Erich Neumann - A lua e a consci€ ¦ência matriarcal

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A LUA E A CONSCIÊNCIA MATRIARCAL Erich Neumann Capítulo 2 do livro “Pais e Mães”, organizado por James Hillman. Na historia dos primórdios da consciência podemos discernir fases sucessivas do envoltório inconsciente, ou seja, a situação original urobórica e por fim, ao termino do processo, tendo-se tornado o centro da moderna consciência Ocidental, confronta-se com o inconsciente como um sistema separado dentro da psique. No decorrer desse desenvolvimento, que conduz a liberação da ascendência do inconsciente, o consciente e simbolicamente masculino, enquanto o inconsciente, na medida em que se opõe a emancipação do ego, e feminino, como aprendemos na mitologia e no simbolismo do inconsciente coletivo. A fase em que a consciência de ego é ainda infantil, isto é, depender da relação com o inconsciente, é representada no mito pelo arquétipo da Grande Mãe. A constelação dessa situação psíquica, assim como suas formas de expressão e projeção, foi por nos chamada de “ matriarcado “ e, em contraposição, falaremos da tendência do ego de se libertar do inconsciente e dominá-lo como a “ ênfase patriarcal “ no desenvolvimento da consciência. Em conseqüência, matriarcado e patriarcado são estágios psíquicos caracterizados por diferentes desenvolvimentos do consciente e do inconsciente, especialmente por diferentes atitudes de um em relação a outro. Matriarcado não significa apenas predomínio do arquétipo da Grande Mãe, mas, de modo geral, uma situação psíquica total em que o inconsciente ( e o feminino ) são predominantes e a consciência ( e o masculino ) não atingiram ainda autoconfiança e independência. ( “ Masculino “ e “ Feminino “ são aqui grandezas simbólicas, não devendo ser identificados como “ homem “ e “ mulher “ como portadores de características sexuais especificas ). Nesse sentido, um estagio psicológico, uma religião, uma neurose, e também um

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A LUA E A CONSCIÊNCIA MATRIARCAL

Erich NeumannCapítulo 2 do livro “Pais e Mães”, organizado por James Hillman.

Na historia dos primórdios da consciência podemos discernir fases sucessivas do envoltório inconsciente, ou seja, a situação original urobórica e por fim, ao termino do processo, tendo-se tornado o centro da moderna consciência Ocidental, confronta-se com o inconsciente como um sistema separado dentro da psique. No decorrer desse desenvolvimento, que conduz a liberação da ascendência do inconsciente, o consciente e simbolicamente masculino, enquanto o inconsciente, na medida em que se opõe a emancipação do ego, e feminino, como aprendemos na mitologia e no simbolismo do inconsciente coletivo.

A fase em que a consciência de ego é ainda infantil, isto é, depender da relação com o inconsciente, é representada no mito pelo arquétipo da Grande Mãe. A constelação dessa situação psíquica, assim como suas formas de expressão e projeção, foi por nos chamada de “ matriarcado “ e, em contraposição, falaremos da tendência do ego de se libertar do inconsciente e dominá-lo como a “ ênfase patriarcal “ no desenvolvimento da consciência.

Em conseqüência, matriarcado e patriarcado são estágios psíquicos caracterizados por diferentes desenvolvimentos do consciente e do inconsciente, especialmente por diferentes atitudes de um em relação a outro. Matriarcado não significa apenas predomínio do arquétipo da Grande Mãe, mas, de modo geral, uma situação psíquica total em que o inconsciente ( e o feminino ) são predominantes e a consciência ( e o masculino ) não atingiram ainda autoconfiança e independência. ( “ Masculino “ e “ Feminino “ são aqui grandezas simbólicas, não devendo ser identificados como “ homem “ e “ mulher “ como portadores de características sexuais especificas ). Nesse sentido, um estagio psicológico, uma religião, uma neurose, e também um estagio no desenvolvimento da consciência, podem ser chamados “ matriarcais “ ; e “ patriarcal “ não significa o comando sociológico dos homens, mas o predomínio da consciência masculina que consegue separar os sistemas do consciente e do inconsciente, e que e relativamente estabelecida de maneira firme em oposição e independentemente do inconsciente. Por essa razão, a mulher moderna, deve também atravessar todos esses desenvolvimentos que conduzem a formação da consciência patriarcal, que agora e típica e tomada como certa na situação consciente ocidental sendo dominante na cultura patriarcal.

No entanto, juntamente com essa “ consciência patriarcal “ existe uma “ consciência matriarcal “, cuja eficácia e oculta mas significativa. A “ consciência “ matriarcal “ pertence ao substrato matriarcal da psique que formou a civilização nos primórdios da historia humana. Caracteriza a natureza espiritual da mulher - independentemente da sua contribuição cultural para a consciência patriarcal - mas também tem papel importante na vida do homem. Quando a consciência não esta patriarcalmente liberada do inconsciente, a “ consciência matriarcal “ domina: ou seja, nos primórdios da historia humana e, ontogeneticamente, nas correspondentes fases da infância. O mesmo acontece no homem em que ocorre acentuada atividade por parte da anima, o lado feminino de sua psicologia, tanto em crises psicológicas como nos processos criativos.

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Antes de procurar alcançar uma compreensão mais profunda da consciência matriarcal, nos deteremos num “ intermezzo etimológico sobre a lua “ , que nos dirá algo sobre a estrutura do arquétipo lunar. Veremos que o aspecto psicológico de um arquétipo pode proporcionar uma relação interior e central entre raízes ate então não consideradas como tendo conexões lingüisticas

A Etimologia tentou separar duas raízes: de um lado a raiz-lua que, com men ( lua ) e mensis ( mes ) pertence a raíz ma do sacrifício mas; e de outro, a raiz sânscrita manas, com menos ( grego ), mens ( latim ) etc., que representa o espirito por excelência.

Da raiz-espírito brota uma ampla ramificação de sentidos espirituais significativos: menos, espirito, coração, alma, coragem, ardor; menoinan, considerar, meditar, desejar; memona, ter em mente, pretender; mainomai , pensar e também perder-se em pensamentos e delirar, a qual pertence mania, loucura, possessão e também manteia, profecia. Outros ramos da mesma raiz-espírito são menis, menos, raiva, menuo, indicar, revelar; meno, permanecer, demorar-se, manthano, aprender; menini, lembrar; e mentiri, mentir. Todas essas raízes-espírito originam-se de uma raiz original sânscrita Mati-h, que significa pensamento, intenção.

