquisador. Enfim, nos capítulos II e III, seguem-se, respectivamente, nossa proposta de tradução do canto I da Ilíada de Homero (texto Grego em poesia, original, e tradução em prosa) e aquilo que chamamos de tradução dirigida do canto I, explicações de trechos da tradução, em forma de notas. Um último detalhe: a escolha do canto I da Ilíada de Homero – e não de um texto outro – para elaboração deste trabalho refere-se não exclusivamente à importância histórica, cultural e artística desse texto, mas também a ele servir à proposta de orientação da tradução mencionada por ser dos mais antigos escritos em Grego antigo (isto é, o Grego não mais falado). Que importa isso no aperfeiçoamento do leitor-tradutor? Importa (defende-se aqui) na medida em que esse leitor-tradutor planeje verificar as formas mais antigas das palavras que, não poucas vezes, transformaram-se quando chegaram ao dialeto Ático ( odialeto que serviu e serve para uso e para composição de palavras de alcance mundial). Além disso, o contato do leitor-tradutor com um texto anterior à formação do dialeto Ático proporcionar-lhe-á conhecimento da progressão que possa haver ocorrido

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quanto à significação das palavras. Assim, o leitor-tradutor não necessitará de memorizar várias idéias ou significados para as palavras mais complexas, mas se familiarizará naturalmente: na ordem de evolução das idéias.

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CAPÍTULO I TEORIA DE UMA

TRADUÇÃO LINEAR

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1.1. ARTICULANDO-SE UM PROBLEMA SOBRE TRADUÇÃO Quando um texto ganha circulação e é originariamente escrito na mesma língua do leitor, é comum ouvir-se de quem ouve falar a respeito do tal texto: quem é o autor? Essa pergunta pode se referir, parece, a várias questões, a dizer, na verdade, quem faz a pergunta pode estar querendo saber se o autor teria publicado outras obras, e assim aquele poder tomá-lo como referência de valor ou por já tê-lo lido e gostar do estilo do autor, ou por apreciar a obra em termos de valor literário (afinal, pode-se gostar do que um autor escreve por n motivos, v.g., apenas porque ele distraia, divirta, provoque o senso de investigação, cause suspense...), ou porque quem pergunta avalie um autor simplesmente pela quantidade de obras ou trabalhos escritos por ele... Mas será a mesma a pergunta feita a respeito de um texto dito clássico e escrito originariamente em língua diferente da do leitor? Mais ainda, e se tenha sido escrito numa língua antiga, antiga, digamos, porque não mais é falada ou passou por evoluções fonético-fonológicas que levem a se crer que uma única língua possa ter se diferenciado para consigo mesma em determinados momentos de sua história? Essas duas questões, em soma, não são nada simples e envolvem muitos elementos culturais, de ambos os lados do processo de tradução: o do tradutor e o do leitor que o tradutor espera que leia sua tradução. Ambas as questões são objetos de nossa discussão sobre o processo de tradução, em particular, como já se sabe, de um texto em Grego antigo, a Ilíada de Homero. Como usamos o termo clássico para se enquadrar a Ilíada sob certa perspectiva literária, convém, o quanto antes e por motivos que esperamos estarem esclarecidos ao

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final da primeira parte da discussão, explicar em que sentido o empregamos, aqui. Dizemos, aqui, clássico o texto literário com duas facetas: de uma, trata-se do texto elaborado mediante certos elementos técnicos os quais, devido à sua eficácia que se comprove, em expressar bem o que quer que o autor queira expressar na sua composição, tornaram-se recorrentes. A idéia parece-nos clara: se se constate algo ser bom, o natural é que se volte a usá-lo, “re-corra-se” a ele. A outra faceta, porém, seria de ordem mais importante, pois que se trata de o que o texto queira dizer, quais imagens mentais ele suscite. Os recursos técnicos que o levam a dizer bem ou mal o que diga são, pensamos, como que os caminhos, os vários métodos1 de aquisição do objetivo-mor: a apreensão do texto e a compreensão das idéias centrais, ambas as coisas feitas pelo leitor.1 O texto clássico, então, tanto pode reportar-se aos recursos como às idéias, apresentados no texto. Mas quaisquer idéias? Primordialmente, devem ter sido idéias virtuosas. Eram idéias dignas de ser cultivadas e fomentadas pelo ser humano, idéias admiráveis e repletas de retidão. O próprio termo cultivar, em Latim, ajuda a se entender o sentido dessas idéias clássicas: o verbo cŏlo « habitar; cultivar », do qual deriva um vulgar *cultiuare traz consigo uma idéia de rotatividade, uma espécie de perpetuação e, daí, cultura. A perpetuação (ou pelo menos uma longevidade), portanto, é intimamente ligada ao que venha a ser clássico, sobretudo a perpetuação de valores bons ao ser humano: as virtudes. Sem querermos nos aprofundar na questão (já que a apresentamos, aqui, simplesmente para servir de pressuposto ao nosso objeto de estudo), digamos que a presença de vícios (conquanto oposição a virtudes) nos 1 mevqodo", do Grego antigo, que nos deu, em Português, método, refere-se precisamente ao transcurso, é como se a questão fosse o como chegar, e não a partida ou a chegada em si.

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textos clássicos teria ocorrido como um modo de se enfatizarem as oposições entre o que é bom e o que é ruim (latu sensu) ao ser humano. Nas epopéias, em certo momento, chegou-se a perceber esse tipo de oposição como um modo de o artista, autor do texto, lembrar o leitor, lembrá-lo de o que se ganhe por oposição ao que seja ruim. Pense-se em resgate ou rememoração desses valores, a idéia de ciclicidade, recorrência quanto ao que se tenha consagrado como bom entre uma cultura parece óbvia. Feita essa nossa digressão, voltemos às perguntas colocadas no segundo parágrafo: mesmo se um texto seja considerado clássico, o leitor de uma tradução se restringirá a saber o autor da obra que esteja lendo? No caso do leitor mais leigo ou daquele mais de curiosidade ou especulação esporádica, parece que sim, na maioria das vezes. Mas para uma minoria de leitores, mais informados sobre as obras do autor (e daí, sobre seu estilo), o leitor que não se contenta com a leitura do texto em si, mas sempre procura detalhes ou uma ampliação do entendimento do que está lendo, para ele (o leitor) é natural perguntar quem é o tradutor, em adição a quem é o autor. Essa diferença de leitores, já podemos adiantar, deve estar intimamente ligada à época em que vivemos: numa época imediatista como a nossa, em que tudo e qualquer coisa parece ser tratada com vista para um fim, uma utilização de ordem prática, não sobra muito espaço para teorizações que enfatizem o exercício (o fato de se exercer) do intelecto como fim em si. Não estamos, de modo algum, crucificando o estado atual das coisas: não vemos nada de mais em que uma teoria leve a um objetivo prático, exeqüível, mas também cremos que um (a teoria ou a prática) não deva se sobrepor ao outro. A prática pela prática pode levar a um atrofiamento do intelecto, e aqui nos referimos sobretudo à perda da capacidade de discussão, de pesquisar-se, de

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contraporem-se idéias, e assim por diante, coisa que não pode ser boa em termos de evolução do ser humano. Por outro lado, a teoria pela teoria tampouco deve ser a resposta ao problema, pois, se transcorrêssemos a vida somente com reflexões, deixaríamos de desfrutar daquilo que podemos concretizar com criatividade. Seria tudo, então, uma questão de equilíbrio. Mas por que o interesse do leitor em saber quem seja o tradutor? É que, uma vez admitido esse imediatismo das coisas na época atual, o processo de tradução também está suscetível a efeitos. Estamos falando da banalização do processo de tradução: por conta de uma demanda veloz e crescente das áreas de pesquisa e de produção, torna-se imprescindível um também rápido contato com os instrumentos de aprendizado. E sendo a tradução um processo que procure viabilizar o tão almejado (e muitas vezes imediatista) conhecimento sobre algo, ela também se torna vítima potencial das desvantagens da questão. Nossa discussão, agora sentimo-nos à vontade em dizer, gira em torno não de uma estimativa quanto ao valor de uma ou de outra tradução. Há coisas boas e ruins em todas, inclusive na nossa, detalhes esses que repetimos noutro momento da discussão. Em particular, tratamos, nos próximos tópicos, do processo de tradução do Grego antigo e, mais especificamente, do Grego dito homérico, em referência a Homero, provável autor da Ilíada, texto dos mais antigos escritos e sobreviventes em língua grega, se não o mais antigo. Não se trata de um estudo do texto (canto I da Ilíada) eminentemente interpretativo, muito embora, repetimos adiante, deva conduzir a tal. Nosso estudo centra-se no passo-a-passo do processo de tradução do Grego antigo: é, no imo, uma proposta de se

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teorizar a tradução. Não apresentamos nossa proposta de tradução e depois a teorizamos. Seria contra nossos propósitos. Fazemos, sim, é se tentar forjar uma teoria cujos produtos são nossa tradução, pois outras podem seguir a mesma teoria. Em suma, tratamos de, nos próximos tópicos: a) discernir o processo de tradução de um língua moderna (e daí entenda-se língua ainda falada) do de tradução de uma língua antiga (não mais falada e reconhecível pelos textos ou registros escritos). É uma seção de linhas gerais; b) esboçar o processo de uma tradução dita linear; Embora somente dois tópicos, o b pode estar dividido em vários outros que propõem, sempre em cotejo a outras traduções, os vários aspectos que levamos em conta numa tradução de um texto em língua antiga, como em Grego antigo.

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1.2. SONDANDO-SE O QUE HÁ SOBRE O PROCESSO DE TRADUÇÃO É natural que, numa época em que venha prevalecendo o imediatismo (e sendo tradução algo indispensável para acesso a uma expansão de conhecimento noutras línguas), já seja tempo de se ter discutido o processo de tradução. De fato, já há muito escrito sobre isso: há “manuais” de tradução, técnicas para tradução, teorias da tradução, livros que tratam de uma história da tradução... A lista é longa e tem mais de ser, mesmo. O problema é que talvez nenhuma obra ainda tenha tratado ou sequer considerado diferenças entre a tradução de uma língua a qual ainda falada (e escrita) e a de uma língua que ou sobreviva somente pelos textos, ou exista falada (e escrita) mas tenha evoluído a ponto de poder ser tratada como uma nova língua. No segundo caso (em que estão os “ou”), propomos que o Grego como que teria evoluído a ponto de se dizer uma nova língua, tamanhas são as diferenças constatáveis, como, por exemplo, quanto à formação da forma verbal que expressa futuro, que hoje se faz com a forma verbal associada a uma partícula específica qa, coisa que não ocorria no Grego antigo. Certos vocábulos, às vezes até bem antigos, também podem ter sofrido evoluções semânticas diversas, mas já isso é comum a qualquer língua, no curso de sua evolução, não somente ao Grego. Mas, enfim, existiria tal diferença entre traduzir-se um texto em língua do primeiro ou do segundo casos? Já falaremos sobre isso. Antes, porém, parece importante falar-se um pouco sobre o que nos parece limitado, incompleto no que se tem escrito sobre tradução: mesmo propondo-se, por vezes, a tocar (como nos livros de

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história da tradução) nos textos em línguas antigas, parece que muitos estudiosos não conseguem abstrair em sua análise a língua em que se objetiva traduzir. É claro que, sendo a língua (idioma) um elemento de comunicação e, portanto, sociológico, parece, à primeira vista, difícil o tradutor separar de sua formação, de suas crenças seu processo de tradução, isto é, o seu processo de adaptar o que leu no original. A palavra adaptar, aí, é perigosa, usamo-la por falta de uma melhor. É perigosa porque pode sugerir várias idéias quanto à função do tradutor, mas isso falamos mais adiante. Com isso tudo queremos já dizer isto: se a função do tradutor seja recuperar as expressões da melhor forma possível, adaptando-as de uma língua para outra, que se dizer, então, de ele traduzir um texto de uma língua não mais falada e, ainda por cima, um texto clássico? Se o seja texto clássico, este é para possuir certos elementos de valor que se consagraram como bons por um muito longo período e até mesmo possam gozar de estima sem prazo. E se seja assim, isso significa que o tradutor não deve se restringir à mera adaptação das idéias de uma língua para outra. Tudo bem, vemos adiante que a tradução, mesmo a de um texto em língua antiga ou a de um clássico, seria (pensamos) sempre uma adaptação. Mas isso não impede de o tradutor também procurar recuperar sentidos não-correntes na época da tradução. Pelo contrário, se as idéias que esteja traduzindo foram e continuam sendo consagradas, pela mesma razão devem ser mantidas em termos de significação. Em resumo, admitimos que o processo de tradução de uma língua antiga (isto é, não mais falada) se deva fazer tanto por adpatação como por recuperação de sentidos.

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1.3. DISCERNINDO-SE A TRADUÇÃO DE UMA LÍNGUA FALADA DA DE UMA NÃO MAIS FALADA Uma vez admitidas essas funções e, a um só tempo, responsabilidades, compromissos do tradutor para com o autor e para com o leitor da obra traduzida, parece sensato reconhecer-se que o trabalho sistemático de tradução não seja nada leviano. Fazemos, agora, um contraponto entre o que chamamos trabalho sistemático de tradução e trabalho esporádico de tradução, a fim de se evitarem mal-entendidos. Novamente nos calcando na idéia do imediatismo exacerbado que haja hoje em dia, todas as áreas de conhecimento humano precisam de traduções, mas devido a n razões (falta de tempo do interessado, prioridades dele...), não poucas vezes as noções básicas do processo2 de tradução são atropeladas a ponto de qualquer um se considerar um tradutor. Em primeiro lugar, é freqüente que aquele que considere a si tradutor não faça distinção entre ele conseguir ler (para si) traduzindo e ele conseguir escrever uma tradução (para si). E quanto a se ele se propusesse a traduzir para outrem? Certamente, sua preocupação em outrem ouvir ou ler sua tradução não seria a mesma sob todos os aspectos. Claro que há muitas questões envolvidas, nessa simples troca (traduzir para si X traduzir para outrem), que determinariam o grau de apuro desse tradutor, questões, muitas vezes, de ordem social, dentre outras. Mas o que nos interessa disso, aqui, é que esse tradutor (que não distingue o traduzir lendo do escrever

2 Sempre usamos a expressão processo de tradução, nesta discussão, para nos referir à preparação passo a passo de uma tradução, e não ao produto, o qual é a tradução já pronta e acabada.

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uma tradução é o que chamamos, há pouco, de esporádico. Opomo-lo ao tradutor sistemático, não uma oposição necessariamente valorativa, mas tão-somente uma oposição referente ao grau de aprofundamento do indivíduo para com o processo de tradução. Se esteja esclarecido esse “grau” do tradutor, afiguram-se vários outros, como aquele no qual, o tradutor não tendo qualquer conhecimento da língua original de que foi traduzido um texto que lhe interesse, conforma-se, contenta-se em ler uma “tradução da tradução”, seja lá o que se entenda por isso! Não estamos, com isso, sugerindo que, doravante, todas as pessoas devam sair aprendendo várias línguas para acessar (da melhor maneira possível, como cremos) os textos (na verdade, as idéias contidas nos textos) quaisquer que sejam. Novamente, é apenas uma questão de graduar os tradutores. Ora, se já admitimos que uma boa tradução deva se preocupar com a adaptação e com a recuperação de sentidos (significados), mormente em se tratando de textos em línguas não mais faladas ou clássicos, e admitimos que uma língua é dos principais elementos cívicos e sociais em meio a um povo, como pode um tradutor não-familiarizado, não-iniciado na língua que traduz e na língua original do texto traduzido fazer uma adaptação de outra adaptação? Soa como um dos cúmulos que podem ser cogitados como produto dessa nossa época imediatista, cúmulo esse, porém, que provavelmente esteja bem enquadrado nos ditos “padrões” de nossa época... Quer dizer, não parece haver nada de inesperado quanto a esse quadro atual de facetas do tradutor. Discernidos, em linhas gerais, o tradutor esporádico e o tradutor sistemático, e reconhecidas as funções que consideramos precípuas ao tradutor sistemático, podemos começar a tratar de algumas questões mais concretas

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quanto a diferenciar da tradução de uma língua falada a tadução de uma não mais falada. O termo que temos usado, recuperação de sentidos, é sugestivo a um primeiro cuidado que o tradutor sério deva ter em mente, cuidado básico e referente a tradução de palavras (tradução de frases, já vamos ver). O cuidado a que nos referimos é um que parece muitas vezes afligir o estudante principiante da língua que esteja traduzindo e, por outro lado, ser um cuidado completamente ignorado ou, mais provavelmente, realmente desconhecido do tradutor esporádico. O cuidado que propomos que se deva ter é o de o tradutor não se deixar tomar pela comodidade aparente de uma tradução de uma língua antiga3. É cômodo o tradutor buscar como tradução para certa palavra logo a primeira definição que localize no verbete de um dicionário. É uma prática comum e, muitas vezes, funciona quando não se trata de uma língua antiga. Mas por que isso? Não são ambas (uma antiga e uma atual) línguas? Por que, então, o tratamento e, portanto, a tradução devem ser diferenciados? É que, sendo a língua do texto antiga, o léxico dessa língua como que cristalizou-se: como toda língua, ela passou por uma progressão evolutiva (em termos fonéticos e semânticos), mas que por um motivo ou outro (jugo sobre a civilização, desaparecimento desta...) “estancou”, estagnou-se no tempo. Quer dizer, por uma falta, ausência do exercício da fala, mesmo continuando-se a escrita, a língua não teria, provavelmente, a desenvoltura espontânea que se espera de qualquer língua. Mas não é somente quanto a isso que o tradutor deve ser cauteloso. Uma vez que essa língua antiga tenha “parado” no tempo, é como se sua história já tivesse sido escrita e, por isso, seu “universo” de idéias já está fechado, 3 Sempre que nos reportamos nos tópicos 1.X. às palavras língua antiga, entenda-se língua não mais falada.

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seus significados e conceitos ficaram aqueles para sempre, já que, mesmo se uma nova sociedade procurasse assimilar a língua daquela, seria algo impraticável na medida em que artificial: os hábitos e as crenças, as concepções individuais e coletivas é que moldam uma língua e essa civilização assimilante seria uma mera sombra da assimilada, pois, para todos os efeitos, não seria ela. Sendo assim, o tradutor deve: a) buscar o significado do vocábulo que esteja traduzindo tendo em vista a adequação daquele ao contexto não somente do texto mas da própria época da civilização, pois que o conjunto de idéias daquela língua, acabado ou não, já está fechado, delimitado. Um exemplo bastante simples é a própria Ilíada, um de cujos cantos é um de nossos objetos de estudo: embora certos mitos, na Ilíada, não confiram com os da Teogonia de Hesíodo, muitos outros fazem a ponte entre uma e outra obra; b) não se limitar a ficar somente no texto original para referência. Já estando a língua com sua história feita, pode haver muitos outros recursos que ajudem o tradutor a se “impregnar” das idéias no texto. É como se o tradutor procurasse, de fato, transportar-se à época de produção do texto e até a épocas mais remotas (se assim o fizer o texto, escrito numa época, mas referindo-se a outra). Os recursos a que fizemos menção, para auxiliar o tradutor, seriam, dentre outros: livros de história, enciclopédias, referências de outros escritores da civilização da língua traduzida que tenham tratado do texto em exame, intertextualidade... Tudo isso deve parecer um embargo ao estudante que visa a se tornar um bom tradutor? Não! Jamais! De início, nos primeiros contatos entre o tradutor e a língua a que se proponha traduzir, é freqüente esse tipo de receio quanto

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ao aparente passo lento do processo de tradução. Aparente e que, para que se dirima tal concepção precipitada, prematura lembramos: a) o fato de ser uma língua de idéias já delimitadas significa que, uma hora, com a prática, vá-se criando familiaridade com o modo de pensar daquele povo. Quer dizer, enquanto numa língua atual as ideías ainda podem se ampliar ou se modificar, as da antiga são aquelas, e pronto! A recorrência delas na mente do tradutor gererá facilidade em lidar-se com elas e com outras facilmente associáveis. E como viria a recorrência? Com a leitura dos textos da língua a ser traduzida, leitura integral, sistematizada e paciente. Acreditamos que o primeiro contato deve ser com o texto original, seguido de outros com os recursos de auxílio à tradução que já dissemos; b) o fato de ser uma língua não mais falada significa que o contato do tradutor com ela (o seu “exercício”, o fato de exercê-la) será exclusivamente mediante os textos ou os materiais de estudos desses textos. É diferente do contato com uma língua atual! O Inglês, por exemplo, havendo se propagado pelo mundo de hoje, está acessível ao estudante em todo lugar, praticamente: nomes comerciais, televisão, filmes, revistas... A lista é grande. Mas que interessa nisso? Interessa saber que, com tantos contatos potenciais ao estudante, a rapidez de sua aprendizagem de uma língua a qual esteja nessas condições acaba dando-lhe (ao estudante) um impressão de que, quando já se trata de aprender uma língua antiga, seu aprendizado seja (muito) lento. Guardadas as proporções, o ritmo de aprendizagem pode vir a ser o mesmo, bastando, para isso, que o estudante-tradutor compense o contato com a língua antiga: conquanto com a atual há vários, com a antiga, a maior parte deverá ser com os textos originais. Trata-se, enfim,

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não de um estado de conformação a que se deva entregar o estudante-tradutor, quanto ao seu aparente passo lento de tradução. O passo lento o será se assim deixar que seja o próprio tradutor! Muito pelo contrário a uma conformação, trata-se de uma questão de conscientização do processo, por parte do tradutor. Diga-se, então: o processo de tradução, para todos os envolvidos (autor, tradutor e leitor), é bom que seja paciente e cuidadoso, não precipitado e tampouco letárgico. São esses os cuidados básicos que propomos ao tradutor. E agora acreditamos que podemos passar ao exame do processo de tradução da língua que particularmente é a da tradução que propomos e estudamos nesta discussão.

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1.4. TIPOS DE TRADUÇÃO VERIFICADAS AO LONGO DO TEMPO Propostos os argumentos-base de nossa discussão, estamos a um tópico de nos “embrenhar” nos pormenores do processo de tradução do Grego antigo na Ilíada de Homero, canto I, especificamente. Achamos sugestivo o termo embrenhar porque, agora, podemos estar aptos a nos meter no terreno específico a se examinar, o do Grego dito homérico, terreno que é denso (como um bosque), mas que, decerto, guarda grande fecundidade no âmbito cultural e intelectual já no próprio processo de tradução. Antes disso, porém, faz-se oportuno, brevemente, sondarmos alguns tipos de tradução já relativamente consagrados ao longo do tempo. É importante dizermos que, dada a escassez (como já dissemos) de materiais que tratem especificamente sobre tradução de línguas antigas, a classificação, a seguir, é ilustrativa, uma mera referência, e não propomos nada de cabal quanto a ela. Essa classificação é apenas para que não comecemos essa parte da discussão calcando no vazio. Dito isso, passemos à classificação, com exemplos, para propormos, por conseguinte, um conceito do tipo de tradução que utilizamos no canto I, tipo esse – já adiantamos – que também não é nem perfeito tampouco melhor que outros. É nossa opção e, como os demais tipos, tem vantagens e desvantagens, sempre lembramos. Diga-se: tradução tem algo de arte, de equilíbrio e de criação, mas sempre comprometida com aqueles elementos essenciais de que já tratamos. A tradução depende, em boa parte, do ponto de vista do tradutor: seus objetivos é que darão cara à tradução, é algo do de gustibus et coloribus non est disputandum4 romano. 4 É um pensamento popular dos romanos, “gostos e cores não são de se discutir”, popularizado como “gosto não se discute”, embora vejam-se as nuances.

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Lorna Hardwick, no início de seu livro, o qual tem como alvo, escopo

(...) to explore some of the ways in which writers and translators have responded to poetry which was originally written in Latin or Greek. (Hardwick, 2000 : 9-10) (…) explorar alguns dos modos em que escritores e tradutores responderam a poesia a qual foi originariamente escrita em Latim ou Grego.

já abre a discussão apresentando três variantes de traduções de um mesmo trecho. Parece-nos oportuno considerar a proposta de classificação de traduções, classificação feita por Hardwick, porque, embora limite-se ao âmbito de tradução do Latim/Grego para o Inglês (isto é, ela não examina casos noutras línguas), centra-se no texto em poesia5, o que nos interessa, em particular, por a Ilíada ser um poema, e mesmo sendo que a propomos tradução em prosa. Hardwick, enfim, apresenta estas três versões da Eneida de Virgílio: The batalis and the man I wil discrive Fra Troys boundis first that fugitive

By fait to Ytail come and cost Lavyne (Douglas, G. apud Hardwick, L., 2000) Nossas traduções, aqui, não tentam recuperar os

efeitos fonéticos expressivos. As batalhas e o homem eu descreverei Que dos lindes6 de Tróia, primeiro, fugitivo, Por ação do fado, à Itália e à costa Lavínia vem.

5 Usamos poesia por oposição (por falta de um termo melhor) a prosa. Se tivéssemos dito texto poético, no trecho, poder-se-ia criar confusão, já que o texto em prosa pode possuir elementos poéticos, conquanto o texto que se proponha poema pode tê-los prosaicos. 6 lindes = limites.

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Essa versão inglesa (versão da tradução) data de 1513. I tell about war and the hero who first from Troy’s frontier, Displaced by destiny, came to the Lavinian shores, To Italy (Lewys, C. Day apud Hardwick, L., 2000)

Eu narro a respeito de guerra e do herói que, primeiro, da 1ov. fronteira de Tróia (1ov.)

Deslocado7 pelo destino, veio aos litorais de Lavínio, A Itália. Essa segunda versão é de 1952. I sing of arms and of the man, fated to be an exile, who long since (1ov.) left the land of Troy and came to Italy to the shores of Lavinium (2ov.) (West, David apud Hardwick, L., 2000) Eu canto das armas e do homem, fadado8 a ser um exilado, o qual havia muito desde que (1ov.) deixou a terra de Tróia e veio à Itália até os litorais de Lavínio. Essa última, data de 1970. Quanto à classificação das traduções, improvisamos

uma calcados nas explicações de Hardwick, já que a autora não as classifica nomeadamente.

A primeira, anterior ao Renascimento, tem algo de pioneiro, pois não estava presa a modelos de tradução. Discutindo o autor (Douglas) em seu prefácio, o objetivo foi o de a tradução ser acessível (em termos de compreensão) a uma vasta audiência, não apenas a príncipes e a poderosos,

7 O termo displaced também pode significar desenquadrado, não-adaptado ao meio em que se encontre. Nessa conotação, deve ter a ver com a idéia de que Eneías teria sido compelido a fugir devido às circunstâncias adversas, teria algo de premência quanto à sua partida. 8 Embora pudesse sobrecarregar a tradução, o termo fated, verbo no passado simples do Inglês, indica, na verdade, fadado por um tempo, e não, permanentemente. Mesmo que a Eneida talvez encerre de forma um tanto ab-rupta, o poeta dá indícios de que as tarefas de Enéias, ao fim do poema, têm suas bases lançadas, o que não implica, portanto, que ele fosse fadado (ao que quer que fosse) por tempo indeterminado.

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mas ainda às pessoas iletradas e às crianças que estudavam Virgílio na escola.

A autora usa os termos plain « plano » e direct « direta » para se referir à linguagem, numa visão geral utilizada por Douglas, e completa que os objetivos dele (quanto à audiência)

(...) were helped by the plain rather than ornate words and phrases he used. (Hardwick, 2000 : 11) (…) foram ajudados pelas palavras e frases planas que usou preferencialmente às ornadas. Esse termo, plain, pode significar simples, por

oposição a detalhado, a complicado, a complexo... Não tem nada a ver com simplório. Entretanto, o prefácio de Douglas enfatiza a criatividade, uns de cujos recursos utilizados por Douglas são a expressividade fonética e o próprio ritmo, a própria fluência da tradução, o que fez Douglas, na verdade, criar um novo poema, sob seu próprio direito.

A tradução dele, diz a autora, daria em mais do que há no texto original (o mais, aí, não se referindo necessariamente a quantidade). Para nossa proposta, classificar esse tipo de tradução como plana não nos parece boa idéia, porque pode se atrapalhar com a da nossa tradução, dita linear.

Sendo a ênfase, na de Douglas, na criatividade, vamos chamá-la recriada ou transcriada9.

É curioso e proveitoso à nossa discussão atentar-se que, possuindo o Português e o Grego antigo princípios de métrica poética incomparáveis (os de um com os de outro), a simples tradução em verso já seria em si, digamos, uma

9 O termo transcriação já goza de certo delineamento no âmbito de análise literária. Apenas observe-se que, no trecho, usamos transcriada nos referindo exclusivamente quanto a tradução e sem rigidez qualitativa.

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recriação. Isso sem nem se levarem em conta tantos outros recursos possíveis para adaptação da tradução.

A segundo tradução, a de West, tentou, como diz a autora, fazer uma ponte, calcada numa falsa dicotomia, entre erudição e poesia. Ainda mais, o tradutor deveria, idealmente,

(...) honour the drama, the characterisation and the details. (Wets, David apud Hardwick, L., 2000) (…) prestigiar o drama, a caracterização e os detalhes. Por detalhes, diz Hardwick estarem inclusos recursos

poéticos tais como efeitos de som, pausas num meio das linhas e os efeitos sutis que o Latim possui na ordem das palavras. O autor se proclamava, também, ostensivamente accurate, isto é, preciso, exato.

Na nossa concepção, a tradução desse tipo pecaria por correr o risco de tornar inacessível um texto em virtude da necessidade de informações que o complementem para compreensão.

