Epistemologia

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1 Abordagens Epistemológicas em Pesquisas Qualitativas: Além do Positivismo nas Pesquisas na Área de Sistemas de Informação Autoria: Eduardo Henrique Diniz, Maira Petrini, Alexandre Fernandes Barbosa, Tania Pereira Christopoulos, Heloísa Mônaco dos Santos Resumo Este artigo analisa a produção acadêmica em Sistemas de Informação (SI), que utiliza abordagens metodológicas qualitativas e apresenta uma estrutura de referência para a elaboração de projetos de pesquisa na área. Identifica-se a predominância da visão funcionalista (positivista) como pressuposto epistemológico para a realização de projetos de pesquisa em SI, negligenciando-se outras posturas, como por exemplo, a interpretativista ou a teoria crítica. O artigo aborda também o uso excessivo do método de estudos de caso nas abordagens qualitativas, realizados sem devido rigor metodológico, gerando, como conseqüência, fragilidade dos trabalhos produzidos. Com base nesse contexto, foram avaliados os artigos qualitativos premiados no ENANPAD entre 1997 e 2004, considerando os seguintes aspectos: Unidade de Análise, Postura Epistemológica, Método e Consistência da Conclusão. Conclui-se que todos os artigos analisados utilizam o método de Estudo de Casos a partir da postura epistemológica positivista, o que reforça a idéia de que há a necessidade de se ampliar as alternativas metodológicas de pesquisa adotadas na área de SI. 1. Introdução A atividade de pesquisa no campo da tecnologia de informação não tem sido tarefa fácil, a começar pela própria denominação do campo de estudo em questão, que já foi chamado de informática, sistemas de informação (SI), tecnologia de informação (TI) e, mais recentemente, tecnologia de informação e comunicação (TIC). Neste artigo será utilizada a denominação SI apenas por conveniência, o que não deve ser visto como uma preferência ou exclusão justificada. Como linha de pesquisa acadêmica, a área de SI tem se desenvolvido sistematicamente desde os anos 60. O levantamento histórico realizado por Avgerou (2000) aponta a origem da área nos estudos de “ciência da computação aplicada”. O lançamento de revistas acadêmicas, como a MIS Quarterly e a Information Systems Research, em 1977 e 1987, respectivamente, juntamente com congressos acadêmicos como o ICIS (International Conference of Information Systems) em 1980, ajudaram a consolidar academicamente a área de SI no cenário científico. No entanto, mesmo tendo surgido há cerca de três décadas e ter passado por um período de afirmação nos anos 90 (HOPPEN e MEIRELLES, 2005), pode-se dizer que a área acadêmica de SI está em plena crise. Winograd e Flores (1986) já apontavam o problema na predominância do “paradigma lógico-matemático” em pesquisas da área. Em seu já clássico trabalho Understanding Computing and Cognition, os autores alertavam que a utilização de uma nova orientação, que rompesse com a tradição racionalista da área, contribuiria significativamente para o desenvolvimento de “idéias relevantes” para a teoria de SI. A origem da área de SI, nascida e influenciada pelas escolas de engenharia e ciências da computação (LOEBEL, 2004), pode ser um dos motivos da escassez de análises críticas que incluam reflexões sociais e políticas, gerando uma lacuna nas pesquisas acadêmicas da área.

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Este artigo analisa a produção acadêmica em Sistemas de Informação (SI), que utiliza abordagensmetodológicas qualitativas e apresenta uma estrutura de referência para a elaboração de projetosde pesquisa na área.

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Abordagens Epistemológicas em Pesquisas Qualitativas: Além do Positivismo nas Pesquisas na Área de Sistemas de Informação

Autoria: Eduardo Henrique Diniz, Maira Petrini, Alexandre Fernandes Barbosa, Tania Pereira Christopoulos, Heloísa Mônaco dos Santos

Resumo Este artigo analisa a produção acadêmica em Sistemas de Informação (SI), que utiliza abordagens metodológicas qualitativas e apresenta uma estrutura de referência para a elaboração de projetos de pesquisa na área. Identifica-se a predominância da visão funcionalista (positivista) como pressuposto epistemológico para a realização de projetos de pesquisa em SI, negligenciando-se outras posturas, como por exemplo, a interpretativista ou a teoria crítica. O artigo aborda também o uso excessivo do método de estudos de caso nas abordagens qualitativas, realizados sem devido rigor metodológico, gerando, como conseqüência, fragilidade dos trabalhos produzidos. Com base nesse contexto, foram avaliados os artigos qualitativos premiados no ENANPAD entre 1997 e 2004, considerando os seguintes aspectos: Unidade de Análise, Postura Epistemológica, Método e Consistência da Conclusão. Conclui-se que todos os artigos analisados utilizam o método de Estudo de Casos a partir da postura epistemológica positivista, o que reforça a idéia de que há a necessidade de se ampliar as alternativas metodológicas de pesquisa adotadas na área de SI.

1. Introdução A atividade de pesquisa no campo da tecnologia de informação não tem sido tarefa fácil, a começar pela própria denominação do campo de estudo em questão, que já foi chamado de informática, sistemas de informação (SI), tecnologia de informação (TI) e, mais recentemente, tecnologia de informação e comunicação (TIC). Neste artigo será utilizada a denominação SI apenas por conveniência, o que não deve ser visto como uma preferência ou exclusão justificada.