Em nenhum lugar, seja ele qual for, essa raiz foi colocada em oposição a raiz-lua, men, lua; mensis, mes; mas, que e ligado a ma, medir. Dessa raiz origina-se não só matra-m, medida, mas também metis, inteligência, sabedoria; matiesthai, meditar, ter em mente, sonhar; e, mais ainda, para nossa surpresa, verificamos que essa raiz-lua, pretensamente oposta a raiz-espírito, e da mesma maneira derivada da raiz sânscrita mati-h, significando medida, conhecimento.

Em conseqüência, a única raiz arquetípica subjacente a esses significados e espírito-lua, que se expressa em todas as suas ramificações diversificadas, revelando-nos assim sua natureza e seu significado primordial. O que emana do espírito-lua e um movimento emocional relacionado de perto com as atividades do inconsciente. Na erupção ativa e um espirito igneo: coragem, cólera, possessão e ira; sua auto-revelação conduz a profecia, cogitação e mentira, mas também a poesia. Junto com essa produtividade ignea, no entanto, coloca-se outra atitude mais “ medida “ que medita, sonha, espera e deseja, hesita e se retarda, que se relaciona com a memória e o aprendizado, e cujo efeito e a moderação, a sabedoria e o significado.

Discutindo o assunto em outro lugar, mencionei, como uma atividade primaria do inconsciente, o Einfall, isto e, o pressentimento ou o pensamento que “ estala “ na cabeça. O aparecimento de conteúdos espirituais que penetram na consciência com suficiente forca persuasiva para fascina-la e controla-la, representa provavelmente a primeira forma de emergência do espirito no homem. Enquanto numa consciência ampliada e num ego mais forte esse fator emergente e introjetado e concebido como uma manifestação psíquica interna, n começo parece atingir a psique “ de fora “, como uma revelação sagrada e uma mensagem numinosa dos “ poderes “ ou deuses. O ego, ao experimentar esses conteúdos como vindos de fora, mesmo quando os chama de intuitos ou inspirações, recebe o fenômeno espiritual

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espontâneo com a atitude característica do ego da consciência matriacal. Porque ainda e verdade, como sempre foi, que as revelações do espírito-lua são recebidas mais facilmente quando a noite anima o inconsciente e provoca a introversão do que a luz brilhante do dia.

Naturalmente a consciência matriarcal não e restrita as mulheres. Existe também nos homens, na medida em que sua consciência e uma consciência-anima. Isso e particularmente verdadeiro em pessoas criativas; a consciência de todas as pessoas depende da atividade do inconsciente para a inspiração e “ palpite “, assim como para o funcionamento dos íntimos e a “ provisão de libido “ para a consciência. Todas essas coisas são regidas pela Lua, portanto requerem uma harmonia com ela, um ajustamento a ela, isto e, um culto da Lua.

No culto da lua o papel desta como medida do tempo e de importância capital. Mas o tempo não e o tempo abstrato e quantitativo da consciência patriarcal e cientifica. E um tempo qualitativo que muda, e ao faze-lo, assume qualidades diferentes. O tempo lunar tem períodos e ritmos, cresce e mingua, e favorável ou desfavorável. Como o tempo que rege o cosmos, rege também a terra, todas as coisas vivas e o feminino.

A lua crescente e mais do que uma medida do tempo. E um símbolo, tal como a luz minguante, a lua cheia e a lua nova, de uma qualidade interna e externa da vida e da humanidade. Podemos claramente associar o carretar arquetípico das fases da lua a forca mutável de suas radiações. Pois estas são centros de ondas de vibração, correntes de poder que, dentro e fora, pulsam através do mundo, permeando a vida psicobiológica. O tempo lunar condiciona também a vida humana. A lua nova e a lua cheia foram os primeiros tempos sagrados. A lua nova, como vitoria do dragão da noite escura foi o primeiro tempo típico da escuridão e da maldade. Alem disso, a semeadura e a colheita, o crescimento e a maturação, o êxito e o malogro de todo empreendimento e de toda ação, também dependiam da constelação do tempo lunar cósmico.

Obviamente e no feminino que a natureza e a periodicidade da lua se manifestam de maneira particular, e portanto a mente masculina continua a identificar o feminino com a Lua. O feminino, embora não mais dependente do Periodo lunar externo, não esta ligado a Lua apenas de maneira física através da mudança mensal, mas a própria “ mentalidade “ feminina total e determinada pela Lua, e sua forma de espiritualidade lhe e impressa pelo arquétipo lunar, como a epitome da consciência matriarcal.

A periodicidade da Lua, com seu pano de fundo noturno, e símbolo de um espirito que cresce e mingua, conforme os processos obscuros do inconsciente. A consciência lunar, como poderia ser chamada a consciência matriarcal, nunca e divorciada do inconsciente, porque e ela mesma uma fase, uma fase espiritual, do próprio inconsciente. O ego da consciência matriarcal não tem liberdade, ou atividade própria independente; espera passivamente, afinado com o impulso espiritual que lhe foi trazido pelo inconsciente.

O tempo e “ favorável “ ou “ desfavorável “, conforme a atividade espiritual determinada pelo inconsciente se volte em direção ao ego e se revele, ou então se distancie, escureça e desapareça. Nesse estagio da consciência matriarcal, a tarefa que cabe ao ego e

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esperar e observar o tempo favorável ou desfavorável, por-se em harmonia com a lua mutável, propiciar uma consonância, um uníssono com o ritmo de suas emanações.

Em outras palavras, a consciência matriarcal depende do estado de espirito e da harmonia com o inconsciente. Essa dependência da Lua pode ser tomada como uma instabilidade ou capricho; no entanto, por outro lado, produz uma retaguarda que atua como caixa de ressonância, dotando a consciência matriarcal de um caráter especial e positivo. Sua resposta ao ritmo, seus tempos, e suas fases crescentes e decrescentes a aproximam da musica. Em conseqüência, musica e dança, por causa de seu ritmo destacado, exercem um papel importante na criação e na ativação da consciência matriarcal e no estabelecimento de uma consonância do ego com a feminilidade e seu regente, o espirito lunar.

Um cunho musical de natureza intoxicante e orgiástica faz parte dos envolvimentos mais profundos e das alturas superiores do ser feminino. Aqui, como na musica, uma emoção que conduz a desintegração, e uma experiência simultânea e irracional de harmonia combinam-se de acordo com uma lei interna e invisível. A fonte de sedução e arrebatamento varia desde o fascinans de uma voz cantando ou da flauta de Pied Pipper, ate a musica extática dos mistérios Dionisíacos, o poder dissolvente da musica em ritual orgiástico, e seu efeito na mulher moderna.

