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Elza Márcia Targas Yacubian Epilepsia e Estigma

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Elza Márcia Targas Yacubian

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Elza Márcia Targas Yacubian

Livre-Docente em Neurologia

Unidade de Pesquisa e Tratamento das Epilepsias

Universidade Federal de São Paulo, Escola Paulista de Medicina

Epi leps iae

E s t i g m a

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Epilepsia e EstigmaCopyright © 2010 – Elza Márcia Targas Yacubian

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Todos os direitos desta edição reservados a:Casa Leitura Médica

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E-mail: [email protected]

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Yacubian, Elza Márcia Targas.

Epilepsia e Estigma / Elza Márcia Targas Yacubian.– São Paulo : Casa Leitura Médica, 2010.

BibliografiaISBN 978.85.61125.42 - 4

1. Epilepsia 2. Doença 3. Diagnóstico I. Yacubian, Elza Márcia Targas II. Título

CDD 616.8

Índice para catálogo sistemático:1. Epilepsia: Medicina

Impresso no Brasil2010

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Prefácio

A sociedade valoriza o controle social e a previsibilida-de de seus indivíduos. Reconhece suas diferenças ou des-vios e os rotula como estigma aplicando regras e sanções a estes. A palavra estigma é derivada do latim stigmat, que significa “marca” ou “rótulo” e do grego stizein, “tatuar”, impingir um sinal infamante, de inaceitabilidade social, o qual, na Antiguidade, era aplicado com ferro em brasa ao corpo de escravos ou criminosos fugitivos.

A subitaneidade e a imprevisilibidade das crises epi-lépticas surpreendem os que as observam, os quais an-tecipam um suposto perigo advindo delas pela perda do controle e liberação de instintos primitivos. Os últimos extrapolam as normas sociais de comportamento, repre-sentando ameaça à ordem social, o que torna a epilepsia um distúrbio médico estigmatizante por excelência.

A vida e obra de Machado de Assis (1839-1908), o maior escritor brasileiro, é o retrato da sociedade de sua época e dos conceitos científicos de seu século e nelas é possível desvendar o enorme estigma relacionado à

raça, à pobreza e à epilepsia no Rio de Janeiro do sécu-lo XIX, quando as ideias positivistas do italiano Cesare Lombroso permeavam a nascente neuropsiquiatria bra-sileira. Provavelmente, a documentação da epilepsia em Machado de Assis, por meio dos seus escritos, dos seus contemporâneos e das suas cartas, seja única, permitindo a compreensão dos conceitos científicos e do estigma da epilepsia àquela época.

A resolução do estigma nos dias atuais passa pela compreensão de sua origem.

Elza Márcia Targas YacubianSão Paulo, 2010

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Índice

Prefácio _______________________________________________________________________________________ 03

A epilepsia no século XIX _______________________________________________________________________ 07

Origens do pensamento médico no Brasil do século XIX ______________________________________________ 07

Médicos lombrosianos no Brasil ___________________________________________________________________ 23

Raimundo Nina Rodrigues ____________________________________________________________________ 23

Juliano Moreira ______________________________________________________________________________ 25

Júlio Afrânio Peixoto _________________________________________________________________________ 31

A neuropsiquiatria brasileira no século XIX _________________________________________________________ 33

Epilepsia e alienação mental.Representações na literatura brasileira _____________________________________________________________ 33

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Preconceito contra um brasileiro deste tempo.Estigma na vida e obra de Machado de Assis _______________________________________________________ 37

Vida e obra _________________________________________________________________________________ 37

Epilepsia. Representações na vida ______________________________________________________________ 43

Epilepsia. Representações na obra _____________________________________________________________ 53

Memórias Póstumas de Brás Cubas, capítulo VII, O Delírio _______________________________________ 54

Memórias Póstumas de Brás Cubas, capítulo XLI, A Alucinação ___________________________________ 57

“Verba Testamentária”, Papéis AvulsosNicolau B. de C. __________________________________________________________________________ 59

Quincas Borba, capítulo XLVII _______________________________________________________________ 60

Suave mari magno _________________________________________________________________________ 62

Epilepsia. Representações nas cartas ____________________________________________________________ 64

Os missivistas _____________________________________________________________________________ 64

Bibliografia ____________________________________________________________________________________ 77

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Fotografia do edifício da Faculdade de Medicina da Bahia antes do grande incêndio de 1905.

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A epilepsia no século XIX

Era o século XIX, época em que a Neurologia emer-giu como uma disciplina distinta da Psiquiatria e que teve entre seus grandes marcos o delineamento dos conceitos fisiopatogênicos das bases atuais das crises epilépticas, o reconhecimento e a distinção dos fenômenos epilép-ticos menores e a descoberta do brometo, o primeiro medicamento eficaz no controle das crises epilépticas. Século em que teve início a abordagem mais humanitária para o problema social das pessoas com epilepsia com o estabelecimento de “colônias” ou “asilos” visando a tratamento e emprego de indivíduos com todos os tipos de doenças mentais, entre elas a epilepsia. As “colônias” ofereciam repouso, brometo e eram uma forma de se-gregação, afastando das famílias o embaraço e o descon-forto da epilepsia. Essas instituições permitiram aos alie-nistas o uso de dados estatísticos em estudos de grande número de casos, possibilitaram cuidadosas correlações anatomoclínicas que culminaram com a compreensão das bases etiológicas e fisiopatogênicas das epilepsias e, finalmente, o conhecimento funcional do sistema nervo-so e sua desestruturação em estados patológicos.

Os conceitos atuais da epilepsia foram finalmente

reconhecidos quando o inglês John Hughlings Jackson (1835-1911), em seu “Estudo sobre as Convulsões”, afir-mou que “uma convulsão é apenas um sintoma e implica somente uma descarga excessiva e desorganizada do teci-do nervoso sobre os músculos. Essa descarga ocorre em todos os graus, em qualquer condição mórbida, em todas as idades e em inumeráveis circunstâncias...”1.

Na comemoração do centenário dessa afirmação, a epilepsia ainda pode ser resumida como 4 mil anos de ignorância, superstição e estigma, seguidos pelos atuais 100 anos de conhecimento, superstição e estigma2.

Origens do pensamento médico no Brasil do século XIX

A Medicina brasileira teve início com a inauguração por D. João VI, em 1808, logo após a chegada da família real portuguesa ao Brasil, da Faculdade de Medicina da Bahia, fundada em 18 de fevereiro de 1808, quando da passagem pela Bahia da Corte Portuguesa e da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, criada pelo príncipe re-gente, por decreto de 5 de novembro de 18083.

A princípio albergados nos hospitais da Irmandade

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Franz Joseph Gall (1758-1828).

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das Santas Casas que abrigavam, mais do que tratavam os enfermos com distúrbios psiquiátricos, a doença mental passou a ser considerada um problema médico no Brasil, nas comunidades urbanizadas de Salvador e do Rio de Janeiro, nas quais esses doentes eram visíveis e perturba-dores, exigindo a instituição de estabelecimentos médi-cos voltados para a sua recuperação. Para tanto, fazia-se necessário o conhecimento numa época em que não se dispunha de nenhum dos fármacos psicotrópicos que muito mais tarde possibilitariam o tratamento efetivo das enfermidades mentais.

Os conceitos neuropsiquiátricos no Brasil tiveram origem na frenologia, teoria de Gall de 1796, que se tor-nou muito popular. Segundo a frenologia, as faculdades morais e intelectuais do homem eram inatas e sua ma-nifestação era dependente da organização anatômica do cérebro que deixava impressões na tábua óssea craniana. Pelo exame das protuberâncias do crânio, poder-se-ia de-duzir a predominância de tal ou qual faculdade mental e, daí, o caráter ou as aptidões do indivíduo. Surgiram dessa forma a craniologia e a antropometria4, 5, 6.

Da mesma forma, na época do Brasil colonial, acre-ditava-se que um fator biológico de natureza hereditária desempenharia um papel maior também na etiologia dos

Uma das ilustrações de Franz Gall usando números para mostrar a localização das faculdades mentais.

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transtornos mentais, pensamento de Morel, dominante nas ciências médicas internacionais. Nascido em Viena de pais franceses, o psiquiatra Bénédict Augustin Morel (1809-1873), na sua obra Traité des Dégénérescences Physi-ques, Intellectuelles et Morales de L’espèce Humaine, propôs, em 1857, o conceito de degenerescência. Segundo essa teoria, um tipo primitivo perfeito sofreria um processo de decadência gradual e progressiva, não apenas biológi-ca, mas também moral e comportamental. Na elaboração desse conceito, Morel teve a influência de sua experiência nos anos iniciais de sua vida, quando estudou o cretinismo endêmico nos cantões alpinos suíços, concluindo que a degeneração poderia ser congênita ou adquirida, completa ou incompleta, susceptível à melhora ou incurável e, mais tarde, estendeu esses conceitos a inúmeras condições físi-cas, morais e também a hábitos sociais6.

Traços degenerados como taras, vícios e traços mór-bidos adquiridos pelos antecessores seriam transmitidos à descendência. A proposição de Morel, que passou a maior parte de sua infância em um internato religioso, era fortemente impregnada de uma perspectiva religiosa católica. O homem teria sido criado, perfeito, por Deus; a origem da imperfeição humana, do sofrimento e da existência do mal seria decorrente do pecado original 7. À

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Bénédict Augustin Morel (1809-1873).

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Charles Darwin (1809-1882).

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medida que esses estigmas fossem sendo transmitidos através das gerações, seus efeitos tenderiam a se acentu-ar, levando à completa desnaturação daquela linhagem, chegando até a sua extinção pela esterilidade. Em decor-rência dessa teoria, foram desenvolvidos muitos projetos de intervenção social de cunho higienista, de modo a im-pedir a propagação da degeneração da raça.

Ainda nessa época, surgiram as publicações de Charles Darwin (1809-1882), A Origem das Espécies (1859), A Descen-dência do Homem e Seleção em Relação ao Sexo (1871) e A expres-são das Emoções no Homem e nos Animais (1872). Segundo tais obras o princípio da seleção natural determina quais mem-bros da espécie têm mais chance de sobreviver. A cada ge-ração, a característica favorável torna-se mais pronunciada e mais difundida nas espécies. Com o passar dos séculos, a seleção natural elimina as espécies primitivas e produz no-vas5. Hoje, sobrevivem ainda poucas espécies das que habi-tavam a Terra, havia 10 milhões de anos, mas apareceram muitas outras, entre elas os seres humanos. Os homens se-riam produtos da seleção natural. A teoria darwinista abalou profundamente as concepções religiosas e filosóficas então vigentes. De repente, o homem já não era mais o centro da criação. Ele descendia de animais e tinha ancestrais primiti-vos representando apenas uma estrutura orgânica tornada

mais apta pelo acaso, ambiente e luta pela sobrevivência. Suas ideias sobre evolução e seleção natural influencia-

ram o pensamento das ciências naturais, provendo uma nova visão do comportamento e emoções do homem e dos animais, dando origem à eugenia, termo cunhado em 1883 por seu primo Francis Galton (1822-1911), sig-nificando “bem nascido”. Galton definiu eugenia como o estudo dos agentes sob o controle social que podem me-lhorar ou empobrecer as qualidades étnicas das futuras ge-rações, seja física, mentalmente. O movimento eugênico viria a dominar a ciência e a medicina no início do século XX e foi a base para a legislação que determinava a es-terilização de “defeituosos” inicialmente introduzida nos Estados Unidos e depois em vários países europeus. Em 1914, o modelo de Harry Laughlin, nos Estados Unidos, propôs a Lei de Esterilização do Modelo Eugênico Ame-ricano que autorizava a esterilização dos “socialmente inadequados”, indivíduos institucionalizados ou depen-dentes de recursos públicos, e englobava os “deficientes mentais, insanos, criminosos, epilépticos, alcoólatras, enfermos, cegos, surdos, deformados e dependentes”, bem como os “órfãos, indivíduos de má reputação, va-gabundos, mendigos e indigentes”8. Em 1924, cerca de 3 mil pessoas haviam sido esterilizadas involuntariamente

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Cesare Lombroso (1835-1909).