Como linha de pesquisa acadêmica, a área de SI tem se desenvolvido sistematicamente desde os anos 60. O levantamento histórico realizado por Avgerou (2000) aponta a origem da área nos estudos de “ciência da computação aplicada”. O lançamento de revistas acadêmicas, como a MIS Quarterly e a Information Systems Research, em 1977 e 1987, respectivamente, juntamente com congressos acadêmicos como o ICIS (International Conference of Information

Systems) em 1980, ajudaram a consolidar academicamente a área de SI no cenário científico. No entanto, mesmo tendo surgido há cerca de três décadas e ter passado por um período

de afirmação nos anos 90 (HOPPEN e MEIRELLES, 2005), pode-se dizer que a área acadêmica de SI está em plena crise. Winograd e Flores (1986) já apontavam o problema na predominância do “paradigma lógico-matemático” em pesquisas da área. Em seu já clássico trabalho Understanding Computing and Cognition, os autores alertavam que a utilização de uma nova orientação, que rompesse com a tradição racionalista da área, contribuiria significativamente para o desenvolvimento de “idéias relevantes” para a teoria de SI.

A origem da área de SI, nascida e influenciada pelas escolas de engenharia e ciências da computação (LOEBEL, 2004), pode ser um dos motivos da escassez de análises críticas que incluam reflexões sociais e políticas, gerando uma lacuna nas pesquisas acadêmicas da área.

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Apesar do crescimento experimentado a partir da consolidação da área de SI, a definição da sua identidade tornou-se ainda mais complexa nos anos 90. Se nos EUA, a localização institucional para a área está comumente vinculada às escolas de administração, na Europa, essa institucionalização é muito mais diversificada, estando associada tanto a departamentos de ciências exatas ou de engenharia, quanto a diversos departamentos ligados às áreas das ciências sociais (AVGEROU, 2000). Essa diversidade na filiação institucional tem implicações nos rumos da pesquisa acadêmica na área.

Os múltiplos aspectos sociais, culturais e tecnológicos presentes nas pesquisas no campo de SI são decorrentes das relações entre informação, organização e pessoas e definem um caráter complexo não só na definição e delimitação do objeto de pesquisa, mas também no uso consistente de instrumentos de pesquisa padronizados. Bukland (1991) afirma que a complexidade do objeto informação leva a uma dificuldade de sua delimitação. Assim, o desenvolvimento de pesquisa qualitativa em SI requer a discussão das abordagens teórico-metodológicas que devem estar presentes na sua orientação. Essas abordagens definem a postura espistemológica do pesquisador frente ao objeto pesquisado e facilitam a criação do espaço relacional do mesmo com os objetos pesquisados. O objeto de pesquisa em si e as metodologias de pesquisa empregadas são, portanto, dois aspectos relevantes na discussão sobre pesquisa em SI. Neste artigo serão tratados apenas os aspectos relacionados à metodologia de pesquisa em SI. 1.1. Metodologias de Pesquisa em SI As questões ligadas às metodologias de pesquisa são inerentes às posturas epistemológicas adotadas pelos pesquisadores e observa-se uma predominância de questões técnicas/racionalistas nas pesquisas em SI (ORLIKOWSKI e BAROUDI, 1991; POZZEBON, 2003).

O crescente desconforto entre os pesquisadores na utilização de teorias funcionalistas, tem estimulado a busca de novas abordagens metodológicas na área (CASSEL e SYMON, 1997). A demanda por novas metodologias tem como objetivo preencher as lacunas deixadas pelas abordagens funcionalistas, as quais claramente não conseguem tratar toda a variedade de fenômenos provocados pelas TIC nas empresas e nos indivíduos, em diferentes contextos sociais e organizacionais.

Ciborra (2002) aponta que, apesar do crescente número e variedade de aplicações de TIC e a despeito da ampliação dos conteúdos, direções e tendências na disciplina de SI, o crescimento das oportunidades de pesquisa na área não é devidamente acompanhado por maior variedade de abordagens metodológicas. Embora existam diversos métodos de pesquisa qualitativos tais como: estudos etnográficos, teoria ator-rede, observação participativa, etc., estes têm sido praticamente marginalizados, em detrimento da utilização de métodos quantitativos (CIBORRA, 2002). Além disso, quando utilizam abordagens qualitativas, as pesquisas na área são restritas ao uso quase exclusivo de estudo de caso. Esse fato é agravado pela alta freqüência da escolha dos casos, apenas por conveniência, sem a necessária justificativa de sua relevância. Caldas (2005) ressalta que existe uma tendência ao uso inadequado de metodologias quantitativas a ponto de serem empregadas mesmo em situações em que o projeto de pesquisa requereria uma abordagem qualitativa.

Na área acadêmica, a pesquisa qualitativa em geral não apresenta o mesmo nível de aceitação para publicação quando comparado às pesquisas quantitativas (CHEN e HIRSCHHEIN 2004). Como resultado, predomina-se a utilização de abordagens positivistas, restringindo desnecessariamente o estudo dos fenômenos de SI, bem como suas implicações (ORLIKOWSKI e BAROUDI, 1991). De fato, metodologias muito estruturadas podem ser incapazes de capturar

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os detalhes intrincados do uso de aplicações de TIC no ambiente das empresas e na sociedade. Talvez seja o tempo de se procurar mais contemplação e menos cálculo no estudo de desenvolvimento e uso de TIC (CIBORRA, 2002), privilegiando o uso de metodologias mais flexíveis para melhorar a interação entre o pesquisador e o objeto de pesquisa. 2. Caracterização de um Projeto de Pesquisa Qualitativa Para Creswell (2003), um pesquisador deve fazer uso de uma estrutura que oriente seu projeto de pesquisa desde a identificação da postura epistemológica que fundamenta a postura filosófica do pesquisador frente ao objeto de pesquisa, até os procedimentos de coleta e análise dos dados.

Segundo Myers (2005), os itens relevantes que devem ser considerados no projeto de pesquisa são: perspectiva filosófica, métodos, técnicas de coleta de dados e modos de análise e interpretação dos dados; itens similares aos propostos por Creswell (2003).