A conexão entre o tempo, o inconsciente e o espirito lunar pertence, ainda mais profundamente do que tem sido demonstrado, a natureza essencial da consciência matriarcal. Somente através de uma compreensão adequada do caráter espiritual do arquétipo da lua podemos entender o significado da consciência matriarcal e do “ espirito feminino “.

O modo pelo qual uma idéia, uma inspiração, ou uma embriagues, que sobem do inconsciente e tomam uma personalidade como se por um súbito e violento assalto, levando-a ao êxtase, a insanidade, a poesia, ou a profecia, representa uma parte da atuação do espirito. O traço correspondente da consciência matriarcal e o fato de depender, para qualquer intuição ou inspiração daquilo que emerge do inconsciente, de forma misteriosa e quase que autônoma, quando, onde e como quer. Sob esse aspecto, todo chamanismo, incluindo a profecia, e uma manifestação passiva; sua atividade e mais uma “ concepção “ do que um ato de vontade, e a contribuição essencial do ego consiste na prontidão em aceitar o conteúdo inconsciente emergente e entrar em harmonia com ele. No entanto, uma vez que essa independência em relação a consciência e característica da emergência autônoma de todos os conteúdos inconscientes, a lua muito freqüentemente aparece como símbolo do inconsciente em geral.

A relação entre o tempo e a lua na consciência matriarcal, o domínio da lua sobre o tempo, só se torna claro para nos quando buscamos o significado temporal da lua alem do reino cósmico-mitológico, ou seja, no seu efeito sobre a psicologia do indivíduo.

O desenvolvimento da consciência patriarcal culmina com uma liberação e independência relativas do inconsciente, que coloca o ego no comando de um sistema diferenciado de consciência, com uma certa quantidade de libido disponível, que pode ser aplicada como melhor lhe convir. Devemos compreender a importância dessa forma patriarcal de consciência, mesmo se rejeitamos sua ilusão de se autoconceber como um sistema

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absolutamente livre. A consciência patriarcal masculina, como o desenvolvimento da espécie humana demonstra, e um órgão altamente pratico e eficiente de adaptação e realização. Entre suas vantagens esta sua prontidão constante para reagir e a extraordinária rapidez de suas reações e adaptações; pois embora as reações instintivas conduzidas pelos órgãos dos sentidos sejam de fato rápidas, a velocidade alcançada pela consciência do homem moderno através da especialização as aultrapassa de longe. Essa aceleração das reações conscientes deve-se aos mesmos processos que conduziram ao desligamento da consciência patriarcal do inconsciente. Como desenvolvimento final, observamos os processos de abstração, que auxiliam na livre disposição e aplicação das idéias e, no tipo pensamento diferenciado, conduzem a manipulação de abstrações, tais como os números na matemática e os conceitos em lógica. No aspecto psicológico, tais abstrações são desprovidas ao máximo de conteúdo emocional.

Enquanto a consciência patriarcal aniquila o tempo e ultrapassa os lentos processos de transformação e evolução da natureza através do uso deliberado de experimentação e calculo, a consciência matriarcal permanece pesa ao encantamento da lua mutável. Como a lua, sua iluminação e sua liminosidade estão ligadas ao fluxo do tempo e a periodicidade. Deve esperar que o tempo amadureça enquanto a compreensão, como uma semente plantada, também amadureça com ele.

Nos rituais e nos cultos, a espera e a expectativa são idênticas ao ato de circundar e a circum-ambulação. Na historia maravilhosa contada pelo Irmãos Grimm sobre o gênio no lago do moinho assim como em muitos outros contos de fadas, a mulher tem que esperar ate que a lua esteja cheia de novo. Ate então, deve continuar a rodear o lago em silencio, ou deve fiar todo o seu carretel. Somente quando o tempo tiver se esgotado que o entendimento vem como uma iluminação. De maneira semelhante, nos mistérios primordiais da mulher, ou seja, no processo de ferver, cozer, fermentar, assar, o amadurecimento, “ o ponto “, e a transformação estão sempre ligados com um período de espera. O ego da consciência matriarcal costuma permanecer quieto ate que o tempo seja favorável, ate que o processo esteja completo, ate que o fruto da arvore lunar tenha amadurecimento e ficado como uma lua cheia, isto e, ate que a compreensão tenha nascido do inconsciente. Porque a lua não e somente senhora do nascimento, mas também, enquanto arvore lunar e arvore da vida, um crescimento em si, “ o fruto que gera a si mesmo “.

E no ato de “ entendimento “ que a diferença especifica e peculiar entre o processo da consciência matriarcal e o da patriarcal se tornam pela primeira vez aparentes. Para a consciência matriarcal, entendimento não e um ato do intelecto, que funcione como um órgão de rápido registro, descobrimento e organização; antes, tem o significado de uma “ concepção “. O que quer que deva ser entendido tem primeiro que “ entrar “ por inteiro na consciência matriarcal, no sentido simbólico, pleno e sexual de uma frutificação.

Mas esse simbolismo feminino não para aqui, porque o que entrou tem que “ vir a luz “. A frase “ vir a luz “ expressa maravilhosamente o duplo aspecto da consciência matriarcal, que experimenta a luz da consciência como a somente que brotou.

Mas, quando algo entra e depois vem à luz de novo, esse “algo “ envolve toda a psique, que é então permeada por completo pela percepção de que deve compreender, tornar

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real, com a totalidade do seu ser. Isso significa que a concepção e o entendimento terão realizado uma mudança de personalidade. O novo conteúdo tomou e revolveu a totalidade do ser, enquanto na consciência patriarcal teria por certo preenchido apenas mais um campartimento intelectual. Assim como a consciência patriarcal tem dificuldade de compreender plenamente e não apenas se encontrar com um “soberbo “entendimento, da mesma maneira a consciência matriarcal tem dificuldade para entender sem primeiro “perceber “. E aqui perceber significa “conceber “, dar à luz; significa submissão a uma relação mútua e uma interação como a da mãe com o embrião na gravidez.