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nos Estados Unidos. Por outro lado, alguns pensadores sociais aplicaram as conclusões darwinianas à ordem so-cial, produzindo teorias que as transferiram à explicação dos problemas sociais. As expressões “luta pela existên-cia” e “sobrevivência do mais capaz” foram tomadas de Darwin para apoiar a defesa que faziam do individualis-mo econômico e favoreciam o imperialismo, o racismo, o nacionalismo e o militarismo.

Também no Brasil, enquanto a escola médica baiana buscava na compreensão do cruzamento étnico o enten-dimento dos nossos problemas sociais, no Rio de Janeiro se dava ênfase às doenças tropicais, como a febre amarela e o mal de Chagas. Os estudos dessa época culminariam com a extensão da medicina aos tribunais e a criação da disciplina de Medicina Legal e da figura do perito, um es-pecialista cujo olhar não recaía sobre o crime, mas sobre o criminoso. Estava criada a base para o desenvolvimento, nos anos de 1930, do Movimento Eugênico Brasileiro9.

Contemporâneo de Charles Darwin, Cesare Lombroso (1835-1909) nasceu em Verona, Itália, em 1835, e graduou-se em Pavia, em 1858. Profissionalmente, foi médico, e intelectualmente, um filósofo. Como Morel, Lombroso iniciou sua vida científica escrevendo uma tese sobre o cretinismo endêmico na Lombardia. Ulteriormente, esteve

no sul da Itália como oficial médico do exército na Guerra Austro-Italiana de 1859, em que havia soldados de toda a Itália, o que lhe permitiu delinear um mapa etnoantropo-lógico da população italiana. Mais tarde, trabalhando em asilos e prisões, examinou milhares de indivíduos e aplicou seus métodos de análises a doentes mentais e criminosos.

Em 1863, retornou à Universidade de Pavia, onde se tornou seu primeiro professor de doenças mentais. Em 1865, orientou, certamente influenciando sua voca-ção para as neurociências, o graduando Camillo Golgi (1843-1926), Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia de 190610. Transferiu-se mais tarde para a Universidade de Turim como professor de Psiquiatria e Antropologia Cri-minal e, em 1876, publicou suas ideias no livro L’Uomo Delinquente (O Homem Deliquente), que teve cinco edições, empregando a contribuição das ideias evolucionistas de Charles Darwin para o comportamento criminoso numa abordagem descendente direta da frenologia de Gall11, 12.

À época de Cesare Lombroso, a ideia dominante na criminologia era a chamada Escola Clássica de Direito Penal, que teve em Cesare Beccaria (1738-1794) seu pro-positor mais importante. Segundo a Escola Clássica, o delito era uma infração à lei e ao pacto social, base do Estado e do direito. A ela não interessava a etiologia do

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O criminoso como um indivíduo geneticamente determinado para o mal, por razões congênitas; ele não é totalmente vítima das circunstâncias sociais e educacionais desfavoráveis, mas sofre pela tendência atávica e hereditária para o mal 11.

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delito e o crime era consequência da vontade livre e cons-ciente do autor, que mereceria uma pena como castigo justo por seu comportamento reprovável, voluntário e consciente. Opondo-se a essa teoria, Lombroso criou a Escola Positiva do Direito Penal e introduziu conceitos científicos no estudo do criminoso e os alicerces da mo-derna criminologia. Segundo a escola positivista, a gêne-se do delito estaria nas condições ambientais, na necessi-dade social e nas condições individuais físicas e psíquicas do infrator.

Na quarta edição de O Homem Delinquente, Lom-broso definiu o conceito de atavismo (do latim atavus, “quarto avô”), que consiste no reaparecimento, em um descendente, de um caráter não presente em seus ascendentes imediatos, mas, sim, em remotos11. Essas características seriam expressas fisicamente por prog-natismo, crânios menores e deformados, curva nasal, fronte fugidia, orelhas protrusas, pele, olhos e cabelos escuros. Além delas, braços longos, gosto por tatua-gens e insensibidade cutânea, entre outras.

Raças “inferiores” eram consideradas prognáticas, como os chimpanzés e outros simianos. Em 1872, Lom-broso havia publicado o livro intitulado Gênio e Loucura e nele a teoria de que o gênio era ligado à loucura, que re-

presentariam duas faces da mesma realidade psicobioló-gica. O homem genial seria um degenerado cuja “loucura” seria uma compensação evolutiva do seu desenvolvimento intelectual excessivo. Em 1897, ano em que presidiu a ses-são dedicada à doença mental no Congresso Médico de Moscou, Lombroso visitou Leon Tolstoi na sua proprie-dade Yasnaya Polyana, esperando comprovar no eminente escritor russo os sinais atávicos que atestariam sua presun-ção de que “quanto mais doente o corpo, mais sublime seu produto”. No entanto, constatou que fisicamente nada havia de degenerado no escritor, o qual, por sua vez, rejei-tou a teoria antropológica de Lombroso, considerando-a imoral e seu autor, um homem ingênuo e limitado13.

Lombroso ainda estendeu seu estudo às prostitutas, pesquisando em postos policiais, prisões e asilos, nos quais estudou as características físicas delas, como a ca-pacidade craniana, as tatuagens e seus comportamentos sexuais, para definir a personalidade da mulher crimi-nosa. O delinquente nato de Lombroso também incluía os negros e os africanos considerados selvagens, e, por-tanto, modelos do delinquente-nato11. Na conceituação da degeneração, concluiu mais tarde que a interrupção do desenvolvimento psíquico daria origem a um delin-quente racional e lógico, sem sinais físicos, porém com

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Leon Tolstoi (1828-1910).

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graves defeitos ou transtornos nos seus princípios mo-rais, denominando esse delinquente de insano moral ou atávico moral. Por fim, em sua caracterização do crimino-so, estendeu sua observação à agressividade explosiva do epiléptico, distinguida por traços peculiares como reli-giosidade, impetuosidade, agilidade, canibalismo, irasci-bilidade e instintos animais. Indivíduos cujos traços de personalidade poderiam ser resumidos nesta afirmação do final do século XIX: “Estes pobres epilépticos que se encontram em todos os asilos, tendo no bolso o livro de missa, no lábio o santo nome de Deus, e um mundo de perversidade no coração...”14.

O positivismo, doutrina filosófica, sociológica e po-lítica criada pelo francês Auguste Comte (1798-1857), na qual se baseava a teoria de Lombroso, teve também outras fortes influências no Brasil, onde sua representa-ção maior foi o emprego da frase positivista “Ordem e Progresso”, extraída da fórmula máxima dessa corrente filosófica: “O amor por princípio, a ordem por base, o progresso por fim”, na bandeira brasileira. A frase sugere a imagem de que cada coisa em seu devido lugar condu-ziria à perfeita orientação ética da vida social.

Havia necessidade de comprovar a degeneração do epiléptico, pois o Positivismo exigia rigor científico em

Retratos de epilépticos. Entre essas fotografias de epilépticos, Lombroso identificou os números 1, 2, 6 e 12 como criminosos natos. L’uomo delinquente, edição 4 11.

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Representação do córtex frontal de um paciente com epilepsia segundo

Luigi Roncoroni. Observe a ausência de camada granular e a distribuição anárquica dos neurônios piramidais.

Alguns grandes neurônios, distribuidos no córtex dislaminado apresentam perda

da orientação dos dendritos apicais15.

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todas as suas afirmações, as quais foram realizadas em estudos antropológicos, sociais, estatísticos, neurofisio-lógicos e também patológicos. Dados como os de Luigi Roncoroni, aluno de Lombroso, que, em 1896, publicou um estudo histopatológico dos cérebros de 25 epilép-ticos comparando-os aos de 19 criminosos e aos de 12 indivíduos normais de um grupo controle encontrando em 13 espécimes do lobo frontal dos primeiros “neu-rônios piramidais gigantes em meio a células polimórfi-cas...”, aos quais se referiu como “expressões anatômicas de uma alteração hereditária...”. E ainda a presença de células nervosas em meio à substância branca, “uma in-dicação de interrupção do desenvolvimento”15.

Roncoroni concluiu que “esta alteração, encontra-da apenas em indivíduos com epilepsia congênita...”, e nunca nos espécimes cerebrais de criminosos e de in-divíduos saudáveis do grupo controle, representava, em seres humanos, “um distúrbio do desenvolvimento do sistema nervoso...”. As bases morfológicas da insanidade epiléptica pareciam documentadas. Ao longo do século, verificar-se-ia que a epilepsia era um distúrbio de muitas etiologias; entre estas, confirmando as ideias de Ronco-roni e da escola lombrosiana, uma causa frequente era o distúrbio do desenvolvimento embrionário do córtex

cerebral. Em 1971, um grupo de pesquisadores ingleses liderados por Taylor descreveu esse distúrbio de migra-ção cerebral em dez pacientes submetidos à cirurgia de epilepsia por crises refratárias ao tratamento medica-mentoso16. Esses achados, os quais passaram a ser refe-ridos como “displasia cortical tipo Taylor”, no entanto, haviam sido originalmente descritos por Roncoroni em 1896, em uma revista de antropologia criminal italiana. Por outro lado, estudos atuais de ressonância magnética do encéfalo de indivíduos com epilepsia confirmam que, conforme a sugestão original de Roncoroni, esse tipo de distúrbio do desenvolvimento cortical predomina nos lo-bos frontais, os lobos cerebrais que desempenham papel central no controle emocional e na personalidade15.

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Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906).

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Médicos lombrosianos no Brasil

Raimundo Nina Rodrigues

Raimundo Nina Rodrigues, nasceu no Maranhão e foi médico legista, psiquiatra, professor e antropólogo tendo exercido sua carreira científica como professor de Medi-cina Legal na Faculdade de Medicina da Bahia. Original-mente membro da chamada Escola Tropicalista Baiana, grupo de médicos dedicados ao estudo da etiologia das doenças tropicais em classes desfavorecidas, Nina Rodri-gues desenvolveu estudos anatomopatológicos sobre o beribéri e a lepra, mas logo se interessou pela biosso-ciologia brasileira, segundo a qual as características bio-lógicas eram determinantes do comportamento social, e introduziu em nosso meio a antropologia patológica baseada nos conceitos de Cesare Lombroso. Foi um dos introdutores da antropologia criminal, da antropometria e da frenologia no país. Em 1899, publicou Mestiçagem, Degenerescência e Crime, procurando provar suas teses so-bre a degenerescência e tendências ao crime dos negros e mestiços. Os demais títulos publicados também não dei-

xam dúvidas sobre seus objetivos: Antropologia Patológica: os Mestiços, Degenerescência Física e Mental entre os Mestiços nas Terras Quentes. Para ele, o negro e os mestiços se constitu-íam na causa da inferioridade do Brasil.

Na Bahia, entre seus trabalhos, Nina Rodrigues e Sá de Oliveira fizeram o exame craniométrico de Antônio Conse-lheiro, líder do movimento de Canudos no interior da Bahia (1896-1987) e, no capítulo “A loucura epidêmica de Canu-dos” de seu livro As Coletividades Anormais, descreveu que “o crânio de Antônio Conselheiro não apresentava nenhuma anomalia que denunciasse traços de degenerescência: é um crânio de mestiço, onde se associam caracteres antropológi-cos de raças diferentes”. Apesar dessa conclusão, Nina Rodri-gues não teve dúvidas de escrever sua teoria sobre o contágio do delírio de Antônio Conselheiro nos jagunços de Canudos. “Em Canudos representa de elemento passivo o jagunço que corrigindo a loucura mística de Antônio Conselheiro e dando-lhe umas tinturas das questões políticas e sociais do momento criou, tornou plausível e deu objeto ao conteúdo do delírio, tornando-o capaz de fazer vibrar a nota étnica dos instintos guerreiros, atávicos, mal extintos ou apenas sofrea-dos no meio social híbrido dos nossos sertões de que o louco como os contagionados são fiéis e legítimas criações. Ali se chocavam de fato, admiravelmente realizadas, todas as condi-

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O corpo de Antônio Conselheiro exumado em 6 de outubro de 1897.Ele havia morrido aos 67, no dia 22 de setembro, provavelmente de causas naturais.Esta fotografia de Flávio de Barros é a mais conhecida e publicada da Guerra de Canudos.