Utilizando-se como referências as visões de Myers (2005) e Creswell (2003) apresentadas acima, elaborou-se uma estrutura de referência que trata os aspectos relevantes a serem considerados pelos pesquisadores, no desenvolvimento de seus projetos de pesquisa. A estrutura proposta (Figura 1) é composta por quatro dimensões descritas a seguir:

• Postura epistemológica: Todas as pesquisas, tanto qualitativas quanto quantitativas, fundamentam-se em pressupostos filosóficos que representam “como” o pesquisador irá aprender e “o que” ele irá aprender com o projeto. A dimensão epistemológica relaciona-se ao conhecimento e como ele pode ser obtido (HIRSCHHEIM, 1992); por exemplo, se conhecimento é algo que pode ser adquirido procurando regularidades e relações causais, como no caso da abordagem positivista, ou algo que é principalmente relativo e só pode ser entendido do ponto de vista dos indivíduos que estão diretamente envolvidos, como no caso da abordagem interpretativista. Além das abordagens positivista e interpretativista, o autor também pode adotar outras posturas, como por exemplo, uma posição epistemológica crítica.

• Método de pesquisa: Com base no posicionamento epistemológico, vários métodos de pesquisa podem ser utilizados como estratégias de investigação, que estabelecem direções específicas para os procedimentos em um projeto de pesquisa. Eles influenciam diretamente a técnica de coleta de dados a ser utilizada (MYERS, 2005). Alguns exemplos de métodos de pesquisa utilizados em abordagens qualitativas são: estudo de caso, pesquisa-ação, etnografia e grounded theory.

• Técnica de coleta de dados: Conjunto de instrumentos específicos de coleta. Em uma pesquisa pode-se utilizar uma ou mais técnicas de coleta de dados. A escolha das técnicas a serem utilizadas está relacionada às características da pesquisa como, por exemplo, a qualidade esperada dos dados coletados, custos da coleta ou o período pesquisado (STRAUB et al., 2004) e interferem nos resultados das pesquisas (STRAUB et al., 2004). As técnicas de coleta de dados normalmente compreendem entrevistas, material histórico, observação participativa e trabalho de campo.

• Modo de análise e interpretação dos dados: São as diferentes abordagens utilizadas para identificar, analisar e interpretar os dados coletados (MYERS, 2005). O processo de análise e interpretação dos dados envolve extrair significado de textos e imagens. Isso requer que os dados sejam preparados para análise, possibilitando o aprofundamento no entendimento dos dados e a interpretação abrangente de seus significados. Segundo Creswell (2003), os pesquisadores precisam conduzir a análise dos dados, orientados pelas estratégias de pesquisa adotadas. Dentre os diferentes modos de análise em pesquisas qualitativas pode-se mencionar: hermenêutica, semiótica e narrativa metafórica. Alguns autores adotam a

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Grounded Theory como um modo de análise e não como um método de pesquisa (MYERS, 2005).

Positivista Interpretativista Crítica

Pesquisa Ação

Estudo de Caso

EtnografiaGrounded

Theory

Entrevista Material Histórico

Observação Participativa

Trabalho de Campo

Hermenéutica Semiótica Narrativa

Metafórica

Posição

Epistemológica

Métodos

Modo de

Análise

Técnicas de

Coleta de

Dados

Figura 1: Estrutura de Referência para Pesquisa Qualitativa em SI (adaptado de Myers, 2005).

As dimensões apresentadas na Figura 1 relacionam-se entre si, possibilitando que os

pesquisadores utilizem métodos e técnicas de pesquisa que sejam consistentes com a postura epistemológica adotada na realização do seu projeto de pesquisa (GEPHART, 2004). Qualquer um dos métodos de pesquisa apresentados na estrutura de referência proposta pode ser aplicado dentro de uma das três posturas epistemológicas consideradas: positivista, interpretativista ou crítica (KLEIN e MYERS, 1999).

Enquanto a posição epistemológica e o método de pesquisa fornecem a base teórica e são os direcionadores da postura adotada pelo pesquisador, a técnica de coleta de dados e o modo de análise são as dimensões que operacionalizam a postura escolhida. As próximas seções exploram as duas primeiras dimensões da estrutura de referência: a postura epistemológica e, para cada postura, o método de pesquisa, entrando com ênfase no método do Estudo de Caso, uma vez que este apresenta maior incidência na área de SI (HOPPEN e MEIRELLES, 2005).

3. Posturas Epistemológicas Encontram-se variações consideráveis quando se procura classificar posturas epistemológicas, ou pressupostos filosóficos, adotados pelos pesquisadores. O estudo de pressupostos filosóficos é uma tarefa reflexiva que orienta pesquisadores no seu trabalho de investigação.

Em seu clássico trabalho, Burrell e Morgan (1979) apresentam quatro paradigmas relacionados a diferentes posturas epistemológicas: funcionalista, interpretativista, humanista radical e estruturalista radical, sendo que o paradigma funcionalista é baseado na suposição de que a sociedade tem existência concreta e real, e um caráter sistêmico orientado para produzir um sistema ordenado e regulado; o interpretativista é baseado na visão de que a realidade social não existe em qualquer sentido concreto, mas é um produto da experiência subjetiva e intersubjetiva dos indivíduos; o humanista-radical enfatiza como a realidade é socialmente construída e sustentada, vinculando sua análise ao interesse no que pode ser descrito como patologia da consciência, por meio da qual os seres humanos se tornam aprisionados nos limites de realidade

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que eles mesmos criam e sustentam; e a realidade definida pelo paradigma estruturalista radical é baseada na visão da sociedade como uma força potencialmente dominante, e é ligada a uma concepção materialista do mundo social, definido por estruturas sólidas e concretas (BURREL e MORGAN, 1979; CALDAS, 2005; MORGAN, 2005).