O tempo qualitativo matriarcal é sempre uma ocorrência única e singular, como uma gravidez, em contraste com o tempo quantitativo da consciência patriarcal. Porque, para a consciência patriarcal de ego, todas as subdivisões do tempo são iguais; mas a consciência matriarcal aprendeu, a partir do ritmo do tempo lunar, a conhecer a individualidade do tempo cósmico, senão a do ego. A singularidade e a indestrutibilidade do tempo são consteladas aos olhos daqueles preparados para perceber o crescimento das coisas vivas, capazes de experimentar e de perceber a gravidez de um momento e a proximidade de um nascimento. Um conto de fadas relata que uma vez cada cem anos, num certo dia, numa hora definida, um tesouro emerge de profundezas e vai pertencer a quem achá-lo nesse momento exato de seu crescimento. Somente uma consciência matriarcal, ajustada aos processos do inconsciente, pode reconhecer o elemento de tempo individual; uma consciência patriarcal, para quem este é um dentre inumeráveis e semelhantes outros momentos, irá necessariamente deixar de notá-lo. A esse respeito, a consciência matriarcal, é mais concreta e próxima da vida real, enquanto a patriarcal é mais abstrata e distante da realidade.

Em conseqüência, a linguagem do simbolismo situaria, como regra, a consciência matriarcal não na cabeça mas no coração. Aqui, entendimento significa também um ato de sentimento inclusivo e freqüentemente esse ato - como, por exemplo no trabalho criativo - tem que ser acompanhado da mais intensa participação afetiva, se é algo que deve sobressair-se e lançar luz. O pensamento abstrato da consciência patriarcal é “ frio “, em comparação, pois a subjetividade requerida por ele pressupõe um desinteresse possível somente a sangue frio e com a cabeça despreocupada. A consciência lunar tem sigo geralmente associada ao coração por todos os povos para os quais a cabeça não tornou o centro de uma consciência patriarcal dissociada do inconsciente. No Egito, acreditava-se que o coração era a fonte original do pensamento e do espírito criativo. Na Índia, onde foi associado cosmicamente à lua, tomava-se o coração como sede do manas, outra palavra pertencente à raiz men, significando um órgão psíquico do espírito, e ele tornou-se então o lugar de manifestação da divindade mais alta. Esse centro no coração da consciência matriarcal e sua relação com o tempo lunar, é ainda o fator orientador válido em todos os processos de crescimento e transformação. Seu predomínio é também típico nos processos do espírito criador, em cujo decorrer certos conteúdos são lentamente constelados no inconsciente, mais ou menos independentes da participação consciente, até fluírem para uma consciência não sistematizada nem insulada, mas aberta e pronta a se expandir.

O fato da sede da consciência matriarcal no coração e não cabeça significa - para indicar apenas uma das implicações do simbolismo - que o ego da consciência patriarcal,

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nosso familiar ego cerebral, muitas vezes não sabe nada do que acontece no centro mais profundo de consciência, no coração.

Pois é essencial ter em mente que os processos da consciência matriarcal têm relação com um ego e não podem, em conseqüência, ser descritos como inconscientes. É claro que este ego é de uma espécie diferente daquela que nos é familiar na consciência patriarcal, mas não obstante exerce um papel ativo no processo da consciência matriarcal. Sua presença constitui a diferença entre o funcionamento humano no estágio matriarcal e uma existência totalmente inconsciente.

A comum identificação de nosso ego com a consciência patriarcal cerebral, e a correspondente falta de relação com a consciência matriarcal, freqüentemente conduz ao nosso desconhecimento do que realmente nos acontece. Em tais casos, percebemos mais tarde que fomos profundamente impressionados por coisas, situações e pessoas, das quais nosso ego cerebral não tomou qualquer conhecimento. Então, ao contrário, uma falta de reação convenientemente embaçada aparece em alguém - muitas vezes numa mulher - cuja cabeça não pode reagir prontamente, mas cuja consciência do coração “concebeu “. O fato de que, como um raio, algo ocorreu e foi percebido, tornar-se-á visível mais tarde na frutificação de uma mudança de personalidade. Aqui, a frase de Heráclito continua válida: “A natureza adora se esconder “.

O momento da concepção é velado e misterioso, muitas vezes sofrido pelo ego da consciência matriarcal sem qualquer consciência por parte do ego cerebral. Mas uma introspecção mais profunda, que leve em conta os sonhos, as imagens e as fantasias, mostrará que na consciência matriarcal o momento e o acontecimento foram registrados e de maneira alguma se passaram sem uma participação da consciência.

Há muito sentido no ocultamento desses momentos de concepção que são muitas vezes vitalmente importantes . O crescimento necessita de imobilidade e invisibilidade, sem ruído e sem luz. Não é por acaso que os símbolos da consciência patriarcal são a luz do dia e o sol. A validade desta lei, tanto para o crescimento biológico quanto para o psicológico, é confirmada por Nietzsche, o grande conhecedor da alma, criativa, quando diz: “no estado de gravidez nós nos entendemos “.

Não é sob os raios causticantes do sol mas na fria luz refletida da lua, quando a escuridão da inconsciência atinge sua plenitude, que o processo criativo se completa: a noite, e não o dia, é que é o momento da procriação. Esta requer escuridão e quietude, segredo, mudez e ocultamento. Em conseqüência, a lua é senhora da vida e do crescimento em oposição ao sol letal e devorador. O tempo úmido da noite é o tempo do sono, mas também da cura e de recuperação . Por esta razão, o deus da lua, Sin, é um médico; uma inscrição cuneiforme representando sua planta curativa diz que “depois que o sol se põe e com a cabeça velada, ela ( a planta ) deve ser circundada com um anel mágico de farinha e cortada antes que o sol nasça”. Aqui vemos, associado com o círculo mágico e com a farinha, o símbolo misterioso de “velar , que pertence à lua e ao segredo da noite. Cura e terapeuta, planta curativa e crescimento recuperador se encontram nessa configuração. É o poder regenerador do inconsciente que na escuridão noturna sou sob a luz da lua executa seu trabalho, um

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mysterium dentro de um mysterium, trabalhando a partir de si mesmo e da natureza, sem qualquer ajuda do ego cerebral. É porisso que as pílulas e as ervas curativas são associadas à lua e seus segredos guardados por mulheres, ou melhor, pela natureza feminina, que está ligada à lua.

Aqui o simbolismo do crescimento vegetativo deve ser interpretado no sentido amplo que concede todo símbolo como síntese de uma realidade tanto interior como exterior. Ao reino noturno da lua curativa pertence o poder regenerador do sono que cura o corpo e suas feridas, a escuridão onde tem lugar a recuperação, e também aqueles acontecimentos da alma que na obscuridade, por processos que somente o coração pode saber, permitem ao homem “superar “ suas crises insolúveis.