Ora, já temos discutido o trabalho do tradutor sistemático. É árduo, porém pode ser altamente produtivo para todos os envolvidos (inclusive para ele mesmo). Se, para o tradutor, é bom que ele se muna, complemente seu estudo do texto original a traduzir, com outros textos que não somente o de objeto da tradução, por que, então, embargar o leitor, por sua vez? É como se fosse uma transferência de passos: o tradutor passou por aquilo, e o leitor, mesmo que se num grau menor, acaba passando por isso também.

Além disso, A translator’s aim to communicate the ‘nobility’ of Homer or the ‘sublimity’ of Vergil is not a matter of simple lexical

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transfer but of cultural shaping and interpretation. (Hardwick, 2000 : 17) O escopo, de um tradutor, de comunicar a ‘renomabilidade’10 de Homero ou a sublimidade de Virgílio não é uma questão de simples transferência lexical, mas de amoldamento cultural e interpretação.

Trata-se, portanto, mais uma vez, da responsabilidade, do compromisso do tradutor sistemático, para com o autor, o leitor e mesmo a sua sociedade e outras possíveis vindouras. A classificação, enfim, que propomos a esse tipo de tradução é tradução erudita, talvez melhor nome do que precisa, pois precisa (exata) para quem? Somente para os eruditos? Como a segunda tradução, a de Lewys, é a que seria a de nosso tipo, em linhas gerais, convém citar a autora, nós levando em consideração as duas outras versões de tradução:

It is a commonplace to say that something is lost in all translations. However, asking precisely what is lost in a particular work, and comparing this with what is gained, makes for a far more interesting inquiry. (Hardwick, 2000 : 16) É um lugar-comum dizer que algo é perdido em todas as traduções. Contudo, perguntar-se precisamente o que é perdido num trabalho particular e comparar-se isso com o que é ganho contribui a um questionamento bem mais interessante.

Um ponto de equilíbrio é nossa intenção maior, muito embora uma tradução com propostas mais particulares possam ser úteis, bastando, para isso, que o tradutor

10 Embora não haja essa palavra dicionarizada, queremos dizer que ela se refere ao fato de haver coisas dignas de renome em Homero. Se tivéssemos traduzido nobility por nobreza, haveria confusão com a idéia de riqueza material, o que deve ser excluído como aspecto virtuoso em Homero, isto é, em sua obra conhecida.

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procure esclarecer, num prefácio ou algo assim, quais seus objetivos. O terceiro e último tipo de tradução, o em que se enquadradria o nosso, pode ser resumido em algumas palavras da autora:

More recently the main feature of Homer’s style has been reformulated as ‘immediacy’. This concept includes use of concrete rather than abstract language, the effect being to relate the heroic to everyday life. To achieve this, Homeric epic used stylistic-features such as stock11 scenes (in battle for instance), formulaic epithets repeated to discribe a particular figure (‘swift-foot Achilles’) and extended12 similes which linked images of the everyday worlds of the audience to the imagined world of the poem. This analysis of course has implications for rhythm and verse form as well as word choice and metaphor and focuses attention on the nature of the Homeric text itself. (Hardwick, 2000 : 13-14) Mais recentemente, a principal feição do estilo de Homero foi reformulada como ‘imediação’. Esse conceito inclui uso de linguagem concreta preferencialmente a abstrata, o efeito sendo relacionar à vida quotidiana o heróico. Para conquistar isso, o épico Homérico usava feições estilísticas tais como cenas de ação (em batalha, por exemplo), epítetos formulaicos repetidos para descrever um personagem particular (‘Aquiles de-pés-velozes’) e contínuos símiles que conectassem ao mundo imaginado do poema as imagens dos mundos quotidianos da audiência. A análise, é óbvio, tem implicações para ritmo e forma de verso, bem como para escolha de palavras e metáfora e concentra atenção na natureza do texto Homérico em si. Em primeiro lugar, essa imediação presente nesse tipo

de tradução (a tradução linear), ironicamente, não deve ser 11 stock scenes pode se referir, também, a cenas de repertório, conotação essa que convém ao conceito de clássico do texto. No entanto, considerado o caráter de imediação de que fala a autora, cenas de ação parece mais adaptável às demais características do trecho. 12 extended similes: entenda-se extended como reiteradas conquanto símiles. Não é o caso de que um símile saia aparecendo mais de uma vez ao longo do poema.

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associada ao imediatismo dos dias de hoje, imediatismo do qual já tratamos. Essa imediação seria, pura e simplesmente, pensamos, a ausência ou a não-priorização, da parte do poeta, de elementos descritivos ou quaisquer recursos que vão, ao longo do texto, protelando as questões-base que compõe e vão dando uma noção de conjunto ao texto, conquanto significados totalizantes. Dentre esses recursos, que, pensamos, não seriam priorizados em Homero, estão, por exemplo, opiniões do narrador: o narrador, em Homero, se talvez tenha onisciência, por outro lado pode ser que não emita juízos quanto ao que narra.

A palavra imediação também pode ser-nos inteligida como simplicidade, mas simplicidade sobretudo vocabular, pois que, no grande texto clássico (como cremos sê-lo a Ilíada) , os temas podem ser simples, mas dignos de consideração. Estamos falando de uma predominância, no vocabulário, de termos simples, de fato, do quotidiano, o que não significa que, vez por outra, não possa aparecer um termo mais elaborado, possibilidade não-descartada num texto que se proponha arte, como deve ser o bom poema, por exemplo. Mas enfim: além da imediação (que está num plano mais geral de elementos a serem considerados na tradução linear), os três elementos citados pela autora são característicos e retomados em nossa tradução: cenas de ação tal como estão no texto (às vezes confusas, num bom sentido, porque recuperam uma espécie de atropelamento de imagens que o poeta vai nos lançando, numa tentativa de como que nos pôr em tempo real das batalhas), epítetos reiterados (muitas vezes imutáveis até a última letra) e os símiles. Por fim, quando a autora fala de o tradutor concentrar-se no texto em si, entendemos a proposta como:

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a) não sair-se do texto, ao menos num primeiro contato, buscar-se familiarização com ele. Trata-se, na tradução linear, de não buscar traduções de trechos específicos apenas porque elas tenham se popularizado ou convindo a determinado aspecto literário; b) deixar o texto falar, isto é, o tradutor como que se deixa levar pelo texto (e não o contrário!), não tenta inventar traduções, de o que quer que seja (de epítetos, de trechos, de idéias), as quais priorizem o embelezamento ou a eruditização ao invés da integridade do texto. Não é porque, por exemplo, um tradutor se depare, num trecho, com uma palavra tosca, a qual ele creia destoar com outras próximas, que ele deva substituí-la por uma “mais bonitinha”. Isso seria fugir da proposta de tradução linear. Dito isso, lembramos, mais uma vez, que não se trata de um juízo absoluto de valor de cada um dos três tipos de tradução propostos. Como já dissemos, nossa classificação é uma dentre várias possíveis classificações. Nossa escolha da linear tem uma intenção didática, como já nos referimos, também, já que, sendo dos três tipos a mais, digamos, acessível em termos de vocabulário, seria, talvez, a de melhor auxílio ao esrudante que simpatize com ou almeje a tradução do Grego antigo. Agora, que passamos à etapa específica do texto traduzido em questão, o canto I da Ilíada, informamos que as traduções consultadas por nós, quatro traduções (três em Português e uma em Inglês), serão trazidas, mediante fragmentos delas, para comparação com a nossa, comparação a título de detalhes que sirvam de discernimento entre os tipos de tradução propostos. A classificação delas, portanto, é paralela.

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1.5. PROCEDENDO-SE UMA TRADUÇÃO LINEAR DO CANTO I DA ILÍADA DE HOMERO: PORMENORIZANDO Delineadas as bases de nossa teoria de tradução, falemos das especificidades pelas quais optamos, em termos de materiais, para prepararmos o “terreno”. Haja vista a idéia de que uma tradução mais apurada envolve culturas e recuperação de sentidos, parece-nos útil “mergulhar” nas etimologias. Dizemos mergulhar por usarmos, na tradução feita, esse recurso abundantemente. Alguns esclarecimentos, porém, fazem-se necessários. Primeiramente, não falamos aqui de etimologia como normalmente se enprega o termo, levianamente. Entendemos por etimologia não a simples menção de uma palavra mais antiga, de outra língua dita mãe da em que aparece a palavra analisada (por exemplo, dizer-se “ah, essa palavra, filosofia, vem do Grego filo- « amigo » mais –sofia « sabedoria »). Tudo bem que, embora sucinta, a informação é aceitável. Mas lidar com etimologia seria, pensamos, muito mais que isso. Ou melhor, pode-se chegar a um grau bem mais profundo que esse. O tradutor mais debruçado nela não deve se contentar com isso: ele deve buscar o máximo de conotações que o termo possuiu na língua de origem, sobretudo se uma língua antiga (isto é, não mais falada) e que, pois, já fechou seu inventário do léxico. Quanto mais conotações o tradutor considerar (através do acúmulo de experiência), a tendência a ele chegar a um significado global mais antigo facilitará o entendimento de noções derivadas. Etimologia é algo arqueológico e histórico em si, não um passatempo engraçadinho, como alguns fazem parecer, algo que muitas vezes mais confunde a pessoa que escuta determinada etimologia de certa palavra.

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Por outro lado, com esse primeiro cuidado do tradutor, lidar com etimologia lhe dá oportunidade de visualizar imagens bem mais claras de certas coisas, o que lhe proporcionará à tradução, linear e espontaneamente, uma figuração mais artística e, daí, mais bela. Um exemplo desse último caso é o verso 15:

crusevw/ ajnaV skhvptrw/, kaiV livsseto pavnta" jAcaiouv" (...) (Homer, 1921) O ajnaV skhvptrw/ se refere às fitas que o sacerdote Crises

traz: elas estão ao cetro. Foi assim que traduzimos, pois o a preposição cobre a noção, dentre muitas outras, de acomodoção, adaptação. Mas o ajnav do Grego antigo é algo mais: indicaria uma acomodação, mas com uma espécie de curso ascendente, no trecho. Pela etimologia é que sabemos disso, e assim pode se afigurar-nos uma imagem bem mais interessante das fitas: elas estariam como que “copadas” (servindo de copa) ao cetro, ou talvez saindo de dentro do cetro em sentido ascendente. Como traduzir essa idéia? É difícil, mas a imagem é clara e sugestiva ao tradutor, ao menos.

Sendo assim, dicionários etimológicos foram nossos companheiros inseparáveis, para organização desses dados no nosso capítulo terceiro.

Porém, um detalhe de ordem mais técnica que apresentamos no capítulo 3 relativo a etimologia é a questão das raízes indo-européias. A raiz indo-européia, seguindo-se as teorias de Benveniste, 1980, é um conjunto de fonemas dito trilítere. Mas é dito trilítere apenas em termos formais, já que, na prática, a essência desses fonemas são os sempre dois fonemas consonânticos. Essa seqüência de fonemas, quando proposta em sua formoa-padrão, deve aparecer sempre o seguinte: consoante, vogal e, consoante. Exemplo: a raiz indo-européia referente ao desgaste (sobretudo pelo atrito, ou pela secura ou sede), à

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perfuração, e mesmo outras derivadas, como as noções de de fora (sem participação) e de de sobra também, é representada, na teoria de Benveniste, como *ter-. O asterisco indica a hipoteticidade da raiz, é um traço convencional na Filologia. Note-se, porém, que a raiz é um signo, um sema virtual, pois somente aparece associada a outros elementos morfo-fonéticos, passando ela, então, a radical ou tema, estado em que se encontra apta a receber desinências que, finalmente, fazem com que se forme uma palavra efetivamente usada em um idioma. Pode ocorrer, em formações arcaicas, que a raiz se una diretamente à desinência. É o caso, por exemplo, do verbo do Grego antigo mevnw, composto somente da raiz *men- « permanência; serenidade » e da desinência *-ō, marcadora de primeira pessoa do singular do presente do modo indicativo.

Afora isso, atente-se que a raiz pode aparecer no que se chama grau pleno ou, então, grau zero. Mas um ou outro, um só por vez, numa palavra, nunca os dois graus a um só tempo. Exemplo: a raiz *mer-, dita « morte, desaparecimento » (mas cujo significado deve ser bem mais rudimentar que esse) aparece, dentre outras palavras, no verbo do Latim mŏrĭor « morrer » e no substantivo do Grego antigo brotov" « mortal (por oposição a eterno) », que vem de *mr-otov" > *mbrotov" > brotov". No caso de mŏrĭor, a raiz, com alternância vocálica e/o comum no Indo-europeu, está em grau pleno (consoante, vogal e/o, consoante); em brotov", em grau zero (consoante, consoante).

Juntando-se para apoio ao material etimológico, estão alguns manuais de fonética histórica e geral. É que, para que não se corresse o risco de inventarmos nomenclaturas, eles ajudaram a mantermos certos termos técnicos já consagrados para se explicarem as evoluções fonéticas que trabalhamos no capítulo 3.

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Vale dizer, agora, que, embora tenhamos falado da importância de o tradutor se munir de materiais auxiliares, nosso estudo da tradução (capítulo III) se concentra eminentemente lingüísticos.

* * *

Esclarecidos nossos materiais teóricos usados em particular, nossa experiência tem mostrado a utilidade de o tradutor sistemático dispor de outras traduções do mesmo texto. Em termos de tradução linear, o que provavelmente mais nos auxilie noutras traduções (mesmo que traduções dos outros tipos) sejam palavras individuais. Mas por quê? É que, se o tradutor sistemático deve, por um lado (como propomos), buscar as várias conotações que tenha chegado a haver para certa palavra ao longo do tempo, por outro lado ele deve cuidar para não sobrecarregar sua tradução: a tradução linear enfatiza simplicidade no vocabulário, mas nem sempre dispõe-se de um palavra simples para se traduzir um conceito mais elaborado. Nesses casos, então, seria preferível procurar-se uma palavra a qual, mesmo se seja mais erudita, ao menos tenha a vantagem de ser uma só palavra, o que não sobrecarregará a tradução. A questão, agora, é evitarem-se desdobramentos excessivos, tanto de palavras como de estruturas frasais. É uma questão de se procurar manter, na tradução, na medida do possível, o mesmo número de palavras. Sobre o desdobramento de palavras, comparem-se as traduções desta fala de Aquiles a Agamêmnon: w! moi, ajnaideivhn ejpieimevne, kerdaleovfron (...) (Homero, 2001, I, v. 149) Nossa tradução:

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Basta, aproveitador abarrotado de despudor! A de Carlos Alberto Nunes:

Alma despida de pejo, que só de interesse se ocupa! (Homero, tr. Nunes, 2001) A de Alex Marins: Vulpina alma sem pejo, a teus acenos (...) (Homero, tr. Marins, 2003) A de Haroldo de Campos: Investes na impostura, ó ávido de ganhos! (Homero, tr. Campos, 2001) E, enfim, a de A. T. Murray: Ah me, clothed in shamelessness, thinking of profit (...) (Homer, tr. Murray, 1924) Antes de analisar os casos, procuremos classificá-las. A

nossa, como já se disse, propõe-se linear, bem como enquadramos a de Murray; a de Nunes seria mais tendente a erudita; a de Marins e de Haroldo, definitivamente, recriadas ou transcriadas.

Vamos aos pormenores. Antes de mais nada é preciso levar-se em conta que as

de Nunes, Marins e Campos são em verso, e a nossa e a de Murray, em prosa. O fato de traduzir em verso, portanto, limita bastante, às vezes, o espaço de tradução: como tenta-se, nesse caso, imitar o original na quantidade de versos, a tarefa não pode ser nada fácil, já que (como já se disse) os princípios métricos do Grego são bem diferentes dos da língua em questão, o Português.

Passemos, então, a uma comparação.

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No trecho grego, w! moi é uma interjeição (de um lamento, raiva ou surpresa), o ajnaideivhn complemento nominal de ejpieimevne (vocativo dirigido a Agamêmnon), e kerdaleovfron, outro vocativo dirigido a Agamêmnon.

Comparando-se as versões em prosa, a de Murray, pensamos, leva vantagem em termos de ser linear quanto à interjeição w! moi, porque o Inglês, de fato, usa Ah me também nas nuances do Grego antigo, o me (resquício de acusativo) na versão inglesa indicando que quem fala (Aquiles) é alvo, objeto ou é afetado por algo ou alguém, direta ou indiretamente. Já a nossa, porém, leva em conta o seguinte: o Aquiles, sendo um tanto impulsivo, “explode”, por assim dizer, nesse trecho do poema. Indignado para com Agamêmnon, começa a dirigir-lhe insultos e grosserias. Quisemos, então, traduzir a interjeição expressando a indignação e, ao mesmo tempo, o cume dela em Aquiles. O incoveniente é que usamos um verbo para traduzir uma interjeição, mas a naturalidade desse basta, em termos coloquiais, pode compensar.

A interjeição w! moi também pode ser interpretada como uma espécie de solilóquio, como se Aquiles desse um suspiro e pensasse consigo mesmo: Acalma-te, tem paciência, Aquiles!

Quanto aos vocábulos e o complemento nominal, fomos mais etimológicos e gramaticais do que o Murray. jEpieimevne compõe-se de ejpiv, que aí expressaria excesso, e um tema *-ei- que tem a ver com veste (própria ou metaforicamente). Uma tradução comum do termo seria revestido, mais o ajnaideivhn « sem-vergonhice, despudor ». Daí Murray traduzir bem, como clothed in shamelessness ou (re)vestido em sem-vergonhice. Nossa tradução, tentando recuperar a ênfase do ejpiv, deu abarrotado de despudor. O outro vocativo, kerdaleovfron, numa tradução literal quereria dizer algo como « que pensa em (muita) vantagem ». Nosso

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adjetivo aproveitador, em Português, parece caber bem: é uma só palavra e usa-se com conotação pejorativa, algo como oportunista. Em Inglês, já seria mais difícil haver uma palavra que sozinha expresse tal conceito. Murray parece ter feito o que pôde, dizendo thinking of profit « pensando em vantagem », tradução curiosa, pois que o gerúndio, muitas vezes, presta-se a funcionar como adjetivação.

Vá-se notando que as traduções têm vantagens e desvantagens entre si: nada ganha o tradutor que consulte outras traduções, além da sua própria, apenas para criticá-las.

Vamos, agora, examinar as em verso. A de Nunes, de modo geral, dizemos erudita porque,

a despeito de ser em verso e, por isso, fugir um pouco do texto original em poucos trechos, consegue recriar em verso o texto e ainda assim ser extremamente fiel ao original! É, para nós, a melhor tradução da Ilíada disponível em Português, até agora, já que equilibra o verso com a fidelidade às idéias do texto original. Seria erudita porque, dependente da métrica, teve de usar palavras, muitas vezes, de sorte mais erudita. Mas isso é bom: o ganho progressivo de vocabulário é um detalhe imprescindível ao bom tradutor. Um porém da tradução do Nunes, ironicamente, seria, também por conta da métrica, traduzirem-se por eruditos termos, às vezes, bastante simples e quotidianos do original, fato que pode dar ao leitor impressão de excessiva erudição do original, impressão que, não poucas vezes, arraigou-se ao leitor que ouve falar em texto clássico e pode deixá-lo receoso de ler o texto.

Somente para completarmos, a de Nunes traz não somente um longo prefácio falando de sua experiência de tradução da Ilíada e da Odisséia como até um glossário de termos-chave, muito útil, e que ajuda o leitor menos erudito

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a se erudir. Quer dizer, o tradutor procurou situar o leitor quanto ao seu método, ao menos.

A de Campos, já no prefácio, diz-se uma transcriação, o que enquadra a tradução em recriada ou transcriada.

E a de Marins, transcriada, sobretudo em se tratando de quantidade de versos: conquanto o original consta de 611 versos, a de Marins, apenas de 532 (!!).

Comparando-se as três, a de Nunes parece soar mais formal, mas sem excessos. Eliminou-se a interjeição, sim, mas sem grande prejuízo. O acréscimo do só como advérbio é interessante para expressar o ejpiv (embora o ejpiv está associado, no trecho, ao outro vocativo), e o verbo ocupar, que não aparece no original, é perdoado, pela métrica.

A de Campos troca um vocativo por um verbo, e o verbo investir parece-nos distante do ejpieimevne: traduzir o vocativo por revestido dá idéia de que Agamêmnon, para Aquiles, já está (no momento da fala) cheio de despudor. Mas o verbo investir daria a entender que Agamêmnon tem investido no despudor. É diferente, então. A idéia geral, nesse trecho, está, todavia, mantida, e o fato de Campos apresentar no prefácio seus objetivos ameniza a questão.

Por fim, a de Marins seria uma mescla de extrema erudição (o que não convém à proposta da editora Martim Claret, a proposta de tornar acessível o texto ao leitor, e peca por, além de ter de lidar com a métrica, mutilar 89 versos, o que é grave. Na verdade, o próprio verso que estamos analisando já dá indício desse último problema: o a teus acenos se refere ao verso seguinte do original, ficando apenas o vulpina alma sem pejo como representante solitário do verso original... O adjetivo vulpina, referente à astúcia da raposa, parece-nos demasiado erudito, ademais. A vantagem da tradução de Marins, porém, pode estar em oferecer, às vezes, termos pouco conhecidos que traduzam diretamente um termo grego e sobretudo termos técnicos

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(como os de navegação, que tanto aparecem na Ilíada). A tradução de Marins não deve, porém, ser um primeiro contato do leitor com a Ilíada, sob pena de achar-se de difícil leitura.

* * *

Para encerrarmos o capítulo, convém tocarmos em

mais alguns detalhes. Lembrando-se da imediação que tem permeado as

traduções mais recentes da Ilíada (de que fala Lorna Hardwick) e de que é a nossa proposta de tradução ser linear, dois detalhes parecem-nos importantes no processo de tradução, um deles um tanto peculiar a Homero.

O primeiro detalhe são as partículas orais. Como diz Murachco:

É importante insistir sempre sobre a oralidade que predominou não só antes da adoção da escrita (séc. VII a.C.), mas mesmo depois. Todos os autores gregos, que conhecemos agora pelos livros, pensavam na transmissão oral. (Murachco, 2001 : 623) É oportuno lembrarmos disso, sobre a escrita:

originariamente, a grande maioria dos autores gregos consagrados escreveu sem pontuação. As partículas orais é que seriam a marca viva de um embrião de o que viria a ser a pontuação como hoje a entendemos.

Mencionamos a questão das partículas a fim de que o tradutor tenha em vista duas coisas: a) as partículas é que são a verdadeira pontuação do texto grego antigo, não aquela posta por quem estabeleceu o texto. Isso significa que o tradutor deve ignorá-la se for necessária uma reformulação da pontuação que ele esteja propondo em consonância com elas;

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b) tão presentes nos textos gregos, o tradutor deve procurar não se cansar delas. É fácil ignorá-las. Mas, com paciência, vê-se que elas é que dão o ritmo, a fluência ao texto. São como um tempero que, sabendo-se apreciá-lo, não abrimos mão dele. Enfim, sendo o elemento oral algo difícil de se recuperar em sentido absoluto, o tradutor deve ir “sentindo” as partículas pela sua experiência ao longo de várias obras e de vários autores, e não decorando sentidos estagnados para traduzi-las em cascata, sempre da mesma forma, o que seria impraticável num texto como a Ilíada, tão cheio delas. Um bom exemplo é a partícula enclítica ge:

Partícula átona, por isso enclítica e pospositiva; chama a atenção para a palavra anterior. É uma das partículas mais empregadas em Grego. É nitidamente uma pontuação oral, que se põe depois de uma palavra para marcar uma pausa, uma inflexão e por isso mesmo pode ter uma força restritiva e enfática. Homero se serve dela juntando-a aos pronomes pessoais e demonstrativos. Muitas vezes fica intraduzível no contexto. Nos diálogos (Platão) e no teatro, ge é de uso muito freqüente; ela acrescenta muita vivacidade e intensidade à fala. Poderíamos apresentar centenas de exemplos, que os gramáticos colheram e tentam explicar, mas voltaríamos sempre à situação primeira, isto é, à sua função de pontuação oral, enfática, restritiva, muito próxima do sim, lançando uma luz especial sobre a palavra sobre a qual incide. (Murachco, 2001 : 635)

O segundo detalhe importante ao processo de tradução, sobretudo em Homero, é o das preposições, as quais, em Homero, estão mais próximas de seu sentido etimológico. Ademais, o fato de essas mesmas preposições

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poderem aparecer como prefixos ou advérbios é ainda mais evidente em Homero, daí as freqüentes tmeses13, em que o “ex-prefixo” retoma, na verdade, sua função primordial de advérbio, funcionando como preposição para com o termo14 com que se complete. Isso implica que, mesmo que traduzamos a tmese com uma só palavra, o tradutor que tiver em mente a imagem do advérbio e do verbo em conjunto terá uma idéia bem mais clara de o que o poeta tenha querido nos dar. A tmese, enfim,

(...) mostra que identificavam significado nas duas partes. (Murachco, 2001 : 531)

E mais:

Na verdade, todas as preposições são antigos advérbios de significado espacial. Esse significado não muda na sua base; o que dá idéia de mudança é o uso metafórico, figurado, ou a sua associação com o significado dos temas verbais. (Murachco, 2001 : 532)

* * *

Estamos encerrando o capítulo. Propusemos uma espécie de teoria da tradução de um processo que, na verdade, já tem uso. O que procuramos foi “traduzir” em palavras o que já ouvimos sobre o processo e acreditamos efetivamente aplicável.

Procuramos discernir da tradução de uma língua ainda hoje falada a tradução de um língua não mais falada, para chegarmos à de nosso objeto de estudo: o Grego antigo.

13 Em Grego, tmh'si" « ação de cortar, corte, secção », referindo-se, aqui, à separação entre o prefixo e o verbo. 14 A palavra termo, aí, é extremamente sugestiva: é o elemento que “fecha”, “amarra” o círculo semântico-sintático.

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Em seguida, esboçamos uma classificação para os tipos de tradução: a recriada ou transcriada, a erudita e a linear.

Discutimos os recursos mais específicos atentados na nossa proposta de tradução, em cotejo às consultadas por nós e, por fim, falamos de elementos mais particulares do Grego e como considerá-los em Homero, numa tradução linear. Seguem-se o capítulo de tradução propriamente dita e, depois, o das orientações, passo a passo, de aspectos da tradução (o porquê traduzimos tal coisa por certa coisa).

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CAPÍTULO II CANTO I DA ILÍADA DE

HOMERO TEXTO GREGO E

TRADUÇÃO

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2.1. OBSERVAÇÕES

Antes de apresentar o texto grego (lembrando-se que é em verso) acompanhado de nossa proposta de tradução, faz-se imprescindível indicar certas observações relativas ao texto traduzido. Em primeiro lugar – como já se mencionou no capítulo I –, a pontuação, nos textos em Grego antigo, nada mais é do que aquela da língua de quem estabeleceu o texto. Isso significa que ela não é absoluta, e, portanto, não se deve estranhar que a nossa tenha acabado diferindo tanto, em certos casos, da da edição grega trazida por nós. Em alguns casos, lembramos, mesmo as partículas orais acabam fazendo as vezes da pontuação. Não deve o estudante, portanto, considerar nem a nossa pontuação nem a de quem estabeleceu o texto grego em estudo como cabal. Além desse primeiro detalhe, outros três merecem atenção: a) haja vista a nossa intenção didática, acrescentamos (coisa que não está no original grego) à fala de qualquer personagem que fala durante o texto seu respectivo nome entre colchetes, isso a fim de facilitar a localização de qualquer das falas; b) como nossa tradução é, como já sabe, em prosa, indicamos uma referência dos versos para localização de trechos e acompanhamento progressivo do original grego. Porém, como uma divisão de cinco em cinco ou mesmo de dez em dez versos exigiria que fizéssemos inversões sintáticas que acabariam não ajudando à nossa proposta de tradução linear, optamos por indicá-los, mais ou menos, em toda metade de página da tradução, sempre em início de parágrafo; c) os epítetos – tão corrente em Homero e muitas vezes repetidos até a última letra – foram normalmente colocados entre travessões. Não foram usados travessões, na tradução, senão para isso. Mas utilizaram-se os travessões quando o epíteto coube como

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aposto (função sintática). Quando não foi o caso, ou o desdobramos ou mesmo o indicamos com um artigo em letra maiúscula. Pode parecer esquisito, mas nos pareceu um modo útil de localizá-los.

Finalmente, um último recurso utilizado em raros casos de nossa tradução é o das aspas: quando não foram duplas para introduzir um fala de personagem, podem ter sido duplas, ou mesmo simples, para indicarem alguma licença na tradução. É um dos poucos casos como no verso 45, em que aparece a palavra entre aspas "ambiencapados", palavra não-dicionarizada, mas que cremos ser clara: refere-se ao carcás de Apolo, carcás que teria dupla capa, ou, talvez, uma capa de ambos os lados. De qualquer forma, o recurso das aspas é raro, aqui. Uma última observação, os números das notas os quais aparecem junto a palavras da tradução fazem referência às notas explicativas que compõem o capítulo III. Lá, por sua vez, elas remetem aos versos no original grego, pois seria difícil remeterem à tradução devido a esta não apresentar indicação de verso por verso. Dito isso, sigamos com o original grego e a tradução, observando-se que o não-seqüenciamento das notas deve-se à ordem muitas vezes indireta do texto original grego.