Para Creswell (2003) os pressupostos filosóficos que o pesquisador adota frente ao objeto de pesquisa referem-se a quatro posturas epistemológicas: pós-positivista, construtivista, ativista/participatória e pragmatista. Na postura pós-positivista o conhecimento é entendido como conjectural. Na postura construtivista, os significados são socialmente construídos. O ativismo compreende pesquisas que consideram as necessidades de indivíduos e/ou grupos marginalizados e também apresentam uma agenda política. Na abordagem pragmática o conhecimento emerge de ações, situações e conseqüências; há uma preocupação com aplicação – “o que funciona” – e soluções para os problemas.

Gephart (2004) apresenta uma concepção simplificada abordando três perspectivas utilizadas em pesquisas qualitativas: positivismo/pós-positivismo, interpretativismo e pós-modernismo crítico. O positivismo adota uma posição de realismo e confia no pressuposto de um mundo objetivo externo à mente. O pós-positivismo afirma que a realidade somente pode ser conhecida probabilisticamente. Ambos buscam descobrir a verdade ou a realidade verdadeira. O objetivo do interpretativismo é compreender a produção real dos significados e conceitos usados por atores sociais no local onde eles interagem. O pós-modernismo crítico combina teoria crítica e pensamento pós-moderno. A pesquisa crítica adota um pressuposto realista, histórico, que a construção da realidade é moldada pelos valores sociais, econômicos e políticos que cristalizam e tornam-se reificados com o passar do tempo.

Schwandt (1994), em seu trabalho sobre as abordagens construtivista e interpretativista de investigação humana, detalha o que há em comum entre essas duas perspectivas. Para o autor, as duas abordagens compartilham o objetivo de entender o complexo mundo das experiências vividas do ponto de vista daqueles que as vivenciam; diferem na visão do propósito de tal investigação e de como o mundo da ação humana é conhecido.

A seguir são apresentadas posturas epistemológicas que, segundo Chen e Hirschheim, 2004 e Walsham, 1995a, são freqüentemente utilizadas no campo de SI. Essa visão está alinhada à classificação utilizada por Orlikowski e Baroudi (1991), que estimulam a reflexão sobre o uso de abordagens em pesquisa alternativas à predominante abordagem positivista. 4. As Diferentes Abordagens Epistemológicas e o Estudo de Caso 4.1 Abordagem Positivista A abordagem epistemológica positivista busca a objetividade e neutralidade em direção a um conhecimento positivo da realidade a partir de uma perspectiva metodológica claramente definida para a explicação do objeto de pesquisa. Desta forma, a perspectiva epistemológica positivista é fortemente caracterizada pela visão determinista, racional e cartesiana sobre os fatos da realidade. Podem-se identificar como características marcantes dessa abordagem, a separação excludente entre pesquisador e o objeto de pesquisa e a valorização excessiva do método em detrimento da abordagem teórica e interpretativista.

Para Myers (2005), os positivistas assumem que a realidade é um dado objetivo e pode ser descrita por propriedades mensuráveis que são independentes do observador. Portanto, o rigor metodológico nessa abordagem deve traduzir exatidão, universalidade e independência do

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pesquisador. Neste contexto, o rigor metodológico deve ser explicitado na apresentação do problema de pesquisa, na abordagem metodológica, na apresentação dos resultados e na discussão final.

Segundo Orlikowski e Baroudi (1991), a abordagem positivista tem raízes no positivismo lógico e reflete cinco percepções na análise do objeto de pesquisa:

• O fenômeno de interesse é único, tangível e passível de ser fragmentado;

• O pesquisador e o objeto de pesquisa são independentes e existe uma clara demarcação entre a observação e as afirmações teóricas;

• Afirmações verdadeiras, generalizações independentes de tempo e contexto são aplicáveis e implicam em conceitos científicos precisos com significados fixos e invariantes;

• Existência de relações de causa e efeito reais e unidirecionais, que podem ser identificadas e testadas através de uma análise seguindo a lógica hipotética-dedutiva;

• A investigação é livre de valor.

4.1.1. O Estudo de Caso na Abordagem Positivista A estratégia de pesquisa utilizando abordagem positivista, comumente encontrada em pesquisa qualitativa na área de SI, é o estudo de caso, como apresentado por Yin (2001) e Benbasat et al. (1987). Para Benbasat et al. (1987), o estudo de caso é adequado para os problemas de pesquisas no campo de SI por apresentar duas particularidades: a pesquisa e a teoria estão em um estágio inicial de formação, e os problemas de pesquisa são baseados na prática em que atores e o contexto da ação são críticos para a análise dos mesmos. Sob essa ótica, os resultados da pesquisa dependem fortemente do poder de integração do investigador.

Segundo Benbasat et al. (1987), existem três razões principais para a adoção do estudo de caso como estratégia de pesquisa:

• O pesquisador pode estudar os problemas de SI em seu ambiente natural, aprender sobre o estado da arte e generalizar teorias a partir da prática;

• O pesquisador pode responder perguntas do tipo “como” e “por quê”, de forma a compreender a natureza e complexidade do problema de pesquisa; e

• É uma forma apropriada para pesquisar problemas sobre os quais poucos estudos prévios tenham sido realizados.

Para Yin (2001), a estratégia de pesquisa utilizando estudo de casos é adequada quando o

foco de pesquisa está em fenômenos contemporâneos inseridos no contexto da vida real e quando o pesquisador detém baixo ou nenhum nível de controle sobre os mesmos. Yin (2001) aponta também que a condução de estudos de caso como estratégia de pesquisa pode assumir uma visão pluralista envolvendo diferentes propósitos: exploratório, descritivo ou explanatório. A estrutura proposta por Yin (2001) inclui: planejamento, definição do problema de pesquisa, unidades de análise, coleta de dados e evidências e métodos de análise de dados e evidências.

Embora não exista um padrão para a realização de estudos de casos, a abordagem positivista prevê que o processo de pesquisa seja linear, cuidadosamente concebido, ordenado e executado sem falhas ou erros e isomórfico às premissas do leitor. Em oposição à abordagem interpretativista que se baseia na premissa de que indivíduos utilizam formas simbólicas tais como idéias e conceitos para dar significado e para estruturar suas experiências sociais, na

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abordagem positivista os pesquisadores não consideram na pesquisa o entendimento do significado dessas experiências sociais contextualizadas a partir da construção social da realidade, como apresentado por Berger e Luckman (1990).