Não é, como se pensou, porque a lua muitas vezes parece verde no leste, que se supôs ser o verde a cor da lua; é por causa da inerente afinidade da lua com a vegetação da qual se diz: “Quando a palavra de Sin desce sobre a terra, o verde aparece “. Esse verde de Osíris, de Chidher, do broto de shiva e da pedra verde alquímica, não é somente a cor do desenvolvimento físico mas também do desenvolvimento do espírito e da alma. A lua como regente da consciência matriarcal, está ligada a um conhecimento específico e a uma forma particular de compreensão. Isso é a consciência que nasceu, o espírito que veio à luz como fruto da noite.

A compreensão, enquanto fruto, pertence à essência da consciência matriarcal. Como Nietzsche coloca : “Tudo o que se refere à mulher é um enigma e tem uma solução. Chamava-se gravidez “. Uma vez mais a Ärvore da Vida é uma árvore lunar e seu fruto é o fruto delicioso da lua cheia. A poção ou a “pílula da imortalidade “, o conhecimento sublime, a iluminação, o êxtase, todos são frutos radiantes da árvore do crescimento transformador. Também na Índia, a lua é o Rei Soma, o suco embriagador, do qual se diz: “Como Rei Soma, a essência do alimento, eu o venero “.

Vimos que a lua é senhora da fertilidade e de suas mágicas propiciatórias. Essa mágica, associada à consciência matriarcal, é sempre usada para aumentar ou garantir o crescimento, em contraste com a magia dirigida da vontade, ato mágico que, como por exemplo, o encantamento na caça primitiva, é um instrumento da consciência patriarcal ativa e masculina. Processos de crescimento são processos de transformação e sujeitos ao Si-mesmo. A consciência matriarcal espelha esses processos e a seu modo específico os acompanha e os sustenta. Por outro lado, os processos formativos, em que a iniciativa e a atividade residem no ego, fazem parte da espírito masculino e patriarcal.

“Carregar “ um conhecimento e permitir que amadureça significa, ao mesmo tempo, “aceitá-lo”; e aceitação, que inclui aqui a idéia de “assimilação “, é uma forma de atividade tipicamente feminina, que não deve ser confundida com submissão passiva ou flutuação ao sabor do corrente. A relativa passividade da consciência matriarcal não se deve a nenhuma incapacidade de ação, mas antes de uma consciência de submissão a um processo em que não pode “fazer” nada, apenas “deixar acontecer”. Em todas as situações vitais decisivas o feminino, num grau bem maior do que o exclusivamente masculino, é submetido aos elementos numinosos da natureza ou, melhor ainda, estes a si “retornam”. Em conseqüência,

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sua relação com a natureza e com Deus, é mais familiar e mais íntima, e seu respeito a uma lealdade anônima e transpessoal surge mais cedo e vai mais fundo do que seu vínculo pessoal com um homem.

Embora a consciência matriarcal exista em todos os seres humanos e exerça um papel importante nos homens, especificamente se são criativos, as mulheres ainda são as verdadeiras representantes dessa consciência, mesmo agora, quando têm também uma consciência patriarcal à sua disposição. A oposição entre as duas atitudes tornou-se uma fonte de profundo conflito. Pois a mulher deteve a atitude de receptividade e aceitação, básica para a consciência matriarcal, desde os primórdios do tempo. Ela encara essa atitude como um lado. Não é somente no período menstrual que, para viver sabiamente, ela deve colocar a sua harmonia como a lua acima dos desejos e planos do lado masculino de sua consciência de ego. Gravidez e nascimento também trazem mudanças psicobiológicas totais, exigindo e pressupondo adaptações e ajustamentos que duram anos. Com respeito à natureza desconhecida da criança, seu caráter, seu eixo - um assunto de importância decisiva em muitas culturas, tanto matriarcais como patriarcais - sua saúde, seu destino, com respeito a todas essas coisas a mulher está nas mãos de Deus, e condenada, enquanto ego, a uma irremediável não atividade e não intervenção. De modo semelhante, num estágio posterior, é submetida de maneira inteiramente diferente do homem, à força esmagadora de uma relação amorosa. Por esta razão , a fé masculina do ego e na conciência é alheia à mulher; na verdade, esta lhe parece um tanto absurda e infantil. Daí origina-se o profundo ceticismo e a espécie de indiferença com que ela tende a reagir à consciência patriarcal e ao mundo mental masculino, especialmente quando, como acontece freqüentemente, confunde os dois mundos, do espírito e da consciência. A masculinidade se liga ao ego e à consciência; quebrou deliberadamente a relação com a natureza e com o destino, nos quais a consciência matriarcal está tão profundamente enraizada. A ênfase patriarcal sobre o ego, a vontade e a liberação, contradiz a experiência feminina das “potências e poderes” do inconsciente e do destino, do modo pelo qual existência depende do não-ego e do “tu”.

A atividade restrita do ego no estágio matriarcal acompanha sua preferência - em contraste com o ego cerebral - por uma atitude de consciência observadora. Ela se preocupa mais com percepção e atenção do que com pensamento dirigido ou julgamento. A consciência matriarcal observante não deve ser confundida com a função sensação da consciência de ego masculina, ou com seu desligamento, que conduz à objetividade científica. A consciência matriarcal é dirigida por sentimentos e intuições concomitantes, baseados em processos semiconscientes, que assistem ao ego emocionalmente participante em sua tarefa de orientação.

A consciência matriarcal reflete processos inconscientes, condensa-os e se guia por eles, isto é, comporta-se mais ou menos passivamente, sem intenções de ego determinadas pela vontade. Funciona como uma espécie de realização total da qual a psique inteira participa, cabendo ao ego orientar a libido para a direção de um particular acontecimento psíquico e intensificar seu efeito mais do que usar a experiência como base para conclusões abstratas ou para a expansão da consciência. A atividade típica dessa consciência observadora é a contemplação. Nesta, as energias são dirigidas para um conteúdo, acontecimento ou centro emocionalmente carregado, com o qual o ego estabelece uma relação, por ele deixando-se

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preencher e permear; não se faz abstrações a partir disso, como ocorre na consciência excessivamente patriarcal.