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ções para uma constituição epidêmica da loucura” 17. A escola de Lombroso floresceu em várias partes do

mundo, e, no Brasil, exerceu influência decisiva na forma-ção do pensamento neuropsiquiátrico nacional, inclusive em relação à epilepsia. A definição do epiléptico como uma caricatura do crime é função da associação lombrosia-na entre epilepsia e crime. As ideias de Nina Rodrigues, professor de Medicina Legal, cognominado por Lombro-so de Apóstolo da Antropologia Criminal – assumidas ou criticadas, mas sempre consideradas referência para as dis-cussões sobre o tema –, abriram espaço no pensamento médico na Faculdade de Medicina da Bahia e se difundi-ram entre seus discípulos ilustres, como Juliano Moreira e Afrânio Peixoto. Estes últimos atuaram como agentes multiplicadores do debate sobre os argumentos de Lom-broso na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, onde formaram ou influenciaram os que os sucederam.

Juliano Moreira

Juliano Moreira (1873-1933), baiano de Salvador, é frequentemente designado como fundador da disciplina psiquiátrica no Brasil. Sua biografia justifica tal eleição:

mulato, de família pobre, extremamente precoce, ingres-sou na Faculdade de Medicina da Bahia aos 13 anos, graduando-se aos 18 em 1891, com a tese “Sífilis ma-ligna precoce”18. Mais tarde se especializou na Europa com Hitzig, Virchow, entre outros, ficando conhecido por suas inovações no tratamento dos doentes mentais. No século XIX, o consenso dominante era o de que a mestiçagem exagerada do povo brasileiro promoveria a degeneração da raça. Ideias evolucionistas naquele sé-culo afirmavam a supremacia das raças e apregoavam que a presença de negros e índios e os fatores climáticos dos trópicos eram os verdadeiros causadores das doen-ças, incluindo-se entre elas os distúrbios mentais. Numa posição absolutamente minoritária para a época, Juliano Moreira rejeitou o caráter absoluto da hereditariedade e do atavismo como responsáveis pelos problemas médi-cos e sociais no Brasil. Apontou como causas das de-generações nervosas a ignorância, o alcoolismo, a sífilis, as verminoses e as condições sanitárias e educacionais precárias do país e desafiou outro pressuposto comum à época, de que existiriam doenças mentais próprias dos climas tropicais. Atribuindo os conceitos lombrosianos ao preconceito moral contra a mestiçagem, Juliano Mo-reira afirmava que era preciso abandonar os ridículos

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Juliano Moreira (1873-1933).

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preconceitos de cores e castas e realizar um “trabalho de higienização dos povos”. Seus conflitos teóricos com o médico legista Nina Rodrigues na Escola de Medici-na da Bahia foram marcantes. Embora Nina Rodrigues tenha contribuído profundamente para o entendimen-to da miscigenação na sociedade brasileira, manteve-se sempre amarrado às ideias evolucionistas dominantes, das quais era o propagador nos meios científicos nacio-nais e internacionais. Segundo estas, a mistura de raças era prejudicial à formação de um país e a negritude, um traço de inferioridade. Ao final de 1902, Juliano Moreira licenciou-se na Faculdade de Medicina da Bahia e viajou para ao Rio de Janeiro para participar do ato de embal-samamento do cadáver do Professor Manuel Vitorino, médico baiano renomado e Vice Presidente da República à época de Prudente de Moraes (1894-1898) de quem sempre se declarou um admirador e discípulo. Não mais voltaria à terra baiana. Dias depois de sua chegada, Ro-drigues Alves (1848-1919) tomou posse como Presiden-te da República (1902-1906), inaugurando uma nova era no Rio de Janeiro. Homem de visão, fez um governo de grandes reformas. Na sua gestão, o Barão do Rio Branco fez sua estreia como Ministro das Relações Exteriores, por meio do Prefeito Pereira Passos transformou a anti-

ga Capital Federal e o sanitarista Oswaldo Cruz promo-veu uma revolução no país com a obrigatoriedade da va-cinação. Amigos desde os tempos de estudantes, Afrânio Peixoto viajou com Juliano Moreira, vindo ao Rio pen-sando em prestar concurso para professor substituto da Seção de Higiene e Medicina Legal na Faculdade local. Em 25 de março de 1903, Juliano Moreira, pouco depois de completar trinta anos de idade, foi nomeado Diretor do Hospital Nacional de Alienados na capital federal, an-tigo Hospital D. Pedro II, cargo que exerceu até 1930, mudando a história da Saúde Mental no Brasil com sua vasta experiência internacional, desde seu retorno da Eu-ropa em 189618, 19. A importância de Juliano Moreira nos cenários científicos nacional e internacional foi marcan-te. Como Diretor do Hospital Nacional dos Alienados, representou o Brasil em congressos médicos na Euro-pa e no Japão. Em 1907, na cidade de Milão, no Con-gresso de Assistência a Alienados, foi eleito Presidente Honorário e indicado pela maioria dos congressistas a orador na sessão de encerramento. Desde então, passou a fazer parte do Instituto Internacional para o Estudo da Etiologia e Profilaxia das Doenças Mentais e foi um dos 46 presentes quando da fundação da Liga Internacional contra a Epilepsia no dia 30 de agosto de 1909, no Hotel

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Lista dos presentes no encontro da International Commission for the Study of the Causes of

Mental Diseases and Their Prophylaxis, precursora da International League against

Epilepsy, em Viena, em 1908.Entre elas, a de Juliano Moreira, também presente

no encontro de fundação da InternationalLeague against Epilepsy, em Budapeste, em 29 de

agosto de 1909 8, 20, 21.

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Júlio Afrânio Peixoto (1876-1947).

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Bristol, em Budapeste8, 20.Júlio Afrânio Peixoto

Na elaboração dos conceitos da nascente Escola de Neu-ropsiquiatria Brasileira, o baiano Júlio Afrânio Peixoto exer-ceu influência fundamental. Sua tese à Faculdade de Medicina e de Pharmacia, da Universidade da Bahia, intitulada Epilepsia e Crime (1897)22, despertou, pela erudição e conceitos expedi-dos, grande interesse nos meios científicos do país e do exte-rior, sendo mesmo louvada por alguns dos mais renomados psiquiatras internacionais como Morselli, Féré, Benedickt, Toulouse, Tarde, Ferri, Bombarda, e pelos seus mestres Nina Rodrigues e Juliano Moreira, que promoveram e prefaciaram a reimpressão do trabalho no ano seguinte23.

Essa tese teve como conclusões, entre outras: “A herança capitaliza e amplia as viciações degenerativas; a degeneração congênita é a maior etiologia da epilepsia, que é a mais here-ditária das moléstias; a prole do epiléptico é necessariamente a herdeira opulenta de sua degeneração. Este motivo deve levar a sociedade a impedir o casamento de epilépticos; o epilép-tico pode ser dotado de talento, de gênio até, mas uma vez que a degeneração evolva seguindo sua marcha aniquilado-ra, fatalmente a intelectualidade desaparecerá num processo demencial”; e ainda: “A personalidade do epiléptico torna-o propenso ao crime” 22.

Tese “Epilepsia e Crime”, de Júlio Afrânio Peixoto, defendida em 1897 na Faculdade de Medicina e de Pharmacia da Bahia 22.

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Hospital Nacional de Alienados, c. 1890, por Marc Ferrez 24.

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A neuropsiquiatria brasileira no século XIX

Uma das maiores preocupações médicas no Rio de Ja-neiro, nas primeiras décadas do século XIX, era a con-dição de insalubridade dos porões da Santa Casa de Mi-sericórdia que serviam de alojamento para os alienados. Ainda, a caracterização e o tratamento da alienação mental traduzidos pela sanção em 1841 por D. Pedro II, no ano de sua coroação, da criação de um hospício na cidade do Rio de Janeiro que seria construído por meio de subscri-ções públicas. Atendendo aos desejos do imperador para que o hospital fosse instalado na enseada de Botafogo, foi comprado um sítio na Praia Vermelha, sendo inaugurado em 5 de dezembro de 1852, dez anos após o início da construção, com o nome de Hospital D. Pedro II. Era o maior e mais belo edifício da América Latina, o primeiro asilo para alienados do Brasil. Funcionou como hospital psiquiátrico modelar, sempre citado com admiração por visitantes leigos e médicos, sendo inicialmente ligado ad-ministrativamente à Santa Casa de Misericórdia. Em 15 de fevereiro de 1890, foi criada a Colônia de Alienados da Ilha do Governador e, em 11 de novembro de 1890, o Hospício de D. Pedro II teve o nome trocado para Hospi-

tal Nacional de Alienados e foi desanexado da Santa Casa da Misericórdia. Com o afastamento da sua mantenedora, o hospital entrou em decadência e, só em 1903, foi salvo da falência, quando teve Juliano Moreira como seu dire-tor entre 1903 e 1930, o grande reformador da psiquiatria brasileira, que fez uma profunda reformulação no hospi-tal. Esse foi um período glorioso, no qual se testemunhou um extraordinário progresso científico com a introdução da doutrina kraepeliana do organicismo da psiquiatria e, com ela, a criação de laboratórios de neuropatologia e a instituição da punção lombar que passou a ser realizada no Brasil para o diagnóstico de neurossífilis. Ao mesmo tempo, houve a instituição da humanização nos distúrbios neuropsiquiátricos com a eliminação das grades e das ca-misas de força e a implementação de oficinas artísticas e da terapia ocupacional 3, 19.

Epilepsia e alienação mental. Representações na literatura brasileira

A literatura de uma época espelha as preocupações de sua sociedade. Como em Os Sertões, de Euclides da Cunha, a

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Euclides da Cunha (1866-1909). Militar, engenheiro, jorna-lista, republicano apaixonado, Euclides da Cunha está entre os

escritores que interpretaram e definiram o Brasil. Ainda que eivada dos conceitos da época – sobretudo os relacionados ao

determinismo racial - sua obra-prima Os Sertões é pioneira ao retratar as diferenças entre o Brasil urbano e o agreste, uma tese

“dos dois Brasis”. Assassinado em 1909, o corpo de Euclides foi examinado pelo médico e escritor Afrânio Peixoto, que também

assinou o laudo e viria mais tarde a ocupar a sua cadeira na Academia Brasileira de Letras.

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obra que inaugura o naturalismo/realismo de caráter cientí-fico no Brasil e retrata sua visão sobre a guerra de Canudos (1896-1897) no interior da Bahia, para a qual foi enviado como correspondente de guerra para a quarta e última ex-pedição. O cientificismo de Euclides era emprestado do “darwinismo social”, que propunha a tese de superioridade de raça, o conceito de raça ultrapassando o campo da bio-logia, estendendo se à cultura e à política, desvirtuando ou “adaptando” as teorias darwinistas no que fosse mais con-veniente, utilizando o que combinava e descartando o que era problemático para a construção de um argumento racial no país. Quando desembarcou na Bahia para cobrir a Guer-ra de Canudos, Euclides da Cunha pensava defender a re-pública contra um levante bárbaro e monarquista, mas logo percebeu que a guerra, que, à primeira vista, tinha como razões aparentes o fanatismo religioso, o messianismo e o sebastianismo sertanejos, tinha como razões profundas o latifúndio, o coronelismo, a servidão, o isolamento cultural e a dureza do meio. E assim exprimiu o pensamento domi-nante de sua época em Os Sertões: “A mistura de raças mui diversas é, na maioria dos casos, prejudicial. Ainda quan-do reaja sobre o produto o influxo de uma raça superior, despontam vivíssimos estigmas da inferior. A mestiçagem extremada é um retrocesso. O indo-europeu, o negro e o

brasílio-guarani exprimem estádios evolutivos que se fron-teiam, e o cruzamento, sobre obliterar as qualidades pree-minentes do primeiro, é um estimulante à revivescência dos atributos primitivos dos últimos. De sorte que o mestiço -- traço de união entre as raças, breve existência individual em que se comprimem esforços seculares -- é, quase sem-pre, um desequilibrado”25. E ainda ao descrever o Coronel Antônio Moreira César, o comandante epiléptico da terceira expedição na Guerra de Canudos (1896-1897), no interior da Bahia 26. “Tinha o temperamento desigual e bizarro de um epiléptico provado, encobrindo a instabilidade nervosa de doente em placidez enganadora. Entretanto, não raro, a sua serenidade partia-se rota pelos movimentos impulsivos da moléstia, que somente mais tarde, mercê de comoções violentas, se desvendou inteiramente nas manifestações fí-sicas dos ataques. E se pudéssemos acompanhar a sua vida, assistiríamos ao desdobramento contínuo do mal, que lhe imprimiu, como a outros sócios de desdita... a curva inflexí-vel em que o arrebatava a fatalidade biológica”.