4.2 Abordagem Interpretativista O interpretativismo tem o objetivo de entender o mundo do ponto de vista daqueles que o vivenciam. Nessa abordagem, o objeto de pesquisa é entendido como construído socialmente pelos atores. Atores moldam significados a partir de eventos e fenômenos através de processos complexos e longos de interação social. Essa abordagem pressupõe que para compreender o mundo o pesquisador deve interpretá-lo. Preparar uma interpretação é também construir uma leitura desses significados, é oferecer a construção do pesquisador a partir da construção dos atores em estudo (SCHWANDT, 1994).

Orlikowski e Baroudi (1991) consideram como estudos interpretativistas, aqueles que apresentam evidências de uma perspectiva não determinista; na qual a intenção do pesquisador é ampliar seu entendimento sobre o fenômeno em situações contextuais e culturais; onde este é examinado em seu local de ocorrência e a partir das perspectivas dos participantes; e na qual os pesquisadores não impõem a priori seu entendimento de alguém “de fora” da situação.

No campo de SI, observa-se um crescente interesse pelo paradigma interpretativista. Walsham (1995a), concluiu que há uma quantidade de trabalhos sólidos adotando essa abordagem em pesquisas que estudam projetos de sistemas, intervenção organizacional e gestão de TI, implicações sociais da TI, trabalho cooperativo com o apoio de TI e inteligência artificial.

4.2.1. O Estudo de Caso na Abordagem Interpretativista A estratégia de pesquisa comumente adotada nessa abordagem é o estudo de caso em profundidade, envolvendo visitas freqüentes ao campo, por um longo período de tempo. Walsham (1995b) estudou os aspectos filosóficos e teóricos da natureza dessa estratégia e apresentamos a seguir suas principais conclusões.

Com relação ao uso da teoria em estudos interpretativos, Walsham (1995b) observou que existem três formas distintas: a teoria tem o papel de guia inicial para o projeto de pesquisa; é parte de um processo iterativo de coleta e análise de dados; ou é produto final da pesquisa. Na fase inicial, a teoria apóia a criação de um framework que considera o conhecimento prévio e embasa a abordagem empírica; como parte de um processo iterativo, as teorias inicialmente adotadas podem ser expandidas, revisadas ou abandonadas, como resultado de um processo iterativo de coleta e análise dos dados; e a teoria pode ser o resultado final da investigação, expressa em conceitos, em um framework conceitual, em proposições ou em uma teoria.

O pesquisador pode assumir dois papéis principais em um estudo de caso interpretativo: ser um observador externo ou um observador envolvido, sendo que em ambos a subjetividade do pesquisador está presente. O mérito do papel de observador externo é que ele é visto como alguém que não tem um interesse pessoal nas várias interpretações e resultados; e a desvantagem é que este pesquisador não estará presente em muitas ocasiões e não terá uma impressão direta do campo; pode também não ter acesso a documentos por ser alguém “de fora”. Já o observador envolvido tem o mérito de obter uma visão de alguém “de dentro”, mas a desvantagem de ser percebido como alguém que tem um interesse pessoal nas várias visões e atividades é o fato de poder alterar o comportamento das pessoas envolvidas com a pesquisa (WALSHAM, 1995b).

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Segundo Yin (2001), as evidências de um estudo de caso interpretativo provêm de seis fontes: documentos, registros arquivados, entrevistas, observação direta, observação participativa e artefatos físicos. No entanto, a entrevista é a técnica de coleta de dados mais importante, tanto no caso de um observador externo como no caso de um envolvido, e a questão chave para todos os entrevistadores é procurar equilibrar uma postura entre a passividade exagerada e o direcionamento excessivo (WALSHAM, 1995b).

O aspecto generalização dos resultados do estudo de caso interpretativo também foi abordado por Walsham (1995b). Para o autor, os resultados nessa estratégia de pesquisa não são invariantes no tempo e no espaço; e, portanto, devem ser considerados como tendências. São explicações de um fenômeno particular, geradas a partir de pesquisa empírica interpretativa em um local específico, que pode ser útil no futuro em outras organizações e contextos. Há quatro tipos de generalizações a partir de estudos de caso interpretativos: desenvolvimento de conceitos, geração de teoria, delineamento de implicações específicas e contribuição através de um “insight rico”.

4.3 Abordagem Crítica A teoria crítica é o nome dado a uma escola de pensamento, originada nos anos 30, com um grupo de pesquisadores associados ao Instituto de Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt. O grupo original era formado por Max Horkheimer, Adorno, Fromm e Marcuse.

Essa escola criticou o cientificismo por sua inabilidade em lidar com a teoria social e por seu apelo restrito à razão instrumental, como forma de justificar as ações. Segundo os teóricos da teoria crítica, a teoria tradicional não era hábil suficiente para compreender a realidade social em seu todo porque separava o domínio do conhecimento do domínio da ação e o observador da avaliação, quando tentava responder às próprias cisões nas quais se baseava (conhecimento, ação, ciência, valor, etc.). Essas cisões eram, então, tomadas como dadas e não como produtos históricos de uma formação social. Ao ignorar que todo o conhecimento é historicamente determinado e mutável no tempo, a teoria tradicional permanece na superfície dos fenômenos, incapaz de conhecer suas reais conexões com a realidade social (NOBRE, 2004).