A natureza observadora e emocionalmente determinada do espírito lunar é designada em alemão pelas palavras pertencentes à raiz Sinn, que significa meditar, ter em mente, ponderar, considerar e ser contemplativo; e também contemplação, inclinação mental, assim, como sentidos e sensual; por último, mas não menos importante, o Eigen-Sinn( vontade própria, obstinação ) que os homens em geral atribuem às mulheres. A consciência matriarcal age através da circum-ambulação e da meditação. Falta-lhe o propósito do pensamento dirigido, da conclusão lógica e do juízo. Sua Ação característica é um movimento em torno de um círculo, uma contemplação ( Betrachtung, uma vez interpretada por Jung como trachtigmachen, engravidar ) . Não tem o objetivo direto da consciência masculina, nem o fio aguçado de sua análise. Interessa-se mais pelo significativo do que por fatos e datas, e é orientada teleologicamente mais ao crescimento orgânico do que à causalidade mecânica ou lógica.

Uma vez que o processo de cognição nessa “consciência lunar “ é uma gravidez e seu produto um nascimento, um processo em que toda a personalidade participa, seu “conhecimento “não pode ser partilhado, relatado ou provado. É uma posse interior, realizada e assimilada pela personalidade, mas não facilmente discutida, porque a experiência interna que está por trás dela não se presta a uma exploração verbal adequada, e dificilmente pode ser transmitida a alguém que não tenha passado pela mesma experiência.

Por essa razão, uma consciência masculina pura e simples considera o “conhecimento” da consciência matriarcal não verificável, caprichoso e místico por excelência. Esse é, de fato, no sentido positivo, o cerne da questão. É a mesma espécie de conhecimento revelado nos mistérios e no misticismo. Consiste não de verdades partilhadas mas de transformações experimentadas, portanto necessariamente só tem validade para as pessoas que passaram pela mesma experiência. Para estas, o conselho de Goethe ainda vale:

Sagt es niemand, nur den Weisen,Weil die Menge gleich verhohnet ( Não conte a ninguém, apenas aos sábios,porque a multidão não tarda em zombar.)

Isto quer dizer que as percepções de consciência matriarcal são condicionadas pela personalidade que as realiza. Não são abstratas nem desemocionalizadas, pois a consciência matriarcal conserva o vínculo com o reino do inconsciente do qual seu conhecimento brota. Suas descobertas interiores, estão, em conseqüência, em oposição direta às da consciência masculina, que consiste idealmente de conteúdos conscientes abstratos, livres de emocionalismo e possuidores de uma validade universal não afetada por fatores pessoais.

Uma das tendências fundamentais do desenvolvimento ocidental tem sido expandir o domínio da consciência patriarcal e atrair a ela tudo o que pode ser anexado. No entanto, a consciência matriarcal não é de maneira alguma um modo de funcionamento ultrapassado ou uma área de conteúdos não desenvolvidos que apenas uma letargia impediu de evoluir ao nível

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patriarcal. O que o lado lunar percebe está em grande parte, ao menos para a psique contemporânea, além do alcance do conhecimento científico. Relaciona-se com aquelas experiências gerais da vida, que têm sido sempre objeto dos mistérios e das religiões, pertencendo ao domínio da sabedoria e não ao da ciência.

O espírito lunar também proporciona cultura, mas não no sentido em que a observação das estrelas e a astrologia levaram à matemática e à astronomia; mais propriamente, o protótipo celestial de sua influência cultural é o “fruto que se engendra a si mesmo “, o conquistador da morte e aquele que traz nascimento. Como senhor dos fantasmas e dos mortos, convida os poderes naturais e espirituais do inconsciente a subir das profundezas aquáticas, quando lhes é chegada a hora, e portanto provê a humanidade não só de crescimento e sustento, mas também de profecia, poesia, sabedoria e imortalidade.

A consciência matriarcal experimenta o obscuro e misterioso processo de crescimento da compreensão como algo em que o Si-mesmo funciona como uma totalidade. O Si-mesmo aqui domina como Lua (masculina), mas, acima e além desse aspecto lunar, reina como a Grande Mãe, como a totalidade do mundo noturno. Devido a sua relação com o crescimento, a consciência matriarcal pressupõe essa conexão não interrompida com o lugar onde se enraízam todas as coisas que crescem, com a mãe noturna - uma conexão interrompida por princípio e com heróica determinação pelo ego masculino; já para a consciência matriarcal, as influências da Grande Mãe e da Lua masculina muitas vezes parecem unir-se no símbolo da Lua. O relacionamento, que chega a uma “participação” entre o ego matriarcal e a Lua, como o da própria Grande Mãe, vai além de uma parceria com a lua amante, chegando a uma identidade. A semelhança com a natureza hermafrodita da Grande Mãe é mostrada não somente pelo recebimento do espírito lunar, senhor e amante vindos do exterior, mas também pelo fato de trazer em si seu próprio lado masculino, como uma divindade, um filho-amante, ao mesmo tempo um pai e um filho.

O ego da consciência matriarcal experimenta o poder frutificador da lua como o lado frutificador do inconsciente, como uma parte do poder da Grande Mãe “urobórica”. Através dessa união ininterrupta com a totalidade que aparece na imagem da Grande Mãe, ele pode ver sua própria imagem. A totalidade da Grande Mãe, como a sua própria, circunda aquilo que concebe, e reconhece aquele que engendra como algo nascido de dentro de si mesma, como filho e fruto de seu próprio crescimento.

Assim, a Lua não tem somente uma manifestação masculina como centro do mundo espiritual da consciência matriarcal; tem também uma manifestação feminina com a mais alta forma do Si-mesmo espiritual feminino, como Sofia, como a sabedoria. É uma sabedoria relacionada à indissolúvel e paradoxal unidade entre vida e morte, natureza e espírito, às leis do tempo e do destino, crescimento, morte e conquista da morte. Essa figura da sabedoria feminina não se ajusta a nenhum código de lei abstrato e desligado, pelo qual estrelas mortas ou átomos circulam num espaço vazio; é uma sabedoria que está e continua ligada com a terra, com o crescimento orgânico e com a experiência ancestral. É a sabedoria do inconsciente, dos instintos, da vida e do relacionamento.