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2.2. TEXTO GREGO E TRADUÇÃO

ILIADOS A

Mh'nin a!eide, qeav, Phlhi>avdew jAcilh'o" oujlomevnhn, h$ muriva j jAcaioi'" a!lge j e!qhke, pollaV" d j ijfqivmou" yucaV" !Ai>di proi?ayen hJrwvwn, aujtouV" deV eJlwvria teuvce kuvnessin

5 oijwnoi'siv te pa'si, DioV" d j ejteleiveto boulhv, ejx ou% dhV taV prw'ta diasthvthn ejrivsante jAtrei?dh" te a!nax ajndrw'n kaiV di'o" jAcilleuv". Tiv" t j a!r sfwe qew'n e!ridi xunevhke mavcesqai; Lhtou'" kaiV DioV" uiJov": oJ gaVr basilh'i> colwqeiV"

10 nou'son ajnaV stratoVn w\rse kakhvn, ojlevkonto deV laoiv, ou@neka toVn Cruvshn hjtivmasen ajrhth'ra jAtrei?dh": oJ gaVr h\lqe qoaV" ejpiV nh'a" jAcaiw'n lusovmenov" te quvgatra fevrwn t j ajpereivsi j a!poina, stevmmata j e!cwn ejn cersiVn eJkhbovlou jApovllwno"

15 crusevw/ ajnaV skhvptrw/, kaiV livsseto pavnta" jAcaiouV", jAtrei?da deV mavlista duvw, kosmhvtore law'n: jAtrei?dai te kaiV a!lloi eju>knhvmide" jAcaioiv, uJmi'n meVn qeoiV doi'en jOluvmpia dwvmat j e!conte" ejkpevrsai Priavmoio povlin, eu\ d j oi!kad j iJkevsqai:

20 pai'da d j ejmoiV luvsaite fivlhn, taV d j a!poina devcesqai, aJzovmenoi DioV" uiJoVn eJkhbovlon jApovllwna. !Enq j a!lloi meVn pavnte" ejpeufhvmhsan jAcaioiV aijdei'sqaiv q j iJerh'a kaiV ajglaaV devcqai a!poina: ajll j oujk jAtrei?dh/ jAgamevmnoni h@ndane qumw'/,

25 ajllaV kakw'" ajfivei, krateroVn d j ejpiV mu'qon e!telle: mhv se, gevron, koivlh/sin ejgwV paraV nhusiV kiceivw h# nu'n dhquvnont j h# u@steron au\ti" ijovnta, mhv nuv toi ouj craivsmh/ skh'ptron kaiV stevmma qeoi'o: thVn d j ejgwV ouj luvsw: privn min kaiV gh'ra" e!peisin

30 hJmetevrw/ ejniV oi!kw/, ejn !Argei>, thlovqi pavtrh", iJstoVn ejpoicomevnhn kaiV ejmoVn levco" ajntiovwsan: ajll j i!qi, mhV m j ejrevqize, sawvtero" w@" ke nevhai. @W" e!fat j, e!deisen d j oJ gevrwn kaiV ejpeivqeto muvqw/: bh' d j ajkevwn paraV qi'na polufloivsboio qalavssh":

35 pollaV d j e!peit j ajpavneuqe kiwVn hjra'q j oJ geraioV" jApovllwni a!nakti, toVn hju?komo" tevke Lhtwv: klu'qiv meu, ajrgurovtox j, o$" Cruvshn ajmfibevbhka"

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Kivllan te zaqevhn Tenevdoiov i\fi ajnavssei", Sminqeu', ei! potev toi carivent j ejpiV nhoVn e!reya,

40 h# eij dhV potev toi kataV pivona mhriv j e!kha tauvrwn hjd j aijgw'n, tovde moi krhvhnon ejevldwr: teivseian DanaoiV ejmaV davkrua soi'si bevlessin. @W" e!fat j eujcovmeno", tou' d j e!klue Foi'bo" jApovllwn, bh' deV kat j jOuluvmpoio karhvnwn cwovmeno" kh'r,

45 tovx j w!moisin e!cwn ajmfhrefeva te farevtrhn: e!klagxan d j a!r j oji>stoiV ejp j w!mwn cwomevnoio, aujtou' kinhqevnto": oJ d j h!i>e nuktiV ejoikwv". e!zet j e!peit j ajpavneuqe new'n, metaV d j ijoVn e@hke: deinhV deV klagghV gevnet j ajrgurevoio bioi'o:

50 oujrh'a" meVn prw'ton ejpwvceto kaiV kuvna" ajrgouv", aujtaVr e!peit j aujtoi'si bevlo" ejcepeukeV" ejfieiV" bavll j: aijeiV deV puraiV nekuvwn kaivonto qameiaiv. jEnnh'mar meVn ajnaV stratoVn w/!ceto kh'la qeoi'o, th/' dekavth/ d j ajgorhvnde kalevssato laoVn jAcilleuv":

55 tw/' gaVr ejpiV fresiV qh'ke qeaV leukwvleno" @Hrh: khvdeto gaVr Danaw'n, o@ti rJa qnhvskonta" oJra'to. oiJ d j ejpeiV ou\n h!gerqen oJmhgereve" t j ejgevnonto, toi'si d j ajnistavmeno" metevfh povda" wjkuV" jAcilleuv": jAtrei?dh, nu'n a!mme palimplagcqevnta" oji?w

60 a!y ajponostvsein, ei! ken qavnatovn ge fuvgoimen, eij dhV oJmou' povlemov" te dama'/ kaiV loimoV" jAcaiouv": ajll j a!ge dhv tina mavntin ejreivomen h# iJerh'a, h# kaiV ojneiropovlon, kaiV gavr t j o!nar ejk Diov" ejstin, o@" k j ei\poi o@ ti tovsson ejcwvsato Foi'bo" jApovllwn,

65 ei\t j a!r j o@ g j eujcwlh'" ejpimevmfetai ei!q j eJkatovmbh", ai! kevn pw" ajrnw'n knivsh" aijgw'n te teleivwn bouvletai ajntiavsa" hJmi'n ajpoV loigoVn ajmu'nai. !Htoi o@ g j w$ eijpwVn kat j a!r j e@zeto: toi'si d j ajnevsth Kavlca" Qestorivdh", oijwnopovlon o!c j a!risto",

70 o$" h/!dh tav t j ejovnta tav t j ejssovmena proV t j ejovnta, kaiV nhvess j hJghvsat j jAcaiw'n !Ilion ei!sw h$n diaV mantosuvnhn, thvn oiJ povre Foi'bo" jApovllwn: o@ sfin eju>fronevwn ajgorhvsato kaiV meteveipen: w\ jAcileu', kevleaiv me, Dii< fivle, muqhvsasqai

75 mh'nin jApovllwno" eJkathbelevtao a!nakto": toigaVr ejgwVn ejrevw: suV deV suvnqeo kaiv moi o!mosson h\ mevn moi provfrwn e!pesin kaiV cersiVn ajrhvxein: h\ gaVr oji?omai a!ndra colwsevmen, o$" mevga pavntwn jArgeivwn kratevei kaiv oiJ peivqontai jAcaioiv:

80 kreivsswn gaVr basileuV" o@te cwvsetai ajndriV cevrhi>:

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ei! per gavr te covlon ge kaiV aujth'mar katapevyh/, ajllav te kaiV metovpisqen e!cei kovton, o!fra televssh/, ejn sthvqessin eJoi'si: suV deV fravsai ei! me sawvsei". ToVn d j ajpameibovmeno" prosevfh povda" wjkuV" jAcilleuv":

85 qarshvsa" mavla eijpeV qeoprovpion o@ ti oi\sqa: ouj maV gaVr jApovllwna Dii< fivlon, w%/ te suv, Kavlcan, eujcovmeno" Danaoi'si qeopropiva" ajnafaivnei", ou! ti" ejmeu' zw'nto" kaiV ejpiV cqoniV derkomevnoio soiV koivlh" paraV nhusiV bareiva" cei'ra" ejpoivsei

90 sumpavntwn Danaw'n, oujd j h#n jAgamevmnona ei\ph/", o$" nu'n polloVn a!risto" jAcaiw'n eu!cetai ei\nai. KaiV tovte dhV qavrshse kaiV hu!da mavnti" ajmuvmwn: ou!t j a!r j o@ g j eujcwlh'" ejpimevmfetai ou!q j eJkatovmbh", ajll j e@nek j ajrhth'ro", o$n hjtivmhs j jAgamevmnwn

95 oujd j ajpevluse quvgatra kaiV oujk ajpedevxat a!poina, tou!nek j a!r j a!lge j e!dwken eJkhbovlo" hjd j e!ti dwvsei: oujd j o@ ge priVn Danaoi'sin ajeikeva loigoVn ajpwvsei, privn g j ajpoV patriV fivlw/ dovmenai eJlikwvpida kouvrhn ajpriavthn ajnavpoinon, a!gein q j iJerhVn eJkatovmbhn

100 ej" Cruvshn: tovte kevn min iJlassavmenoi pepivqoimen. !Htoi o@ g j w$ eijpwVn kat j a!r j e@zeto: toi'si d j ajnevsth h@rw" jAtrei?dh" eujruV kreivwn jAgamevmnwn ajcnuvmeno": mevneo" deV mevga frevne" ajmfiV mevlainai pivmplant j, o!sse dev oiJ puriV lampetovwnti eji?kthn:

105 Kavlcanta prwvtista kavk j ojssovmeno" proseveipe: mavnti kakw'n, ouj pwv potev moi toV krhvguon ei\pa": aijeiv toi taV kavk j ejstiV fivla fresiV manqeuvesqai, ejsqloVn d j ou!te tiv pw ei\pa" e!po" ou!t j ejtevlessa": kaiV nu'n ejn Danaoi'si qeopropevwn ajgoreuvei"

110 wJ" dhV tou'd j e@nekav sfin eJkhbovlo" a!lgea teuvcei, ou@nek j ejgwV kouvrh" Crushi?do" ajglav j a!poina oujk e!qelon devxasqai, ejpeiV poluV bouvlomai aujthVn oi!koi e!cein: kaiV gavr rJa Klutaimnhvstrh" probevboula kouridivh" ajlovcou, ejpeiV ou! eJqevn ejsti cereivwn,

115 ouj devma" oujdeV fuhVn, ou!t j a#r frevna" ou!tev ti e!rga. ajllaV kaiV w%" ejqevlw dovmenai pavlin, eij tov g j a!meinon: bouvlom j ejgwV laoVn sw'n e!mmenai h# ajpolevsqai: aujtaVr ejmoiV gevra" aujtivc j eJtoimavsat j, o!fra mhV oi\o" jArgeivwn ajgevrasto" e!w, ejpeiV oujdeV e!oike:

120 leuvssete gaVr tov ge pavnte", o@ moi gevra" e!rcetai a!llh/. ToVn d j hjmeivbet j e!peita podavrkh" di'o" jAcilleuv": jAtrei?dh kuvdiste, filokteanwvtate pavntwn, pw'" gavr toi dwvsousi gevra" megavqumoi jAcaioiv;

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oujdev tiv pou i!dmen xunh?ia keivmena pollav: 125 ajllaV taV meVn polivwn ejxepravqomen, taV dedavstai,

laouV" d j oujk ejpevoike pallivloga tau't j ejpageivrein. ajllaV suV meVn nu'n th'nde qew'/ prove": aujtaVr jAcaioiV triplh/' tetraplh/' t j ajpoteivsomen, ai! kev poqi ZeuV" dw'/si povlin Troivhn eujteivceon ejxalapavxai.

130 ToVn d j ajpameibovmeno" prosevfh kreivwn jAgamevmnwn: mhV dhV ou@tw", ajgaqov" per ejwvn, qeoeivkel j jAcilleu', klevpte novw/, ejpeiV ouj parelevuseai oujdev me peivsei". h\ ejqevlei", o!fra aujtoV" e!ch/" gevra", aujtaVr e!m j au!tw" h%sqai deuovmenon, kevleai dev me thvnd j ajpodou'nai;

135 ajll j eij meVn dwvsousi gevra" megavqumoi jAcaioiv, a!rsante" kataV qumovn, o@pw" ajntavxion e!stai: eij dev ke mhV dwvwsin, ejgwV dev ken aujtoV" e@lwmai h# teoVn h# Ai!anto" ijwVn gevra", h# jOdush'o" a!xw eJlwvn: oJ dev ken kecolwvsetai o@n ken i@kwmai.

140 ajll j h!toi meVn tau'ta metafrasovmesqa kaiV au\ti", nu'n d j a!ge nh'a mevlainan ejruvssomen eij" a@la di'an, ejn d j ejrevta" ejpithdeV" ajgeivromen, ej" d j eJkatovmbhn qeivomen, a#n d j aujthVn Crushi?da kallipavrh/on bhvsomen: ei%" dev ti" ajrcoV" ajnhVr boulefovro" e!stw,

145 h# Ai!a" h# jIdomeneuV" h# di'o" jOdusseuV" hjeV suv, Phlei?dh, pavntwn ejkpaglovtat j ajndrw'n, o!fr j hJmi'n eJkavergon iJlavsseai iJeraV rJevxa". ToVn d j a!r j uJpovdra ijdwVn prosevfh povda" wjkuV" jAcilleuv": w! moi, ajnaideivhn ejpieimevne, kerdaleovfron,

150 pw'" tiv" toi provfrwn e!pesin peivqhtai jAcaiw'n h# oJdoVn ejlqevmenai h# ajndravsin i\fi mavcesqai; ouj gaVr ejgwV Trwvwn e@nek j h!luqon aijcmhtavwn deu'ro machsovmeno", ejpeiV ou! tiv moi ai!tioiv eijsin: ouj gaVr pwv pot j ejmaV" bou'" h!lasan oujdeV meVn i@ppou",

155 oujdev pot j ejn Fqivh/ ejribwvlaki bwtianeivrh/ karpoVn ejdhlhvsant j, ejpeiV h\ mavla pollaV metaxuV ou!reav te skioventa qavlassav te hjchvessa: ajllaV soiv, w\ mevg j ajnaidev", a@m j eJspovmeq j o!fra suV caivrh/" timhVn ajrnuvmenoi Menelavw/ soiv te, kunw'pa,

160 proV" Trwvwn: tw'n ou! ti metatrevph/ oujd j ajlegivzei": kaiV dhv moi gevra" aujtoV" ajfairhvsesqai ajpeilei'", w%/ e!pi pollaV movghsa, dovsan dev moi ui@e" jAcaiw'n. ouj meVn soiv pote i\son e!cw gevra", oJppovt j jAcaioiV Trwvwn ejkprevsws j eu\ naiovmenon ptoliveqron:

165 ajllaV toV meVn plei'on poluavi>ko" polevmoio cei're" ejmai dievpous j, ajtaVr h!n pote dasmoV" i@khtai,

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soiV toV gevra" poluV mei'zon, ejgwV d j ojlivgon te fivlon te e!rcom j e!cwn ejpiV nh'a", ejpeiv ke kavmw polemivzwn. nu'n d j ei\mi Fqivhn d j, ejpeiV h\ poluV fevrterovn ejstin

170 oi!kad j i!men suVn nhusiVn korwnivsin, oujdev s j oji?w ejnqavd j a!timo" ejwVn a!feno" kaiV plou'ton ajfuvxein. toVn d j hjmeivbet j e!peita a!nax ajndrw'n jAgamevmnwn: feu'ge mavl j ei! toi qumoV" ejpevssutai, oujdev s j e!gwge livssomai ei@nek j ejmei'o mevnein: pavr j e!moige kaiV a!lloi

175 oi@ kev me timhvsousi, mavlista deV mhtiveta Zeuv". e!cqisto" dev moiv ejssi diotrefevwn basilhvwn: aijeiV gavr toi e!ri" te fivlh povlemoiv te mavcai te: eij mavla karterov" ejssi, qeov" pou soiV tov g j e!dwken: oi!kad j ijwVn suVn nhusiv te sh/'" kaiV soi'" eJtavroisi

180 Murmidovnessin a!nasse, sevqen d j ejgwV oujk ajlegivzw, oujd j o!qomai kotevonto": ajpeilhvsw dev toi w%de: wJ" ejm j ajfairei'tai Crushi?da Foi'bo" jApovllwn, thVn meVn ejgwV suVn nhi? t j ejmh/' kaiV ejmoi'" eJtavroisi pevmyw, ejgwV dev k j a!gw Brishi?da kallipavrh/on

185 aujtoV" ijwVn klisivhn deV toVn soVn gevra" o!fr j eju< eijdh/'" o@sson fevrterov" eijmi sevqen, stugevh/ deV kaiV a!llo" i\son ejmoiV favsqai kaiV oJmoiwqhvmenai a!nthn. w$" favto: Phlei?wni d j a!co" gevnet j, ejn dev oiJ h\tor sthvqessin lasivoisi diavndica mermhvrixen,

190 h# o@ ge favsganon ojxuV ejrussavmeno" paraV mhrou' touV" meVn ajnasthvseien, o$ d j jAtrei?dhn ejnarivzoi, h\e covlon pauvseien ejrhtuvseiev te qumovn. h%o" o$ tau'q j w@rmaine kataV frevna kaiV kataV qumovn, e@lketo d j ejk koleoi'o mevga xivfo", h\lqe d j jAqhvnh

195 oujranovqen: proV gaVr h%ke qeaV leukwvleno" @Hrh a!mfw oJmw'" qumw/' filevousav te khdomevnh te: sth' d j o!piqen, xanqh'" deV kovmh" e@le Phlei?wna oi!w/ fainomevnh: tw'n d j a!llwn ou! ti" oJra'to: qavmbhsen d j jAcileuv", metaV d j ejtravpet j, aujtivka d j e!gnw

200 Pallavd j jAqhnaivhn: deinwV dev oiJ o!!sse favanqen: kaiv min fwnhvsa" e!pea pteroventa proshuvda: tivpt j au\t j aijgiovcoio DioV" tevko" eijlhvlouqa"; h\ i@na u@brin i!dh/ jAgamevmnono" jAtrei?dao; ajll j e!k toi ejrevw, toV deV kaiV televesqai oji?w:

205 h%/" uJperoplivh/si tavc j a!n pote qumoVn ojlevssh/. toVn d j au\te proseveipe qeaV glaukw'pi" jAqhvnh: h\lqon ejgwV pauvsousa toV soVn mevno", ai! ke pivqhai, oujranovqen: proV dev m j h%ke qeaV leukwvleno" @Hrh a!mfw oJmw'" qumw/' filevousav te khdomevnh te:

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210 ajll j a!ge lh'g j e!rido", mhdeV xivfo" e@lkeo ceiriv: ajll j h!toi e!pesin meVn ojneivdison wJ" e!setaiv per: w%de gaVr ejxerevw, toV deV kaiV tetelesmevnon e!stai: kaiv potev toi triV" tovssa parevssetai ajglaaV dw'ra u@brio" ei@neka th'sde: suV d j i!sceo, peivqeo d j hJmi'n.

215 thVn d j ajpameibovmeno" proshvfh povda" wjkuV" jAcilleuv": crhV meVn sfwi?terovn ge qeaV e!po" eijruvssasqai kaiV mavla per qumw'/ kecolwmevnon: w%" gaVr a!meinon: o@" ke qeoi'" ejpipeivqhtai mavla t j e!kluon aujtou'. h\ kaiV ejp j ajrgurevh/ kwvph/ scevqe cei'ra barei'an,

220 a!y d j ej" kouleoVn w\se mevga xivfo", oujd j ajpivqhse muvqw/ jAqhnaivh": hJ d j Ou!lumpon deV bebhvkei dwvmat j ej" aijgiovcoio DioV" metaV daivmona" a!llou". Phlei?dh" d j ejcau'ti" ajtarthroi'" ejpevessin jAtrei?dhn proseveipe, kaiV ou! pw lh'ge covloio:

225 oijnobarev", kunoV" o!mmat j e!cwn, kradivhn d j ejlavfoio, ou!tev pot j ej" povlemon a@ma law'/ qwrhcqh'nai ou!te lovcon d j ijevnai suVn ajristhvessin jAcaiw'n tevtlhka" qumw'/: toV dev toi khVr ei!detai ei\nai. h\ poluV lwvi>ovn ejsti kataV stratoVn eujruVn jAcaiw'n

230 dw'r j ajpoairei'sqai o@" ti" sevqen ajntivon ei!ph/: dhmobovro" basileuV" ejpeiV oujtidanoi'sin ajnavssei": h\ gaVr a#n jAtrei?dh nu'n u@stata lwbhvsaio. ajll j e!k toi ejrevw kaiV ejpiV mevgan o@rkon ojmou'mai: naiV maV tovde skh'ptron, toV meVn ou! pote fuvlla kaiV o!zou"

235 fuvsei, ejpeiV dhV prw'ta tomhVn ejn o!ressi levloipen, oujd j ajnaqhlhvsei: periV gavr rJav eJ calkoV" e!leye fuvllav te kaiV floiovn: nu'n au\tev min ui%e" jAcaiw'n ejn palavmh/" forevousi dikaspovloi, oi@ te qevmista" proV" DioV" eijruvatai: oJ dev toi mevga" e!ssetai o@rko":

240 h\ pot j jAcillh'o" poqhV i@xetai ui%a" jAcaiw'n suvmpanta": tovte d j ou! ti dunhvseai ajcnuvmenov" per craismei'n, eu\t j a#n polloiV uJf j @Ektoro" ajndrofovnoio qnhvskonte" pivptwsi: suV d j e!ndoqi qumoVn ajmuvxei" cwovmeno" o@ t j a!riston jAcaiw'n oujdeVn e!tisa".

245 w$" favto Phlei?dh", potiV deV skh'ptron bavle gaivh/ cruseivoi" h@loisi peparmevnon, e@zeto d j aujtov": jAtrei?dh" d j ejtevrwqen ejmhvnie: toi'si deV Nevstwr hJduephV" ajnovrouse liguV" Pulivwn ajgorhthv", tou' kaiV ajpoV glwvssh" mevlito" glukivwn rJeven aujdh:

250 tw'/ d j h!dh duvo meVn geneaiV merovpwn ajnqrwvpwn ejfqivaq j, oi@ oiJ provsqen a@ma travfen hjd j ejgevnonto ejn Puvlw/ hjgaqevh/, metaV deV tritavtoisin a!nassen:

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o@ sfin eju< fronevwn ajgorhvsato kaiV meteveipen: w\ povpoi h\ mevga pevnqo" jAcaii?da gai'an iJkavnei:

255 h\ ken ghqhvsai Privamo" Priavmoiov te pai'de" a!lloi te Trw'e" mevga ken kecaroivato qumw'/ eij sfw'i>n tavde pavnta puqoivato marnamevnoii>n, oi$ periV meVn boulhVn Danaw'n, periV d j ejsteV mavcesqai. ajllaV pivqesq j: a!mfw deV newtevrw ejstoVn ejmei'o:

260 h!dh gavr pot j ejgwV kaiV ajreivosin hjev per uJmi'n ajndravsin wJmivlhsa, kaiV ou! potev m j oi@ g j ajqevrizon. ouj gavr pw toivou" i!don ajnevra" oujdeV i!dwmai, oi%on Peirivqoovn te Druvantav te poimevna law'n Kaineva t j jExavdiovn te kaiV ajntivqeon Poluvfhmon

265 Qhseva t j Aijgei?dhn, ejpieivkelon ajqanavtoisin: kavrtistoi dhV kei'noi ejpicqonivwn travfen ajndrw'n:

kavrtistoi meVn e!san kaiV kartivstoi" ejmavconto fhrsiVn ojreskw/voisi kaiV ejkpavglw" ajpovlessan. kaiV meVn toi'sin ejgwV meqomivleon ejk Puvlou ejlqwVn

270 thlovqen ejx ajpivh" gaivh": kalevsanto gaVr aujtoiv: kaiV macovmhn kat j e!m j aujtoVn ejgwv: keivnoisi d j a#n ou! ti"

tw'n oi$ nu'n brotoiv eijsin ejpicqovnioi macevoito: kaiV mevn meu boulevwn xuvnien peivqontov te muvqw/: ajllaV pivqesqe kaiV u!mme", ejpeiV peivqesqai a!meinon:

275 mhvte suV tovnd j ajgaqov" per ejwVn ajpoaivreo kouvrhn, ajll j e!a w@" oiJ prw'ta dovsan gevra" ui@e" jAcaiw'n:

mhvte suV Phleivdh e!qel j ejrizevmenai basilh'i> ajntibivhn, ejpeiV ou! poq j oJmoivh" e!mmore timh'" skhptou'co" basileuv", w%/ te ZeuV" ku'do" e!dwken.

280 eij deV suV karterov" ejssi qeaV dev se geivnato mhvthr, ajll j o@ ge fevrterov" ejstin ejpeiV pleovnessin ajnavssei.

jAtrei?dh suV deV pau'e teoVn mevno": aujtaVr e!gwge livssom j jAcillh'i> meqevmen covlon, o$" mevga pa'sin e@rko" jAcaioi'sin pevletai polevmoio kakoi'o.

285 toVn d j ajpameibovmeno" prosevfh kreivwn jAgamevmnwn: naiV dhV tau'tav ge pavnta gevron kataV moi'ran e!eipe":

ajll j o@d j ajnhVr ejqevlei periV pavntwn e!mmenai a!llwn, pavntwn meVn kratevein ejqevlei, pavntessi d j ajnavssein, pa'si deV shmaivnein, a@ tin j ouj peivsesqai oji?w:

290 eij dev min aijcmhthVn e!qesan qeoiV aijeVn ejovnte" tou!nekav oiJ proqevousin ojneivdea muqhvsasqai;

toVn d j a!r j uJpoblhvdhn hjmeivbeto di'o" jAcilleuv": h\ gavr ken deilov" te kaiV oujtidanoV" kaleoivmhn eij dhV soiV pa'n e!rgon uJpeivxomai o@ttiv ken ei!ph/": a!lloisin dhV tau't j ejpitevlleo, mhV gaVr e!moige

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295 shvmain j: ouj gaVr e!gwg j e!ti soiV peivsesqai oji?w. a!llo dev toi ejrevw, suV d j ejniV fresiV bavlleo sh'/si: cersiV meVn ou! toi e!gwge machvsomai ei@neka kouvrh" ou!te soiV ou!tev tw/ a!llw/, ejpeiV m j ajfevlesqev ge dovnte":

300 tw'n d j a!llwn a@ moiv ejsti qoh/' paraV nhi< melaivnh/ tw'n oujk a!n ti fevroi" ajnelwVn ajevkonto" ejmei'o:

eij d j a!ge mhVn peivrhsai i@na gnwvwsi kaiV oi@de: ai\yav toi ai%ma kelainoVn ejrwhvsei periV douriv. w#" twv g j ajntibivoisi macessamevnw/ ejpevessin

305 ajnsthvthn, lu'san d j ajgorhVn paraV nhusiVn jAcaiw'n: Phlei?dh" meVn ejpiV klisiva" kaiV nh'a" eji?sa"

h!i>e suvn te Menoitiavdh/ kaiV oi%" eJtavroisin: jAtrei?dh" d j a!ra nh'a qohVn a@la deV proevrussen, ejn d j ejrevta" e!krinen ejeivkosin, ej" d j eJkatovmbhn

310 bh'se qew'/, ajnaV deV Crushi?da kallipavrh/on ei%sen a!gwn: ejn d j ajrcoV" e!bh poluvmhti" jOdusseuv".

oi$ meVn e!peit j ajnabavnte" ejpevpleon uJgraV kevleuqa, laouV" d j jAtrei?dh" ajpolumaivnesqai a!nwgen: oiJ d j ajpelumaivnonto kaiV eij" a@la luvmata bavllon,

315 e@rdon d j jApovllwni telhevssa" eJkatovmba" tauvrwn hjd j aijgw'n paraV qi'n j aJloV" ajtrugevtoio:

knivsh d j oujranoVn i%ken eJlissomevnh periV kapnw/'. w$" oiJ meVn taV pevnonto kataV stratovn: oujd j jAgamevmnwn lh'g j e!rido" thVn prw'ton ejphpeivlh" jAcilh'i>,

320 ajll j o@ ge Talquvbiovn te kaiV Eujrubavthn proseveipe, twv oiJ e!san khvruke kaiV ojtrhrwV qeravponte:

e!rcesqon klisivhn Phlhi>avdew jAcilh'o": ceiroV" eJlovnt j ajgevmen Brishi?da kallipavrh/on: eij dev ke mhV dwvh/sin ejgwV dev ken aujtoV" e@lwmai

325 ejlqwVn suVn pleovnessi: tov oiJ kaiV rJivgion e!stai. w$" eijpwVn ptoi?ei, krateroVn d j ejpiV mu'qon e!telle:

twV d j ajevkonte bavthn paraV qi'n j aJloV" ajtrugevtoio, Murmidovnwn d j ejpiv te klisiva" kaiV nh'a" iJkevsqhn, toVn d j eu%ron parav te klisivh/ kaiV nhi>< melaivnh/

330 h@menon: oujd j a!ra twv ge ijdwVn ghvqhsen jAcilleuv". twV meVn tarbhvsante kaiV aijdomevnw basilh'a

sthvthn, oujdev tiv min prosefwvneon oujd j ejrevonto: aujtaVr oJ e!gnw h%/sin ejniV fresiV fwvnhsevn te: caivrete khvruke" DioV" a!ggeloi hjdeV kaiV ajndrw'n,

335 a\sson i!t j: ou! tiv moi u!mme" ejpaivtioi ajll j jAgamevmnwn, o$ sfw'i> proi?ei Brishi?do" ei@neka kouvrh".

ajll j a!ge diogeneV" Patrovklee" e!xage kouvrhn kaiv sfwi>n doV" a!gein: twV d j aujtwV mavrturoi e!stwn

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prov" te qew'n makavrwn prov" te qnhtw'n ajnqrwvpwn 340 kaiV proV" tou' basilh'o" ajphnevo" ei! pote d j au\te creiwV ejmei'o gevnhtai ajeikeva loigoVn ajmu'nai

toi'" a!lloi": h\ gaVr o@ g j ojloih/'si fresiV quvei, oujdev ti oi\de noh'sai a@ma provssw kaiV ojpivssw, o@ppw" oiJ paraV nhusiV sovoi macevointo jAcaioiv.