Para impor freios à razão instrumental, Habermas (1979; 1999) formula a teoria da ação, que discute a racionalidade comunicativa. Em contraste com a racionalidade instrumental dirigida à produção de condições materiais de vida e que permitem a reprodução da sociedade, a ação do tipo comunicativo é orientada para o entendimento e não para a manipulação e encontra-se inscrita nas relações sociais contemporâneas. Ela reflete a forma social do capitalismo contemporâneo, em que a ação é orientada para o entendimento no processo de formação da identidade dos indivíduos, nas instituições e nos processos de aprendizado e de constituição da personalidade.

A ação comunicativa se caracteriza por pressupor ausência de assimetrias de poder e de condições sociais entre os sujeitos que pretendam se entender. À medida que esse potencial comunicativo nunca se realiza, evidenciam-se condições não cumpridas e a necessidade de emancipação.

Klein e Lyytinen (1985) argumentam que a contribuição de Habermas para a pesquisa na área de SI pode ser utilizada para classificação das pesquisas existentes na área ou para apoiar a elaboração de um enfoque mais abrangente.

O modelo da ação social de Habermas permite que sejam abordados e compreendidos outros enfoques para a Teoria de Sistemas de Informações, que não somente o da teoria tradicional, baseado na ação instrumental, como um meio para auxiliar a organização a alcançar

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seus objetivos, influenciando as respostas dos membros das organizações (KLEIN e LYYTINEN, 1985). Outros enfoques podem ser vistos:

• Na abordagem da Ação Estratégica, que analisa os SI como um instrumento para suportar o processo de alteração de controle e coordenação dentro das organizações;

• Na abordagem da Ação Comunicativa, passível de análise durante a fase de desenvolvimento dos sistemas; e

• Na Ação Discursiva, verificada quando são realizados esforços para se tentar legitimar racionalmente uma ação de mudança.

A seleção do enfoque a ser utilizado dependerá do que Habermas denomina de Teoria de

Interesses do Conhecimento, pois, qualquer teoria de ação social pressupõe uma teoria do conhecimento. O autor classifica a pesquisa em três tipos de interesse do conhecimento: técnico, prático e emancipatório. O primeiro aplica-se a experimentos controlados e relaciona-se à ação instrumental, o segundo preocupa-se com a compreensão do significado dos textos e das ações dos indivíduos e o conhecimento emancipatório relaciona-se à preocupação com a existência de liberdade, comunicação aberta e condições que permitam sua ocorrência. Sua proposta é a emancipação do ser humano da dominação social e intelectual e a emergência da maturidade intelectual.

Para Bernstein (1976), o emancipatório seria o conhecimento fundamental, pois uniria os outros dois, provendo meios para investigar como se relacionam, uma vez que lida com aspectos substantivos e normativos da vida. Com isso, as pesquisas ficam restritas às bases do conhecimento técnico. Para Klein e Lyytinen (1985) o grande problema decorrente da restrição da pesquisa às bases do conhecimento técnico é que se perde a perspectiva do desenvolvimento de sistemas como um processo de ação comunicativa e os usuários são vistos como produtores de informação. Consequentemente, poucos métodos são desenvolvidos, tendo como foco o apoio do compartilhamento e da diversidade de opiniões e problemas que surgem nos projetos.

Outro problema é que os objetivos da implementação dos projetos de tecnologia são pouco valorizados. Não se questionam quais são os fins e há simplesmente uma preocupação com os meios, já que prevalece a racionalidade instrumental.

Para Ludmer et al. (2002), citado por Loebel (2004), a teoria crítica contribui com a geração do conhecimento emancipatório, que consiste na realização de análise crítica e dialética, a partir de pressupostos teóricos e práticos. Aplicada aos sistemas de informação, tem como finalidade questionar os valores e pressupostos correntes sobre SI e tecnologias decorrentes da gestão, implementação e utilização nas organizações.

4.3.1. O Estudo de Caso na Abordagem Crítica Os métodos de pesquisa associados ao conhecimento emancipatório são coincidentes com aqueles recomendados por Creswell (2003) como sendo apropriados aos estudos qualitativos. O estudo de caso é um desses métodos, uma vez que possibilita trabalhar com a evolução histórica do contexto, com a participação dos indivíduos e com a construção do significado, por meio da comunicação sem pressupor, necessariamente, a separação entre ação e observador.

O estudo de caso como estratégia de pesquisa na teoria crítica deve ser produto de uma abordagem que trate o objeto de pesquisa a partir de uma perspectiva de interação, com o pesquisador tomando partido manifestamente, uma vez que os resultados deverão servir para

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novas interações. A reflexão deve ser, portanto, produto de uma observação que considere o observador como parte do problema e permita-lhe capturar detalhes do contexto e do caso específico. É, portanto, uma estratégia de pesquisa que permite a abordagem subjetiva do pesquisador, respaldada por evidências empíricas, encontradas no caso.

Além do aspecto da interação entre objeto e pesquisador, o estudo de casos, na teoria crítica, tende a respeitar uma abordagem dialética, direcionando-se para perspectivas que enfatizam as contradições existentes na estrutura organizacional ou distorções de procedimentos racionais, oriundos de ações políticas, orientadas por interesses.

Segundo Benson (1977), a realização de análise dialética, produto gerado com base na teoria crítica, é uma maneira de explicar o fundamento empírico das teorias das organizações convencionais porque lida com processos sociais que as teorias convencionais em geral ignoram.

Outro aspecto que diferencia o estudo de caso na abordagem dialética é o tratamento dos arranjos sociais com um enfoque que privilegia a não permanência e que, segundo Loebel (2004), focaliza uma disputa contínua de forças opostas que ajudam a explicar a persistência e a mudança.

As bases dessa teoria estão em Hegel, mas Benson (1977) considera as bases do materialismo dialético de Marx para desenvolver sua concepção de análise dialética, considerando a organização como um fenômeno concreto e multi-nivelado, cercado por contradições que enfraquecem continuamente suas características explícitas.