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Por essa razão, a consciência matriarcal é a sabedoria da terra, dos camponeses e, naturalmente, das mulheres. Os ensinamentos chineses, particularmente os do I Ching e os de Lao-Tse, são expressões dessa consciência matriarcal, que ama o escondido e o obscuro, e que tem tempo. Ela recusa resultados rápidos, reações prontas e efeitos visíveis. Voltada mais para a noite do que para o dia, sonha e observa, mais do que acorda e atua. Tem menos gosto pelo brilho e pela claridade do que seria desejável para a consciência patriarcal, a qual, dando as costas para o aspecto lunar, ignora jovialmente sua dependência em face do aspecto obscuro do inconsciente. A sabedoria matriarcal é paradoxal. Nunca separa e justapõe os opostos com a clara discriminação da consciência patriarcal, antes, relaciona-os um ao outro através de um “tanto quanto “ ou um “também “.

Sob esse aspecto - que não deve ser mal interpretado - a consciência matriarcal é relativista, pois é menos orientada à absoluta falta de ambigüidade da verdade, do que a uma sabedoria que permanece assentada sobre um sistema cósmico-psicológico de forças sempre mutáveis. Essa atitude relativista muitas vezes pode até se manifestar como um antagonismo ao “absoluto”, se é que uma diferença de espécie e uma tendência ao relacionamento pode ser assim chamada.

A dependência da consciência matriarcal face a seu par, o espírito lunar, e sua consonância com as fases mutáveis do mesmo, contém um elemento de Eros, uma dependência do “tu”, do seu companheiro enquanto amante-lunar, o que distingue a consciência matriarcal da patriarcal enquanto consciência de relacionamento. A consciência patriarcal é livre para agir e pensar quando, como, e o que quer. Em seu modo desvinculado e abstrato, é auto-suficiente, ou ego-suficiente, e suprema no círculo de seus conteúdos conscientes. Mas a consciência matriacal não é auto-suficiente. Liga-se à Lua e ao inconsciente e, consciente de sua dependência, ajusta-se em conformidade com eles.

Por essa razão a sabedoria da Sofia Lunar não tem o caráter abstrato, não individual, universal e absoluto que o patriarcal masculino afirma ser a mais alta espiritualidade reverenciando-a como a esfera espiritual celeste do sol e da luz do dia, colocando-a acima do mundo lunar. Sob esse aspecto, o espírito lunar da consciência matriarcal é “apenas” espírito lunar, “apenas” alma e o eterno feminino. Mas ao perder o caráter de “remota” divindade, a consciência matriarcal retém a luz mais suave e menos ofuscante do espírito humano. A sabedoria da mulher não é especulativa; aproxima-se da natureza e da vida, ligando-se ao destino e à realidade viva. Sua visão sem ilusões da realidade pode chocar uma mentalidade masculina idealista; no entanto, relaciona-se com essa realidade como alguém que alimenta, auxilia e conforta e como amante, conduzindo-a além da morte para a transformação sempre renovada e ao renascimento.

A sabedoria lunar da espera, da aceitação e da maturação, admite todas as coisas dentro de sua totalidade; transforma-as e, ao fazê-lo transforma-se a si mesma. Preocupa-se sempre com a totalidade, com a formação, com a percepção e com o criativo. Não se deve jamais esquecer que o criativo, por sua própria natureza, se relaciona com a consciência matriarcal. Não é o consciente, mas o inconsciente que é criativo; e todo empreendimento criativo, como uma gravidez, pressupõe uma atitude de paciência e de relacionamento, tal como consideramos características da consciência matriarcal.

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No entanto, enquanto toda realização cultural criativa - ao menos em sua forma mais elevada - representa uma síntese entre as consciências matriarcal receptiva e patriarcal formativa, a dependência predominante da mulher com respeito à consciência matriarcal e sua forma de sabedoria acarreta, a despeito de seus benefícios, alguns perigos inerentes. É certamente em consonância com o espírito lunar e com o processo de crescimento que o silêncio e a percepção devem vir antes da formulação e da compreensão; mas a tendência da mulher à percepção, um dos elementos criativos da consciência matriarcal, muitas vezes de confunde com um mero naturalismo.

Na primeira fase de seu desenvolvimento, a fase de “alto afirmação” quando o feminino pode sem perigo continuar cativo da GRANDE MÃE, a consciência matriacal não percebe que é dominada pelo inconsciente. Mas, mesmo quando o ego matriarcal se conscientiza de sua existência separada, ainda adere à condição básica de sua primeira existência, que não deve ser jamais rompida. Mesmo quando o feminino, como veremos, tem que progredir da auto-afirmação para a auto-entrega, continua pretendendo um envolvimento total. Não se satisfaz nunca com a realização de uma estrutura psíquica parcial tal como uma diferenciação consciente do ego; o feminino quer que a totalidade de si mesmo seja incluída, isto, no plano espiritual ou psicológico significa realização.

No entanto, aqui a natureza da mulher costuma pregar uma peça. Em vez de perceber, ela concretiza e, através de uma projeção natural, transpões o processo criativo da gravidez para o plano externo. Isto que dizer que a mulher toma literalmente os símbolos dessa fase de consciência matriarcal. Ela ama, engravida, dá a luz, alimenta, cuida e assim por diante, e vive sua feminilidade externamente mas não no mundo interior. Essa tendência pode explicar porque suas realizações espirituais são pequenas quando comparadas com as do homem, e sua falta de produtividade criativa. Para uma mulher parece ( certa ou erradamente? ) quer ser fonte de vida na gravidez e no parto é suficientemente criativo. A consciência matriarcal está inscrita no corpo da mulher e, através deste, ela vive na realidade externa tudo o que para um homem deve ser tornar um acontecimento psicológico, se tem que ser percebido. Nesse sentido o homem, com sua desenvolvida consciência patriarcal, está uma passo à frente uma vez que a natureza lhe permite experimentar a fase matriarcal da consciência somente como um progresso espiritual, e não de forma concreta.

Como resultado, quando a humanidade é forçada a chegar a uma consciência patriarcal, como matriarcado, e com ela a Lua, tornam-se algo negativo que deve ser superado.

Qualquer desenvolvimento, em qualquer estágio, que busque a consciência patriarcal e o sol, considera o espírito lunar como o espírito da regressão, como a mãe terrível, como uma bruxa. Seja essa Lua negativa experimentada como masculina ou como feminina, é em ambos os casos um símbolo do inconsciente devorador. Especialmente enquanto Lua nova, torna-se o sugador de sangue, o matador de crianças, o comedor de carne humana, simboliza o perigo de inundação pelo inconsciente de capricho, aluamento e loucura. O verbo inglês “to moon”, estar melancólico, desperdiçar tempo, mostrar que está “ausente” pode significar estar “atraído pela Lua”, pelo perigoso magnetismo do inconsciente.