345 w$" favto, Pavtroklo" deV fivlw/ ejpepeivqeq j eJtaivrw/, ejk d j a!gage klisivh" Brishi?da kallipavrh/on,

dw'ke d j a!gein: twV d j au\ti" i!thn paraV nh'a" jAcaiw'n: hJ d j ajkevous j a@ma toi'si gunhV kiven: aujtaVr jAcilleuV" dakruvsa" eJtavrwn a!far e@zeto novsfi liasqeiv",

350 qi'n j e!f j aJloV" polih'", oJrovwn ejp j ajpeivrona povnton: pollaV deV mhtriV fivlh/ hjrhvsato cei'ra" ojregnuv":

mh'ter ejpeiV m j e!tekev" ge minunqavdiovn per ejovnta, timhvn pevr moi o!fellen jOluvmpo" ejggualivxai ZeuV" uJyibremevth": nu'n d j oujdev me tutqoVn e!tisen:

355 h\ gavr m j jAtrei?dh" eujruV kreivwn jAgamevmnwn hjtivmhsen: eJlwVn gaVr e!cei gevra" aujtoV" ajpouvra".

w$" favto davkru cevwn, tou' d j e!klue povtnia mhvthr hJmevnh ejn bevnqessin aJloV" paraV patriV gevronti: karpalivmw" d j ajnevdu polih'" aJloV" hju?t j ojmivclh,

360 kaiv rJa pavroiq j aujtoi'o kaqevzeto davkru cevonto", ceiriv tev min katevrexen e!po" t j e!fat j e!k t j ojnovmaze:

tevknon tiv klaivei"; tiv dev se frevna" i@keto pevnqo"; ejxauvda, mhV keu'qe novw/, i@na ei!domen a!mfw. thVn deV baruV stenavcwn prosevfh povda" wjkuV" jAcilleuv":

365 oi\sqa: tiv h! oi tau'ta ijduivh/ pavnt j ajgoreuvw; wj/covmeq j ej" Qhvbhn iJerhVn povlin jHetivwno",

thVn deV diepravqomevn te kaiV h!gomen ejnqavde pavnta: kaiV taV meVn eu\ davssanto metaV sfivsin ui%e" jAcaiw'n, ejk d e@lon jAtrei?dh/ Crushi?da kallipavrh/on.

370 Cruvsh" d j au\q j iJereuV" eJkathbovlou jApovllwno" h\lqe qoaV" ejpiV nh'a" jAcaiw'n calkocitwvnwn

lusovmenov" te quvgatra fevrwn t j ajpereivsi j a!poina, stevmmat j e!cwn ejn cersiVn eJkhbovlou jApovllwno" crusevw/ ajnaV skhvptrw/, kaiV livsseto pavnta" jAcaiouv",

375 jAtrei?da deV mavlista duvw kosmhvtore law'n. e!nq j a!lloi meVn pavnte" ejpeufhvmhsan jAcaioiV

aijdei'sqai q j iJerh'a kaiV ajglaaV devcqai a!poina: ajll j oujk jAtrei?dh/ jAgamevmnoni h@ndane qumw'/, ajllaV kakw'" ajfivei, krateroVn d j ejpiV mu'qon e!telle:

380 cwovmeno" d j oJ gevrwn pavlin w!ceto: toi'o d j jApovllwn eujxamevnou h!kousen, ejpeiV mavla oiJ fivlo" h\en,

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h%ke d j ejp j jArgeivoisi kakoVn bevlo": oiJ dev nu laoiV qnh'/skon ejpassuvteroi, taV d j ejpwv/ceto kh'la qeoi'o pavnth/ ajnaV stratoVn eujruVn jAcaiw'n: a!mmi deV mavnti"

385 eu\ eijdwV" ajgovreue qeopropiva" eJkavtoio. aujtivk j ejgwV prw'to" kelovmhn qeoVn iJlavskesqai:

jAtrei?wna d j e!peita covlo" lavben, ai\ya d j ajnastaV" hjpeivlhsen mu'qon oJ dhV tetelesmevno" ejstiv: thVn meVn gaVr suVn nhi< qoh/' eJlivkwpe" jAcaioiV

390 ej" Cruvshn pevmpousin, a!gousi deV dw'ra a!nakti: thVn deV nevon klisivhqen e!ban khvruke" a!gonte"

kouvrhn Brish'o" thvn moi dovsan ui%e" jAcaiw'n. ajllaV suV eij duvnasaiv ge perivsceo paidoV" eJh'o": ejlqou's j Ou!lumpon deV Diva livsai, ei! pote dhv ti

395 h# e!pei w!nhsa" kradivhn DioV" hjeV kaiV e!rgw/. pollavki gavr seo patroV" ejniV megavroisin a!kousa

eujcomevnh" o@t j e!fhsqa kelainefevi> Kronivwni oi!h ejn ajqanavtoisin ajeikeva loigoVn ajmu'nai, oJppovte min xundh'sai jOluvmpioi h!qelon a!lloi

400 @Hrh tj hjdeV Poseidavwn kaiV PallaV" jAqhvnh: ajllaV suV tovn g j ejlqou'sa qeaV uJpeluvsao desmw'n,

w\c j eJkatovgceiron kalevsas j ej" makroVn !Olumpon, o$n Briavrewn kalevousi qeoiv, a!ndre" dev te pavnte" Aijgaivwn j, oJ gaVr au\te bivhn ou% patroV" ajmeivnwn:

405 o@" rJa paraV Kronivwni kaqevzeto kuvdei> gaivwn: toVn kaiV uJpevdeisan mavkare" qeoiV oujd j e!t j e!dhsan.

tw'n nu'n min mnhvsasa parevzeo kaiV labeV gouvnwn ai! kevn pw" ejqevlh/sin ejpiV Trwvessin ajrh'xai, touV" deV kataV pruvmna" te kaiV ajmf j a@la e!lsai jAcaiouV"

410 kteinomevnou", i@na pavnte" ejpauvrwntai basilh'o", gnw' deV kaiV jAtrei?dh" eujruV kreivwn jAgamevmnwn

h$n a!thn o@ t j a!riston jAcaiw'n oujdeVn e!tisen. toVn d j hjmeivbet j e!peita Qevti" kataV davkru cevousa: w! moi tevknon ejmovn, tiv nuv s j e!trefon aijnaV tekou'sa;

415 ai!q j o!fele" paraV nhusiVn ajdavkruto" kaiV ajphvmwn h%sqai, ejpeiV nuv toi ai\sa mivnunqav per ou! ti mavla dhvn:

nu'n d j a@ma t j wjkuvmoro" kaiV oji>zuroV" periV pavntwn e!pleo: twv se kakh/' ai!sh/ tevkon ejn megavroisi. tou'to dev toi ejrevousa e!po" DiiV terpikerauvnw/

420 ei\m j aujthV proV" !Olumpon ajgavnnifon ai! ke pivqhtai. ajllaV suV meVn nu'n nhusiV parhvmeno" wjkupovroisi

mhvni j jAcaioi'sin, polevmou d j ajpopauveo pavmpan: ZeuV" gaVr ej" jWkeanoVn met j ajmuvmona" Aijqioph'a" cqizoV" e!bh kataV dai'ta, qeoiV d j a@ma pavnte" e@ponto:

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425 dwdekavth/ dev toi au\ti" ejleuvsetai Ou!lumpon dev, kaiV tovt j e!peitav toi ei\mi DioV" potiV calkobateV" dw',

kaiv min gounavsomai kaiv min peivsesqai oji?w. w$" a!ra fwnhvsas j ajpebhvseto, toVn deV livp j aujtou' cwovmenon kataV qumoVn eju>zwvnoio gunaikoV"

430 thvn rJa bivh/ ajevkonto" ajphuvrwn: aujtaVr jOdusseuV" ej" Cruvshn i@kanen a!gwn iJerhVn eJkatovmbhn.

oiJ d j o@te dhV limevno" polubenqevo" ejntoV" i@konto iJstiva meVn steivlanto, qevsan d j ejn nhi< melaivnh/, iJstoVn d j iJstodovkh/ pevlasan protovnoisin uJfevnte"

435 karpalivmw", thVn d j eij" o@rmon proevressan ejretmoi'". ejk d j eujnaV" e!balon, kataV deV prumnhvsi j e!dhsan:

ejk deV kaiV aujtoiV bai'non ejpiV rJhgmi'ni qalavssh", ejk d j eJkatovmbhn bh'san eJkhbovlw/ jApovllwni: ejk deV Crushi<" nhoV" bh' pontopovroio.

440 thVn meVn e!peit j ejpiV bwmoVn a!gwn poluvmhti" jOdusseuV" patriV fivlw/ ejn cersiV tivqei kaiv min proseveipen:

w\ Cruvsh, prov m j e!pemyen a!nax ajndrw'n jAgamevmnwn pai'dav te soiV ajgevmen, Foivbw/ q j iJerhVn eJkatovmbhn rJevxai uJpeVr Danaw'n o!fr j iJlasovmesqa a!nakta,

445 o$" nu'n jArgeivoisi poluvstona khvde j ejfh'ken. w$" eijpwVn ejn cersiV tivqei, oJ deV devxato caivrwn

pai'da fivlhn: toiV d j w\ka qew'/ iJerhVn eJkatovmbhn eJxeivh" e!sthsan eju?dmhton periV bwmovn, cernivyanto d j e!peita kaiV oujlocuvta" ajnevlonto.

450 toi'sin deV Cruvsh" megavl j eu!ceto cei'ra" ajnascwvn: klu'qiv meu ajrgurovtox j, o$" Cruvshn ajmfibevbhka"

Kivllan te zaqevhn Tenevdoiov te i\fi ajnavssei": h\ meVn dhv pot j ejmeu' pavro" e!klue" eujxamevnoio, tivmhsa" meVn ejmev, mevga d j i!yao laoVn jAcaiw'n:

455 hjd j e!ti kaiV nu'n moi tovd j ejpikrhvhnon ejevldwr: h!dh nu'n Danaoi'sin ajeikeva loigoVn a!munon.

w$" e!fat j eujcovmeno", tou' d j e!klue Foi'bo" jApovllwn. aujtaVr ejpeiv rJ j eu!xanto kaiV oujlocuvta" probavlonto, aujevrusan meVn prw'ta kaiV e!sfaxan kaiV e!deiran,

460 mhrouv" t j ejxevtamon katav te knivsh/ ejkavluyan divptuca poihvsante", ejp j aujtw'n d j wjmoqevthsan:

kai'e d j ejpiV scivzh/" oJ gevrwn, ejpiV d j ai!qopa oi\non lei'be: nevoi deV par j aujtoVn e!con pempwvbola cersivn. aujtaVr ejpeiV kataV mh're kavh kaiV splavgcna pavsanto,

465 mivstullovn t j a!ra ta\lla kaiV ajmf j ojbeloi'sin e!peiran, w!pthsavn te perifradevw", ejruvsantov te pavnta. aujtaVr ejpeiV pauvsanto povnou tetuvkontov te daí'ta

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daivnunt j, oujdev ti qumoV" ejdeuveto daitoV" eji?sh". aujtaVr ejpeiV povsio" kaiV ejdhtuvo" ejx e!ron e@nto,

470 kou'roi meVn krhth'ra" ejpestevyanto potoi'o, nwvmhsan d j a!ra pa'sin ejparxavmenoi depavessin:

oiJ deV panhmevrioi molph/' qeoVn iJlavskonto kaloVn ajeivdonte" paihvona kou'roi jAcaiw'n mevlponte" eJkavergon: oJ deV frevna tevrpet j ajkouvwn.

475 h\mo" d j hjevlio" katevdu kaiV ejpiV knevfa" h\lqe, dhV tovte koimhvsanto paraV prumnhvsia nhov":

h\mo" d j hjrigevneia favnh rJododavktulo" jHwv", kaiV tovt j e!peit j ajnavgonto metaV stratoVn eujruVn jAcaiw'n: toi'sin d j i!kmenon ou\ron i@ei eJkavergo" jApovllwn:

480 oiJ d j iJstoVn sthvsant j ajnaV q j iJstiva leukaV pevtassan, ejn d j a!nemo" prh'sen mevson iJstivon, ajmfiV deV ku'ma

steivrh/ porfuvreon megavl j i!ace nhoV" ijouvsh": hJ d j e!qeen kataV ku'ma diaprhvsousa kevleuqon. aujtaVr ejpeiv rJ j i@konto kataV stratoVn eujruVn jAcaiw'n,

485 nh'a meVn oi@ ge mevlainan ejp j hjpeivroio e!russan uJyou' ejpiV yamavqoi", uJpoV d j e@rmata makraV tavnussan:

aujtoiV d j ejskivdnanto kataV klisiva" te neva" te. aujtaVr oJ mhvnie nhusiV parhvmeno" wjkupovroisi diogenhV" Phlh'o" uiJoV" povda" wjkuV" jAcilleuv":

490 ou!tev pot j eij" ajgorhVn pwlevsketo kudiavneiran ou!tev pot j ej" povlemon, ajllaV fqinuvqeske fivlon kh'r

au\qi mevnwn, poqeveske d j aju>thvn te ptovlemovn te. ajll j o@te dhv rJ ejk toi'o duwdekavth gevnet j hjwv", kaiV tovte dhV proV" !Olumpon i!san qeoiV aijeVn ejovnte"

495 pavnte" a@ma, ZeuV" d j h\rce: Qevti" d j ouj lhvqet j ejfetmevwn paidoV" eJou', ajll j h@ g j ajneduvseto ku'ma qalavssh".

hjerivh d j ajnevbh mevgan oujranoVn Ou!lumpovn te. eu%ren d j eujruvopa Kronivdhn a!ter h@menon a!llwn ajkrotavth/ korufh'/ poludeiravdo" Oujluvmpoio:

500 kaiv rJa pavroiq j aujtoi'o kaqevzeto, kaiV lavbe gouvnwn skaih/', dexiterh'/ d j a!r j uJp j ajnqerew'no" eJlou'as

lissomevnh proseveipe Diva Kronivwna a!jnakta: Zeu' pavter ei! pote dhv se met j ajqanavtoisin o!nhsa h# e!pei h# e!rgw/, tovde moi krhvhnon ejevldwr:

505 tivmhsovn moi uiJoVn o$" wjkumorwvtato" a!llwn e!plet j: ajtavr min nu'n ge a!nax ajndrw'n jAgamevmnwn

hjtivmhsen: eJlwVn gaVr e!cei gevra" aujtoV" ajpouvra". ajllaV suv pevr min ti'son jOluvmpie mhtiveta Zeu': tovfra d j ejpiV Trwvessi tivqei kravto" o!fr j a#n jAcaioiV

510 uiJoVn ejmoVn tivswsin ojfevllwsivn tev eJ timh/'.

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w$" favto: thVn d j ou! ti prosevfh nefelhgerevta Zeuv", ajll j ajkevwn dhVn h%sto: Qevti" d j wJ" h@yato gouvnwn w$" e!cet j ejmpefufui'a, kaiV ei!reto deuvreton au\ti": nhmerteV" meVn dhv moi uJpovsceo kaiV katavneuson

515 hj ajpoveip j, ejpeiV ou! toi e!pi devo", o!fr j eju< eijdevw o@sson ejgwV metaV pa'sin ajtimotavth qeov" eijmi.

thVn deV mevg j ojcqhvsa" prosevfh nefelhgerevta Zeuv": h\ dhV loivgia e!rg j o@ tev m j ejcqodoph'sai ejfhvsei" @Hrh o@t j a!n j m j ejrevqh/sin ojneideivoi" ejpevessin:

520 h\ deV kaiV au!tw" m j aijeiV ejn ajqanavtoisi qeoi'si neikei', kaiv tev mev fhsi mavch/ Trwvessin ajrhvgein.

ajllaV suV meVn nu'n au\ti" ajpovstice mhv ti nohvsh/ @Hrh: ejmoiV dev ke tau'ta melhvsetai o!fra televssw: eij d j a!ge toi kefalh'/ kataneuvsomai o!fra pepoivqh/":

525 tou'to gaVr ejx ejmevqen ge met j ajqanavtoisi mevgiston tevkmwr: ouj gaVr ejmoVn palinavgreton oujd j ajpathloVn

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mhtriV d j ejgwV paravfhmi kaiV aujth'/ per noeouvsh/ patriV fivlw/, ejpivhra fevrein Diiv, o!fra mhV au\te neikeivh/si pathvr, suVn d j hJmi'n dai'ta taravxh/.

580 ei! per gavr k j ejqevlh/sin jOluvmpio" ajsterophthV" ejx eJdevwn stufelivxai: oJ gaVr poluV fevrtatov" ejstin.

ajllaV suV toVn ejpevessi kaqavptesqai malakoi'sin: aujtivk j e!peiq j i@lao" jOluvmpio" e!ssetai hJmi'n. w$" a!r e!fh kaiV ajnai?xa" devpa" ajmfikuvpellon

585 mhtriV fivlh/ ejn ceiriV tivqei kaiv min proseveipe: tevtlaqi mh'ter ejmhv, kaiV ajnavsceo khdomevnh per,

mhv se fivlhn per ejou'san ejn ojfqalmoi'sin i!dwmai qeinomevnhn, tovte d j ou! ti dunhvsomai ajcnuvmenov" per craismei'n: ajrgalevo" gaVr jOluvmpio" ajntifevresqai:

590 h!dh gavr me kaiV a!llot j ajlexevmenai memaw'ta rJi'ye podoV" tetagwVn ajpoV bhlou' qespesivoio,

pa'n d j h\mar ferovmhn, a@ma d j hjelivw/ kataduvnti kavppeson ejn Lhvmnw/, ojlivgo" d j e!ti qumoV" ejnh'en: e!nqav me Sivntie" a!ndre" a!far komivsanto pesovnta.

595 w$" favto, meivdhsen deV qeaV leukwvleno" @Hrh, meidhvsasa deV paidoV" ejdevxato ceiriV kuvpellon:

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aujtaVr oJ toi'" a!lloisi qeoi'" ejndevxia pa'sin oijnocovei glukuV nevktar ajpoV krhth'ro" ajfuvsswn: a!sbesto" d j a!r j ejnw'rto gevlw" makavressi qeoi'sin

600 wJ" i!don @Hfaiston diaV dwvmata poipnuvonta. w$" tovte meVn provpan h\mar ej" hjevlion kataduvnta

daivnunt j, oujdev ti qumoV" ejdeuveto daitoV" eji?sh", ouj meVn fovrmiggo" perikallevo" h$n e!c j jApovllwn, Mousavwn q j aiJ a!eidon ajmeibovmenai ojpiV kalh'/.

605 aujtaVr ejpeiV katevdu lamproVn favo" hjelivoio, oiJ meVn kakkeivonte" e!ban oi\kon deV e@kasto",

h%ci eJkavstw/ dw'ma periklutoV" ajmfiguhvei" @Hfaisto" poivhsen ijduivh/si prapivdessi: ZeuV" deV proV" o$n levco" h!i> j jOluvmpio" ajsterophthv",

610 e!nqa pavro" koima'q j o@te min glukuV" u@pno" iJkavnoi: e!nqa kaqeu'd j ajnabav", paraV deV crusovqrono" @Hrh.

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2.2. TEXTO GREGO E TRADUÇÃO

ILÍADA – CANTO I

Deusa, canta tu o furor malparado3 de Aquiles2 Pelida1, furor que pôs4 inúmeros sofrimentos aos Aqueus, precipitou para os domínios de Hades muitas5 almas vigorosas de heróis e fê-los6 presas a cães7 e a aves8 quaisquer9. E cumpria-se o desígnio de Zeus10, por ação de quem o Atrida senhor de guerreiros13 e o divino Aquiles14, os quais rivalizaram12 desde os primórdios, apartaram-se11. E quem dentre os deuses, afinal, entrechocou-os para combaterem15 em rixa? O filho de Leto e de Zeus. É que, havendo se irritado contra o rei16, ele despertou19 terrível flagelo17 pelo acampamento18, e as ligas21 iam perecendo20 em virtude de que o Atrida desonrou o sacerdote22 Crises, pois este foi às velozes naus dos Aqueus querente de livrar a filha e trazendo tributos irrestritos24, tendo, ao dourado cetro26 em mãos, insígnias de Apolo – que alveja à distância25 –. Outrossim, rogava27 aos Aqueus e sobretudo aos dois Atridas, organizadores de ligas28: [Crises] "Atridas, bem como demais grevados Aqueus! Os deuses que mantêm os palácios Olímpicos hajam de vos dar29 suprimires a cidade de Príamo30, porém chegardes31 em casa bem. Havei de livrar33 minha filha32 e receber34 os tributos, venerando35 Apolo, filho de Zeus."

22 Então todos os demais Aqueus aclamaram acatar-se36 o sacerdote e receberem-se38 os esplêndidos37 tributos. Mas isso não agradou39 aos interesses do Atrida Agamêmnon. Pelo contrário: ele foi rechaçando grosseiramente e descarregando41 um aviso ríspido40: [Agamêmnon] "Velho, não encontre42 eu a ti à margem das côncavas naus – ou demorando-te agora ou vindo de novo mais tarde – que43 não te sirvam o cetro e as fitas do deus!

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Eu não hei de livrá-la. Antes, a velhice vem até ela também, em nossa morada, em Argos, lá longe da pátria, dedicando-se a telas e ocupando numa banda meu leito. Mas age! Não me provoques, para que consigas voltar mais tranqüilo..." Assim afirmou44. O velho receou e obedeceu ao aviso45. Então andou, calado, junto aos baixios do mar murmurejante e, em seguida, partindo lá para outro lado, o ancião ia fazendo muitas preces ao senhor Apolo, o qual Leto – de belos cabelos – pariu: [Crises] "Escuta-me, tu de arco prateado, o qual tens rondado Crisa e a diviníssma Cila e assenhoras com vigor Tênedo! Flagelo aos ratos, se algum dia te construí aprovado templo, ou se algum dia te cremei cevadas coxas46 de touros e de cabras, realiza-me47 o seguinte desejo48: possam o Dânaos pagar-me as lágrimas49 mediante teus dardos50!" Assim afirmou, fazendo voto51. E Febo Apolo escutou-o: então, dos picos do Olimpo52 desceu enfurecendo-se53 no coração54, tendo aos ombros os arcos "ambiencapados" e o carcás. Nisso, as flechas clangoraram de cima dos ombros dele enfurecendo-se, movendo-se55. Ele vinha parecendo a noite56. Em seguida, foi se sentando lá para longe das naus e depois despachou57 uma seta: um clangor assutador surgiu58 do arco prateado. Por primeiro59, atacou60 as mulas e os ligeiros cães; em seguida, para completar, atirou um dardo pontiagudo que fez ir contra os condutores. Daí, continuamente, espessas fogueiras61 de cadáveres queimavam. Conquanto ao nono dia os acúleos do deus partiam para o acampamento, ao décimo, porém, Aquiles chamou62 para a ágora sua liga. É que a deusa Hera – de alvos braços – pôs tal coisa sobre seu íntimo, pois ela compadecia-se63 dos Dânaos; porque, afinal, via-os64 morrendo.

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57 Quando, então, eles foram reunidos e ficaram uniformes, Aquiles – de prontos pés65 – havendo se levantado, afirmou em meio a eles: [Aquiles] "Atrida, creio que nós, os quais fomos repelidos de novo, iremos agora voltar para donde viemos, se conseguirmos evitar ao menos a morte, se, pois, guerra e peste, de uma só vez66, submete67 os Aqueus. Mesmo assim, avante! Sim, indaguemos algum adivinho ou sacerdote ou onirópolo (pois mesmo o sonho provém de Zeus) que haja de dizer por que Febo Apolo se enfureceu tanto e se, pois, ele reivindica68 voto ou hecatombe. Pode até ser que, ao se encontrar com o cheiro de assado de perfeitos cordeiros e cabras, decida69 afastar-nos o luto para longe." Enfim: havendo ele assim falado70, assentou-se, e pronto. Entre eles, então, Calcas Testórida se levantou, decerto o melhor dos áugures, o qual sabia tanto o presente como o passado como o futuro e guiou para o interior de Ílion as naus dos Aqueus, através da adivinhação com que Febo Apolo lhe abrangeu71. Pensando lucidamente, ele tomou parte à reunião e falou em meio a eles: [Calcas] "Oh... Aquiles, benquisto a Zeus... Exortas-me72 a explicar73 o furor do senhor Apolo – que alveja à distância74 –. Pois bem, hei te dizer75 eu, porém há de compreenderes76 e de jurares – ah, sim! – defenderes-me, predisposto, com palavras e com mãos. Sim, pois intuo77 haver de irritar um guerreiro que controla significativamente todos os Argivos e ao qual os Aqueus obedecem. O fato é que um rei é mais pujante quando se enfurece contra um guerreiro subordinado. E isso porque, se efetivamente digere a irritação que seja, no dia, em contrapartida ainda guarda rancor depois, até que se finde, em seu peito. Tu, então, cogita se me salvarás..." E Aquiles – de prontos pés – endereçou-se-lhe, respondendo:

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[Aquiles] "Ao valeres, fala tu o oráculo que sabes78. Porque, por Apolo (benquisto a Zeus e através do qual tu, Calcas, fazendo voto, esclareces oráculos aos Dânaos), ninguém dentre os grupos todos de Dânaos, estando eu vivo sobre chão e enxergando79, há de descer80 mãos pesadas em ti às margens das côncavas naus. Não, nem se81 acabes falando 'Agamêmnon', o qual, agora, faz voto82 de ser o melhor, em muito." Desde tão logo o distinto adivinho valeu-se, também falou: [Calcas] "Bom, ele nem reivindica voto tampouco hecatombe. Trata-se do sacerdote que Agamêmnon desonrou: nem libertou-lhe a filha nem aceitou os tributos. Pois é, por causa disso O que alveja à distância deu sofrimentos e ainda há de dar. E tão cedo ele não removerá aos Dânaos o abominável83 luto tão logo é que se devolver ao amado pai a donzela – de olhos atentos – gratuita, não-tributada, e pôr-se em andamento uma sagrada hecatombe em prol de Crises. Vindo nós a tê-lo aplacado84, poderíamos convencê-lo85."

101 Enfim: havendo ele assim falado, assentou-se, e pronto. Então levantou-se, entre eles, o herói Atrida, o amplamente pujante Agamêmnon, contrariado86: sentimentos sombrios se encheram fortemente de ímpeto em toda sua parte; ambos seus olhos luziam parecidos a fogueiras! Antes de mais nada, endereçou-se, airando, a Calcas: [Agamêmnon] "Adivinho de males! Quase nunca falaste algo de préstimo! Sempre, ao teu âmago, as coisas ruins são benquistas de se adivinharem87. E nem falaste algo íntegro qualquer nem cumpriste palavra. Mesmo agora, entre os Dânaos, arengas dando oráculos de que decerto em virtude do seguinte O que alveja à distância fez-lhes sofrimentos: em virtude de que não consenti eu em receber os esplêndidos tributos pela donzela Criseida, já que em muito

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quero tê-la em casa. Na verdade, mesmo porque tenho-a preferido à Clitemnestra, legítima esposa, já que não lhe é inferior, não no porte nem na postura, e até nem nos sentimentos nem em nada de prendas. Mas, mesmo assim, consinto dá-la de volta, se o é mais distinto. Prefiro eu a liga estar salva a ela ser dizimada! Só que aprontem-me uma regalia o quanto antes, a fim de não seja o único dos Argivos sem-regalia, já que sequer procede. Pois bem, todo vede isto: que minha regalia vai embora!" E respondeu-o, em seguida, o expedito divino Aquiles: [Aquiles] "Digníssimo Atrida, o qual mais adora aquisições que todo! Como, afinal, os magnânimos Aqueus hão de te dar uma regalia? Sequer sabemos nada de um volumoso estoque88 comunal. Aliás, saqueamo-lo das cidades – ele está repartido –, e não é certo as ligas amontoarem-no reajuntado. Em vez disso, por hora, oferece-a tu ao deus, conquanto os Aqueus te ressarciaremos em triplo e em quádruplo, contanto que Zeus acabe nos dando saquear por completo a amurada cidade Tróia."