Na obra de seu contemporâneo, o escritor carioca Machado de Assis (1839-1908), são recorrentes os temas dos sonhos e delírios, doenças mentais e personalidades anormais. No conto “O Alienista”, publicado no volume Papéis Avulsos, de 1882, ele faz uma contundente crítica

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Machado (1865), aos 26 anos.

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ao cientificismo da segunda metade do século XIX. Seu principal personagem, o doutor Bacamarte, com suas teorias acerca da loucura, além de simbolizar a fragilidade das certezas científicas, é, também, indiscutivelmente, numa dimensão humana universal, o símbolo de nossas perma-nentes incertezas. Se o cientista, com seu aporte especial, vive num mundo de dúvidas, de buscas permanentes, o que se dizer então do homem comum desprovido desse cabedal? Para Machado de Assis, a alienação é mais impor-tante do que o alienista e o escritor usa toda a sua ironia, todo o seu sentimento profundo de desamparo e o desejo de ver mais bem curado o território descurado da loucura em Simão Bacamarte e na Casa Verde 27. Do “alienista”, dr. Simão Bacamarte “pensava que a loucura fosse uma ilha, mas é um continente” e sua obsessão pela ideia de ex-perimentar - e justificar todos os seus excessos como um benefício ao futuro da ciência - uma crítica machadiana ao cientificismo predominante no século XIX e ao siste-ma de classificação dos “insanos” que também ocorreu de forma exaustiva naquela época. Na ficção de Machado, tal sistema é impiedosamente ironizado: “Furiosos e mansos e suas subclasses, monomanias, delírios, alucinações di-versas”; “Os alienados foram alojados por classes. Fez-se uma galeria de modestos; isto é, os loucos em quem pre-

dominava esta perfeição moral; outra de tolerantes, outra de verídicos, outra de símplices, outra de leais, outra de magnânimos, outra de sagazes, outra de sinceros, etc.”

Este é o pensamento psiquiátrico brasileiro no Rio de Janeiro do século XIX, dominado pelas ideias positivis-tas do italiano Cesare Lombroso, calcadas na concepção hereditária da loucura, propondo a higienização e disci-plinaridade da sociedade, e a existência de uma hierarquia social em cujo ápice estava a raça ariana e na base, a raça negra. A essa última se juntava o caráter antropológico do epiléptico, marcado por degeneração moral e tendên-cia a comportamento impulsivo e imprevisível em seus períodos de obnubilação da consciência.

Preconceito contra um brasileiro deste tempo. Estigma na vida e obra de Machado de Assis

Vida e obra

Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908), o maior escritor do Brasil, tido pela crítica como um dos maiores do mundo, teve uma origem improvável. De físico miúdo, mulato, pobre, gago, sem estudo regular, com crises epilépticas provavelmente iniciadas a partir

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Carolina Machado de Assis (1835-1904).Quando Machado de Assis estava com 28 anos, chegou ao Brasil

a portuguesa Carolina Augusta Xavier de Novais, pois um dos irmãos da moça, o poeta satírico Faustino Xavier de Novais,

amigo de Machado de Assis, se encontrava gravemente enfermo. Por essa conexão se conheceram. Culta, quatro anos mais velha,

Carolina logo encantou Machado. Aos 34 anos, idade consi-derada, na época, avançada para casar, os dois realizaram a

cerimônia de casamento em 12 de novembro de 1869, antes de completado o terceiro mês da morte de Faustino.

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dos 30 anos, filho de um pintor de paredes descendente de escravos alforriados e de uma lavadeira açoriana, ele é considerado pelo crítico norte-americano Harold Bloom uma “espécie de milagre” 28. Mas, é claro, havia nessa fórmula algo maior do que o preconceito racial. Havia talento genuíno, a rara matéria-prima que Machado de Assis distribuiu em praticamente todos os gêneros literá-rios a partir dos 16 anos de idade. No início da carreira, foi tipógrafo e revisor de provas.

Aos 30, casou-se com Carolina, mulher portuguesa, fina e inteligente, com quem viveria feliz por 35 anos.

Aos 34 anos, Machado de Assis foi designado ofi-cial da Secretaria da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, sendo promovido a postos sucessivos, por mérito e dedicação ao trabalho.

O escritor Machado de Assis iniciou sua carreira literária como poeta. Contribuiu durante toda a sua carreira com textos para jornais, nos quais comentou os mais variados assuntos da vida cotidiana do Rio de Janeiro e do país. Como crítico, sua produção infindá-vel envolveu ensaios teóricos.

Entre 1872 e 1878, começou a publicar romances, mas antecipando alguns temas e procedimentos de suas obras-primas realistas e, principalmente, conquis-

tando um público leitor que já receberia sua revolução realista com boa vontade. O realismo é a mais impor-tante fase da carreira de Machado de Assis e nela se destacam três obras-primas:

O romance Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) apresenta a vida inútil e desperdiçada do anti-herói Brás Cubas. Machado surpreende a cada página com sua ironia cortante e, acima de tudo, com sua inte-ligência. É a autobiografia do anti-herói Brás Cubas o narrador, que após a sua morte resolve escrever as suas memórias. O defunto Brás Cubas começa suas memórias com uma dedicatória que antecipa a ironia presente em todo o livro: “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico com sau-dosa lembrança estas Memórias Póstumas”.

Em Quincas Borba (1891), Machado de Assis narra, na terceira pessoa, as desventuras do ingênuo Rubião, herdeiro da fortuna e do cachorro do enlouquecido personagem Quincas Borba, que já aparecia, e morria, no livro anterior. Por meio dessa personagem, cômica no seu despreparo para as armadilhas da corte, e trági-ca no seu destino, Machado ao mesmo tempo ironiza e demonstra as teorias darwinistas tão caras aos na-turalistas. O ensandecido “humanitismo” de Quincas

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Machado de Assis, aos 45 anos, por Marc Ferrez.

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Borba, herdeiro direto da “luta pela vida” de Darwin, é sintetizado na seguinte frase: “Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas”.

Dom Casmurro (1900) é um dos livros da literatura brasileira mais traduzidos para outros idiomas. Apre-senta algumas das personagens mais complexas da li-teratura universal. Narrado pelo velho Bento Santiago, apelidado Dom Casmurro, apresenta a história de seu relacionamento – namoro, casamento e afastamento – com Capitu, com seus emblemáticos olhos de ressaca. Constrói nesses personagens complexos um caráter tão fraco, tão inseguro e titubeante, que o leitor pas-sa a desconfiar de seus julgamentos. Assim, além de construir uma eterna dúvida (Capitu traiu ou não traiu Bentinho?), Machado de Assis apresenta o primeiro narrador não confiável da literatura brasileira.

Em 1884, Machado, à época já com a estabilidade econômica que lhe proporcionava o emprego público, instala-se com Carolina na Rua Cosme Velho, onde viveria até o final da vida.

Em sessão de 15 de dezembro de 1896, Machado, após um longo processo de inúmeras dificuldades, conseguiu concretizar seu maior sonho – fundou a Academia Brasileira de Letras –, mas foram necessá-

rios sete meses para que sua primeira sessão oficial fosse realizada. Nela, Machado proferiu um discurso em 20 de julho de 1897 ao empossar-se Presidente.

Nos últimos anos da vida do escritor, marcados pelos longos dias solitários com a morte de Caroli-na em 1904 e por suas crises epilépticas a essa época amiudadas, Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908) têm o mesmo narrador personagem, o conselheiro Ai-res, que pouco age e passa a maior parte da narrativa contemplando placidamente as aventuras amorosas e existenciais dos jovens ao seu redor. No Memorial de Aires, Machado investiga a velhice e faz um elogio das relações conjugais com extrema simplicidade e estilo depurado. É um legítimo testamento literário e exis-tencial de Machado de Assis, que afirmou diversas ve-zes se tratar de seu último romance.

Quando o Memorial de Aires apareceu, nos últimos dias de julho de 1908, havia dois meses que Machado de Assis, doente, se ausentara da Secretaria de Via-ção. Nessa época, além do seu grande mal, a forma com que se referia à epilepsia, um problema crônico dos olhos tornava sua visão cada vez mais reduzida, impedindo-lhe o trabalho com luz artificial. Sofria ain-da com seus intestinos, mas foi uma úlcera na língua,

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Machado de Assis em 1893, aos 54 anos.

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talvez de fundo canceroso, que começou a martirizá-lo. Quase não se podia alimentar. Passava a leite dias e dias. A origem dessa chaga parece terem sido as con-vulsões a que era sujeito, nas quais mordia a língua29. Até o fim, a cortesia se manteve a mesma, e também a lucidez. Após recusar a extrema unção – rodeado de fiéis amigos escritores, expirou às 3:45 h. da madruga-da de 29 de setembro de 1908.

Epilepsia. Representações na vida

Todos os seus biógrafos atribuíram-lhe o diagnós-tico de epilepsia, cujas crises frequentes foram testemu-nhadas por muitos. “Não é impiedade, como afirmou Afrânio Peixoto, denunciar-lhe a epilepsia comprovada e assistida por testemunhas... porque é determinante ou modificador de seu gênio: o de Maomé, Pedro, o Gran-de, Carlos V, Richelieu, Petrarca, Molière, Schiller... teve também essa intrusão sinistra”30.

Em Machado, a preocupação de saúde era fre-quente: ou havia os efeitos de um acesso do mal ter-rível ou a iminência dele.

Carolina era a companheira dedicada a velar pelo ma-

rido nos episódios presenciados por seus amigos, como a escritora Francisca de Vasconcellos Basto Cordeiro, sua vizinha na Rua Cosme Velho, que descreveu as auras e a gravidade da epilepsia de Machado: ... “Várias vezes sentiu-se, em nossa casa, presa de crises do ‘mal sagrado’, que tão profundamente o magoava. Sentia a ‘aura’ pre-cursora: ‘Carolina, vou sentir-me mal...’. Um copo d’água, imediatamente servido, muitas vezes evitou a crise. Certa vez em que foi trazido da cidade teve onze convulsões a seguir, sem recuperar os sentidos. Ninguém imaginou que resistisse. Minha mãe passou o resto da tarde e toda a noite acompanhando-os. Só pela manhã começou a bo-cejar, sinal de haver cedido a terrível crise. D. Carolina pediu à minha mãe que saísse do quarto antes de recu-perar os sentidos, porque sua preocupação principal era perguntar-lhe: ‘- Alguém viu?’ 31.

O temor das crises em público numa época em que a epi-lepsia representava doença moral, insanidade e até propensão ao crime era enorme e Machado de Assis fazia o que podia para escondê-las. Suas crises foram observadas pelos seus colegas na repartição, onde guardava, numa das gavetas, um vidro de remédio, a que recorria em emergências. Algumas vezes, porém, tinha de ser levado a um tílburi, por seus cole-gas, e mandado para casa. Havia cocheiros já afeitos a isso32.

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Tílburis em 1870 no Rio de Janeiro por Georges Leuzinger.