5. Análise de Artigos Premiados do Enanpad A metodologia para realização deste estudo foi a de levantamento documental, com fins exploratórios, de todos os artigos da divisão acadêmica “Administração da Informação”, do Encontro da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração (ENANPAD), que foram premiados ou receberam menção honrosa no período de 1997 a 2004. O ENANPAD é considerado a principal referência para os trabalhos acadêmicos em Administração no Brasil.

Na divisão acadêmica “Administração da Informação”, do ENANPAD, foram premiados ou receberam menção honrosa no período de 1997 a 2004, um total de 16 artigos; sendo que 8 deles apresentam uma abordagem qualitativa ou mista em seus projetos de pesquisa, com forte presença da abordagem funcionalista/positivista. Foram selecionados os artigos considerados qualitativos ou de abordagem mista (qualitativos/quantitativos) e os seguintes tópicos analisados:

• Unidade de Análise: se os autores identificam claramente o objeto de pesquisa e se o problema/pergunta de pesquisa está explicitamente declarado.

• Postura Epistemológica: a postura epistemológica que orienta o trabalho: positivista, interpretativista ou teoria crítica. O critério para esta classificação foi baseado no conteúdo descrito na seção 4.

• Método: tipologia do método empregado: estudo de caso, pesquisa ação, etnografia, grounded

theory etc; e

• Consistência da Conclusão: alinhamento da conclusão com o objeto de pesquisa, postura epistemológica e método.

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A análise dos artigos foi conduzida por cinco pesquisadores que atuam no campo de SI em uma mesma instituição acadêmica, com níveis de experiências de pesquisa diversas. Num primeiro momento, os pesquisadores realizaram a análise individualmente e, posteriormente, as análises individuais foram confrontadas em discussões conjuntas. A partir desta discussão entre os pesquisadores, foi possível observar os seguintes aspectos sobre os artigos analisados:

• Unidade de Análise: Apenas três artigos explicitam claramente o problema de pesquisa. Os demais artigos são vagos neste propósito, a ponto de não ser possível um consenso entre os pesquisadores sobre quais os problemas de pesquisa associados aos artigos analisados.

• Postura Epistemológica: Embora nenhum dos artigos analisados explicite suas posturas epistemológicas, a partir da análise dos objetivos, das conclusões e das referências teóricas apresentadas, foi possível classificar dois artigos como apresentando uma postura positivista. Os demais artigos analisados apresentam elementos associados a mais de uma postura epistemológica. Acredita-se que essas situações não representam exemplos das abordagens multi-método (CRESWEEL, 2003) e/ou metatriangulação (LEWIS e GRIMES, 2005), e revelam inconsistências metodológicas relacionadas à pouca reflexão sobre o assunto.

• Método: O estudo de caso foi o método de pesquisa escolhido pelos autores em todos os artigos analisados; porém, essa definição não é acompanhada, em alguns deles, por um embasamento teórico relacionado ao método e razões da sua escolha, comprometendo seu rigor metodológico e consistência. Muitos dos artigos analisados colocam o leitor na situação de não saber como as categorias ou os temas foram definidos a partir dos dados, como as decisões chave foram tomadas no processo de pesquisa e a origem das conclusões apresentadas; em alguns casos, os achados parecem não se fundamentar nos dados. É importante destacar, como já comentado anteriormente, que os pesquisadores devem ser explícitos quanto a seus objetivos e métodos, independentemente da abordagem adotada – qualitativa, quantitativa ou mista, apresentando a metodologia de forma definida e explícita. Avaliando artigos do Academy of Management Journal, Gephart (2004) também verificou que poucos artigos apresentavam a metodologia de forma definida e explícita.

• Consistência Metodológica: Em apenas dois dos artigos analisados a questão de pesquisa está explicitada, havendo casos em que o objetivo não é suportado pela conclusão final. A falta da questão de pesquisa compromete não somente a qualidade do artigo como dificulta o seu entendimento.

6. Discussão O fato dos pesquisadores, que desenvolveram esta análise, concluírem que as questões de pesquisa não estão explícitas na maioria dos artigos analisados sinaliza uma questão importante. Creswell (2003) afirma que a apresentação do problema de pesquisa é a colocação mais importante de todo o projeto de pesquisa; ele orienta o leitor sobre a questão central do estudo e, a partir dela, seguem todos os demais aspectos da pesquisa.

Todos os artigos avaliados apresentam elementos de um pressuposto positivista, apesar da postura epistemológica não ficar clara em muitos deles. Parte desta situação pode estar relacionada ao resultado da análise de Avgerou (2000), sobre as plataformas teóricas que exercem mais influência na pesquisa em SI. A autora afirma que a teoria de sistemas e o racionalismo organizacional, que estruturam a fundamentação positivista, são as plataformas

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mais influenciadoras na área. Entretanto alguns dos artigos analisados envolvem aspectos sociais e culturais, cujo tratamento não pode ser suportado adequadamente pelaa fundamentação positivista. A falta de clareza com relação a este ponto pode ser ilustrada com o exemplo de um dos artigos, no qual os autores buscaram apoio na teoria interpretativista, mas, incoerentemente, produziram um trabalho “metodologicamente” positivista. Gephart (2004) afirma que em se tratando das pesquisas qualitativas publicadas no Academy of Management Journal, muitas delas não apresentam relevâncias para publicação porque são trabalhos isolados ou não fazem parte de um projeto ou programa de pesquisa mais amplo. O autor acredita que artigos que provêm de programas amplos e contínuos de pesquisa tendem a produzir insights mais interessantes, visto que os pesquisadores podem endereçar múltiplas questões, ter volume de dados para análise e uma estrutura de suporte, para garantir as sucessivas revisões, comumente necessárias para aceitação de artigos em periódicos. No caso do Brasil, cabe uma análise dos nossos programas de pesquisa em SI, considerando as plataformas teóricas que os fundamentam, visto que parte dos problemas relatados na pesquisa desenvolvida neste artigo pode estar associada a esse tipo de isolamento mencionado por Gephart (2004).