130 E o pujante Agamêmnon endereçou-se-lhe, respondendo: [Agamêmnon] "Não me furtes pelo senso desse jeito, deiforme Aquiles, ainda que tu sendo bravo, já que não hás de me superar89 nem de convencer. Pois sim... queres que eu fique parado90 no lugar, carecido91 nesta história, enquanto tu próprio tenhas regalia. E me instigas a devolvê-la?! Somente se os magnânimos Aqueus derem uma regalia que hajam perfeito92 segundo minha vontade93, de modo que será condigno. Se, porém, acabarem não dando, eu, indo, acabo eu próprio tomando94 ou a tua regalia, ou a do Ájax, ou levarei a do Odisseu, tomando! E aquele a quem eu acabe chegando poderá ficar irado. Mas tudo bem, trataremos95 desses assuntos ainda outra vez. Agora, avante! Arrastemos96 uma negra nau para as claras águas do mar; agrupemos dentro remeiros o bastante;

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coloquemos dentro uma hecatombe; então, com jeito, levemos a bordo a própria Criseida – de belas faces –, e seja comandante um só, algum guerreiro resoluto, ou Ájax, ou Idomeneu, ou o divino Odisseu, ou tu, Pelida, o mais veemente97 dentre todos os guerreiros, a fim de que tu nos aplaque O que peleja à distância, uma vez tendo operado os sacrifícios." E, com isso, Aquiles – de prontos pés – endereçou-se-lhe, olhando de soslaio98: [Aquiles] "Basta, aproveitador abarrotado de despudor! Como alguém dentre os Aqueus pode obedecer às tuas palavras predisposto, ou para percorrer um trajeto ou para, com vigor, cmbater contra guerreiros?! O fato é que não vim eu para cá querente de lutar por causa dos lanceiros Troianos, já que não me são nada culpáveis: nunca na vida tangeram minhas reses nem muito menos cavalos e nunca estragaram-me a colheita na Ftia – cevadora de guerreiros, de glebas à vontade –. Sim, e isso porque coisas demais em interposição: tanto sombrias montanhas como o ecoante mar. Além do mais, grande sem-vergonha, seguimos-te99 de uma só vez a fim de que tu te alegrasses, nós tentando100 honra da parte dos Troianos101 a Menelau e a ti, que tens olhos de cão! Desses fatos, não reconsideras nada nem te preocupas. Mesmo numa hora destas ameaças seqüestrar, tu próprio, a minha regalia, até a qual obrei muitas labutas, e a qual as gentes Acaias me deram. Vez alguma tenho regalia igual à tua102, quando seja que os Aqueus saqueiem uma cidadela dos Troianos bem habitada. Mas minhas mãos é que dão um jeito na maior parte da impetuosa guerra. Ora, se por acaso a partilha chega, a tua regalia, muito maior... E eu, por mais que a tendo exígua, é benquista: vou às naus, uma vez que haja me cansado guerreando. Agora, não: vou para a Ftia. Óbvio, já que é muito mais proveitoso ir com ajuda das naus, e, estando cá

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desonrado, não planejo continuar te escoando bens e abastança."

172 E, em seguida, Agamêmnon – senhor de guerreiros –, respondeu-o: [Agamêmnon] "Foge, se teu ânimo te obstina em excesso! E eu é que te rogo permanecer por causa de mim. Ainda há outros ao meu lado, pelo menos, que acabarão me honrando, e há sobretudo o prudente Zeus! És-me o mais odioso dentre os reis alunos de Zeus, pois sempre te é benquista uma rixa, guerras, combates. Se és extremamente mais forte, é provável que um deus to deu. Assenhora tu para teus companheiros Mirmidões, ao ires para casa com ajuda das naus! Não me preocupo eu contigo nem me importo103 com teu rancor, e sim te ameaço da seguinte forma: como Febo Aolo me seqüestra Criseida, eu hei de enviá-la mais minha nau e meus companheiros e acabo eu próprio, indo à tua tenda, levando Briseida – de belas faces –, a tua regalia, a fim de que saibas bem quão mais poderoso sou do que tu, e de que mesmo outrem evite afirmar-se igual a mim e igualar-se de frente!" Assim afirmou, e uma punção surgiu no Peleio: Em seu hirsuto peito, hesitou em dúvida: ou, tirando do lado da coxa a afiada espada, dispersar-los-ia e dava cabo do Atrida; ou deteria a ira e conformava o ânimo. Enquanto104 ele amadurecia essas idéias a fundo dos sentimentos e da vontade, ia sacando105 para fora da bainha a grande espada, porém Atena veio do céu. É que a deusa Hera – de alvos braços – a qual uniformemente quer bem, no ânimo, e compadece-se de ambos, deixou-a ir à frente. Parou de pé, detrás, agarrou o Peleio pela loura cabeleira, visibilizando-se106 a ele único. Ninguém dentre os demais a via. Aquiles surpreendeu-se, depois virou-se e de imediato reconheceu Palas Atena: ambos os olhos dela se iluminaram107 terríveis. E proferiu-lhe palavras aladas, exclamando:

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[Aquiles] "Por que é que vieste108 desta vez, cria de Zeus – detentor da égide –? Talvez com o fim de que vejas o absurdo do Atrida Agamêmnon? Mas eu te confesso109, ainda creio se cumprir o seguinte: uma hora ele há de perder110 a vida, mediante as soberbas , ah, se há!" E, por sua vez, a deusa Atena – de olhos verde-mar – endereçou-se-lhe: [Atena] "Vim do céu eu querente de deter o teu ímpeto, contanto que te convença. A deusa Hera – de alvos braços –, a qual uniformemente quer bem, no ânimo, e compadece-se de ambos, deixou-me ir à frente. Mas ânimo! Esvai111 a rixa e não saques com a mão a espada! Mas ei, insulta-o com palavras – isso, sim! –, há de ser exatamente o mesmo, pois, sendo assim, confesso-te, e há de ficar cumprido112 isto: em virtude desse absurdo, doravante te disponibilizar-se-ão esplêndidas dádivas em até três. Então, contém-te a ti e obedece-nos."

215 E Aquiles – de prontos pés – respondeu-a: [Aquiles] "É necessário, sim, deusa, conservar-se a palavra de vós duas, ao menos, por mais que eu venha me irando no ânimo, pois assim é mais distinto. Aquele que consiga se render aos deuses, mais o escutam eles!" Disse e segurou sobre o cabo prateado a pesada mão. Empurrou113 a grande espada de volta para a bainha e não desobedeceu o discurso de Atena. Ela, então, após os demais numes114, havia arredado para o Olimpo, para os palácios de Zeus – detentor da égide –. O Pelida ainda mais uma vez endereçou-se, com palavras mordazes, ao Atrida, e não foi esvaindo a ira de jeito nenhum: [Aquiles] "Beberrão, que tem olhos de cão e coração de veado! Vez alguma agüentaste, no ânimo, encouraçar-se, para uma guerra, de uma vez só com a liga ou ir com os melhores dos Aqueus a uma emboscada. Isso, a ti, parece

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ser o teu exício! Óbvio que é muito mais lucrativo seqüestrar pelo vasto acampamento dos Aqueus dádivas daquele que fale em posição diversa da tua. És um rei que explora o povo porque assenhoras para imprestáveis! Não fosse isso, Atrida, ah, estarias fazendo agora os últimos ultrajes... Mas te confesso e ademais farei115 um juramento solene. Deveras, por este cetro (o qual não mais há de gerar folhas e galhos porque mantém o tronco largado nas montanhas e não reflorescerá, um machado arrancou-lhe as folhas e o lenho, e o juízes das gentes Acaias o manejam nas palmas, os quais conservam116 consigo os decretos da parte de Zeus), este juramento, contra ti, há de ser solene: um dia o pesar de Aquiles chegará sim às gentes Acaias completas, e então não poderás servir para nada, mesmo contrariado, quando muitos acabem tombando, morrendo, sob Heitor – que massacra guerreiros –, e tu hás de lancinar o ânimo, por dentro, enfurecendo-se de que não honraste em nada o melhor dos Aqueus!" Assim afirmou o Pelida e atirou (contra a terra!) o cetro perfurado com cravos dourados. Ele foi se sentando, e o Atrida se agastando, de saída do outro lado. Então o brandíloquo Nestor levantou-se de salto, nítido arengador dos Piliões, do qual a voz fluía da língua mais doce do que mel. Em seu tempo, já se consumiram duas gerações de humanos de aspecto mortal os quais nasceram e cresceram na sacratíssima Pilo. Depois, asenhorava para a terceira. Pensando lucidamente, ele tomou parte na reunião e falou entre eles:

254 [Nestor] "Valha-me! Que grande pesar vam dar na terra Acaia! Como deveriam se animar Príamo e os filhos de Príamo, e os demais Troianos poderiam se alegrar muito117, no ânimo, se informassem-se118 disso tudo quanto aos dois se atracando, os quais estais a par da assembléia119 dos Dânaos, a par do combater! Ah, não! Vós haveis de confiar

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em mim (ambos são mais novos do que eu), pois, certa vez, também já me aliei eu a guerreiros até mais belicosos (e como!) do vós, e eles nunca me subestimaram. O fato é que, no geral, não vi nem deverei ver tais guerreiros, qual Pirítoo, Drianto – pastor de ligas –, Ceneu, Exádio e mesmo o em parte deus Polifemo e Teseu Égida, parecidíssimo aos imortais. Desde então, aqueles cresceram os mais fortes dentre os guerreiros sobre chão. Os mais fortes, eram-no, e combatiam contra as mais fortes feras montesas as exterminavam veementemente. Ainda ia me aliando por entre eles, ao vir desde Pilo, longe, de uma terra estrangeira, posi eles próprios me convidaram. Ninguém dos que são mortais sobre chão, agora, quereria combater contra aqueles! Ora, até atentavam às minhas decisões e obedeciam a meu aviso! Mas havei vós também de obedecer, já que obedecer é mais distinto: nem tu, poderoso que és, seqüestres a donzela, mas concede-a, conforme a princípio as gentes Acaias lhe deram a regalia, nem tu, Pelida queiras rivalizar hostilmente contra um rei, já que nunca um rei detentor de cetro comparte de semelhante honra à de quem Zeus, pois, deu dignidade! E se tu és mais forte (uma deusa te gerou), em contrapartida ele é mais poderoso, já que assenhora para a maioria. Quanto a ti, Atrida, detém teu ímpeto! Ou melhor, da minha parte eu te rogo relevares a cólera de Aquiles, o qual representa aos Aqueus grande reparo na guerra." E o pujante Agamêmnon endereçou-se-lhe, respondendo: [Agamêmnon] "Sim, óbvio que falaste isso tudo com propriedade120, velho. Mas este guerreiro quer abarcar a todos os demais121, quer controlar a todos, assenhorar para todos, dar ordens a todos, coisas que creio não haverem de obedecer. E se os deuses sempiternos fizeram-no lanceiro, por isso eles lhe privilegiam justificar insultos?!

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292 E, com isso, o divino Aquiles foi retrucando, de repente: [Aquiles] "Pois sim... Eu deveria ser clamado covarde e imprestável, se de fato me rebaixar a toda empresa sejá lá que digas! A outros, tudo bem, imputa tu essas coisas, pois a mim é que não dês ordens! O fato é que eu, ao menos, não mais planejo mais te obedecer. E te direi outra coisa, então tu toma a sério: para ti é que eu não combaterei, com mãos, por causa da donzela. Nem a ti, nem a outro, já que, havendo vós dado, fazes é me seqüestrá-la! Às margens de uma veloz nau estão meus pertences dentre outros. Deles, aos haveres descarregado, não gostarias de levar nada de mim indisposto! Se é o caso, anda, então! Tenta, para que os presentes também fiquem sabendo: num instante teu sangue atro há de escorrer em tor no de um chuço!" Assim, ambos havendo se combatido com palavras hostis, levantaram-se e solveram a reunião às margens das naus dos Aqueus. O Pelida (que foi às tendas e naus) ia com o Menetida e seus companheiros; já o Atrida arrastou uma veloz nau mar adiante, discriminou dentro vinte remeiros, pôs a bordo a hecatombe para o deus e, conduzindo detrás, fez subir Criseida – de belas faces –. Entrou a bordo o comandante, o prudentíssimo Odisseu. Em seguida, havendo eles entrado a bordo, foram navegando por sobre as úmidas rotas, e o Atrida ia ordenando que as ligas fossem se limpando: eles foram se limpando e lançando para as águas do mar as sujeiras. Então operaram as primorosas hecatombes de touros e de cabras, a Apolo, por junto aos baixios das inadulteradas122 águas do mar. O cheiro de assado, enroscando-se em volta da fumaça, foi dando com o céu. Assim, eles foram cuidando123 dos afazeres pelo acampamento. Agamêmnon, porém, não sossegava da rixa que primordialmente ameaçou exclusive a Aquiles. Não, ele

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endereçou-se a Taltíbio e a Euríbate, os quais eram ambos arautos e solícitos representantes124: [Agamêmnon] "Dirijam-se à tenda de Aquiles Pelida, para trazerem Briseida – de belas faces –, tomando pela mão. E se eles não quiserem dá-la, então acabo eu mesmo tomando-a, indo com um grupo maior. Isso lhe há de ser mais lancinante." Havendo falado assim, deixou-os ir à frente e impunha-lhes um aviso ríspido. Os dois saíram calados, à beira dos baixios das inadulteradas águas do mar e chegaram ao ponto das tendas e naus dos Mirmidões. Encontraram Aquiles descansado125 junto a uma tenda e a uma negra nau. Aquiles, naturalmente, não gostou, ao ver os dois. Os dois pararam acovardando-se e tratando o rei com deferência. Nem lhe anunciaram nada tampouco perguntaram, só que Aquiles ficou ciente em seu íntimo e vozeou:

334 [Aquiles] "Saudações, arautos, mensageiros de Zeus e de homens! Chegai mais perto! Vós não me sois culpáveis de nada, senão Agamêmnon, diretamente. Ele os deixou vir à frente por causa da donzela Briseida. Ora, mexe-te, Pátroclo – que tens genes de Zeus –! Traze para fora a donzela e então dá-lhes levá-la. Ambos eles, porém, sejam testemunhas tanto perante Zeus como perante os humanos mortais como perante o estúpido rei, caso daqui para frente surja necessidade de eu afastar, aos outros, o abominável luto. Sim, pois esse rei arde em seu íntimo funesto e não sabe em nada razoar, de uma só vez, o passado e o futuro, de modo que os Aqueus combatessem seguros, às margens das naus!" Assim afirmou, e o amigo, Pátroclo, obedecera ao companheiro: trouxe para fora da tenda a Briseida – de belas faces – e deu-lhes levá-la. Ambos, mais uma vez, foram para as margens das naus dos Aqueus. A mulher, involuntária126, movia-se junto com eles.

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Apesar de tudo, Aquiles, de repente, foi se sentar à parte dos companheiros, ao se retirar127 aos baixios das cinzentas águas dos mar, olhando para o infinito alto-mar. Então fez muitas preces à amada mãe, suspendendo as mãos: [Aquiles] "Mãe, como ao menos me pariste (ainda que eu sendo efêmero), o Olímpio Zeus – que freme das alturas – devia me outorgar honra, fosse como fosse. Porém, agora não me honrou nem um pouco. Sim, pois o amplamente pujante Atrida Agamêmnon me desonrou: havendo ele roubado tomando, mantém a regalia!" Assim afirmou, vertendo lágrima, e a augusta mãe escutou-o, encontrando-se ao lado do velho pai nas profundezas das águas do mar. Feito névoa, ela emergiu às pressas128 das cinzentas águas do mar e, nisso, assentou-se de frente para Aquiles, o qual vertia lágrima, acariciou-o com a mão, e foi afirmando palavra verbalizando alto: [Tétis] "Filho, por que choras?! Que pesar te chegou ao íntimo? Desabafa, não o ocultes129 na mente, a fim de que ambos saibamos!" Gemendo grave, Aquiles – de prontos pés – endereçou-se-lhe:

365 [Aquiles] "Estás sabendo. Por que, então, arengo-te, a qual estás ciente de todas as coisas? Partimos para Tebas, sacra cidade de Etíono, então espoliamo-la e trouxemos tudo para cá. Outrossim, as gentes Acaias repartiram130 coisas bem, entre si, e seqüestraram para o Atrida Criseida – de belas faces –. Crises, sacerdote de Apolo – que alveja à distância –, veio novamente até as velozes naus dos Aqueus – de túnicas brônzeas – querente de livrar a sua filha e trazendo tributos irrestritos, tendo ao cetro dourado em mãos insígnias de Apolo – que alveja à distância –, e rogava aos Aqueus, sobretudo aos dois Atridas, organizadores de ligas. Então todos os demais Aqueus aclamaram acatar-se o sacerdote e receberem-se os esplêndidos tributos. Mas não

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agradou aos interesses do Atrida Agamêmnon. Pelo contrário, ele foi rechaçando grosseiramente e descarregando um aviso ríspido. O velho partiu de volta, enfurecendo-se. Ao fazer voto, Apolo o escutou. Como ele era muito benquisto a Apolo, este despachou para cima dos Argivos um terrível dardo. Pronto: as ligas foram morrendo, uns atrás dos outros, os acúleos do deus atacaram em toda parte, pelo amplo acampamento dos Aqueus. Então um adivinho nos foi bem ciente, arengando oráculos dO à distância131. De imediato, fui eu o primeiro a exortar que se aplacasse o deus. Em seguida, uma fúria tomou o Atreio e, num instante, após se levantar, ameaçou exclusivamente a mim um aviso que já se acha cumprido. Quer dizer, os Aqueus – de olhos atentos – estão enviando a donzela, com uma veloz nau, para Crises e levando dádivas ao senhor Apolo. E, há pouco, uns arautos saíram da minha tenda levando a donzela filha de Brises, a qual me deu as gentes Acaias. Mas tu, se é que podes, há de defender a causa de teu filho: indo ao Olimpo, roga a Zeus, se outrora já favoreceste132 em algo o coração de Zeus, ou com palavra ou mesmo com empresa. É que muitas vezes escutei-te te vangloriando nos salões de teu pai, quando afirmaste ter, única entre os imortais, afastado, ao Croneio de nuvens atras, abominável luto, na hora em que os outros Olímpios consentiam em imobilizá-lo, Hera, Poseidon e Palas Atena. Tu, ao contrário, deusa, indo a ele, livraste-o, como pudeste, do jugo das amarras, ao chamares, de pronto133, ao grande Olimpo, o centímano, o qual os deuses chamam Briareu, e todos os guerreiros, Egeão (diga-se de passagem, é mais distinto do que o pai, em força); o qual (diz-se) assentava-se ao lado do digno filho de Cronos, gozando. Mesmo os ditosos deuses o recearam em segredo e não o amarraram mais. Desta vez, ao lembrá-lo dos fatos, senta ao lado dele e segura-o pelos joelhos. Pode até ser que ele consinta em socorrer, até onde dê, os Troianos e cercar os Aqueus

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morrendo ao longo das popas e por todo lado das águas do mar. Isso a fim de que todos façam bom proveito de seu rei e de que o amplamente pujante Atrida Agamêmnon fique ciente ciente de sua obcecação, porque não honrou nada quanto ao melhor dos Aqueus!"

414 E, em seguida, Tétis lhe respondeu, vertendo lágrima a fio: [Tétis] "Valha-me, meu filho... Para que lá, ao te parir, fui te sustendo miseranda? Prouvera fosse para tu continuares sem lágrimas e sem desgosto, porque, por mais que te seja minúscula a porção de vida, por muito tempo não há nada mais... Agora pulsas134, a um só tempo, de morte à espreita e lamurioso, em grau além de todos! Nos salões, pari-te para uma porção miseranda de vida, não é?! Porém, vou eu própria ao nevoento Olimpo havendo de dizer a Zeus – que se compraz com o raio – essa tua fala, na esperança de convencê-lo. Mas tu, agora descansado às margens das naus – de pronta travessia –, agasta-te contra os Aqueus e exime-te totalmente da guerra, pois Zeus entrou no Oceano lá para os lados dos Etíopes, ontem, pela duração de uma refeição135, todos os deuses seguiram de uma vez só. Eles virão de novo ao Olimpo ao duodécimo dia e, quando então, em seguida, eu mesma vou rumo ao palácio136 – de piso brônzeo – de Zeus. Outrossim, ajoelharei-me a ele e creio haver de convencê-lo." Assim, pois, havendo vozeado, foi-se embora e deixou-o no mesmo lugar, enfurecendo-se, no fundo do ânimo, pela falta da mulher – de bela cintura –, a qual (já se sabe) iam lhe roubando à força involuntário. Enquanto isso, Odisseu ia chegando a Crisa, levando uma sacra hecatombe. Quando já iam chegando ao interior do profundo porto, aducharam as velas; colocaram-nas às pressas na negra nau, havendo eles descido as velas, com estias; aproximaram o mastro, com forquilhas, ao estilo; e, com

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remos, vogaram a nau para ancoradouro. Então: atiraram fora as pedras de atracagem; amarraram-nas firme às popas; eles ainda desembarcaram sobre o molhe do mar; desembarcaram a hecatombe para Apolo – que alveja à distância –, e Criseida desembarcou da nau – que atravessa altos-mares –. Ela, o prudentíssimo Odisseu, levando-a ao altar, em seguida coloca-a em mãos do amado pai dela, e endereçou-se a ele: [Odisseu] "Ó Crises, o senhor de guerreiros Agamêmnon enviou à frente tanto para te trazer a filha como para obrar, em favor dos Dânaos137, uma sacra hecatombe para Febo, para que aplaquemos a esse senhor, o qual despacha aos Argivos sofrimentos dolentes, neste instante."

446 Havendo assim falado, coloca-a em mãos, e o pai a recebeu alegrando-se... Logo após, eles fizeram, prontamente, uma sacra hecatombe ao deus ficar em volta do bem construído altar. Lavaram as mãos, em seguida, e levaram os grãos de cevada, ao passo que Crises ia fazendo votos, em voz alta, para eles, mantendo as mãos para cima: [Crises] " Escuta-me, tu de arco prateado, o qual tens rondado Crisa e a diviníssma Cila e assenhoras com vigor Tênedo! De modo que, anteriormente, estavas escutando a mim fazendo voto (honraste-me e castisgaste138 a liga de Aqueus), mais uma vez, agora, realiza-me o seguinte desejo: afasta, agora mesmo, o abominável luto, aos Aqueus!" Assim afirmou, fazendo voto, e Febo Apolo estava escutando-o. Com isso, como fizeram voto e atiravam à frente os grãos de cevada, a princípio embarcaram as vítimas, degolaram-nas e esfolaram-nas. Deceparam os membros, recobriram-nos com graxa, preparando dupla camada, e puseram carne viva dos próprios por cima. O velho foi assando-as sobre gravetos e pingando em cima vinho flamante. Os jovens seguravam para o lado dele, com as mãos, espetos quíntuplos.

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Nisso, depois que se cremaram os membros e comeram as vísceras, retalharam enfim a sobra e, com espetos, espetaram por todo lado. Crestaram esmeradamente e tiraram todas as postas. Para completar, depois que pararam o afã e deram feição à refeição, foram se banqueteando. E ninguém ficava a desejar de refeição proporcional139. Feito isso, quando foram se livrando do apetite por comidas e bebidas, os rapazes "coroaram" de bebidas as crateras, até em cima. Então, como sempre, fizeram oferenda com todos as taças, começando pela parte de cima. Os rapazes dos Aqueus, celebrando O que peleja à distância, iam com celebração aplacando o deus, passando eles o dia inteiro cantando um belo peã. Ouvindo, ele ia se divertindo140 em seu íntimo. Quando o sol se pôs e foi em cheio às nuvens, já então foram se deitar junto à popa da nau. Quando a Aurora – germa da manhã, de dedos cor-de-rosa – apareceu, então também foram, em seguida, prosseguindo pelo meio do amplo acampamento dos Aqueus. Apolo – que peleja à distância – despachou uma brisa que deu com eles. Eles puseram de pé o mastro e desdobraram por extenso as velas. O vento enfunou-as a meio mastro, e turva onda dava muitos contra a proa, a nau indo. A nau ia acelerando ao curso da onda, atravessando o caminho. Com isso, quando chegaram pelo amplo acampamento dos Aqueus, eles arrastaram a escura nau para terra firme, sobre dunas, e apoiaram por baixo as longas estias. Somente então eles se dispersaram pelas tendas e pelas naus.

488 Por outro lado, ele ia se agastando, encontrando-se junto às naus – de pronta travessia –, Aquiles – de prontos pés, que tem genes de Zeus, filho de Peleu –. Nem vinha freqüentando a ágora – que dignifica guerreiros – adentro,

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hora alguma, nem guerra adentro, hora alguma. Mas, ficando no mesmo lugar, vinha se corroendo no seu coração. Vinha ansiando o alarido, a guerra... Mas quando já surgiu a Aurora, desde isso, ao duodécimo dia, também já então os deuses sempiternos foram rumo ao Olimpo, todos de uma vez, e Zeus comandava. Tétis não esquecia141 a solicitação de seu filho. Não: ela emergiu do mar onda acima e foi subindo em forma de ar o grande Olimpo, pois. Encontrou o circunspecto Cronida absorto, longe dos demais; no topo mais alto do Olimpo – cheia de promontórios –. E foi logo se assentando em frente dele. Até o segurou pelos joelhos, com a mão esquerda, e, já com a direita, ao tomá-lo por baixo do queixo, endereçou-se rogando ao senhor Crônio Zeus: [Tétis] "Zeus pai, se outrora já te favoreci, em termos de imortais, ou com palavra ou com empresa, realiza-me o seguinte desejo: há de honrar meu filho, o qual pulsa o mais de morte à espreita do que os outros! Ademais, há bem pouco o senhor de guerreiros Agamêmnon desonrou-o: havendo ele roubado tomando, mantém a regalia! Mas redime Aquiles, logo tu, prudente Olímpio Zeus! Isso a fim de que ponhas potência a mais aos Troianos, até que os Aqueus hajam de redimir meu filho e engrandecê-lo com honra!" Assim afirmou, e O agrupador de nuvens Zeus não foi se lhe endereçando, nada. Não, ficou calado por bom tempo. E como Tétis agarrou-se142 pelos joelhos dele, mantinha-se assim, enroscada, e foi dizendo uma segunda vez: [Tétis] "Mas, ó infalível?! Há de me garantir e de fazer 'sim' com a cabeça, ou nega, de uma vez, já que receio não te pesa143! Isso a fim de que saiba bem eu até que ponto sou a divindade mais desonrada, haja vista todas elas."

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517 Havendo ele se aturdido profundamente, O agrupador de nuvens Zeus endereçou-se-lhe: [Zeus] "Mas que empresas lutuosas: é quando me induzirás a altercar contra Hera, quando ela deva me provocar com palavras insultantes. E ela sempre me censura, do mesmo modo, entre os imortais! Até afirma que eu socorra, no combate, os Troianos! Mas, por enquanto, vai tu embora para que Hera não perceba. Essas questões poderão ter minhas considerações a fim de eu as cumpra. E se queres, pronto: farei 'sim' com a cabeça, a fim de fiques convencida, pois isso, de ação minha, é a maior garantia, em termos de imortais. Seja lá ao que eu disser 'sim' com a cabeça não é revogável nem enganador nem incumprível." O Crônio disse e anuiu positivamente, com as sobracelhas azul-escuras, e, com isso, os ambrósios cabelos oscilaram de cima144 da testa do imortal senhor. Isso fez uma grande vibração no Olimpo. Assim, os dois se despedirem após deliberarem, em seguida ela saltou145 do resplandecente Olimpo para as profundas águas do mar, e Zeus, rumo a seu palácio. De uma só vez, os deuses levantaram dos assentos de frente para seu pai. Ninguém ousava aguardar em ponto ele vindo, não. Levantaram antepostos todos. Assim, ele se assentou ali ao trono. Hera não o ignorou, sabendo ela que A de pés prateados Tétis (filha do velho das águas do mar) conspirou desígnios com ele. De imediato, ao Crônio Zeus clamou com troças: [Hera] "E então, doloso? Qual das deusas conspirou desígnios contigo? Sempre a ti é benquisto julgar, lá à parte de mim, pensando tu coisas clandestinas. Quase não tens ousado me falar uma palavra que ponderes!" O pai tanto de deuses como de homens respondeu-lhe em seguida: [Zeus] "Hera, não mesmo contes146 com saber todas as minhas conversas! Hão de te ser147 árduas, mesmo sendo

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esposa. Não, ninguém, nem dos deuses nem dos homens, há de saber anterior a ti seja lá o que for apropriado escutar; só que não perguntes por aí nem sondes em nada as questões quaisquer que sejam quanto ao que queira eu ponderar lá para longe dos deuses!" A augusta Hera – de olhos bovinos – respondeu-lhe em seguida: [Hera] "Atrocíssimo Cronida! Que história é essa?! Freqüentemente, sim, nem te pergunto nem sondo, até demais. Não. Cogitas muito tranqüilo questões quaisquer que queiras, só que agora tenho receado, infelizmente, no fundo do íntimo, que A de pés prateados Tétis, filha do velho das águas do mar venha a te influenciar, pois sentou em forma de ar junto logo a ti! e segurou-te pelos joelhos. Creio que tu disseste 'sim' com a cabeça, afirmativamente, que honrarás Aquiles e farás muitos perecerem sobre as naus dos Aqueus!"

560 E Zeus – agrupador de nuvens – endereçou-se-lhe retorquindo: [Zeus] "Criatura! Sempre intuis e não te sobro! Contudo, não poderás pôr nada em prática, exceto que estarás mais para lá da minha vontade e isso te há de ser mais lancinante! Se, porém, a situação é essa, ela fica de me ser benquista. Mesmo assim, há de te assentar calada e te render ao meu aviso de que não te sirvam quaisquer deuses que há no Olimpo, eu indo para mais perto de ti, quando acabe descendo em ti minhas mãos indizíveis148..." Assim afirmou, e a augusta – de olhos bovinos – receou e se assentou calada, fazendo seu coração capitular. Pelo palácio de Zeus, os deuses Urânios se aturdiram. Então O ínclito pela sua arte Hefesto foi começando a arengar entre eles, levando aconchego à amada mãe, Hera – de alvos braços –: [Hefesto] "Mas que empresas lutuosas, estas, e não mais hão de ser desejáveis! Se, pois, ambos altercais149, desse

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modo, em virtude dos mortais, incitais tumulto entre os deuses, e não haverá prazer algum da boa refeição, já que coisas frívolas prevalecem. E eu sugiro à minha mãe (por mais sensata que ela é) levar aconchego ao amado Zeus pai, a fim de que o pai não a censure de novo e não conturbe-nos a refeição. E o que, então, se o Olímpio fulminante quiser nos enxotar dos assentos?! Porque ele é muito mais poderoso. Isso, não... Tu és para acariciá-lo com palavras brandas! De imediato, após isso, o Olímpio há de nos ser propício." Assim, portanto, afirmou e, após se arremeter para cima, coloca nas mãos da amada mãe o copo de duplo bocal e endereçou-se-lhe: [Hefesto] "Muita paciência, minha mãe, e resiste, ainda que compadecida. Não quero te ver arrasada e então não possa te servir, ainda que tu sendo amada, aos meus olhos, ainda que eu venha a estar contrariado. É que o Olímpio é doloroso de se enfrentar! Ora, ainda outro dia, eu sequioso em defender-te, ele me arremessou da soleira que indica deuses, pegando pelo meu pé! Fiquei 'à deriva'150 o dia todo e despenquei151 em Lemno ao tempo do sol se pondo. Até então, pouca vida restava em mim. Lá, os guerreiros Síntios cuidaram152 de mim como puderam, sem demora, ao eu cair..."