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Cais Pharoux, 1º de setembro de 1907. Fotografia de Machado de Assis por Augusto Malta, fotógrafo oficial da prefeitura do Rio de Janeiro 30.

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Cais Pharoux e adjacências, c. 1880, por Marc Ferrez 24.

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Foram testemunhadas ainda por seus companheiros na livraria Garnier, onde todas as tardes se encontravam os mais ilustres homens de letras, e até impiedosamente fotografadas por Augusto Malta, fotógrafo da Prefeitura do Rio de Janeiro no cais Pharoux, quando, com outros colegas da Academia Brasileira de Letras, esperava o desembarque do político fran-cês Doumer em 1º de setembro de 190732.

Leme Lopes27 que foi aluno de Miguel Couto (1864-1934), médico que cuidou de Carolina e também de Machado, faz uma citação atribuída ao escritor Carlos de Laet, amigo de Machado de Assis: “Estava eu a conversar com alguém, quando de nós se acercou o Machado e dirigiu-me palavras em que não percebi nexo. Encarei-o surpreso e achei-lhe des-mudada a fisionomia. Sabendo que de tempos em tempos o assaltavam incômodos nervosos, despedi-me do outro ca-valheiro, dei o braço ao amigo enfermo, fi-lo tomar um cor-dial na mais próxima farmácia e só o deixei no bonde das Laranjeiras, quando o vi de todo restabelecido, a proibir-me que o acompanhasse até a casa...”. Carolina, que tantas vezes o socorria, pedia que os deixassem a sós até a recuperação da consciência, pois sua preocupação principal era perguntar-lhe: “Alguém viu?”. Ainda Leme Lopes27, analisando as ma-nifestações clínicas da epilepsia de Machado de Assis, sugeriu a ocorrência, muito frequente, pelo menos na última fase de

sua vida, de crises psicomotoras e de crises de grande mal, provavelmente decorrentes de foco temporal e da ínsula.

De fato, a evolução das crises de Machado é suges-tiva da epilepsia do lobo temporal por esclerose mesial temporal, classicamente caracterizada pela ocorrência de um insulto em anos precoces da vida, seguido de um pe-ríodo latente e início de crises parciais complexas este-reotipadas na segunda ou terceira décadas da vida. Suas crises teriam tido início na infância, tiveram remissão na adolescência e recidivaram na terceira década, tornando--se mais frequentes e consideravelmente agravadas nos últimos anos de vida. Contudo, seus biógrafos não con-seguiram a documentação de detalhes tão pessoais nos escritos de Machado. Seus antecedentes hereditários, gestacionais e obstétricos são ignorados, assim como a presença de algum outro evento precipitante inicial. A suspeita de haver surgido na infância tem apenas o su-porte da informação de Renard Peres, que, do próprio Machado, haveria sabido de “coisas esquisitas” naquela idade e que suas crises se manifestaram como crises tôni-co-clônicas generalizadas após o casamento com Caroli-na, realizado quando tinha 30 anos27. Esses dados suge-rem a ocorrência de um período latente. Não é possível inferir a resposta das crises ao tratamento com brometo

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que o Dr. Miguel Couto lhe teria prescrito; sabe-se que apresentava crises parciais complexas e crises convulsi-vas generalizadas. Crises secundariamente generalizadas são atualmente consideradas raras em pacientes com epi-lepsia do lobo temporal por esclerose mesial por respon-derem aos medicamentos atuais que controlam de forma mais efetiva a generalização do que as crises parciais33.

A caracterização das crises parciais complexas estava se iniciando à época de Machado. Foi apenas no século XIX que foram reconhecidas as “crises epilépticas meno-res” e, entre elas, os episódios de “vertigem epiléptica”, cujas características predominantes eram representadas pelo comprometimento temporário da consciência acom-panhado de alteração comportamental, equivalentes às cri-ses parciais complexas atuais. Frequentemente observada nas “colônias” ou “asilos”, a manifestação extrema da vertigem epiléptica configurava a “mania epiléptica”, qua-dro de instalação abrupta caracterizado por hostilidade, agressividade e dificuldade de contato que tomava o lu-gar dos paroxismos que então se tornavam infrequen-tes ou imperceptíveis. O quadro resultante, considerado uma consequência da liberação das estruturas inferiores do sistema nervoso, sendo, portanto, inconsciente, po-dia levar a violência, homicídio, suicídio e abuso sexual.

Essa era a “epilepsia larvária” ou “epilepsia mascarada”, condição que figurava sistematicamente nos tratados de medicina forense daquele século e norteou a adoção de políticas sociais que continuam a exercer impacto negati-vo maior e contribuem para o estigma nos dias atuais.

A 14 de agosto de 1906, dia da posse de Mário de Alencar, filho do escritor José de Alencar na Academia Brasileira de Letras, que também apresentava quadro neu-ropsiquiátrico cuja natureza é de difícil caracterização e foi considerado por Machado o filho que não tivera e a quem amparava para também amparar-se nele, Machado teve uma crise que o fez procurar o Dr. Miguel Couto32. Este, aos 42 anos, já clínico de fama e professor da Faculdade de Medicina, fora, em 1904, um dos médicos de D. Carolina e, sendo admirador de Machado, nada lhe cobrava por seus serviços, pedindo-lhe em delicada carta que lhe fizesse “a fineza de levar o insignificante serviço médico que prestei à sua Exma. Senhora à conta da amizade, dessa amiza-de que cada um tem intimamente aos grandes homens de seu país”. Recomendou Miguel Couto a seu ilustre cliente que anotasse suas crises e suas características, inclusive a frequência com que ocorriam. Machado assim procedeu. Suas notas, sem indicação do ano, permaneceram inéditas até 1939, quando foram publicadas no volume Exposição

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Machado de Assis, editado pelo ministro da Educação e Saúde, por ocasião do centenário de seu nascimento. Fo-ram aí apresentadas como tendo sido escritas talvez em 1905. Porém, a referência à viagem do ministro Lauro Müller à Minas32, em 4 de setembro de 1906, permitiu pre-cisar os anos em que foram escritas, 1906 e 1907.

Machado de Assis nos deixou, de próprio punho, a descrição semiológica que permitiu a Leme Lopes27 interpretar seus sintomas. Na crise ocorrida na livraria Garnier, Machado respondeu à Lansac, que a ele se di-rigiu em francês, em português. O grande médico cario-ca utilizou um conceito jacksoniano na explicação do ocorrido, segundo o qual nas crises epilépticas haveria dissolução de funções corticais mais superiores. A ex-pressão verbal com maior estruturação, adquirida em primeiro lugar, o português, permaneceu conservada, mas foi impossível acessar o francês, a língua aprendida mais tarde27. O “fenômeno” provavelmente foi uma crise parcial, também à qual se referia como “ausência”. A “crise” no jornal provavelmente foi uma crise tônico-clônica generalizada. A ocorrência de “boca amargosa” e que as crises podiam ser seguidas de “cólera” à frente dos criados lhe sugeriu que tinham origem no lobo tem-poral e na ínsula27. Finalmente, Guerreiro35, utilizando

os conceitos da epileptologia de nossos dias, postulou, que, sem dúvida, as crises de Machado cursavam com alterações da consciência, automatismos e confusão pós-crítica, e, baseado na associação da emissão de pa-lavras sem nexo, sugeriu o diagnóstico de crises parciais complexas, provavelmente originadas no lobo temporal direito pela preservação da linguagem.

Machado de Assis por vários anos sofreu sintomas do trato gastrointestinal superior e inferior com náuseas, ano-rexia, vômitos ocasionais e diarreia. Estes são sintomas típi-cos da ingestão excessiva de brometos, então o único trata-mento efetivo disponível para a epilepsia. Machado de Assis ingeriu brometo, pelo menos a intervalos, durante um perí-odo de tempo indefinido, prescrito por Miguel Couto36.

Numa visita ao seu médico, esperou algum tempo e retirou-se, antes de consultar, esquecendo o capote. No dia seguinte, voltou. Não se lembrava do que acontece-ra na véspera. Procurava lembrar-se: “Eu estive aqui...”. Miguel Couto, procurando distraí-lo do que havia acon-tecido, disse com naturalidade: “Já há muito tempo, o senhor não vem aqui”. Mas quando Machado de Assis ia saindo e viu o seu capote no cabide, voltou os olhos para o eminente mestre da medicina brasileira e murmurou com ternura: “O senhor é muito bom”37.

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4 de set. a ausência em casa de Garnier, onde bebi água e Lansac me deu sais a cheirar. Era de tarde. Fizera-me sentar; e eu respondi em português ao que me disse em francês. Saí, vim a casa, jantei e saí para ir à estrada de ferro, onde me despedi do Lauro Muller, que ia a Minas. Voltei e fui à casa do barão de Vasconcel. Contei isto ao médico (Miguel Couto), dizendo-lhe que medeam entre o fenômeno e a crise no Jornal 22 dias.

Caso da bacia, à noite (Ausência?). 17 de setembro; outra ausência a 18 de setembro.9 de outubro (ao fim do jantar) crise. Não me ficaram as dores

de costume, mas fiquei sonolento e não saí.29- Crise cólera-Criados- Encontro com o Afrânio (Peixoto?) e

o Moacyr.Nov. Noite 3 para 4- Amanheci... Não sei se foi ausência ou crise.

Crise não me pareceu, não me ficaram outros sinais.14- Ausência.15 (noite) Sinais de crise, jantar boca amargosa e aquilo da...Dezemb.4- à tarde em casa, sono antes do jantar precedido do sintoma.

Dor. Os outros dias leves incômodos nervos, menos intensos e du-radouros, iguais aos que costumo ter.

(à tarde) Cochilo no bonde, e vontade de dormir.JaneiroNoite de 6 para 7-crise-Noite de 14 (jogando gamão com o Eugênio) ausência; pou-

co tempo, continuei o jogo sem me levantar, e com a memória de tudo.

31 – Ausência, escrevendo de manhã, sono, voltei sentado e con-tinuei a escrever; diferença apenas de algumas palavras escritas.

Manuscrito de Machado de Assis com anotações de crises prova-velmente no final de 1906. Lansac se refere a Julien Emmanuel Bernard Lansac, o representante comercial da Livraria Garnier, editora dos livros de Machado 34.

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Após seu isolamento em 1826 das águas do Mar Mediterrâneo, os sais de brometo eram considerados a panaceia para a cura de hepatosplenomegalia, sífi-lis e eczema, além de apresentar propriedades anti-afrodisíacas38. Como a masturbação era considerada uma das causas de epilepsia no século XIX, em 1857, dois milênios após inúmeras tentativas terapêuticas infrutíferas para tratar crises epilépticas, Sir Charles Locock, um obstetra inglês, usou o brometo de potás-sio para tratar a epilepsia histérica, considerada uma das causas de crises epilépticas, e relatou sua eficácia em 14 de 15 mulheres com crises catameniais39. Pa-recia lógico prescrever sais de brometo de potássio e, mais tarde, uma solução contendo uma mistura de sais de brometo de sódio, potássio e antimônio para o tratamento da epilepsia devido às suas propriedades sedativas e antiafrodisíacas.

A eficácia dos brometos na epilepsia pode ser avaliada no livro de 1907, de William Aldren Turner (1864-1945), um dos líderes da epileptologia inglesa e internacional, no qual resumiu os avanços na tera-pêutica da epilepsia ao seu tempo, dominado pelo uso dos brometos. Em sua série de 366 casos de epilepsia recém-diagnosticada, obteve, com sais de brometos,

remissão prolongada, das crises em 23,5% dos pacien-tes, redução significante em 28,7% e ausência de efeito em 47,8%. Devido ao seu sabor desagradável, Turner prescrevia-o associado a xarope de ameixa visando a tornar mais prazerosa sua administração. Turner era particularmente favorável à formulação de Gélineau que continha 1 g de brometo de potássio, 1 mg de pi-crotoxina e 2 mg de arsenato de antimônio e a preco-nizava em casos de intolerabilidade ou ineficácia dos sais de brometo puros. A presença de picrotoxina, uma substância hoje utilizada na produção de modelos ex-perimentais de epilepsia, na fórmula de Gélineau era justificada por reduzir a vasoconstrição cerebral, um fator, àquela época, considerado fundamental para o desencadeamento de crises epilépticas. O paciente de-veria tomar usualmente 4 a 6 grageias por dia, embora ocasionalmente a dose diária prescrita, como preconi-zada por Gélineau, podia alcançar até 10 a 12 grageias, durante ou após as refeições40.