A predominância da visão positivista limita “quais” aspectos do fenômeno de sistemas de informação são estudados e “como” são estudados. Esse fato traz implicações não somente ao desenvolvimento da teoria, mas também à prática de sistemas de informação. Os achados das pesquisas em SI são filtrados pela comunidade e utilizados como recomendações de como agir; isto é, a pesquisa tem conseqüências (ORLIKOWSKI e BAROUDI, 1991). Essa questão nos remete ao aspecto relevância de um projeto de pesquisa, resultado da composição de sua relevância teórica e prática. A adoção de uma visão exclusiva limita as possibilidades de pesquisa, afetando a relevância dos projetos em SI e, porque não dizer, a relevância do campo como um todo. Sobre a predominância absoluta de estudos de caso entre os artigos analisados, pode-se dizer que, no geral, há pouca preocupação na justificativa do método e dos casos escolhidos. Essa situação é um indício de que sua aplicação não tem sido em geral, criteriosa, indicando que o uso intenso de estudos de caso, pode estar mais associado à falta de conhecimento de outras estratégias de pesquisa do que a uma opção consciente por esse método.

Chen e Hirschheim (2004) argumentam que a utilização em grande número de estudos de caso sinaliza que os autores, além de engajados em trabalhos empíricos, estão preocupados em identificar como os fenômenos evoluem. Uma premissa para essa argumentação é considerar que o estudo de caso, conduzido em um período ininterrupto, revela melhor os detalhes do fenômeno sob investigação. Mesmo assim é de se estranhar que não exista nenhum artigo de abordagem qualitativa que não utilize outro método que não seja o estudo de caso nos artigos analisados.

A conclusão de um artigo deve ser a parte da pesquisa onde os autores retornam as suas questões de pesquisa ou objetivos para explicar como suas questões foram respondidas e como seus objetivos foram alcançados. Nesse ponto devem ser descritas as contribuições que o artigo oferece ao campo (GEPHARDT, 2004). O alinhamento da conclusão com o objetivo de pesquisa, postura epistemológica e método não predomina entre os artigos analisados. Dessa forma, outros pesquisadores terão dificuldade para identificar as contribuições dos referidos artigos e, conseqüentemente, para fazer uso dos mesmos nos debates que participam, isto é, citá-los em seus trabalhos. Essa situação não contribui para a evolução do campo de pesquisa em SI.

Mesmo que o espaço de um artigo seja limitado, os pesquisadores devem se esforçar para que o leitor seja capaz de identificar o caminho metodológico seguido pelo autor e a consistência de suas conclusões.

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7. Comentários Finais Pode-se especular que a crise evidenciada na área de SI nada mais é do que reflexo de uma crise relacionada aos pesquisadores, às instituições acadêmicas, e até à ciência como um todo. Neste artigo, procurou-se abordar aspectos que contribuem para apoiar o processo reflexivo dos pesquisadores em relação à postura epistemológica, norteadora da escolha dos métodos de pesquisa e, por meio da análise dos artigos premiados, pretendeu-se demonstrar sintomas claros dessa crise.

Orlikowski e Baroudi (1991) afirmam que os “métodos e pressupostos de pesquisa não são estudados e aplicados em um vacuum”. São influenciados pelo programa de pesquisa onde os projetos estão inseridos; pelas agendas de orientadores respeitados e experientes; pelos critérios de contratação e promoção das instituições acadêmicas; pelas políticas de instituições financiadoras; pelas regras de acesso negociadas com os locais no campo; e pelas orientações para publicação dos periódicos acadêmicos. Os autores recomendam que pesquisadores em posições menos privilegiadas quanto ao seu poder para atuação, estejam conscientes da influência de cada um desses elementos ao definirem suas filosofias de pesquisa, de modo que suas escolhas sejam conscientes e com riscos avaliados. Para pesquisadores em posições mais privilegiadas, a consciência desses elementos pode diminuir o persistente viés relacionado aos estudos positivistas. A partir de 2005, o ENANPAD passou a segmentar a Divisão Acadêmica “Administração da Informação”, em quatro áreas temáticas, sendo uma delas “Metodologia e Análise de Informação”. A descrição desta área contempla uma série de aspectos e dentre eles metodologias de pesquisa, e concepção e implementação de pesquisas. Trata-se de uma iniciativa que, se fortalecida pela comunidade, poderá conduzir a um debate que certamente contribuirá para a evolução do campo.

Outro aspecto interessante é destacado por Teixeira Júnior (2002), que em sua análise dos métodos de pesquisa utilizados em artigos de Administração da Informação nos ENANPADs de 1999 a 2001, constatou a predominância da pesquisa qualitativa (55,26%) nos artigos pesquisados; contrastando com 15,79% de artigos que apresentam a abordagem quantitativa e 28,95% que apresentam a abordagem mista, isto é, tanto qualitativa como quantitativa no mesmo artigo.

Comparando os dados de Teixeira Júnior (2002) com a análise desenvolvida neste artigo, observa-se que neste mesmo período, de 1999 a 2001, embora exista a predominância da abordagem qualitativa, nenhum artigo premiado ou que recebeu menção honrosa foi estritamente qualitativo: apenas um deles é classificado como misto e os demais, como quantitativos.

O objetivo deste artigo, mais do que evidenciar a crise existente na área de SI, é estimular a reflexão sobre as implicações das abordagens de pesquisa adotadas pelos pesquisadores, contribuindo para difundir abordagens menos exploradas. Cabe ressaltar que essas questões não são exclusivas do campo de SI e outras áreas também enfrentam os mesmos desafios. Gatti (2005), ao discutir as mesmas questões abordadas neste artigo, mas focando o campo da Educação, alerta que os pesquisadores devem estar atentos para o fato de que a abordagem qualitativa não deve dispensar rigor e consistência.

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