595 Assim afirmou, e a deusa Hera – de alvos braços – sorriu. E, ao sorrir, recebeu, em mãos, do filho o copo. Nisso, ele saiu oferecendo doce néctar a todos os outros deuses. Com isso, um riso inextinguível despertou nos ditosos deuses, como viram Hefesto arfando para lá e para cá do palácio. Assim, àquele momento, iam se banqueteando o dia todo, até o sol se pondo. E ninguém ficava a desejar de refeição proporcional.

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Não havia uma formosíssima lira ao nível da que Apolo tinha, ou ao nível das Musas que cantavam com bela voz, alternando-se. Feito isso, quando o lume brilhante do sol se pôs, os deuses saíram cada um para casa, quase dormindo, onde o renomadíssimo Hefesto – de membros arqueados – compôs, com sutilezas engenhosas, um palácio para cada. Zeus, o Olímpio fulminante, foi indo rumo ao seu leito. Lá, deitava-se153, de costume, quando o doce sono chegasse. Lá, Hera – de trono de ouro –, após subir, dormia a fio ao seu lado...

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CAPÍTULO III TRADUÇÃO DIRIGIDA

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3.1. INTRODUÇÃO Neste capítulo, começamos o que chamamos de "tradução dirigida". Na verdade, a nossa proposta de tradução já está pronta, no capítulo segundo. E essa tradução dirigida visa a, precisamente, orientar o aluno, passo a passo e progressivamente, para que, à medida que ele vá comparando sua própria tradução à nossa e a outras, entenda como foi que chegamos à tradução apresentada. Mas o que seria, concretamente, essa tradução dirigida? Não se trata de uma tentativa explícita de interpretação do texto escolhido, o canto I da Ilíada de Homero. Interpretações literárias há muitas e boas, sobretudo de um texto tão antigo e tão revisitado (daí, ser um texto clássico). O que nossa tradução dirigida propõe levaria, ao fim da análise, a uma interpretação, pensamos. Mas esse propósito é, aqui, secundário, por assim dizer. Nossa grande e primordial intenção é familiarizar o aluno com particularidades da tradução do Grego antigo (no caso, especificamente o Grego do dialeto Jônico, mas que o dialeto Ático depois incorporou em grande parte). Essas particularidades envolvem várias questões, dentre elas vocabulário, uso de casos (aplicações de funções sintáticas), verbos médios, raízes, evoluções morfo-fonéticas... Expliquemos em que sentido essas particularidades nos parecem ser úteis à familiarização do aluno com essa língua. Quando nos reportamos ao vocabulário, queremos dizer discutir por qual motivo tal palavra foi traduzida de tal modo em determinado trecho por nós assinalado. O que teria levado àquela tradução daquela palavra? É o tipo de pergunta que temos em mente quando estivermos na análise que se segue em 3.2.

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Uso de casos diz respeito às funções sintáticas que relacionam os termos num período (termo com termo, orações com termos...). Nas línguas antigas, dá-se o nome de "caso", do Latim casus « caído », à concomitância de uma desinência associada a uma função sintática específica. O termo casus é de cunho descritivista e indica que as terminações das palavras "caem" para que outras ocupem e, assim, mude-se a função sintática do termo. Exemplo: em Latim, temos puer « menino, criança », que é a forma de expressar fundamentalmente o sujeito numa oração. Mas como o sujeito de uma oração é necessariamente um substantivo ou algo equivalente, deu-se o nome de nominativo ao casus que expressa a função de sujeito de uma oração. Já quando, por exemplo, quer-se-ia dizer "o sapato é de ouro", dizia-se calx est auro. O "de ouro" é o auro, mas é a desinência "-o" que marca a relação de adjunto adnominal, expressa em Latim pelo caso chamado genitivo. Mas qual a pertinência de se saberem esses detalhes, no processo de tradução de línguas antigas? É a de o estudante saber exatamente como está o sentido original do texto. Somos, hoje dia, atropelados pelo imediatismo exacerbado em tudo. De tudo que façamos espera-se um resultado imediato. No caso dos estudos teóricos, uma aplicação prática é cobrada, exigida, na maioria das vezes. Não se tem concebido um estudo que procure realmente entender a essência das coisas, ainda que possa ser um processo demorado. O processo de tradução não é exceção e, o fato de não o ser levou-nos a ser excessivamente dependentes de traduções, muitas vezes feitas por quem sequer se debruçou no texto em língua a que se propôs traduzir. Ora, entrar no processo de tradução de línguas antigas é procurar entrar no modo de vida das civilzações de onde

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vêm essas línguas. É uma espécie de "transporte" ao mundo deles. Um tradução que recupere esses pormenores pode não ser, num momento posterior ao do estudante de Grego antigo (um momento mais avançado de entendimento), algo tão útil para captação das idéias do texto. Mas, num primeiro momento de contato entre o estudante e a língua a que se propõe traduzir, parece-nos fundamental. Os outros elementos tomados para análise (verbos médios, evoluções morfo-fonéticas) não saem dessa proposta: todos são subsídios para uma apreensão e compreensão mais apurada do texto. Não se trata de desmerecer outras traduções, seja qual for o método priorizado para traduzir. Nosso objetivo é tão somente apresentar essa outra possibilidade de estudo do texto em Grego antigo. Nós, por exemplo, consultamos quatro traduções do texto. Todas têm pontos bons e maus (inclusive a nossa). O interessante é o estudante buscar nelas o que puder, de bom. No entanto, a título de exemplificação para comparação entre as traduções consultadas e a nossa, verifique-se um trecho, vv. 286-91, fala de Agamêmnon reclamando de Aquiles: naiV dhV tau'tav ge pavnta, gevron, kataV moi'ran e!eipe": ajll j o@d j ajnhVr ejqevlei periV pavntwn e!mmenai a!llwn, pavntwn meVn kratevein ejqevlei, pavntessi d j ajnavssein, pa'si deV shmaivnein, a@ tin j ouj peivsesqai oji?w: eij dev min aijcmhthVn e!qesan qeoiV aijeVn ejovnte", tou!neka oiJ proqevousin ojneivdea muqhvsasqai;

(Campos, 2002 : 46)

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Mediste-o bem, ancião, teu verbo, como os fados mandam. Mas este quer estar acima de outros, sobre todos imperar e dar ordens, das quais – creio – muitos discordarão. Se é bom de lança, dom dos deuses, não lhe cabe assomar-se em arroubos de insulto. (Campos, 2002 : 47) E Agamêmnon: "Com tento nos falaste, Reto ancião. Primar quer sempre esse homem, Poderio se arroga, e eu não lho sofro. Se os imortais invicto o constituíram, Permitem-lhe por isso os impropérios? (Marins, 2003 : 39)

All these things, old man, to be sure, you have spoken as is right. But this man wishes to be above all others; over all he wishes to rule and over all to be king, and to all give orders; in this, I think, there is someone who will not obey. If the gods who exist for ever made him a spearman, do they therefore license him to keep uttering insults?

(Murray, 1924)

Todas essas coisas, velho, decerto, falaste como é certo. Mas este homem deseja estar acima de todos os outros; em extensão a todos ele deseja reger e em extensão a todos ser rei, e a todos dar ordens; nisso, penso, há alguém que não há de obedecer. Se os deuses que existem por sempre o fizeram lanceiro, eles, por isso, licenciam-no a manter-se vozeando insultos?

Todas as tuas palavras, ancião, foram ditas com senso.

Este indivíduo, porém, sempre quer sobrepor-se a nós todos, nos outros todos mandar, arrogar-se a gerência de tudo, e leis ditar inconteste, o que muitos, suponho, lhe negam. Se as divindades eternas guerreiro de prol o fizeram, por isso, só, permitiram que os mais insultar possa, impune? (Nunes, 2001 : 66)

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Seria inapropriado comentarmos o que há de bom ou de ruim em cada tradução simplesmente porque, como já se disse, nossa proposta não objetiva desmerecer ou exaltar nenhuma delas. Estão aí apenas para que se repare nas diferenças entre elas, diferenças que podem levar o estudante em aprendizado do Grego antigo a equívocos quanto ao vocabulário, ao uso de casos... Mesmo que, por vezes, as traduções sejam, em sentido, praticamente iguais ao original, é preciso insistirmos que isso pode confundir a mente do estudante, que começa a se perguntar: "estou traduzindo certo esse tempo verbal?"; "será que essa palavra tem essa conotação?"; "não está muito desdobrada esta estrutura?" Ora, se o tradutor (como esperamos que se torne o estudante) não sabe exatamente o que está ali, nunca poderá ter confiança no que esteja fazendo. O fim desse trabalho, então, nada mais é do que uma proposta eminentemente didática que ajude ao estudante avançar em seus estudos da língua grega antiga nesse primeiro estágio (de primeiro contato com o texto original), para então, sanadas as dificuldades de tradução, passar ao mais importante: a discussão de idéias excelentes, virtuosas, entusiasmadas, que motivaram os gregos por tanto tempo e das quais somos, em grande parte, herdeiros.

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3.2. TRADUÇÃO DIRIGIDA DO CANTO I DA ILÍADA DE HOMERO 1. Phlhi>avdew (1): é um genitivo. O nominativo é Phlhi>avdh" e é palavra masculina da primeira declinação, por isso o genitivo deveria ser -dou, o -ou sendo analógico ao dos temas em -o- (quase todos masculinos)(cf. Murachco, 2001 : 120-22). Como esse tema é em –h-/-a- longo, e a desinência, nesse caso, é em *-syo, Phlhi>avdew se explica como variante do genitivo, jônica no caso (cf. Chantraine, 2002 : 55), em que houve metátese de quantidade da vogal -h- após a queda (em Grego antigo) do -s- e do -y- entre vogais: *Phlhi>adh-syo > *Phlhi>adhyo > Phlhi>avdho (forma atestada) > Phlhi>avdew (cf. Chantraine, 2002 : 55)(Sobre o acento, cf. Lejeune, 1955 : 268). 2. jAcilh'o" (1): é um genitivo concordando com Phlhi>avdew (1). O nominativo é jAcil(l)euv" e, portanto, da terceira declinação. É sabido que s, y (iode) e w (vau) normalmente "caem", "somem" entre vogais, em Grego antigo. O tema é em –hu-, e como o genitivo dessa declinação é em -o", tem-se: * jAcil(l)hwo" > jAcilh'o" (Jônico) > jAcillevw" (Ático), com metátese de quantidade de -h- para -o-. 3. oujlomevnhn (2): acusativo do particípio aoristo médio do verbo o!llumi, causativo, « fazer perecer; arruinar, desgraçar, pôr a perder, tornar (algo) irremediável ». O elemento –nu- (sempre infixal e formador de temas do infectum, cf. Murachco, 2001, 415) está aí camuflado por uma assimilação *-ln- > -ll-. No aoristo, por ser o aspecto verbal primordial e substancial (normalmente a raiz pura, mas a de o!llumi é discutível), então não deve aparecer esse infixo -nu-, sobrando um tema ojl-. No trecho, porém, há oujl-. Por quê? Trata-se de um alongamento (vogal passando a ditongo ou a vogal longa)

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permitido pela métrica. O verso, na Ilíada, possui, na grande maioria, onze sílabas fonéticas, sendo a primeira sempre longa. Daí, ojl- > oujl-. E quanto à tradução de oujlomevnhn (que concorda com mh'nin [1]) « malparado »? Embora um tradução não usual (a tradução corrente é « funesta, mórbida; desastrosa ») pensamos que sirva de prolepse na Ilíada. Ora, o termo básico para funesto, em Grego antigo, é ojloov". Tudo bem que o particípio (como o é oujlomevnhn) e o adjetivo são próximos semanticamente, mas a forma média, aí, parece mais sugestiva. Sabendo-se que Aquiles não somente tomou ação contra Tróia (ação junto a outras que deram fim à cidade), isto é, ele participou ativamente e foi essencial na vitória dos Gregos, mas também "pagou" com perdas (Pátroclo, seu grande amigo, por exemplo) e trouxe a si mesmo sua morte (por assim dizer, já que, mesmo sabendo das possibilidades de seu destino, a dizer, morte com glória eterna, ou vida longa na obscuridade, "optou" por morrer em batalha) e até lamentou sua opção quanto ao destino (cf. a Odisséia XI, vv. 468-540), é sensato que se veja oujlomevnhn indicando: a) a pontualidade, no passado, que o narrador adianta (daí a prolepse) sobre o "triste" destino, a "aura" lúgubre de Aquiles (pois, glorioso que sendo, ficou permeado por morte, violência, perda...); b) as expressões ativa e passiva, a um tempo, dessa condição que caracteriza Aquiles, concretizadas, perfeitamente, numa forma verbal média. Mas, enfim, entenda-se oujlomevnhn « malparado » como: que se malparou, que se expôs ou foi exposto ou sujeito a mau destino. Cf. o verbo malparar, em Português.

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4. e!qhke (2): aoristo do verbo tivqhmi « pôr, colocar ». É bom saber que o -ka- é uma das marcas de aoristo, provavelmente decorrente da proximidade semântica ao perfectum (cf. Murachco, 2001 : 424-5). Desde já é bom saber que o aoristo possui três marcas básicas morfológicas: a) -sa- (aoristo dito "sigmático"); b) -ka- (aoristo dito "kapático"); c) aoristo de radical livre de afixo, por vezes a própria raiz (quando analisável). O -e de –ke se explica como um artifício da língua para distinguir -ka (1a pessoa) de –ke (3a pessoas). 5. pollaV" (3): « muitos » (adjetivo no acusativo plural feminino). A raiz é *pel- « dobra, camada » e está, em Português, em inúmeros cognatos como cheio (< Latim plenus, por prevalência da palatização sobre a oclusão), pleno, completo, encher (< Latim implēre), plural, simples (isto é, « sem dobra, não-dobrado »), múltiplo. Cognatos noutras línguas: Alemão voll (com "v" por "f" > *p), Inglês full, Velho Irlandês lān (com perda da oclusiva "p"), Lituano pìlnas, Velho Esloveno plŭnŭ, Sânscrito pūrnás (com "r" por "l") « cheio, pleno », Grego antigo plh'qo" « multidão », pivmplhmi « encher » (com redobro expressivo, comparável a verbos como "carcomer", em Português) Alemão viel « muito » (advérbio), Inglês fill « encher », fold « capa, verso; camada, dobra ».

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6. teu'ce (4): de teu'cw, possível cognato de tuvch (campo semântico vasto), tugcavnw « encontrar (por acaso) ». Seria, aí, uma alternância da raiz *dhew- « resultado, produção » com alargamento *-gh-. Em Grego antigo, os fonemas "dh" e "gh" normalmente se tornam as "surdas" ("mudas", melhor) homorgânicas "th" e "kh", isto é, q e c. Em teu'cw, teria havido psilose (dissimilação da aspiração): *qeuvcw < teuvcw. Em tugcvanw, a raiz estaria em *-tu- (> *-qu-) com infixos nasais formadores do infectum (cf. Murachco, 2001 : 416). Da raiz *dhew- provêm várias noções derivadas, como valor (como se fosse a desenvoltura, de algo ou de alguém, quanto à eficácia), eficácia, êxito e mesmo conveniência. Cognatos da raiz, noutras línguas: Gótico daug « ser útil », Velho Alto Alemão tuht « valor, força », Inglês doughty « valoroso », Lituano daũg « o bastante, muito », dūal « que convém », entre outros. Em Grego antigo, teuvcw se refere tanto a uma ação de produzir algo previsto como a uma idéia bem mais genérica (presente, por exemplo, em Homero) de levar algo a um estado desejado por quem pratica a ação. A noção de tuvch, por sua vez, gira em torno mais das noções de possibilidade ou de potencialidade da raiz *dhew-, sendo, por isso, vasto o seu campo semântico: sorte (boa ou má), destino, casualidade, sorteio, encontro-surpresa... No mais, Teu'ce é um imperfeito/aoristo de teuvcw, sem aumento, repare-se. Sobre isso, veja-se:

(...) Spesso l’imperfetto e l’aoristo vengono usati senza sensibile differenza di significato e promiscuamente anche in proposizioni paratattiche. (Nazari, 1952 : 68)

(...) Com freqüência o imperfeito e o aoristo aparecem usados sem sensível diferença de significado e misturadamente até em orações coodenadas. E sobre o aumento:

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(...) L’aumento sillabico e temporal può mancare nell’ imperf., nell’ aoristo e nel pluccheperf. (...). (Nazari, 1952 : 30) (...) O aumento silábico e temporal pode faltar no imperfeito, no aoristo e no mais-que-perfeito (...).

7. kuvnessin (4): dativo plural de kuvwn, kunov" « cão, cadela ». Sendo do genitivo o tema kun- (e daí, dos casos "derivados"), na verdade *kw-n- (cf. Benveniste, 1984 : 54), o dativo esperado seria *kuasi (< *kw-n0-sy, sendo n0 uma soante vocalizada, no caso, em a). O corrente é kusiv, e o verbo da Ilíada XVII, vv. 272 (Homer, 1920) parece confirmar o -u- como longo: mivshsen d j a!ra min dhi?wn kusiV kuvrma genevsqai

¯ ¯/ ¯ ˘ ˘ / ¯ ¯/¯ ¯ / ¯ ¯ / ¯ ˘ ˘ /¯ ¯ Admitida correta a segunda hipótese, será que teria havido um outro tratamento do -n0-? Assimilação, talvez, *kunsi > *kussi > kusiv do -n- ao –s-, pura e simplesmente, e simplificação das geminadas (*-ss- > -s-)? No primeiro caso, teria havido algo mais complexo: normalmente, em certa época do Grego antigo, líquidas seguidas de s o perdiam e alongavam a vogal anterior (cf. o aoristo e!steila < *e!stelsa, Murachco, 2001 : 453). Mas como no caso de kuvwn ter-se-ia kuniv (com u longo) haveria choque morfológico com o dativo singular, idêntico, exceto pelo u longo. Daí, a língua teria como que restituído a desinência –si e, então, voltar-se-ia à segunda hipótese. No geral, esse dativo não está explicado pelos gramáticos e continua sendo obscuro. kuvnessin é, por outro lado, forma analógica à dos temas em -es- (numerosos), aparecendo, às vezes, a terminação –esi (simplificação das geminadas)(cf. Nazari, 1952 : 16).

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8. oijwnoi'si (5): dativo plural de oijwnov" « (grande) ave de rapina », cognato do Latim ăuis « ave », havendo oijwnov" perdido (como se espera) o digama ("w") entre vogais. Então: *owiwno" > oijwnov", no qual o tema ăui- do Latim corresponde ao tema *owi- > oij- do Grego. A derivação é complexa e não cabe dizê-la aqui. Observar a forma antiga da desinência do dativo plural: era –isi(n) > -i" (com i longo). Deve ter havido algo comparável ao tratamento do sigma na desinência primária de 2a pessoa do singular: *ejqevlesi > ejqevlei > ejqevlei"

O sigma sumiu entre vogais, e, para não se confundirem a 2a e a 3a pessoas do singular, restitui-se o sigma. Em -isi(n), seria -isi(n) > *ii(n) > i longo (que coincidiria com o dativo singular, também de i longo), restituindo-se o sigma, para distinção. 9. pa'si (5): dativo plural de pa'", pa'sa, pa'n (o acento de pa'n somente se explica por analogia aos do masculino e feminino). O genitivo, porém, pantov", e o dativo plural está aí, com múltiplas assimilações e alongamento compensatório do -a-: *pant(= tema)si > *panssi > *pansi > *passi > pasi > pa'si (a longo, o que o acento já indica). 10. Diov" (5): genitivo de Zeuv" « Zeus ». Entra na classificação de nomes ditos heteróclitos, devido a apresentar, na flexão, diferentes temas. No caso de Zeuv", são três: Zeu- (nominativo e vocativo) Di- (genitivo e dativo/locativo/instrumental)

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Zhn- (todos os casos) Na verdade, são formas da mesma raiz Indo-européia *dey- « distância dirigida », sufixadas ou alongadas (cf. Benveniste, 1984 : 148). Dessa noção rudimentar da raiz é que devem ter saído as de raio (noção de espaço), raio luminoso (pelo formato estreito e reto), brilho e mostrar, indicar. É uma luxuriante raiz indo-européia que, em alguns casos chegou a ter uma coloração religiosa, como é o caso do nome Zeus. Algus cognatos são Latim Iǒuǐs < Dĭŏuis (forma atestada no Latim arcaico)(genitivo de Iūpǐter « Júpiter »), dĭēs « raiar do dia; dia », dīcō, -cĕre « dizer », Inglês teach (< *taikjan) « ensinar, instruir », token « sinal, símbolo », Alemão zeigen « indicar, mostrar », Grego antigo -zhlo" em ajrivzhlo" « conspícuo, evidente », deivknuimi « indicar, mostrar » dikevw « atirar (em linha reta [?]) », divsko" (< *divxko" < *divk-s-ko") « instrumento de arremesso » e talvez mesmo divkh « justiça », se a noção justiça já tenha sido entendida como « aquilo que se recomenda que se faça, que se indica que se faça ». Sendo assim, temos: *Dy-ew > *Z-eu- > Zeuv" (grau zero da raiz mais grau pleno do sufixo em "w") *Dy-w > *Di-w- > Di-w-o" > Diov" (grau zero da raiz mais grau zero do sufixo [= alargamento] e sumiço do "w" entre vogais) *Dy-ew-n- > *Z-eu-n > *Z-hu-n > Z-hn- > Zhnov", Zh'na... No tema Zhn- teria havido um alongamento vocálico comum aos mais antigos derivados do Indo-europeu (cf. Benveniste, 1984 : 180, in fine) e, num segundo momento, considerando-se o que diz a lei de Osthoff (cf. Lejeune, 1955 : 188), que uma vogal longa se abrevia quando vem antes de soante (r, l: m, n; y, w) que vem antes de consoante, o Grego antigo, já quanto à sua instabilidade nos

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ditongos de primeiro elemento longo (hu, wu...), com muita freqüência emudeceu o segundo elemento (no caso, em *Zhun-, perdeu-se o u)(cf. Lejeune, 1955 : 196). 11. diasthvthn (6): aoristo dual de dia-i@sthmi. O dual é uma forma relativamente rara, é bom que se note. O verbo está com a raiz pura (o que é uma das possibilidades do aoristo) I.e. *set- « imobilidade, postação », mas com redobro no infectum: *sivstamai > i@stamai (queda do s inicial, que não se mantém em Gr. ant. exceto quando em palavras de empréstimo ou em que o s já tenha sido evolução de um grupo fonético complexo). Normalmente, como em i@stamai, o s inicial é continuado por uma aspiração ( J). 12. ejrivsante (6): aoristo dual do verbo ejrivzw, derivado de e!ri" « rixa, altercação ». !Eri" tem um radical e!rid- que forma ejrivzw com z, pois que dental, em Grego antigo, assimila-se a s seguinte, simplificando-se, depois, as geminadas. O s do aoristo não é exceção. 13. ajndrw'n (7): o radical desse genitivo é ajner-/ajndr-. O nominativo singlar é ajnhvr. Então, como apareceu esse -d-? Um dos radicais deveria ser *ajnr-, mas é comum (em várias línguas, diga-se) desenvolver-se uma dental no grupo "nr", dental orgânica que deixa mais claro o grupo fonético. Em Francês, há um exemplo disso (dentre vários), com o grupo "mr" : Lat. numĕrus < Fr. *nomre (síncope do "e" medial e adapatações das vogais) < nombre. 14. jAcilleuv" (7): os ll se justificam por conta da métrica, nesse caso (cf. o verso 1).

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15. mavcesqai (8): « lutar, batalhar ». Na nossa proposta, seria um verbo médio "reativo" ou "indireto", já que a ação somente se define (somente significa o que quer dizer) se haja ao menos dois sujeitos ativos envolvidos no processo. Quer dizer, um não pode praticar, realizar sozinho a ação do verbo, o significado do verbo se define pelo conjunto de sujeitos agentes. Por isso, achamos sugestivo traduzir por "combater", verbo que traz consigo o prefixo "con-/com-" latino indicando, aí, a concomitância de sujeitos, eles "unindo-se" (ainda que um contra o outro) para produzir um único processo verbal. É uma relação de dependência, por assim dizer: alguém, pelo sentido (significado) do verbo, requer outro sujeito "do outro lado", fechando o círculo semântico. Há mais exemplos desse tipo médio, e o associamos a esse, quando for o caso. 16. basilh'i> (9): dativo singular anterior à metátese de quantidade verificada no Ático basilei' (com i longo). 17. nou'son (10): forma alongada pela métrica, de novso" (cf. a nota 3). Novso" « mal, doença, desgraça, peste, flagelo » pode bem ser vindo de *novsso" (cf. Chantraine, 1999, s.u.), em que -ss- repousaria em -ky-, dando *novkyo" (compare leuvssw, de *leukyw, mesmo radical de leukov") e, daí, pensamos em nek- (com alternância vocálica "e/o") de nevku", nekrov", nevktar, Lat. noxa « dano, prejuízo », nocīuus « prejudicial, nocivo », pernicĭes, de que veio o Português pernicioso. 18. stratovn (10): acusativo singular. « Acampamento; exército ». Possivelmente associado, em Port., a esteira, prosternar-se. A idéia é « estender, estirar », tendo sido considerado o acampamento como algo estirado por uma área. A idéia de exército é oriunda de um tipo de metonímia ocupante-lugar de ocupação.