A toxicidade dos brometos, decorrente de seu acú-mulo ao longo dos anos ou a níveis sanguíneos ex-cessivos, promove um quadro denominado bromis-mo, que inclui o envolvimento do sistema nervoso central, da pele e do trato gastrintestinal. É caracte-

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Jornal A estação, 31 de dezembro de 1888; na mesma página deste anúncio, Machado publicou o capítulo CXII de seu Quincas Borba. As grageias compostas de brometo, antimônio e picrotoxina, desenvol-vidas em 1871 por Jean-Baptiste Gélineau (1828-1906) na pequena localidade francesa de Aigrefeuille d’Aunis, eram uma combinação de “excitantes” e “depressores”. Gélineau ficaria ainda universalmente conhecido pela descoberta da narcolepsia.

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rizado por alentecimento e embotamento mental, al-gumas vezes configurando quadro demencial, acom-panhado de aparência de apatia e estupidez, erupção cutânea acneiforme na face, pescoço, tórax e braços e lesões granulomatosas caracterizadas pela formação de abscessos intradérmicos, tão peculiares que foram denominadas bromoderma, as quais, algumas vezes, desfiguram a face. Brometos promovem ainda o aco-metimento de mucosas; a língua pode se tornar sa-burrosa, avermelhada e dolorida, com consequentes ageusia e halitose38. Ainda entre os sintomas gastrin-testinais figuram náusea, flatulência e diarreia. Pode promover comprometimento da acuidade visual pela perda de reflexos pupilares, papiledema e aumento da pressão liquórica. Inicialmente louvado, o reco-nhecimento dos efeitos adversos dos sais de brometo fez com que seu uso fosse praticamente abandonado com o advento do fenobarbital em 191140. A despeito desse fato, brometo é ainda considerado uma opção nos dias atuais para controlar crises refratárias, par-ticularmente crises tônico-clônicas generalizadas41. É muito provável que os sintomas gastrintestinais de Machado de Assis tenham sido uma consequência do uso crônico de brometo.

Epilepsia. Representações na obra

Diferentemente de Dostoievski, Machado de Assis escondeu sua epilepsia do público. Teria substituído a palavra “epiléptica” descrevendo o padecimento de Vir-gília, sua personagem histérica, ao ver morrer o antigo amante Brás Cubas da primeira edição de Memórias Pós-tumas de Brás Cubas (1882) por “convulsa” na segunda edição30, 35. Ribeiro do Valle (apud Costa37), no entanto, sugere que o motivo dessa substituição pode não ter sido o pudor pela palavra epiléptica, mas sim a hones-tidade ao escrever conceitos científicos que só permiti-riam a Virgília uma crise de natureza histérica. Machado de Assis, como todos os naturalistas, procurava ser fiel nas descrições e observações que fazia. É possível que, ulteriormente à publicação das Memórias Póstumas de Brás Cubas, ou por investigação própria ou por observação de algum médico seu amigo – talvez, mesmo, o profes-sor Miguel Couto –, tenha compreendido, para maior precisão científica, a necessidade daquela modificação que fez no referido passo do romance37.

Textos literários são uma parte importante na histó-ria cultural em muitas áreas da Medicina. Autores com epilepsia podem contribuir muito com suas descrições

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particularmente acuradas e elaboradas das manifestações subjetivas das crises epilépticas. A contribuição mais co-nhecida é a de Fyodor M. Dostoiesvski (1821-1888): es-tados de sonho, nuanças de déjà vu, pensamento forçado, aura de êxtase. Machado de Assis, como outro seu con-temporâneo, o grande escritor francês Gustave Flaubert (1821-1880), é conhecido como o autor que não ousou dizer o nome do seu mal42.

No entanto, há sugestões de sintomas relacionados às cri-ses epilépticas indisfarçáveis na obra de Machado de Assis.

Memórias Póstumas de Brás Cubas, capítulo VII, O Delírio43

Machado, em Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), após afirmar que a ciência agradecerá a sua descrição, convida o lei-tor a contemplar alguns fenômenos mentais. E na sua agonia terminal, no seu delirium, Brás Cubas alça voo pelos séculos:

“Que me conste, ainda ninguém relatou o seu próprio delírio; faço-o eu, e a ciência mo agradecerá. Se o leitor não é dado à contemplação destes fenômenos mentais, pode saltar o capítulo; vá direto à narração. Primeiramen-te, tomei a figura de um barbeiro chinês, bojudo, destro, escanhoando um mandarim, que me pagava o trabalho

com beliscões e confeitos: caprichos de mandarim. Logo depois, senti-me transformado na Summa Theologica de São Tomás. Ultimamente, restituído à forma humana, vi chegar um hipopótamo, que me arrebatou. Deixei-me ir, calado, não sei se por medo ou confiança; mas, dentro em pouco, a carreira de tal modo se tornou vertiginosa, que me atrevi a interrogá-lo, e com alguma arte lhe disse que a viagem me parecia sem destino. – Engana-se – re-plicou o animal –, nós vamos à origem dos séculos”.

A partir daí, segue-se a narrativa, com uma série de passagens por vários séculos, com comentários que vão desde o Éden, a tenda de Abraão, o diálogo com Pando-ra, ou a Natureza, até chegar ao século presente e depois aos futuros. Finalmente, Brás Cubas descreve:

“Talvez por isso entraram os objetos a trocarem-se; uns cresceram, outros minguaram, outros perderam-se no am-biente, um nevoeiro cobriu tudo, menos o hipopótamo que ali me trouxera, e que aliás começou a diminuir, a diminuir, a diminuir, até ficar do tamanho de um gato. Era efetiva-mente um gato. Encarei-o bem; era o meu gato Sultão, que brincava à porta da alcova, com uma bola de papel...”.

Essa é a descrição de um estado onírico-confusional fenomenologicamente idêntica à descrição dos estados

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de sonho presentes nas crises epilépticas do lobo tem-poral conforme descrição de John Hughlings Jackson48. Nas manifestações críticas da epilepsia temporal surgem cenas alucinatórias, com elementos auditivo-verbais e todo um enredo, que não raro se repete estereotipada-mente em cada novo episódio. A alteração temporoespa-cial, uma das consequências da modificação do campo da consciência, as acompanha27.

Memórias Póstumas de Brás Cubas, capítulo XLI,

A Alucinação43

Ainda em Memórias Póstumas de Brás Cubas, uma elaborada ilusão visual envolve o amor da juventude, Mar-cela, e a amante da idade madura, Virgília. Ao passar por um ouvires para consertar o vidro do relógio que lhe ha-via caído, Brás Cubas se depara com Marcela, que agora, muitos anos depois, está com o rosto amarelo, repleto de bexigas; os sinais, grandes e muitos, faziam saliências e en-carnas, declives e aclives. O cabelo estava ruço e poento e os olhos, a melhor parte do vulto, tinham expressão sin-gular e, no entanto, repugnante. A beleza de sua juventude desaparecera, dando lugar à deformação. Aquela visão o incomoda por algum tempo, entretanto não dura muito.

Logo em seguida, visita a amante e descreve uma alu-cinação ao se deparar com Virgília:

“De repente morre-me a voz nos lábios, fico tolhido de assombro. Virgília... seria Virgília aquela moça? Fitei-a muito, e a sensação foi tão penosa, que recuei um passo e desviei a vista. Tornei a olhá-la. As bexigas tinham-lhe comido o rosto; a pele, ainda na véspera tão fina, rosada e pura, aparecia-me agora amarela, estigmatizada pelo mes-mo flagelo, que devastara o rosto da espanhola (Marcela...). Os olhos, que eram travessos, fizeram-se murchos; tinha o lábio triste e a atitude cansada. Olhei-a bem; peguei-lhe na mão e chamei-a brandamente a mim. Não me enganava; eram as bexigas. Creio que fiz um gesto de repulsa”.

Fenômenos experienciais representando eventos mentais do passado pessoal são especialmente vívidos em crises epilépticas e combinam elementos de percep-ção, memória e afeto em uma experiência subjetiva úni-ca, como esta elaborada ilusão visual experimentada por Brás Cubas. Podem ser reproduzidas principalmente pela estimulação elétrica das estruturas límbicas profundas do lobo temporal, como da amígdala e hipocampo, que con-teriam armazenadas em suas matrizes neurais experiências pessoais as quais seriam ativadas pela descarga epiléptica

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no início crítico44. As respostas experienciais podem ser representadas por uma lembrança vívida ou intrusiva de um evento passado, são acompanhadas de sentimento de familiaridade ou reminiscência (déjà vu, déjà vécu), parece pertencer a um sonho e o indivíduo que a experimenta tem ciência da natureza ilusória da experiência que ainda pode ser acompanhada de estados afetivos como medo, tristeza, culpa, raiva ou excitação sexual.

Verba Testamentária, Papéis Avulsos43

Nicolau B. de C.

Seu personagem Nicolau B. de C., do conto “Verba Testamentária” de Papéis Avulsos (1882), publicado quan-do Machado tinha 43 anos, tem epilepsia. É provavel-mente o texto em que Machado mais claramente discute manifestações críticas e pós-críticas, bem como a imensa dificuldade ao enfrentar as diversas situações da vida com a ameaça permanente de um evento, o enorme fardo e os artifícios necessários para suplantar as dificuldades quan-do elas se avizinham. São estas as palavras do escritor:

“Quando menino manifestou sinais de que havia nele al-gum vício interior, alguma falha orgânica”. “Saiu um século, entrou outro, sem desaparecer a lesão do Nicolau”. “Tinha

vinte e três anos; era um dos petimetres da cidade, mas um singular petimetre, que não podia encarar nenhum outro... sem padecer uma dor violenta, tão violenta, que o obrigava às vezes a trincar o beiço até deitar sangue. Tinha ocasiões de cambalear, outras de escorrer-lhe pelo canto da boca um fio quase imperceptível de espuma. E o resto não era me-nos cruel. Nicolau ficava então ríspido; em casa achava tudo mau, tudo incômodo, tudo nauseabundo; feria a cabeça aos escravos com os pratos, que iam partir-se também, e per-seguia os cães, a pontapés; não sossegava dez minutos, não comia, ou comia mal. Enfim dormia; e ainda bem que dor-mia. O sono reparava tudo. Acordava lhano e meigo, alma de patriarca, beijando os cães entre as orelhas, deixando-se lamber por eles, dando-lhes do melhor que tinha, chamando aos escravos as cousas mais familiares e ternas. E tudo, cães e escravos, esqueciam as pancadas da véspera, e acudiam às vozes dele obedientes, namorados, como se este fosse o verdadeiro senhor, e não o outro”.

Durante a vida: “Viver segregado dos principais era para ele um grande sacrifício; mas, como teria de padecer muito mais vivendo com eles, tragava a situação. Isto prova que ele tinha um certo conhecimento empírico do mal e do pa-liativo”. E nos dias finais de Nicolau, Machado interroga se ele quis deixar-se morrer: “A doença apoderou-se defi-

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nitivamente do seu organismo e obrigou-o a recuar-se na solidão... Aos 68 anos deixou-se morrer, padecendo consigo ainda muito mais do que fazia padecer aos outros...”.

Manifestações pós-críticas da epilepsia seriam também anotadas no diário de crises que Machado preparou para entregar ao Dr. Miguel Couto, no qual descreve no dia 29 de setembro de 1906-1907: “Crise cólera – Criados- encontro com o Afrânio e o Moacyr”. Comportamentos agressivos ou violentos no período que segue imediatamente as crises epilépticas e que assumem curso rapidamente decrescente, como o sugerido por Machado, podem ser relacionados à confusão pós-ictal imediata ou à agitação psicomotora para os quais se sugere o mesmo mecanismo fisiopatológico da paresia de Todd verificado após crises parciais motoras45.