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Aqui, como sempre, surge a questão de saber qual o valor de uma fase psíquica em qualquer estágio especial de desenvolvimento. A consciência lunar ou matriarcal é criativa e produtiva no começo e no fim. A luz da lua é a primeira a iluminar o mundo escuro do inconsciente, de onde nasce a consciência e ao qual permanece ligada. E todas as coisas que são com crianças em crescimento, criativas, e femininas permanecem fiéis à sua relação com o espírito lunar.

Mas, na medida em que o desenvolvimento continua, o que foi uma progressão a partir do inconsciente torna-se uma vinculação excessiva à inconsciência. Nesse ponto o novo e superior mundo do sol entra em oposição ao mundo da Lua, como faz o patriarcado com o matriarcado, quando considerados como duas fases psicológicas. Somente em períodos posteriores de desenvolvimento, tendo o patriarcado se completado ou chegado a absurdas distâncias, perdendo sua conexão com a mãe terra, é que a individuação efetua uma reversão. Então, a consciência patriarcado solar volta-se a unir-se à fase anterior e mais fundamental, e a consciência matriarcal com seu símbolo central, a Lua, aparece das profundezas, investida do poder regenerador de suas águas primordiais, para celebrar o antigo hieros gamos da Lua e do Sol num plano novo e superior, o plano da psique humana.

Tanto para o masculino como para o feminino, a totalidade só é atingível quando, numa união dos opostos, o dia e a noite, o mais alto e o mais baixo, as consciências patriarcal e matriarcal, chegam ao seu próprio modo de produtividade e mutuamente se complementam, fertilizando um ao outro.

O Midrash judel conta que, no começo da criação o sol e a lua eram de igual tamanho, mas a lua, tendo cometido um pecado, foi diminuída e o sol tornou-se a estrela reinante do universo. No entanto, a promessa de Deus para a lua prenuncia o restabelecimento da situação original:

Então serás de novo tão grande quanto eleE a luz da lua será como a do sol.

1. Cf. Os seguintes dicionários etimológicos: Grimm, J. E W. Deutsches wörte-buch; E. Littré, Dictionnaire de la langue française; E. Boisacq, Dictionnaire etymologique de la langue grecque.

2. E. Boisacq, Dictionnaire de la langue grecque, 1916.3. Vide Parte 1 deste artigo no Eranos-Jahrbuch XVIII.

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4. Não é por acidente que a esfera das musas, isto é, dos poderes femininos que presidem a música, o rítmo e a dança, a adivinhação e tudo o que é artísticamente criativo, esteja associada através dos números 3 e 9 à Lua. (Cf. Kerenyi, Die orphissche Kosmogonie und der Ursprung der Orphik. Eranos-Jahrbuch XVII, Rascher Verlag, 1949). De maneira semelhante, são as figuras Musaios, seu filho Eumolpo e Orfeu ( Vide Bachofen, Mutterrecht, 3ª edição II, págns 849, 856 e segs.) que se tornam tão especialmente importantes para as tradições da consciência matriarcal nos mistérios Órficos e Eleusinos. Um outro exemplo é que, na China, a origem do teatro é atribuída à Lua. Um imperador que visitava a Lua, conta a Lenda, ficou tão encantado com o canto e a dança das fadas que, de volta à terra, ensinou alguns jovens a fazerem uma cópia terrestre de suas canções e posturas, criando assim o começo do teatro Chinês. (J. Bredon, Das Mondjahr, 1937, pág 420 ).

5. Vide Rudolf Otto, The Idea of he Holy. Traduzido por John W. Harvey, London: Oxford University Press. Revisto em 1929. Nota do Tradudor, pag XV ou Cap VI, “The Element of Fascination”.

6. A música não é apenas a arte específica do temporal, mas do simbolismo lunar como um todo: o conceito de tempo qualitativo, de rítmo, de fases, etc., determina sua estrutura fundamental - e de maneira alguma somente na música primitiva.

7. Erich Neumann, The Origins and History of Consciousness. Bollingen Series XLII. New York: Pantheon Books, 1954.

8. Grimm’s Fairy Tales. New York: Pantheon Books, 1944, pág 736.9. Aquí e no que se segue, o pensamento é considerado apenas o mais claro exemplo de

função diferenciada, cujo predomínio é característico da consciência patriarcal. Vide C.G. Jung, Psychological Types, traduzido por H.G.Baynes. New York: Harcourt Brace & Co., 1926, pág 611 e, do autor, Origins and History of Consciousness (particularmente a nota 7 ).

10. Caracteríscamente, diz-se muitas vezes que o tesouro “floresce”.11. Dieis, Heraklit, Fragmento 123.12. F. Nietzsche, Gesammelie Werke, Vol. XI, pág 305.13. A. Jeremias, Handbuch der altorientalischen Geisteskultur, Berlin: W. De Gruyter.

1929. Pág 240.14. C. Lerényi, Asklepios, archetypal Image of the Physician’s Existence. Traduzido por

Ralph Manheim. Bollingen Series LXV.3. New York: Pantheon Books, 1959: e C. A. Meier, Antike Inkubation und moderne Psychotherapie. Studien aus der C.G. Jung Institut. Zürich: Rascher Verlag, 1948.

15. O símbolo da prata, que pertence à Lua e, entre outras coisas ligadas à mesma, a “Idade de Prata” de Hesíodo, não será incluído nesta discussão.

16. A. Jeremias, Loc. Cit., pág 248.17. Paul Deussen, Sechzig Upanishaden. Leipzig: A.Brockhaus,1897,pag.53.18. O uroboros, por causa de sua dualidade essencial, inclui, entre outras coisas, o

masculino e o feminino, o materno e o paterno. Enquanto o uroboros feminino-maternal rege a fase psicológica do matriarcado, o masculino, no qual o lado ativamente procriativo e móvel se manifesta, conduz ao patriarcado .

19. Vide a parte 1 desse artigo, não traduzida aquí.

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20. Não totalmente sem justificativa, e certamente não sem humor, uma teoria psicanalítica de uma mulher - espécie de resposta à inveja do pênis imputada ao feminino pelo homem - diz que a realização cultural do homem é apenas uma compensação de sua incapacidade de realmente dar à luz e, portanto, se origina de certa maneira, de sua “inveja do útero”.

21. Robert Briffaut, The Mothers. New York: The Macmillan Co., 1927.22. M.J. bin Gorion, Die Sagen der juden. Frankfurt A. M.: Rutter & Loening, 1913 -

1927.