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19. o!rse (10): aoristo simples (raiz pura) em sigma. O sentido é da raiz é « ativar, despertar », também « elevar, fazer surgir, fazer despontar (o sol, por exemplo), suscitar ». Verbo importante que aparece com ou sem aumento e possui outro aoristo dito "redobrado" (por a raiz estar duplicada) w!rore (3a pessoa). Esse aoristo o!rse é de o!rnumi, tema de infectum (cf. nota 3, sobre o!llumi). É bom atentar aos vários cognatos que aparecem em Homero: ojrevomai, ojrivnw, oJrmaivnw, oJrmavw, oJrmivzw, ojroquvnw, ejpiovromai, ojrouvw... Para familiarização com os significados de cada um, é útil manter em mente o significado-base. A aspiração, nos casos citados (como em oJrmavw), é uma continuação do fonema "s" (s) que forma um tema *ojrs-/ojres-. O fonema, entre r e m, some e deixa sua marca pela aspiração inicial: *ojrsmavw > oJrmavw. Quanto à etimologia, basta citar alguns exemplos em Português e alguns noutras línguas. Port. origem, oriundo, aborto (isto é, o impedimento de nascer, de surgir); Lat. orĭor (verbo médio) « surgir, aparecer, vir à tona », e no Ing., talvez várias formas ainda ditas obscuras, como ar- (< *or-)(do verbo be « ser »), run (grau zero da raiz, *[ə]r-) « correr, fazer funcionar (uma máquina, por exemplo), gerir », raise (grau zero da raiz) « elevar, suscitar », (a)rouse « despertar, acordar (a alguém), excitar ». 20. ojlevkonto (10): imperfeito/aoristo (cf. nota 6) médio-passivo de ojlevkw, sem aumento. É outro tema (radical) da raiz de o!llumi: *əol-n-w- > o!llumi (raiz plena e alargamentos em grau zero) *ə3l-ek- > ojlevkw (raiz em grau zero e alargamento pleno [= sufixo])

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Cf. Benveniste, 1984 : 148. Verbos com sufixos ou alargamentos em k, g, c, t, q entram na formação de temas de infectum (cf. Murachco, 2001, 418). 21. laoiv (com a longo)(10): plural de laov" « liga, tropa (militar); (massa de) gente ». Embora de etimologia ainda especulada, o fato de laov" não parecer se referir a simples gente, mas a gente associada e aglomerada para obtenção de um objetivo comum, leva-nos a supor que trata-se (sobretudo se se considerar essa gente como associada para fim militar) de: *wl-ew-os < *wlhwo" < lhov"/laov" (com a longo) O a seria uma alternância dialetal, freqüente (cf. divyh/divya; kovmh/kovma...), tendo o "e" Indo-europeu do sufixo "-ew-" se alongado pelo mesmo motivo dito na nota 10, in fine. A raiz seria *wel- « girar, rolar, enrolar », que aparece, no Latim, em uoluo (mesmo sentido)(raiz em grau pleno; alargamento em grau zero) e, no próprio Grego, em eijlevw 1 e 2 e nos raros ei!llw e i!llw. Eijlevw repousa, possivelmente, em *wewl-evw (redobro da raiz), não sobrevivendo "w" antes de vogal inicial e tendo havido dissimilação dos ww em w-y-, daí (w)eij-levw. Laov", enfim, seria « massa de gente (militar) "enrolada", associada », se pensarmos em palavras que teriam seguido raciocínio analógico: Fr. peloton, Ing. platoon, vêm do Lat, pĭla « bola (de jogar); novelo ». Entre "bola" (coisa redonda ou enrolada) e "aglomerado" a semântica é próxima, favorecendo a nossa proposta. 22. ajrhth'ra (11): observar o verso, com espondeu (pé métrico) no quinto pé; detalhe raro na Ilíada. Ei-lo:

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ou@neka toVn Cruvshn hjtivmasen ajrhth'ra

¯ ˘ ˘ /¯ ¯/¯ ¯/¯ ˘ ˘/¯ ¯/¯ ˘ É interessante procurar outros mais. 23. h\lqe (12): aoristo singular de 3a pessoa de e!rcomai. Pode-se entender a mudança de raízes (comum, nas línguas, para diferenciar os aspectos infectum e aoristo desse significado « ir; vir ») da seguinte forma: a) quando se diz "eu fui (a algum lugar)", o que expressa bem a noção pontual do aoristo nessa frase é o fato de o verbo "fui" ser entendido como o término da ação de ir, no caso, estar num lugar somente após ter-se atravessado o caminho de ida; é ser entendido como um segundo momento do "ir"; b) já quando se diz "eu vou (a algum lugar)", o processo (o desenrolar) verbal não pode ser entendido como simples término da ação de "ir", mas como o processo (daí ser infectum, incabado) de pôr-se a caminho até se chegar a (estar presente em) algum lugar. São, portanto, dois momentos do raciocínio semântico, o que poderia explicar a permuta de raízes. 24. ajpereivsi[a] (13): neutro plural. Para entender-se a tradução, apresentamos duas hipóteses etimológicas que acabam convergindo a uma mesma idéia semântica (porém "imagens" diferentes). Dito isso, ei-las: a) (hipótese corrente) a raiz seria *per- « perfurar, atravessar » antecedida do a dito "intensivo" (cf. na palavra ajkovlouqo"

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« acólito, seguidor fervoroso »). Daí, o adjetivo ajpereivsioi, -ai, -a significar « extravagantes, extrapolantes; inúmeros, incontáveis; indelimitáveis, ilimitados »; b) a raiz seria uma que é homônima à anterior, então, também *per- , mas significando, provavelmente « relação espacial para com algo delimitado ». De fato, a noção é complexa e muito abstrata. Algo delimitado, aí, entendemos como algo que tem um contorno finito. Mesmo algo deformado o pode ter. Mas, enfim, o a seria privativo (grau zero da raiz [?] de negação Indo-européia, herdada no Grego, *n0-) e, portanto, ajpereivsioi significaria « incontornáveis; irrestritos ». Essa última idéia parece bem sugestiva, no trecho: Crises, sacerdote de Apolo, seria rico (?) a ponto de poder oferecer tributos "inúmeros" em troca da filha tomada por Agamêmnon? Ou será que ele viesse súplice e disposto a oferecer (em troca da filha) tudo que ele pudesse, sem restrições quanto às oferendas? Essa hipótese parece mais adequada. 25. eJkhbovlou (14): genitivo singular. Epíteto de Apolo de tradução absoluta muito difícil. O "tema" eJkh-, inicial do nome, indicaria « à parte, em separado, de lugar isolado ». -bovlo" dá a noção « dardo, projétil » (cf. o verbo bavllw) e, talvez, também « alvo (ponto a que se mira para atingir) », representado em bolhv, boulhv « vontade, desejo, desígnio, intenção, intuito, plano, decisão, deliberação » (como se coisa que se quer atingir, alcançar, conseguir). Como a idéia de « à parte » pode englobar a de « à distância », aparecem traduções de eJkhbovlo" como « Longe-Vibrador »(?)(Marins, 2003 : 27), « Longe-Setante » (Nazari, 1955, s.u.). Outras levam em conta o aspecto de « alvo », traduzindo-o em « Flechicerteiro » (Campos, 2002 : 31, I), « Que acerta de longe » (Murray, 1924).

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O « Longe-Setante » e « Flechicerteiro » são óbvias referências ao fato de Apolo ser arqueiro (daí, as flechas e setas). Embora o que se imagina de um deus é perfeição – então Apolo deve sempre acertar o alvo, o epíteto podendo trazer consigo a idéia de acerto –, a idéia de dardejar indica um ataque não-corpo-a-corpo, ataque não-direto, digamos. Ora, sabe-se que uma das riquezas da grande literatura é a pluralidade de imagens semânticas suscitadas pelas palavras, uma ambigüidade enriquecedora à interpretação da obra. Então é válido considerar eJkhbovlo" tendo em si entranhadas ambas as idéias: acerto e ataque não-corpo-a-corpo. Fica por aí nossa tradução, em « o que alveja à distância » sem, é claro, invalidarem-se as demais opções. 26. ajnaV skhvptrw/ (15): « ao cetro ». jAnav, etimologicamente, contém uma idéia bastante genérica de conformidade; perseveração. A idéia de traduzi-la por « a » parece uma saída se comparamos a uma das nuances do Ing. on, cognato de ajnav: « colocação ou posição em lugar subentendido ». Nosso "a" preposição pode ter essa nuance em frase como "sentar à mesa" (na verdade, senta-se no assento da cadeira referente à mesa). No trecho, as stevmmata de Crises, as quais são distintivos do sacerdócio deste para com Apolo, não devem (não é provável) estarem "sobre" o cetro. Isso é muito vago! Imaginam-se as fitas saindo da "cabeça" do cetro, como que coroando-o (daí stevmma estar associado ao verbo stevfw) ou sendo seus "cabelos" que se "derramam" até certa altura do cetro. A imagem é bonita e o ajnav ajuda, nesse sentido, mais que um ejpiv, um ejn... 27. livsseto (15): « instava ». A questão aqui é entender-se o porquê de ser um verbo médio. É o caso do médio que

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chamamos, na nossa proposta, de "indireto" ou "reativo": o sujeito "instar" (pedir com humildade) é fazer um pedido a outro sujeito de quem se espera "reagir" com a ação de "dar" ao primeiro o que é pedido. Quer dizer, o primeiro sujeito é ativo ao fazer o pedido e torna-se "passivo" ao receber o que pediu. Ser um verbo "médio" é exatamente expressar que o sujeito está num meio-termo, isto é, é ativo e passivo, ao mesmo tempo. Não importa se, nesse tipo de verbo, não se complete o círculo semântico (o sujeito vir a receber o termo do processo verbal). A desinência média marca essa possibilidade semântica subentendida. Não importa, então, em termos de ser verbo médio, se Crises receba ou não o que ele pede. 28. kosmhvtore law'n (16): dual seguido de genitivo plural. O genitivo traz consigo, dentre outras, as idéias de dependência, subordinação, partição. O genitivo representa, no trecho, uma subordinação sintática entre nomes. Isso porque vemos transitividade sintática no complemento nominal: kosmhvtore lawvn = « organizadores de ligas » = « os que organizam ligas », "organizar" como verbo transitivo direto e "ligas" como complemento (objeto direto)(cf. Murachco, 2001 : 104-7, sobre a essência do genitivo, genikhv ptw'si"). 29. doi'en (18): optativo aoristo, 3a pessoa do plural de divdwmi. Tradução: « dessem, queiram dar, dêem, que dêem, hajam de dar ». Em Português, a forma verbal para um pedido, uma prece, uma solicitação, um aconselhamento, uma ordem... é a mesma: a de modo imperativo. Mas, semanticamente, sabemos, sentimos a diferença: a atitude do sujeito muda entre os casos apontados. O modo optativo é o modo do voto, da simples conjecura e da amenização da informação (cf. Murachco,

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2001, 261). Por isso, entende-se Crises usá-lo: faz um voto aos deuses (para com quem guarda respeito). A noção aorista, aí, é sutil, não precisando ser traduzida para não se sobrecarregar o texto, mas seria algo assim: hajam [os deuses] de dar (um dia, mas que cheguem a dar). 30. Priavmoio (19): genitivo singular anterior à queda do "-y-" (iode) entre vogais. Então: *Priamosyo > Privamoio > Priavmou (no Ático). 31. iJkevsqai (19): infinitivo médio de i@kw « chegar, alcançar ». O médio entra no raciocínio da nossa proposta dos médios "de continuidade de ser". Chegar é estar presente num lugar após ter-se percorrido um caminho. Mas quando o chegar sugere um futuro ou uma eventualidade, não se sabe se estar-se-á vivo, se se continuará existindo (o sujeito). A desinência média, nesse caso, marcaria essa incerteza do sujeito. É como se ele pensasse: "eu vou chegar (se, ao menos, eu viver, for-me dado viver até então)". 32. pai'da (20): o nominativo pai'", paidov" perdeu, no radical, o "w" da raiz. Então: *pavwi" > pai'". É a mesma raiz do Latim puer (grau zero da raiz) « menino, criança », que deu, em Português, pueril, puerícia, pucela (arcaico) « moça virgem » e, mais distantes na forma e no sentido, pusilânime (como se « de alma minúscula »), pouco, paulatino, Paulo (nome próprio).... A idéia é de « pequenez », a idéia da raiz. 33. luvsaite (20): do verbo luvw « soltar ». É da mesma raiz do Port. solver < (Lat. sŏluĕre < *se-luĕre). 34. devcesqai (20): « receber ». O médio é um médio "reativo" ou "indireto" (cf. nota 27).

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35. aJzovmenoi (21): particípio médio do modo indicativo, plural. É um médio "reativo" ou "indireto" (cf. nota 27). 36. aijdei'sqai (23): « ter vergonha de, guardar respeito por, ter escrúpluos ». Embora muito relativa e abstrata a idéia de respeito, basta considerar o verbo aijdevomai médio "reativo" ou "indireto" (cf. nota 27), pois que trata-se de como se reaje a algo ou a alguém na medida em que entra em jogo o comportamento para com o que significa (algo ou alguém) para o sujeito. O sentido de ter bom comportamento para com algo ou alguém é, decerto, uma evolução semântica. 37. ajglaav (23): adjetivo neutro plural. « Esplêndido » (em todas as nuances que há em Português). Possíveis cognatos no Ing. glow « resplandecer, fulgurar », gleam « lampejar, cintilar », glance « vislumbre » (a visão está associada à luminosidade, à claridade), glare « ofuscar », glade « clareira ». O sentido primeiro da raiz tem sido difícil de determinar, pois a noção corrente apontada, « brilhar », é abstrata demais para ser primordial. 38. devcqai (23): forma reduzida pela métrica (?), equivalente a devcesqai, infinitivo de devcomai. 39. h@ndane (24): de aJndavnw « agradar ». É associado a hJduv" « suave, agradável », com a evolução fonética *swevədw" > hJduv". O grupo *sw- reduziu-se a aspiração, o -e- contraiu-se ao ə (chvá), dando -h-, e o "w" vocalizou-se em u. Em Latim, o termo é quase o mesmo, suāuis, tendo havido uma assimilação do "d" ao "w" final: *sweədwis > *suāwwis > suāuis (simplificação das geminadas). 40. kraterovn (25): adjetivo acusativo singular, « pujante; ríspido ». Derivado de kravto" « força (de prevalência); potência ».

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Cognato do Ing. hard (< *carð-) « duro », este com perda da oclusiva inicial "q" e manutenção da aspiração inicial. Na família germânica, é comum consoantes iniciais se aspirarem. 41. ejpiv ... e!telle (25): é comum, no Grego antigo, a tmese, isto é, o "corte", "a separação" entre prefixo e verbo. Não parece possível considerar ejpiv, no trecho, como preposição. Essa separação é um indício de que as preposições e prefixos são, na origem, advérbios (cf. Murachco, 2001 : 531 passim, mas sobretudo 533). 42. kiceivw (26): verbo com redobro do infectum, kivchmi. Raiz *gheə- (sentido primeiro difícil de dizer-se, mas próximo da noção de entrar, envolver-se a si próprio). Cognato do Ing. go « ir » (com perda da aspiração, gh-g), Al. gehen (o "h" é marca da aspirada, ainda que não mais pronunciado). A forma grega sofreu o seguinte: *ghygheəmy > *civchmi > kivchmi (as sonoras aspiradas do Indo-europeu se mudam em "mudas" ("surdas"); em seguida, houve psilose). 43. mhv nu (28): as duas partículas funcionam, em conjunto, como uma espécie de conjunção subodinada integrante significando « que não » e normalmente completadas por uma oração. 44. e!fato (33): sobre esse médio de fjhmiv:

Il medio in alcuni verbi ha lo stesso significato dell’ attivo (…). (Nazari,1955 : 67)

O médio em alguns verbos tem o mesmo significado do ativo (…). De fato, é difícil, no nosso entendimento do médio em Grego antigo, achar outra explicação para os poucos verbos

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que se acham nesse caso. Um deles é fhmiv. Outros aparecerão, no nosso estudo. 45. ejpeivqeto muvqw/ (33): o dativo se explica pela semântica do verbo. Peivqomai « obedecer », é fazer o que outro sujeito sintático quer, é "unir-se" a ele, por assim dizer. Essa noção de "união", "soma", "acúmulo" é expressa, nas línguas antigas, pelo dativo, isto é, o caso da "adição" (cf. Murachco, 2001 : 107-8). 46. mhriv j (40): neutro plural de mhrivon. Cognato do Lat. membrum (< *memfrom < *memsrom). O grupo *-msr- teria se reduzido a *-sr- e esse *-sr- pode: a) ou se assimilar em -rr-; b) ou se reduzir a -r-, e alongar-se a vogal anterior. Assim: *memsrivon > mesrivon > mhrivon Nessa palavra, somente se atestou o comportamento "b". Mas cf. as formas de civlioi (primeiro i longo): chvlioi (Dórico), cevlloi (Lesbiano e Tessaliano). 47. krhvhnon (41): forma alongada metricamente de krh'non, imperativo de kraivnw. 48. ejevldwr (41): considerado normalmente forma de e!ldwr com "prótese". É possível, contudo, que o primeiro e venha de um redobro (*weweldwr) com quedas dos ww. A raiz, *wel- « satisfação », é a mesma do Latim uoluntās « vontade » (> uoluntātem > *vountade[m] > vontade).

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49. davkrua (42): cognato do Latim lacrĭma « lágrima », por uma via dialetal, tratando-se "d" como "l". Cf. o Ing. tongue « língua », cognato do Latim lingua (< *dingua), malgrado ser mal-definida a raiz (I.e. *den-??). 50. bevlessin (42): cf. nota 7, sobre a terminação –essi[n]-. 51. eujcovmeno" (43): verbo médio "reativo" ou "indireto" (cf. nota 27). 52. Oujluvmpoio (44): alongamento métrico de jOluvmpoio. 53. cwovmeno" (44): médio "reativo" ou "indireto" (cf. nota 27). "Enfurecer-se" é ser acometido, afetado por fúria. Ninguém causa a fúria de si mesmo (ao menos não intencionalmente!). O sentido médio-passivo parece óbvio, então. 54. kh'r (44): acusativo singular relativo a cwovmeno". Chamamos, na nossa análise, de acusativo "colateral" ou "de correspondência". A relação não é a de kosmhvtore law'n (cf. nota 28), em termos de tradução, isto é, de complemento nominal. É como se a coisa no acusativo (no caso, o coração, como sede dos sentimentos, kh'r) atuasse em paralelo (mas a seu modo) ao processo verbal, e o acusativo é facilmente associável ao movimento, à transitividade (cf. Murachco, 2001 : 97, nota de rodapé). Nossa tradução, « no coração », infelizmente, não restitui o sentido total, o qual é importante de se percerber. 55. aujtou' kinhqevnto" (47): genitivo absoluto, o que faz a oração inteira funcionar como circunstância de uma principal. O genitivo se presta a essa noção sintático-semântica porque pode expressar a independência sintática da construção

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para com a oração principal. Daí, o nome ablativo, do Latim ablātus « levado embora, afastado ». 56. nuktiV ejoikwv" (47): o dativo se explica pela semântica de ejoikwv". Parecer é ter traços, características... que coincidem com os de outra coisa ou os de outrem. Essa coincidência é próxima à noção de repetição, e repetição é adição, daí o dativo. 57. e@hke (48): aoristo de i@hmi (cf. nota 4). 58. gevneto (49): aoristo de givgnomai. Trata-se de um médio "de continuidade de ser" (cf. nota 31). 59. prw'ton (50): neutro singular do adjetivo prw'to". Nesse trecho, é o que se convencionou chamar "acusativo de relação". Esse acusativo de relação é normalmente entendido como um conteúdo adverbial/circunstancial referente a termo(s) ou oração(-ções). E é isso! Mas a questão é: por que está no acusativo? Ou melhor, qual a diferença entre o(s) termo(s) estar(em) no acusativo ao invés doutros casos (genitivo, nominativo, dativo...)? Em primeiro lugar, note-se que todos os casos são suscetíveis a expressar noções adverbiais (menos o vocativo, o qual, na verdade, não é caso, cf. Murachco, 2001 : 93). Haja vista isso:

(...) em grego há muitos advérbios que são formas nominais flexionadas, de relações concretas, que se petrificaram, adquirindo um significado autônomo, a tal ponto que parecem casos absolutos. (Murachco, 2001 : 694) (Grifos meus) O que muda, nesse emprego adverbial, muitas vezes,

de casos petrificados, é simplesmente o ponto de vista, isto é, de que modo é apreendida a idéia.

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Dito isso, e agora considerando-se o prw'ton do trecho nesse sentido, a palavra absoluto, escolhida por Murachco, 2001 : 694, parece sugestiva: o advérbio também pode ser totalizante, isto é, englobar toda uma oração (ou mesmo um período composto). O acusativo (propondo nós um contraponto aos outros casos) é caracterizado pela transitividade (latu sensu) e, por isso, no trecho podemos entendê-lo como algo que se entranha, que permeia toda a oração. Esse entranhamento seria como que um "tempero" dos termos das orações ou dos períodos: ele tem sentido independentemente de se relacionar a eles, mas, uma vez que apareça em relação, diz algo a mais sobre a "cena" sintática (sujeito-predicado). Por isso, entendemos o acusativo, nesse uso adverbial, como algo paralelo ao que se diz de um termo, de uma oração ou de um período. É como uma relação de correspondência. Exemplo: trabalho bem bonito. O desenrolar (trânsito) do fato de ser bonito corre paralelo à noção de (estar) bem. 60. ejpw/vceto (50): de ejpiv e oi!comai. O médio é o "de continuidade de ser" (cf. nota 31). 61. puraiv (52): associados pu'r « fogo (elemento) », o Ing. fire e Al. Feuer. No grupo germânico, é comum a troca de "p" inicial por "f" (cf. Lat. pes, Al. Fuß, Ing. foot; Lat. spūma, Ing. foam; Lat. piscis, Ing. fish, Al. Fisch (> *piskos) etc. A vogal do radical desse nome inanimado Indo-europeu do fogo é problemática de se explicar, e não cabe nesse tipo de trabalho. 62. kalevssato (54): o aoristo de verbos como esse, kalevw, de vogal temática, no Ático aparecem com essa vogal alongada. Em Homero e no dialeto Jônico em geral não somente pode aparecer a forma sem vogal alongada como também com dois sigmas (Nazari, 1955 : 37).

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Quanto à desinência média, classificamos esse médio como médio "reflexivo", já que ele posssui, além dessa, uma forma ativa kalevw e o sujeito pode fazer a ação do verbo quanto a ele mesmo (sentido que chamamos "reflexivo", em Português)(como quando dizemos eu me chamo Carlos, por exemplo) ou como médio "reativo" ou "indireto" (cf. nota 27). Esse último caso é o do trecho: Aquiles chamou a (sua) liga (laovn) até ele, isto é, Aquiles chamou o bando e, quando este vem, fecha-se o círculo semântico de kalevomai. Aquiles é sujeito ativo (porque pratica ação de chamar) e é médio-passivo (porque "recebe" a chegada do bando, a ação dele é "respondida" através da vinda do bando até ele). 63. khvdeto (56): a raiz desse verbo, khvdomai « condoer-se, compadecer-se » deve ser *keə- e expressar um sentimento de incômodo. O -d- pode ser um alargamento que faz contraponto com, no Grego antigo, -q- (> I.e. *-dh-) e indicaria a manifestação do que a raiz expresse (cf. Benveniste, 1984 : 190). Então, khvdomai deve ser não apenas sentir (lamentar) por outrem, mas mostar, demonstrar esse sentimento (seja com ações, palavras...). Combina bem com a atitude de Hera no verso 58, a qual incute em Aquiles a idéia de procurar sanar a situação por que passa o exército. Alguns cognatos: Ing. hate « ódio » (< *cəd-), Gaulês cawdd « raiva, insulto, tormento ». O médio é o "reativo" ou "indireto" (cf. nota 27). 64. oJra'to (56): médio de . oJravw (cf. nota 44). 65. povda" wjkuV" (58): acusativo de relação (cf. nota 59). O u é breve, apesar de ser acusativo plural, por causa da métrica. 66. oJmou' (61): genitivo "petrificado" (cf. nota 59).

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67. dama'/ (61): esse verbo, damvazw « submeter, oprimir » é cognato de domar, em Português. 68. ejpimevmfetai (65): de ejpiv e mevmfomai. O ejpiv costuma marcar o acúmulo ("coisa sobre coisa", "coisa a coisa"...). O sentido, então, é mais forte do que o simples mevmfomai. O médio é "reativo" ou "indireto" (cf. nota 27). Observar os genitivos relacionados a ele (eujcwlh'" e eJkatovmbh"): a semântica do verbo se associa à ausência, à falta, pois quexar-se é, na verdade, buscar algo (que falte ou não esteja bom para quem se queixe). O genitivo, então, é naturalmente esperado (cf. Murachco, 2001 : 104-7). 69. bouvletai (67): trata-se de um subjuntivo, na verdade, sem a vogal longa característica (cf. Nazari, 1955 : 29). Outros podem aparecer, o que significa dever-se tomar cuidado na tradução, pois ficam, nesse caso, coincidentes morfologicamente o presente do Indicativo e o presente do Subjuntivo. 70. eijpwvn (68): particípio aoristo de fhmiv, de ajgoreuvw e de levgw. Concentrando-se em levgw como « falar » (fhmiv seria mais « afirmar, asseverar » e ajgoreuvw « arengar, falar em público », embora ambos podem significar « falar, dizer », também), esse verbo é interessante para se ver como o ponto de vista pode variar de língua para língua. O Latim, por exemplo, dispunha de for (arcaico) e de loquor (dentre outros verbos da idéia « falar »), ambos médios. O Grego antigo, por outro lado, dispunha de três raízes que trabalhavam juntas, a em ei\pon (aoristo), a em levgw (infectum) e a em ejrw' (futuro). Por que isso? Tentaremos propor um meio de interpretar.

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Como "falar" possui algo de imprevisível em termos de quantidade (quer dizer, quando se fala, pode-se falar uma palavra, n palavras ou mesmo "pedaços" de palavras), acreditamos que o Grego antigo tenha adotado essa variação entre as três raízes (uma para cada caso, aoristo, presente e futuro, o aoristo podendo ser entendido, aí, como de pontualidade, gnômico ou ato verbal puro, noção infinitiva do verbo) em função disso. a) Ei\pon (aoristo pontual no passado) seria « falei n palavras » (quer dizer, já se sabe quantas foram, pois já acabou-se o processo verbal); b) Levgw (presente) seria « falo, estou falando » (mas não se sabe quantas palavras, até o fim da fala); c) jErw' (futuro) seria « falerei, hei de falar » (mas esse "falar" já engloba o "ir falando" e o "terminar de falar", quer dizer, é como se se antecipasse um certeza de terminar de falar, mesmo sem haver limite para quantas palavras se poderão falar). Como se pôde ver, isso tudo seria um ponto de vista da coisa toda. Outra língua poderia, simplesmente, considerar tudo numa mesma raiz. A semântica é que é essencial de se notar, não a morfologia, num caso desses. 71. povre (72): essa forma verbal leva a se supor um *povrw « dar, fornecer ». No entanto, como a raiz é *per- (cf. nota 24a), pode ser que esse verbo arcaico tenha significado contaminar, transmitir, abranger, estender-se a, todas essas nuances derivadas da idéia de passagem, travessia, intrínseca a essa importante raiz indo-européia. É como se Apolo tivesse passado a Calcas o dom da profecia, mas sem o próprio Apolo perder o dom.

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72. kevleai (74): médio de kevlomai. Médio "reativo" ou "indireto" (cf. nota 27). 73. muqhvsasqai (74): aoristo infinitivo médio de muqevomai. Esse médio, classificamo-lo como médio "imprescritivo". Seria o caso daqueles verbos cujo sentido parece impossível de ser prescrito. Ora, « explicar » não tem um itinerário semântico pré-definido. Claro, é possível dizer o que é explicar, mas cada explicação é de um modo diferente. A menos que seja repetida ipsis litteris, não é a mesma coisa, por exemplo, de se falar um nome: sempre vai ser aquele conjunto de fonemas, o nome, diga-o quem o disser. O sentido médio-passivo – propomos – sairia justamente dessa incerteza semântica arraigada ao verbo (cf. a mesma "incerteza" nos médios "de continuidade de ser", nota 31). 74. eJkathbelevtao (segundo a longo)(75): genitivo singular (cf. nota 1). Comparar ao epíteto eJkhbovlo". 75. ejrevw (76): futuro não-contrato. No Ático, ejrw' (cf. nota 70). 76. suvnqeo (76): imperativo aoristo médio de suntivqhmi « colocar junto, colocar compondo ». Veja-se como é importante atentar-se aos sentidos metafóricos: Calcas diz a Aquiles que este coloque o que lhe disse, mas de forma conjunta! Isto é, Calcas diz: conjectura (como se dissesse junta as partes na mente, vê o que é melhor para ti, trata com cuidado da questão). Tudo se explica do concreto ao abstrato. 77. oji?omai (78): cf. nota 44.