Quincas Borba, capítulo XLVII43

Em Quincas Borba (1891), uma tomada de decisão en-tre três tílburis desperta em Rubião a memória de uma crise com perda de consciência que ocorreu quando jo-vem, a qual foi provocada pela observação de uma exe-cução. Saiu de casa, entrou no Largo de São Francisco,

e desceu a Rua do Ouvidor até a dos Ourives sem ver nem ouvir coisa alguma. Na última, um ajuntamento de pessoas decidia a execução de um preto.

“Eram dois pretos, um dos quais com uma corda enlaçada ao pescoço. Um homem lia em voz alta a sentença. Havia mais o juiz, um padre, soldados, curiosos. Rubião naturalmente fi-cou impressionado. Durante alguns segundos esteve como agora à escolha de um tílburi. Forças íntimas ofereciam-lhe o seu cavalo, umas que voltasse para trás ou descesse para ir aos seus negócios, outras que fosse ver enforcar o preto. Era tão raro ver um enforcado! Senhor, em vinte minutos estará tudo findo. Senhor, vamos tratar de outros negócios! Vacilan-te, fechou os olhos, e deixou-se ir ao acaso. Sem reparar, deu consigo no largo da execução. Já ali havia bastante gente.

O réu sobe à forca. Passou pela turba um frêmito. O carrasco pôs mãos à obra. Foi aqui que o pé direito de Rubião descreveu uma curva na direção exterior, obe-decendo a um sentimento de regresso; mas o esquerdo, deixou-se estar, lutaram alguns instantes... – Olhe o meu cavalo! –Veja, é um rico animal! – Não seja mau! – Não seja medroso! Rubião esteve assim alguns segundos, os que bastaram para que chegasse o momento fatal. Todos os olhos fixaram-se no mesmo ponto, como os dele. Ru-bião não podia entender que bicho era que lhe mordia as

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Largo de São Francisco de Paula, c. 1895, por Marc Ferrez 24.

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entranhas, nem que mãos de ferro lhe pegavam da alma e retinham ali. O instante fatal foi realmente um instante; o réu esperneou, contraiu-se, o algoz cavalgou-o de um modo airoso e destro; passou pela multidão um rumor grande, Rubião deu um grito, e não viu mais nada”.

Crises epilépticas induzidas por tomada de decisão são raramente descritas e as relatadas por Forster et al.46 ocor-riam quando seu paciente, enquanto jogava xadrez, estava na defesa ou se sentia ameaçado. Elas não eram precipita-das por tomadas de decisão simples ou não sequencial ou sob estresse fisiológico. Porém ocorriam quando executava tarefas que exigiam tomadas de decisão de uma maneira se-quencial associadas a elementos estressores, particularmen-te quando havia incerteza quanto ao seu resultado. Nesse caso, os três fatores precipitantes maiores – a complexidade da decisão, o fator sequencial e o estresse ou a preocupa-ção – pareciam ser interdependentes. Crises induzidas por tomada de decisão são mais frequentemente verificadas nas epilepsias generalizadas idiopáticas, particularmente a epi-lepsia mioclônica juvenil, podendo, no entanto, coexistir com crises induzidas por alimentação, uma manifestação crítica do lobo temporal47. A ativação reflexa de crises do lobo temporal, embora raramente documentada, é comu-mente referida por indivíduos com esse tipo de epilepsia

que relatam poder desencadear crises por determinados pensamentos, mais frequentemente eventos ou cenas de natureza emocional, ou inibi-las alterando seu fluxo de pen-samento48. Mais provavelmente, no entanto, a situação aqui retrata a influência de estímulos de natureza emocional ou estressores que elicitam sentimento intenso de raiva, triste-za, embaraço, alegria ou prazer, culminando com a geração de crises, particularmente na epilepsia do lobo temporal49. Na situação retratada por Machado estão presentes o estres-se excessivo pela execução dos pretos, a tomada de decisão entre ir ou respeitar a tarefa rotineira e, finalmente, não foi possível inibir a propagação da descarga que culminou em uma crise tônico-clônica generalizada.

Suave mari magno43

Suave mari magno são as palavras iniciais de um verso de Lucrécio (ca. 99 a.C.- ca. 55 a.C.) (“De Rerum Natura”), que expressa a satisfação de quem se vê livre dos males de outrem: “Suave, mari magno turbantibus aequora ventis e terra magnum alterius spectare laborem” (É doce, quando no vasto mar os ventos levantam as ondas, contemplar da terra firme os perigos a que os outros se acham expostos). A analogia com o poeta e filófoso romano é clara no título e no conteúdo do seu poema de Ocidentais (1901):

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Suave mari magnoLembra-me que, em certo diaNa rua, ao sol de verão,Envenenado morriaUm pobre cão. Arfava, espumava e ria,De um riso espúrio e bufão,Ventre e pernas sacudiaNa convulsão.Nenhum, nenhum curiosoPassava, sem se deter,Silencioso, Junto ao cão que ia morrer,Como se lhe desse gozoVer padecer.

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Epilepsia. Representações nas cartas

Os missivistas

Machado de Assis, sempre discretíssimo em relação à doença, deixa entrever nos retalhos autobiográficos con-tidos em sua correspondência o que tal enfermidade sig-nificou em sua vida. No século XIX, as cartas eram os únicos meios de comunicação até mesmo entre morado-res da mesma cidade e algumas delas resistiram ao tempo. São raros os momentos em que Machado, tão avesso a derramamentos emocionais e ao tom confessional, nos deixa entrever sua intimidade. As frases que aqui reunimos são de cartas endereçadas principalmente aos embaixado-res Joaquim Nabuco e Carlos Magalhães de Azeredo e a Mário de Alencar, escritor, filho de seu amigo, o grande romancista José Martiniano de Alencar (1829-1877), todos muito mais jovens do que Machado50.

Mário Cochrane de Alencar, poeta, jornalista, contista e romancista, nasceu na cidade do Rio de Janeiro, em 30 de janeiro de 1872, onde também faleceu em 8 de dezembro de 1925. Do pai herdou as qualidades de sensibilidade e de espírito. Fez os seus primeiros estudos no Colégio Pedro II, obtendo o título de bacharel em Ciências e Letras, e formou-se em Direito pela Faculdade de Direito de São Paulo. Má-rio sofria períodos de depressão, ansiedade aguda, fobias e problemas psicossomáticos e foi o esteio de Machado após

a morte de Carolina em 1904, quando suas crises epilépticas recrudesceram. Conhecedor das dificuldades psiquiátricas e neurológicas e dos medicamentos e outros tratamentos en-tão disponíveis, Mário conhecia também os médicos do Rio de Janeiro interessados nesses distúrbios e as farmácias que preparavam os medicamentos para tratá-los. Para Magalhães Júnior32, Mário aludia à sua própria epilepsia em carta em que se dizia melhor da ansiedade intensa que lhe agravava o mal. Em 8 de janeiro de 1907, Mário escreveu a Machado da cidade de Lorena: “Amanhã devo estar aí. Volto um pouco melhor, sem a ansiedade intensa que sentia continuamente e me agravava o mal” e acrescentou: “Do espírito, hoje ao menos, mais animado. Talvez devido ao céu azul de hoje, primeiro dia em que o tenho aqui desde que cheguei”. Por ser filho de José de Alencar, são cartas mais íntimas trocadas entre dois amigos que residem na mesma cidade.

Carlos Magalhães de Azeredo, jornalista, diplomata, poeta, contista e ensaísta, nasceu no Rio de Janeiro, em 7 de setembro de 1872, e faleceu em Roma, Itália, em 4 de novembro de 1963, com 91 anos de idade. Foi um dos dez intelectuais convidados por Machado para integrar o quadro dos fundadores da Academia Brasileira de Letras. Cursou a Faculdade de Direito de São Paulo, na qual se bacharelou em 1893. Ingressou na carreira diplomática em 1895, como segundo secretário da Legação do Brasil no Uruguai (1895-1896) e na Santa Sé (1896-1901); pro-

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Mário de Alencar (1872-1925).

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Fotografia enviada por Joaquim Nabuco a Machado retratando os três acadêmicos “cardeais”: Graça Aranha (1868-1931),

Joaquim Nabuco e Magalhães de Azeredo em Roma, em 1903. Nabuco foi o negociador da questão brasileira de limites com a

Guiana Inglesa em Londres. Graça Aranha o acompanhou como secretário da missão. Em resposta, Machado se limita a lamentar não estar em Roma “pisando a terra amassada de tantos séculos

de história do mundo” 51.

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movido a primeiro-secretário em 1901 e conselheiro em 1911; ministro residente em Cuba, na América Central (1912) e na Grécia (1913-1914); ministro plenipotenci-ário na Santa Sé (1914-1919) e embaixador nesta (1919-1934). Tinha ele 17 anos quando enviou a Machado de Assis, na época com 50 anos, do Colégio São Luís Gon-zaga da cidade de Itu, estado de São Paulo, seu primeiro livro de versos, Inspirações da Infância. As razões que teriam levado o imortal Machado a uma relação espiritual tão profunda com este jovem não são muito claras. Carmello Virgillo52 sugere que Machado possa ter se identificado com o moço aristocrático de humor depressivo ou, ain-da, que Machado, que nunca se afastou de sua terra por ter medo às longas viagens, gostaria de ver através do in-trépido jovem aquele mundo que a epilepsia lhe proibiu. O fato é que ao longo de quase vinte anos, Machado pôs nas cartas que dirigiu a Magalhães de Azeredo as suas confidências de escritor e de homem52.

Joaquim Nabuco, escritor e diplomata, nasceu em Re-cife, Pernambuco, em 19 de agosto de 1849, e faleceu em Washington, nos Estados Unidos, em 17 de janeiro de 1910. A primeira das 53 cartas e um bilhete que trocaram foi escrita por Nabuco, um rapazola de 15 anos, aluno do Colégio Pedro II, que escreveu em 1865 agradecendo

comentários elogiosos feitos por Machado, então com 25 anos, a um poema patriótico sobre a rendição de Uruguaia-na que recitara em presença do Imperador D. Pedro II51. Na correspondência eram discretos e formais e trataram principalmente das enormes dificuldades na criação e es-truturação da Academia Brasileira de Letras. Finalmente, Lúcio de Mendonça (1854-1909) advogado e jornalista, foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras.

E a esses sinceros e dedicados amigos escritores, em or-dem cronológica, a descrição do enorme fardo e o pudor imenso da enfermidade da qual não ousou dizer o nome50:

“Estou acabando um livro, em que trabalho há tem-pos bastantes, e de que já lhe falei, creio. Não escrevo seguidamente, como quisera; a fadiga dos anos e o mal que me acompanha obrigam a interrompê-lo, e temo que afinal não responda aos primeiros desejos. Veremos”.

(Machado de Assis a Magalhães de Azeredo,9 de setembro de 1898)

Em 1900, Machado não pôde comparecer ao almo-ço inaugural da “Panelinha”, reuniões de almoço de um seleto grupo de escritores nos quais teve origem a Aca-demia Brasileira de Letras. Seu nome provinha de uma panelinha de prata que passava mensalmente às mãos do responsável pelo ágape seguinte32 .

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Academia Brasileira de Letras entre 1897 e 1904.

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“Não lhe escrevi domingo, não só por falta de por-tador, como por haver dito sábado, ao Medeiros, que era quase certo não ir ao almoço inaugural. A razão era estar com aftas, que me mortificavam e impediam quase de comer. Posso acrescentar que, apesar de tudo, tentei ir, ainda que tarde, mas não pude. Todos os outros almoços da ‘Panelinha’ hão de ser bons, mas eu não quisera faltar ao primeiro...”

(Machado de Assis a Lúcio de Mendonça,11 de julho de 1900)

O eufemismo aftas provavelmente substituía morde-duras de língua. Quando alguém lhe notou certa vez a dificuldade com que ele falava por causa das mordeduras de língua, consequência de uma crise recente, ele pro-curou justificar o fenômeno ingenuamente: “Estas aftas! Estas aftas”...30.