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78. oi\sqa (85): perfeito de oJravw « ver, olhar ». O perfeito muda de raiz (na verdade, a mesma do Latim uidĕo, vindo oi\sqa de *wowidsqa, com queda dos digamas, ww). O perfeito, aí, é um segundo "momento", digamos, do ato de ver: se você viu, agora você sabe. Saber é o produto, resultado de ter visto, e esse saber também é presente no momento da fala (daí o Inglês chamar essa forma verbal de present perfect, isto é, "perfeito presente"). Daí a importância de se trocarem as raízes. Como em muitas raízes indo-européias que se prestaram à noção de luz e de visão (v.g. *dhew- em qeva, *lew- em leukov", *sekw- em sehen, *əekw- em ǒcǔlus, a de oi\da, *əew-, tem um significado primiodial muito difícil de se determinar, devido ao fato, de muitas vezes, apenas terem restado cognatos com tal noção igual e muito abstrata de luz ou de visão. Isso significa, todavia, que essas raízes sejam, muito provavelmente, antiqüíssimas, a ponto de terem convergido a um só significado em tantas línguas indo-européias. 79. ejmeu' zw'nto" kaiV ... derkomevnoio (88): genitivo absoluto (cf. nota 55). 80. ejpoivsei (89): ejpiv mais oi!sei, 2a pessoa do singular do futuro de fevrw « portar, levar, trazer ». Assim como para o verbo falar, levgw (cf. nota 70), são três raízes (uma para o aoristo, uma para o presente e uma para o futuro e para o aoristo). Quanto à diferença de sentido das raízes, entendemo-la assim: a) a do aoristo indicaria apenas o descarregar do que se trouxe; b) a do presente, estar em trânsito ao se levar (algo), não se fazendo qualquer referência nem ao ato de se ter tomado consigo o algo levado nem ao ato de se ter descarregado a

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coisa trazida. Essa raiz, altamente profusa, no Indo-europeu, sobreviveu para o Português em verbos como referir, proferir, interferir, deferir... Mas ferir é de outra raiz, *gwher-; c) a do futuro (raiz obscura e mal definida), num tema *oijs-, indicaria ao menos o deslocamento e o descarregamento, também podendo se referir à tomada do algo a ser levado. 81. h#n (90): = eij a#n (com possível queda do y entre vogais e contração delas: *ey an > *ean > h#n). 82. eu!cetai (91): embora o verbo eu!comai pode significar « prometer » e mesmo no sentido de ser promissor para algo, parece que seria particularmente esquisito ouvir-se isso por Aquiles (isto é, Aquiles admitir Agamêmnon como ter reais chances de vir a ser o melhor dos Aqueus). A tradução de eu!comai como fazer voto parece, portanto, combinar mais com Agamêmnon, se considerado seu esforço em restabelecer sua prosápia: ele estaria fazendo votos aos deuses de vir a ser o melhor dos Aqueus, coisa que seria lícito a um rei, como ele o é. 83. ajeikeva (97): neutro plural de ajeikhv". Malgrado não se saiba a raiz do tema eijk- (o de e!oika, perfeito, « parecer »), o sentido primeiro do adjetivo deve ter sido « sem aparência definida », daí tendo saído as várias conotações: « feio; disforme; hediondo, horroroso, monstruoso; profano; nauseante, nojento ». 84. iJlassavmenoi (100): particípio aoristo médio plural de iJlavskomai. Trata-se de um médio "reativo" ou "indireto" (cf. nota 27). A raiz é a mesma de consolar, mas em grau zero e com redobro: *si-sl-avskomai (raiz I.e. *sel- « tomada, tiramento »,

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uma idéia derivada sendo a de tirar para aliviar, para consolar ou para apaziguar). 85. pepivqoimen (100): aoristo optativo métrico, de peivqw. 86. ajcnuvmeno" (103): de a!cnumai. Médio "reativo" ou "indireto" (cf. nota 27). 87. manqeuvesqai (107): infinitivo de manqeuvomai. Para entendê-lo como médio, convém considerá-lo não como « profetizar », mas como « adivinhar; dar oráculos ». Seria, assim, um médio "imprescritivo" (cf. nota 73). 88. keivmena (124): particípio perfeito de kei'mai. Chamamo-lo de médio de "toidade", em referência à expressão "à toa". Trata-se do seguinte: « jazer, estar deitado, relaxar », conotações do verbo, significam o sujeito se deixar levar pelo estado em que se encontra. Quando relaxamos na cama, para dormir, por exemplo, soltamo-nos, deixamos de resistir às "forças" que nos rodeiem (o vento, a gravidade...). "Ceder" a essas forças tem a ver com a noção do médio-passivo. Outros exemplos desse tipo de médio virão. 89. pareleuvseai (132): forma de futuro de ei\mi « ir; vir ». Médio "de continuidade de ser" (cf. nota 31). 90. h%sqai (134): infinitivo perfeito de h%mai. Médio de "toidade" (cf. nota 88). 91. deuovmenon (134): acusativo do particípio médio de deuvw. O sentido médio parece somente ser entendível como uma extensão do sentido de « ser inferior », daí, « carecer, não ter, ter necessidade ». No sentido de « ser inferior », o médio seria

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o mesmo de aijdevomai (cf. nota 36), isto é, um médio "reativo" ou "indireto" (cf. nota 27). 92. a!rsante" (136): particípio ativo aoristo de ajrarivskw. O particípio que aparece na tradução é o do verbo "perfazer". 93. kataV qumovn (136): quer dizer « conforme o ânimo », isto é, « à medida que se mostra o ânimo, a vontade ». É um acusativo de relação com katav precisando-lhe o sentido (detalhes na nota 54). 94. e@lwmai (137): aoristo de aiJrevw « tomar, tirar ». O sentido primeiro deve ser « tentar segurar (o que resiste a ser pego) ». Isso porque ficaria mais clara a opção do Grego antigo, em adotar duas raízes: a) A de aiJrevw, *ser-, do infectum, expressa o estar tentando pegar algo que tende a escapar ou não quer ser pego. É interessante considerar que, em Português, tem-se uma das conotações do verbo engalfinhar (transitivo direto) como precisamente « tentar agarrar »; b) A de e@lon/ei%lon, *sel-, do aoristo, expressa o ter conseguido pegar (após se tentar pegar). Daí caber bem, em alguns casos, o verbo conquistar (sobretuto coisas em batalha), que traz consigo o prefixo con-, que aí indicaria esse segundo momento da tentativa de tomar, isto é, o momento de ter conseguido tomar. Em termos fonéticos, aiJrevw, tantas vezes dado como de forma (e daí de etimologia) obscura, tem sido recentemente explicado como tendo o -e- devido a uma influência de ajgrevw « tomar, agarrar (sobretudo em caça) ». AiJrevw, então, viria de *saryw > *ai@rw > aiJrevw (uma aspiração "continua" o sigma, o

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iode sofre metátese, vocaliza-se o -r- em a e acrescenta-se o –e- analógico). Já em termos etimológicos, a raiz de aiJrevw, *ser- « apresamento (com gancho ou com garra) », seria a do Gaul. herw « assalto, saque », a do Grego aJrpavzw (< *sarpavzw, grau zero da raiz) « arrebatar, pilhar », Lat. sarpo « podar (a vinha » sarmentum (< *sarmmentum < *sarpmentum) « vara de videira » e seruus « servo, escravo », o escravo sendo o mais freqüentemente uma pessoa conquistada em saque, prisioneiro de guerra. Quanto a de e@lon/ei%lon, *sel-, no Grego antigo o princípio parece ter sido o mesmo de dou'lo" « escravo », se *do-sel-o" > *doelo" > dou'lo" (queda do sigma e contração), sendo o *do- o mesmo elemento presente no prefixo complexo ejndo-. Mais cognatos, mormente no Germânico: Gótico saljan « oferecer sacrifício », Velho Irlandês selaim « tomar », Ing. sell « abrir mão, desistir de » (sentidos do Ing. obsoletos) e « vender ». Para alguns significados derivados da raiz, cf. nota 84. 95. metafrasovmesqa (140): futuro médio derivado de fravzomai. Se o sentido de fravzomai seja primeiramente « imaginar, figurar na mente », seria um médio "imprescritivo" (cf. nota 73). 96. ejruvssomen (141): subjuntivo aoristo de ej(i)ruvw, sem aumento, e com duplo s. 97. ejkpaglovtat j (146): vocativo de superlativo, com elisão da vogal final –e. O sentido « espantoso, arrebatador, surpreendente , veemente, afoito », do positivo e!kpaglo", fica sugestivo ao se saber que houve uma dissimilação dos ll de *e!kplaglo" e, daí, a forma se associar ao verbo plhvssw (> *plhgyw), como se « aquele que bate para fora, aquele que estonteia », também em sentido figurado (isto é, « aquele que deslumbra,

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extasia »). O Ing. possui a expressão to blow one’s mind « atingir alguém por um forte sentimento de prazer ou de perplexidade ». 98. uJpovdra (148): advérbio que repousa em *uJpovdrak, sendo a raiz a mesma de devrkomai « enxergar, ter visão aguda ». O vocalismo zero em uJpovdra gerou o -a- e, em Grego antigo, as únicas consoantes que se sustentam em fim de palavra são -n, -r e -s (cf. Murachco, 2001 : 68). 99. eJspovmeqa (158): aoristo plural médio de e@pomai (> *sekwomai), com queda do s inicial, continuada por aspiração e prevalência do elemento labial do -kw-, daí o -p-. Quanto a ser médio, seria médio "reativo" ou "indireto" (cf. nota 27). Etimologicamente, é praticamente o mesmo Lat. sequor (verbo médio) « seguir » e, talvez, do grupo germânico do verbo ver, como o Ing. see, Al. sehen, em Alemão tendo sobrado a aspiração medial (não mais pronunciada) vinda do grupo -kw- após a aspiração deste, o que o Gót. saihwan comprova. O sentido, em germânico, teria sido « seguir com os olhos » (?). Sobre a aspiração do aoristo:

eJsp- n’est assuré hors de l’ind. que chez A.R. que fournit aussi un présent e@spetai; il n’y a donc pas lieu de poser un aoriste à redoublement (*se-skw-), et l’aspirée sur l’augment de eJspovmhn est analogique de celle du présent et de l’imparfait (...). (Chantraine, 1999 : 361, s.u.) eJsp- não é comprovado fora do indicativo senão em Apolônio Ródio, que fornece ademais um presente e@spetai; não cabe, então, considerar um aoristo com redobro (*se-skw-), e a aspirada sobre o aumento de eJspovmhn é analógica àquela do presente e do imperfeito (...).

100. ajrnuvmenoi (159): particípio de a!rnumai. Apesar de, no trecho, passar bem o sentido de « ganhar, garantir »,

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acreditamos que o sentido primeiro seja « tentar manter (o que se ganhou ou se tem) », cf. a Odisséia, canto I, v. 6 (Homer, 1919), a propósito de Odisseu:

ajrnuvmeno" h@n te yuchVn kaiV novston eJtaivrwn. (Murray, 1999) tentando manter a sua alma e o retorno dos conpanheiros. Nesse sentido, a!rnumai seria um médio "reativo" ou "indireto" (cf. nota 27). 101. proV" Trwvwn (160): « da parte dos Troianos ». A tradução não recupera todo o sentido: o genitivo indica de onde ou de que(m) provém algo (no trecho, timhvn, v. 159) e o prov", aí, indica que a timhvn se destinará (chegará) a alguém (no caso, a Menelau e a Agamêmnon, v. 159). 102. (...) soiv (...) i\son (163): o dativo se explica pela nota 56. 103. o!qomai (181): médio "reativo" ou "indireto" (cf. nota 27). 104. h@w" (193): = e@w". 105. e@lketo (194): o médio, aí, deve indicar que o objeto (complemento) do verbo é do sujeito verbal. No trecho, Aquiles saca (e@lke) da bainha (ejk koleoi'o) a grande espada sua (daí, a desinência média). 106. fainomevnh (198): particípio médio indicativo de faivnw. O médio seria o "reflexivo" (cf. nota 62). A raiz tem cognatos no Português, em fantasma e fenômeno, por exemplo. 107. favanqen (200): embora aoristo passivo, parece artificial traduzi-lo por « foram mostrados » (terríveis, assustadores

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ambos os olhos). O verbo faivnw é primordialmente « fazer ver, visibilizar (pela luz) ». Cabe, então, a conotação mostraram-se (terríveis), sendo o "se" marca da voz passiva. Esse uso da forma passiva, em Grego antigo, parece ter sido um tipo de idiotismo. 108. eijlhvlouqa" (202): perfeito de e!rcomai e alongamento no –h. 109. e!k toi ejrevw (204): tmese de ejxerevw. O toi é dativo relativo a ejrevw, não a ejk. 110. ojlevssh (205): subjuntivo aoristo médio de o!llumi ou de ojlevkw. 111. lh'g j (210): verbo lhvgw. Possível cognato de langor, lânguido e laxo. Raiz *leə- « folgação, frouxidão ». 112. tetelesmevnon (212): o -s- do tema teles- desaparecendo quando entre vogais, daí, no infectum, televw (< *televsw). 113. w\se (220): aoristo de wjqevw. A forma esperada seria w!qhsa (atestada). A perda do -h- seria por analogia a e@lkw, por oposição de sentidos? De qualquer forma, esse aoristo é inexplicado. 114. metaV daivmona" a!llou" (222): « após os demais numes ». "Após" indica seqüência, e seqüência pode ser entendido como transitividade. Por isso, o acusativo é natural. 115. (...) ejpiV (...) ojmou'mai (233): « (...) ademais (...) hei de jurar ». O verbo é o!mnumi. Para o médio, cf. a nota 44. Não achamos que o trecho traga uma tmese.

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116. eijruvatai (239): por *éyrwntai, com vocalização do -n-. Para o médio, cf, nota 106. 117. kecaroivato (256): optativo perfeito médio de caivrw. Sobre o perfeito em Homero, vale notar:

Il perfetto ha talvolta valore intensivo ovvero iterativo (...). (Nazari, 1955 : 68) O perfeito tem às vezes valor intensivo ou iterativo (...). A tradução, portanto, deve atentar a esses casos do

perfeito. 118. puqoivato (257): optativo aoristo médio de punqavnomai. O médio é difícil de determinar devido ao sentido primeiro da raiz, mal-delimitado. A noção por trás da raiz parece ser atenção, mas vamos asseverar nada ainda sobre ela. Seria, parece, ou "reativo" (cf. nota 27), ou "de continuidade de ser" (cf. nota 31). 119. (...) periV (...) boulhVn (258): « à par do conselho, da assembléia ». A tradução não recupera a imagem semântica. O periv marcaria, aí, o centro de interesse em boulhvn, mas o acusativo diz que quanto ao decorrer de boulhvn, imagem bem mais sugestiva, embora de difícil tradução. 120. kataV moi'ran (286): moi'ra expressa, às vezes, conceitos variados como os de ai\sa. Como etimologicamente está associada à palavra mérito, traduzi-la como « propriedade » (adequação entre o significado de uma palavra e o contexto em que ela é impregada) parece ser bom. Nesse caso, embora o sentido de katav, no trecho, seja « conforme, segundo », ficaria estranho traduzir o grupo em « conforme propriedade » (?). Daí traduzirmos em « com propriedade ».

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121. periV pavntwn e!mmenai a!llwn (287): para o periv, nesse trecho, cf. nota 117. A questão é como se entender o genitivo. Encontramos o verbo abarcar no sentido de « abranger com o poder », o que traduz bem o e!mmenai periV com genitivo, pois a noção de poder/dominação é noção de diferença e essa se expressa pelo genitivo (cf. Murachco, 2001 : 106). 122. ajtrugevtoio (316): esse termo, ajtrugeto", tem uma história complicada quanto ao significado original em Grego. Para se encontrar uma possível solução para a tradução desse termo tão corrente em Homero, é importante considerar que normalmente adjetiva o éter ou o mar. Nessa perspectiva, então, se o termo é de se associar a truvx (um de cujos significados é « borra (de um líquido) », na medida em que borra sejam restos sedimentados mediante filtragem), a idéia de ajtruvgeto", com o prefixo de privação *aj(n)-, deve ser qualquer coisa como filtrado ou sem impurezas, puro ou inadulterado, o que pode convir ao éter (considerado região superior do ar, aquecida e amena) e ao mar. Dentre várias outras etimologias já supostas para esse termo, é bom mencionarmos que uma delas aponta um significado interessante, em que ajtruvgeto" significaria « murmurejante », associando-se o verbo trugavw « murmurar », hipótese que deve se reportar ao barulho da ressaca do mar. Tudo muito hipotético, todavia, e o radical trug- não tem aspecto de morfologia indo-européia, o que pode levar o termo a ter uma etimologia completamente diferente. 123. taV pevnonto (318): o verbo é pevnomai. Deve significar primeiro « sofrer trabalhos, atribular-se, passar por provações », e assim seria natural enquadrá-lo como médio "reativo" ou "indireto" (cf. nota 27).

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No trecho, por conta do artigo taV, desdobramos o verbo para que a estrutura frasal ficasse mais inteligível. 124. qeravponte (321): dual de qeravpwn. É possível que o termo qeravpwn tenha como significado primordial « representante, substituto » e tenha, já em Homero, chegado às idéias genéricas de servidor, escudeiro, armeiro (aquele que entrega armas a algum patrão), auriga, muito embora complicada a origem do termo mais antigo qevray, de que depende qeravpwn, complicada histórica (viria o termo de um substrato?) e foneticamente (já houve associações à lingua pelásgica, de fonética pré-histórica e, portanto, língua de difíceis confirmações). 125. h@menon (330): acusativo do particípio perfeito de h%mai. Médio "de toidade" (cf. nota 88). 126. ajevkousa (348): é um adjetivo feminino (na verdade, um antigo particípio presente, *ajevkontya > ajevkonsa > ajevkousa) indicando a noção de a contragosto, e não a de espontaneidade, involuntariedade. 127. liasqeiv" (349): de liavzovmai. Cf. nota 107. 128. karpalivmw" (359): forma dissimilada de *kalpalivmw". A final -al-ivmw" é complexa, mas o radical *kalp- deve ser o mesmo do Gót. –hlaupan (> *-claupan) e do Ing. leap « saltar », Al. laufen « correr ». A expressão do Gót. wala hlaupan « saltar bem » contraiu-se no Fr. e deu, em Português, galope. 129. keu'qe (363): a raiz, *(s)qew- « abrigo, esconderijo », é a mesma do Lat. obscūrus, Lat. cŭtis « pele », Ing. hide « esconder », hide « couro », Sânscrito kuhará- « caverna ».

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130. davssanto (368): aoristo inexplicado de datevomai (o esperado seria *dathvsomai [?]). Médio "reativo" ou "indireto" (cf. nota 27). 131. eJkavtoio (385): o termo é e@kato", forma reduzida dos epítetos eJkathbovlo" ou eJkavergo" de Apolo, daí nossa tradução "abreviada". 132 w!nhsa" (395): o verbo é ojnivnhmi, cujo próprio radical infectum é difícil de explicar. 133 w\c j (402): = w\ka (advérbio). 134 e!pleo (418): aoristo de pevlomai expressando condição, estado. Médio "de continuidade de ser" (cf. nota 31). 135 kataV dai'ta (424): « durante uma refeição ». Na verdade, Tétis diz que Zeus saiu e ele ficará fora durante uma refeição. O katav expressa essa "duração" da ausência de Zeus no Olimpo. 136. dw' (426): = dw'ma. 137. uJpeVr Danaw'n (444): a idéia de acima (uJpevr) com genitivo faz pensar-se na proteção através de distanciamento (quer dizer, um fica no lugar do outro para receber um efeito, e o outro fica "distante", metaforicamente, "poupado"). 138. i!yao (454): o verbo é i!ptomai. O médio, "reativo" ou "indireto" (cf. nota 27), se se entenda castigo como punição por algo feito previamente, motivando-a.

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139. oujdev ti qumoV" ejdeuveto daitoV" eji?sh" (468): « e ninguém ficava a desejar de refeição proporcional ». Expliquemos a tradução: qumov", entre as várias coisas que pode expressar, expressa vontade, desejo de algo. O problema, para a tradução, é que essa vontade é, no trecho, a vontade individual, a vontade de cada um que participa da refeição ocorrendo. jEi?sh, feminino, por sua vez, fica sem sentido se traduzido como « igual », cabendo, mais provavelmente, a idéia de proporção, adequação na partilha da refeição para cada um. Uma tradução literal "e (quanto a nada) a vontade carecia de igual refeição" parece muito forçada e não recupera a idéia de adequação da partilha. 140. tevrpet j :(474): médio "reativo" ou "indireto" (cf. nota 27). 141. lhvqet j (495): médio de lhvqw. A idéia de esquecimento, olvido talvez se enquadre no médio "reativo" ou "indireto" (cf. nota 27) pelo menos porque ninguém esquece nada na hora em que queira. É um ato médio-passivo na medida em que é involuntário. No entanto, por haver verbos de ação "involuntária" que não aparecem médios (escorregar, por exemplo), o médio de "toidade" serviria melhor (cf. nota 88). 142. h@yato (512): o verbo é a@ptw como médio "reflexixo" (cf. nota 62). 143. e!pi (515): = e!pesti. 144. ejperrwvsanto (529): o sentido parece realmente passivo, não médio. O "se" (pronome) parece deixar menos artificial a tradução, do que com auxiliares como ser, estar... 145. a\lto (532): verbo a@llomai, com perda da aspiração (perda comum, no Jônio). Médio de "toidade" (cf. nota 86): o salto é

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um ato que, após o impulso para pular, deixa o sujeito verbal submetido à gravidade, ao vento... Ver a@llomai como médio "de continuidade de ser" pode ser uma opção, mas menos clara (cf. nota 27). 146. ejpievlpeo (545): composto de ejpiv e e!lpomai. O médio é claramente "reativo" ou "indireto" (cf. nota 27). O causativo e!lpw « fazer esperar » é secundário, ao que parece (cf. Chantraine, 1999, s.u.). 147. e!sont j (546): "futuro" de eijmiv. Médio "de continuidade de ser" (cf. nota 31). 148. ajavptou" (567): a tradução corrente é « invencíveis ». Um hipótese citada por Chantraine, 1999, s.u. parece sugestiva: a palavra seria uma deformação popular de *a!epto", isto é, um composto de a- privativo e do radical de e!po". A raiz de e!po" (dita *wekw-, do Lat. uōx, Scr. vívakti, mas na verdade é a mesma do Gr. aujdavw, ajeivdw, uJdavw, *əew-d-, *əew-kw-, do Avéstico aok- « falar, verbalizar », cf. Benveniste, 1984 : 155 in fine), estando ligada a voz, várias possibilidades se afiguram: « inominável, indizível, indescritível », e outra mais secundária « prodigioso » (na medida em que algo que não se pode descrever com palavras). Porém, ainda são conotações vagas (podem expressar idéias negativas ou positivas, do bem ou do mal). Acreditamos que, já que é Zeus quem é "dono" das mãos (isto é, um dos deuses gregos supremos) e elas aparecem aí como advertência (de algo mal) a Hera, a!apto" deve ter tido uma idéia de « que não deve (sequer) ser dito (devido ao receio de se atraírem males) ». Seria uma palavra reportando-se a um tabu lingüístico. Pena que não haja uma palavra, em Português, para expressar tal conceito de forma mais concreta.

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149. ejridaivneton (574): médio "reativo" ou "indireto" (cf. nota 27). 150. ferovmhn (592): médio de fevrw. Mais do que simples passivo, seria interessante vê-lo como "de toidade", já que Hefesto ( @Hfaisto") está "à deriva" no ar (para o médio, cf. nota 88). 151. kavppeson (593): de katapivptw, com uma espécie de contração métrica e, talvez, até popular. 152. komivsanto (594): de komivzw, mas médio. A raiz, pouco atestada e de sentido vago, dificulta a classificação desse verbo quanto à diferença ativo X médio. Na dúvida, enquadramo-lo provisoriamente nos verbos da nota 44. 153. koima'q j (610): médio "reflexivo" de koimavw (cf. nota 62).

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3.3. COMENTÁRIOS GERAIS Procurou-se, nesse processo de tradução dirigida, orientar o aluno de forma a familiarizá-lo com o que é traduzir em Grego antigo. Em outras palavras, procurou-se mostrar (sobretudo ao aluno ou estudioso de Grego ou mesmo de línguas antigas) como, ao menos para nós, as coisas vão se articulando no estudo, vão se explicando paulatina e progressivamente. Quando dizemos progressivamente, referimo-nos à nossa intenção de preparar o aluno para lidar com o processo de tradução de maneira madura, e não viciada. Se, por acaso, houvéssemos explicado palavra por palavra do texto Grego, acreditamos que não apenas estaríamos viciando o aluno em depender sempre de alguém orientando-o numa tradução, mas também não o estaríamos induzindo-o a buscar mais compreensão dos fatos da língua Grega, os quais estão presentes, na verdade, em outras línguas antigas. Esse estudo apaixonado, meticuloso, para o qual procuramos despertar o aluno é genuíno, porque tem sido nossa experiência, nosso "lidar com a tradução", não estagnado, mas vivaz, entusiasmado, concreto e praticável. Claro que a experiência para cada estudante é única, mas não vemos mal em estimulá-lo na medida em o provocamos a buscar mais. Ainda sobre a progressão que tentamos construir na tradução dirigida, parece-nos importante observar uma coisa: foram deixados de lado (deixados de ser comentados por nós) alguns casos que o aluno pode perceber flagrantemente importantes à nossa proposta. Seria, por exemplo, o caso de alguns verbos médios que não foram comentados, como ajmeivbomai, daivnumai... Ora, isso não foi por displicência ou de má fé. Não foi nossa intenção procurar emiuçar todo o texto. Achamos de boa proposta deixar esses casos para o próprio aluno pensar

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neles e, então, associá-los (se assim o aluno achar pertinente) à nossas teorias. O mesmo vale para casos (nominativo, genitivo...) não comentados: nossa idéia é, com essa aparente "lacuna" de não tê-los comentado, incitar o aluno a continuar a pesquisa, instigá-lo a aprender por si só. Quanto à análise propriamente dita, procuramos dar ênfase a três questões que nos parecem de suma importância ao se lidar com línguas antigas, uma das quais é o Grego antigo. As três questões são: a) os verbos médios. Essa, provavelmente, seja a questão mais trabalhada por nós. Achamos importante tratá-la nos muitos casos porque, mesmo que enquadrados numa classificação proposta por nós, a variedade de verbos médios, em Grego antigo, parece grande, e procurar explicá-los é "agitar-se" no pensamento, é o cogitare a que fazia menção Descartes. Esse cogitare, pensamos, ajuda a peceber as coisas de um modo mais sensível, mais perceptível, mais sagaz, coisa que - estamos certos disso – é fundamental a qualquer estudo mais sério. E isso não convém ficar de fora para o estudante; b) os casos (nominativo, dativo...). Qualquer estudo sério de uma lingua, de um idioma passa pelo reconhecimento das funções sintáticas (ainda que de forma inconsciente, isto é, ainda que não se saiba qual termo se refira a qual função). Porém, precedente a isso em importância parece-nos ser a semântica. Tudo gira em torno do significado das coisas: procuramos sempre mostrar, na análise, que o que interessa não é a classificação de fulano ou de cicrano, mas que a boa classificação (qualquer que seja) leve o estudante, de forma clara, ao seu objetivo-mor: a apreensão e, mais importante, a compreensão do texto. Tentamos mostrar, também, que não é imperativo decorar os casos, mas que eles decorram

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de um ponto de vista, o qual pode variar de língua para língua; c) a permuta de raízes entre os verbos. Da mesma forma que detectamos a mudança de um caso (nominativo, genitivo...) para outro, baseando-nos no critério do ponto de vista da língua, não menos o detectamos em se tratando da permuta de raízes que às vezes ocorre entre os verbos, ao se mudar o modo ou mesmo o aspecto verbais. Nossa idéia não foi tentar explicar de forma cabal essas permutas. Quisemos deixar questões na mente do aluno, procurando ser condizentes com a nossa proposta maior: a de amadurecer o estudante no processo de tradução. A etimologia também está presente na nossa análise. Qual é o intuito disso? Expliquemos. Não é nossa intenção exigir do estudante saber de fonética histórica para, assim, poder acessar as informações etimológicas e morfo-fonéticas que apresentamos (muito embora cremos que, se o estudante tiver acesso a elas, aproveitará as informações melhor). Quisemos, tão somente, introduzi-lo (se já não fora introduzido) nesse meio, para que veja aplicações práticas desse conhecimento. As aplicações seriam um acesso mais preciso, mais exato, mais "enxuto" às idéias, aos significados das coisas. Mas não é apenas isso. Inserimos informações etimológicas também com outro propósito: facilitar, para o estudante, reconhecimento (memorização pela recorrência) do vocabulário grego. É que, aos que começam a estudar Grego antigo, afora o impacto inicial por conta do alfabeto (diferente, por exemplo, do latino, muito mais universal, hoje em dia), ainda há o impacto das formas das palavras, que muitas vezes, nada tem de semelhança morfológica com as nossas equivalentes em significado (por exemplo,

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Gr. provblhma é a nossa palavra do Lat. obstaculum « obstáculo, impecilho, bloqueio »). Mas facilitar como? Facilitar através do sentido mais antigo que conseguimos recuperar, quando feita a análise. Parece-nos um bom modo de ajudar nesse reconhecimento do vocabulário, ao invés de o estudante ir memorizando milhares de palavras, até que tudo entre na mente, sem associações de palavra entre palavra. Cremos que a memorização fique muito mais interessante e útil se decorrente da associação etimológica, o que será útil também caso o estudante venha a ter contato com outras línguas e procure observar as semelhanças de forma (ainda que a Fonética é que ajude a esclarecer melhor certos casos, o que o estudante avançado, eventualmente buscaria). Enfim, nosso enfoque tentou ser essencialmente didático e voltado ao estudante, sem, no entanto, o material dessa tradução dirigida não poder servir também a um estudioso de Grego antigo ou de outras línguas.

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CONCLUSÃO Apresentadas nossa teoria de tradução do texto em língua não mais falada, nossa proposta de tradução e os pormenores dela através das notas explicativas, acabou-se, então, este trabalho? Sim e não. Sim, acabou-se, porque cremos ter lançado elementos suficientes para que se proceda uma tradução do texto em Grego antigo, tradução especificamente linear, a apresentada. Mas, também, não, não se acabou este trabalho, porque, em primeiro lugar, esperamos que ele seja uma centelha deflagradora ao estudante ou pesquisador de tradução do Grego antigo (ou mesmo de outras línguas antigas!); em segundo lugar, como dissemos do capítulo I, nossa teoria não pretende, de modo algum, ser cabal, mas sim lançar bases de um processo que, na verdade, já tem uso, sendo agora a questão exercitá-lo e desenvolvê-lo. Procurou-se enfatizar, no capítulo III, aspectos morfológicos, fonéticos e semânticos (sobretudo visando à etimologia das palavras examinadas), não com uma preocupação técnica, mas, antes, meticulosa, que procure fazer jus à nossa intenção de orientação passo a passo. Se por um lado pecamos por excesso de informações (como os detalhes técnicos a respeito das raízes indo-européias), tenha-se em vista, por outro lado, que não propusemos explicações a todo e cada termo quando um mesmo raciocínio prévio (previamente discutido noutro ponto do trabalho) se aplica flagrantemente a outro, deixamos que o próprio estudante procure percebê-lo, a fim de nós o estimularmos a ir fazendo associações que facilitem e comprovem seu estudo. Enfim, lembramos que nossa tradução em si é apenas uma dentre muitas possibilidades de tradução (mesmo com relação especificamente a traduções lineares), com vantagens e desvantagens em relação a outras ou a outros

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tipos de tradução: o aprendizado do estudante ou pesquisador, durante o manuseio de nossas idéias propostas, há de ser otimizado na medida em que ele se complemente com outras traduções do mesmo texto, procurando perceber o que haja de bom ou mal em cada uma delas, e, com isso, torne-se um melhor tradutor (e leitor).

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REFERÊNCIAS Texto grego: HOMER. (1920) Homeri Opera in five volumes. Oxford University Press. HOMERO. (2002) Ilíada de Homero. 2 vols. Tradução de Haroldo de Campos; inrodução e organização Trajano Vieira. São Paulo : Arx, 3 ed. Traduções: HOMER. (1924) The Iliad. Translation by A. T. MURRAY. Cambridge, MA, Harvard University Press, London, William Heinemann, Ltd., two volumes. HOMERO. (2003) Ilíada. Trad. Alex Marins. São Paulo : Martin Claret, série ouro, no 18. _____. (2002) Ilíada de Homero. 2 vols. Tradução de Haroldo de Campos; inrodução e organização Trajano Vieira. São Paulo : Arx, 3 ed. _____. (2001) Ilíada (em verso). Trad. Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro : Ediouro. Dicionários: BAILLY, Anatole. (1963) Dictionnaire Grec-Français. Paris : Librarie Hachette. CHANTRAINE, Pierre. (1999) Dictionnaire étymologique de la langue grecque. Histoire des mots. Paris : Klincksieck. LIDDELL & SCOTT. (1996) Greek-English Lexicon. Oxford : Oxford University Press. ONIONS, C.T. (ed.). (1966) The Oxford dictionary of english etymology. Oxford : Oxford University Press. Geral: BENVENISTE, Émile. (1984) Origines de la formation des noms en Indo-européen. Paris : Librarie d’Amerique e d’Orient.

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