Em 1904 morreu a esposa, Carolina, e Machado afun-dou-se na dor para sempre:

“Éramos velhos e eu contava morrer antes dela, o que seria um grande favor; primeiro porque não acharia a ninguém que melhor me ajudasse a morrer; segundo

porque ela deixa alguns parentes que a consolariam das saudades e eu não tenho ninguém”.

(Machado de Assis a Joaquim Nabuco,20 de novembro de 1904)

“Releve-me, meu caro Nabuco, estas poucas linhas, em momento que pedia muitas. Acordei um pouco en-fermo, e, se não fraquear no propósito de calar, só con-fiarei a notícia a V., porque, apesar do mal-estar, vou para o meu ofício”.

(Machado de Assis a Joaquim Nabuco,11 de janeiro de 1905)

“O que vai nessa caixa é um ramo de carvalho de Tasso, que lhe mando oferecer ao Machado de Assis do modo que lhe parecer mais simbólico. O melhor é talvez que a Academia lhe ofereça, mas quando e como são problemas para o Sr. mesmo resolver. As palavras, po-rém, com que ele for oferecido devem ser suas. Ninguém sabe dizer-lhe tão bem como o Sr. o que ele gosta de ouvir, e de ninguém estou certo, ele consideraria a vas-salagem tão honrosa para o seu nome. Devemos tratá-lo com o carinho e a veneração com que no Oriente tratam as caravanas a palmeira às vezes solitária do oásis”.

(Joaquim Nabuco a Graça Aranha, Londres,12 de abril de 1905)

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Machado em 1905, aos 66 anos. Óleo de Henrique Bernardelli, que inseriu o ramo do carvalho que frondeja ao lado da sepultura do poeta Torquato Tasso, no pátio do Convento de Santo Onofre, no monte Janícolo, em Roma, oferecido em ses-são solene da Academia Brasileira de Letras de 11 de agosto de 1905... “Aquela árvore no convento de Santo Onofre, no Janículo, é mais que tudo isto. É o carvalho de Tasso (Torquato Tasso, [1544-1595], autor do grande poema épico “Jerusalém Libertada”). As suas raízes longínquas mergulham nas lágrimas de um gênio...”.

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“Hoje aproveito essa nesga de tempo devendo aliás dar-lhe a melhor parte, mas se lhe disser que, depois de algum tempo largo de melhoras sensíveis, tive esta noite uma pequena crise, compreenderá a obrigação em que me vejo de lhe dizer pouco e às pressas.” [...] A carta de 2 (dia 2) me fez mal. Essa melancolia que o aflige é possível que não seja irredutível nem irremediável. Sei o que me pode responder; é o que já me tem dito como a outros, mas não há como refutá-lo senão tornando aos mesmos termos. Que o mal não [é] irredutível, basta lembrar o caso do Ma-galhães de Azeredo, que o Sousa Bandeira deixou robusto e lépido. Já lhe contei o que a mãe me disse relativamente ao estado em que ele esteve em Roma...”

(Machado de Assis a Mário de Alencar, 5 de janeiro de 1907)

A neurose de Carlos Magalhães de Azeredo, apon-tado como exemplo a Mario de Alencar, parece ter se manifestado com mais intensidade no período de abril de 1903 a setembro de 1904, quando o jovem diplomata esteve tão deprimido que quase suspendeu inteiramente sua correspondência com Machado32.

“Li o que me diz acerca de seu mal-estar e outros fe-nômenos. (...) Estou curado da gripe. A coriza vai a bom

caminho, e posso crer que só me resta a parte que arrasto comigo há anos. Estes meus últimos dias têm sido de en-fado e naturalmente não é assunto que procure o papel. Falaremos quando voltar”.

(Machado de Assis a Mário de Alencar, 18 de março de 1907)

“O mal-estar de espírito a que se refere não se corrige por vontade, nem há conselho que o remova, creio; mas, se um enfermo pode mostrar a outro o espelho do seu próprio mal, conseguirá alguma coisa. Também eu tenho desses estados de alma e cá os venço como posso, sem animações de esposa nem risos de filho”.

(Machado de Assis a Mário de Alencar,11 de abril de 1907)

“De mim, vou bem, apenas com os achaques da ve-lhice, mas suportando sem novidade o pecado original, deixe-me chamar-lhe assim. Creio que o Miguel Couto me trouxe a graça”.

(Machado de Assis a Mário de Alencar,21 de janeiro de 1908)

Ele usa o termo “pecado original” provavelmente refe-rindo-se ao fato de que seu mal, a epilepsia, era congênito.

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“A minha saúde não vai mal, exceto o que lhe direi adiante, e não é a ‘ausência’ que senti ontem, esta foi rápida, mas tão completa que não me entendi ao tornar dela. Daí a pouco, entendi tudo, e deixei-me estar”.

(Machado de Assis a Mário de Alencar,8 de fevereiro de 1908)

Essa é uma referência direta a uma crise epilépti-ca, muito provavelmente do tipo parcial. Esse diag-nóstico é sugerido pelo fato de que havia confusão mental pós-crítica:

“As notícias distraem e ajudam a combater o mal. O mal não é tão grande como parece; é agudo, porque os nervos são doentes delicados, e ao menor toque retor-cem-se e gemem. Eu sou desses enfermos, como sabe e, como sabe também, doente sem médico”.

(Machado de Assis a Mário de Alencar, 8 de fevereiro de 1908)

O amigo Mário de Alencar sabe que Machado sofre de mal sem cura. Machado não pode aceitar essa fatali-dade e desloca o sentimento de grande abandono, ori-ginado da própria enfermidade, para o da ausência de

assistência médica, “doente sem médico”. Ao que Leme Lopes27 pondera: “Sem remédio, sim; sem médico, não”.

“Estive com o Miguel Couto naquele dia, ouviu-me e receitou-me um remédio novo, que não existe aqui, nem no Werneck, nem no Silva Araújo, nem no Rangel. Ficou de entender-se com o Werneck, para mandar buscá-lo; depois disse-me que era melhor ver se o preparavam aqui mesmo, e eu continuo a tomar os que me dera antes.”

(Machado de Assis a Mário de Alencar, 23 de fevereiro de 1908)

“É preciso sacudir esses nervos despóticos, que fa-zem da gente o que querem. Bem sei que somente con-selhos não valem para tais casos, mormente no que lhe aconteceu quarta-feira pelo acréscimo da tragédia da Avenida...”

(Machado de Assis a Mário de Alencar, 20 de abril de 1908)

O martírio de Machado no que seria o último ano de sua vida se acentuou a partir de junho, quando pediu licen-ça médica do Ministério da Viação, onde exercia a função de diretor-geral de contabilidade. Cuidava da Academia

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Brasileira de Letras e comparecia quinzenalmente às suas reuniões e enviava ao editor os manuscritos de seu últi-mo livro, Memorial de Aires. Mário, em depressão, passava a maior parte do tempo em sua chácara, no Alto da Tijuca. Joaquim Nabuco era embaixador do Brasil em Washing-ton e Magalhães de Azeredo estava no Vaticano34.

“O seu estado ontem pareceu-me antes de melhora que regressivo. Tomou a Nux-Vomica? Não passou me-lhor do incômodo que o irritava?”

(Mário de Alencar a Machado de Assis,29 de julho de 1908)

Nux-vomica (Strychnos nux-vomica) era um medicamen-to comumente prescrito a sintomas do trato gastrintesti-nal superior. Trata-se de um alcalóide tóxico que contém estricnina, substância convulsivógena utilizada desde o século XVII para extermínio de roedores.

“Vê meu amigo? A sua glória é incontestável; só não o admira os que o não leram. Desejo que melhore da gar-ganta. Remédio bom é um gargarejo de água com uma colher de água oxigenada.”

(Mário de Alencar a Machado de Assis,30 de julho de 1908)

Sua última ida à Academia foi em 1º de agosto, dia em que escreveu a derradeira carta a Magalhães de Azeredo:

“Adeus, meu querido amigo. Ainda bem que a sua amizade dura há tantos anos, e eu posso ir da vida sa-bendo que deixo a sua entre outras saudades verdadeiras. Não repare na nota fúnebre que corre por esta carta; é música do crepúsculo e da solidão”.

(Machado de Assis a Magalhães de Azeredo, 1º de agosto de 1908)

“A garganta está no mesmo e um pouco mais dolo-rida. Vou aplicar o bochecho que me diz. Não escrevo mais por causa dos olhos”.

(Machado de Assis a Mário de Alencar, 1º de agosto de 1908)

Nos últimos meses parou de ingerir sólidos e se ali-mentava apenas de leite:

“Como passou de ontem? Espero que a calcarea car-bonada, se a tomou como eu lhe disse, tenha feito o bem que costuma. Apesar de não ser médico, julgo conveniente que o Sr. não recomece o tri-bromureto enquanto perdu-

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rar o estado mau dos intestinos. Quisera mandar-lhe para o espírito abatido algumas palavras medicinais. Mas que pode dizer-lhe outro espírito doente e em sombra?”.

(Mário de Alencar a Machado de Assis, 6 de agosto de 1908)

“Passei pouco melhor, mas enfim melhor. Antes da carta tinha já resolvido aqui em casa, ontem, não tomar o tri-brometo. Sinto que também não esteja bom, e tenha um dos seus filhos doente; é o que sucede a quem os possue, para compensar a felicidade de os ter”.

(Machado de Assis a Mário de Alencar, 6 de agosto de 1908)

“Tem tomado a Calcarea carbônica? Não deixe de a tomar e verá o bem que lhe faz. Não tome o tri-bromu-reto, enquanto sentir o mal dos intestinos, é um pedido de amigo, que tem interesse grande pela sua saúde. A Calcarea carbônica actua sobre os intestinos, dá-lhe força e portanto resistência contra o outro mal. Do Sulphur tomará uma pastilha por dia, entre o almoço e o jantar; a Calcarea de manhã e à noite...”.

(Mário de Alencar a Machado de Assis, 8 de agosto de 1908)

Esta é a documentação de que Mário de Alencar sabia que as perturbações gastrintestinais de Machado eram um efeito adverso do uso crônico de brometo:

“Esta moléstia é lenta e custa a sair das costas: passei a noite mal e o dia pouco melhor. Vou ver a noite que pas-so. Tomei os meus remédios (a calcarea-principalmente) e outros, além dos bochechos. Desde ontem à tarde a minha alimentação é puro leite...”.

(Machado de Assis a Mário de Alencar, 9 de agosto de 1908)

Machado partiu na manhã de 29 de setembro de 1908, aos 69 anos. Seus últimos momentos foram acompanha-dos pelos poucos e fiéis amigos escritores.

Horas antes de morrer, no balanço de sua vida, re-sumiu a seu grande amigo, o escritor José Veríssimo: “A vida é boa”.

E, afinal, no balanço do que foi a sua vida, a afirma-ção final de Memórias Póstumas de Brás Cubas: “Somadas umas cousas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que sai quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno

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saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de nega-tivas: ‘Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria’”.

“Pois devias rir, meu querido. Porque a imortalidade é o meu lote ou o meu dote, ou como melhor nome haja. Viverei perpetuamente no meu grande livro”.

E, afinal, no seu leito de morte, na melancólica soli-dão de seu quarto de enfermo:

“Meu querido amigo, hoje à tarde reli uma página da biografia de Flaubert; achei a mesma solidão e tristeza, e até o mesmo mal, como sabe, o outro...”

(Machado de Assis a Mário de Alencar,29 de agosto de 1908)

Ninguém mais se aproximou de Machado de Assis do que seu contemporâneo Flaubert (Gustave Flaubert, 1821-1880): a tristeza desde a infância, a melancolia con-gênita, o tropismo pela solidão, a angústia pelas crises.53

E ainda como esclarece Fernando Nery, em suas notas de rodapé, os termos “outra doença” e “o outro” eram as formas pelas quais seus velhos amigos se referiam à epilepsia de Machado de Assis50.

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