Epigrafe
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Introdução:
“O Brasil está em formação ou em dissolução?” Capistrano de Abreu1.
A etimologia da palavra epígrafe ensina que um dos seus sentidos fortes é
o de inscrição. Se o mesmo não anula outro, qual seja, o de registro que situa a
motivação ou tema de uma obra, sua enunciação permite apresentar as questões
centrais que instigaram as indagações e análises deste trabalho. Nesses termos,
será a partir de uma pergunta, presente em algumas missivas da correspondência
de Capistrano de Abreu, que gostaria de iniciar esta dissertação. Uma pequena
pergunta que, talvez, possa servir de caminho a ser percorrido para lidar com as
questões que mobilizam este texto, visto que esta pergunta, ao aparecer nas cartas,
jamais encontrou uma resposta que a pacificasse. Uma pergunta que guarda, em
si, de maneira explícita, um paradoxo que expande seu efeito sobre o leitor, e
aglutina, tanto uma imagem acerca do momento vivido por Capistrano, quanto
uma íntima relação entre seus projetos pessoais e pesquisas. Uma pergunta que,
em última instância, permite aproximá-lo de uma série de outros intelectuais do
período pela ausência de uma resposta propositiva, e sim, diagnóstica. Enfim, será
a partir dela, e lidando com a sensação que ela transmite, que este estudo irá se
desenvolver.
O objetivo desta dissertação é realizar uma análise das representações
sobre a Nação e sobre si elaboradas por Capistrano de Abreu. Dada a articulação
que empreende, por contraste na narrativa histórica, entre presente e passado, no
livro Capítulos de História Colonial, tenciono analisar, em um primeiro instante,
o impasse entre a herança colonial e uma específica ética da conduta - montada no
elogio da constância - em um texto elaborado com uma coerência explicativa
própria, manifestada na superação do transoceanismo e no povoamento do
território. Em um segundo instante, a abordagem se desloca para a análise de sua
correspondência. Assim, as representações antes suscitadas dialogam em um
outro terreno; busca-se, agora, compreender como o autor exercita sua
“automodelagem”, enquanto afirmação, em sua própria escrita de si, dos valores
1 Carta de Capistrano de Abreu para Mario de Alencar 19/09/1909 In: ABREU, Capistrano de Correspondência v. 1 Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977. p. 182.
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exaltados naquele elogio da postura diferenciada, presente nos Capítulos, frente à
sensação do provisório e do inacabamento da Nação.
Nesses termos, Capítulos tornou-se o ponto de partida para refletir acerca
de uma série de questões correlatas, que tanto instigaram os homens de ciências e
letras, testemunhas e agentes das continuidades e rupturas do que veio a ser a
passagem do século XIX para o XX, na sociedade brasileira. A sua maneira, tal
texto, tomado por alguns como o único terminado por Capistrano de Abreu,
durante seu tempo de vida, pode ser entendido como um diagnóstico sobre o país,
em que o uso particular e original das categorias formação/dissolução podem ser
discutidas. Menos do que ver em Capítulos algo devidamente encerrado pelo
autor inquieto que foi Capistrano, o mesmo assumiu, neste estudo, uma
especialidade e uma função, a partir das quais se buscou identificar e analisar o
valor da escrita da história, no seu potencial de crítica, para os impasses, então em
curso, dos tempos de uma República em construção.
Tendo em vista essa indagação, decidi assinalar, como corte cronológico
em destaque, o período situado entre a primeira edição de Capítulos, datada de
1907, e o ano de falecimento do autor cearense, 1927; período de sua trajetória de
vida em que é normalmente qualificado como cético e pessimista. Não desejando
imputar ao livro mencionado um lugar de marco, no estilo de referencial que
delimita um antes radicalmente diferente de um depois, entendo-o, aqui, como um
catalisador, a partir do qual as idéias de Capistrano de Abreu sobre o Brasil e suas
histórias possam ser pensados. Como ponto de partida, Capítulos será também
ponto de chegada, ou melhor, da abordagem aqui escolhida para investigar
tensões entre autor e obra, valores e visões de mundo de um sujeito. Nesse ponto,
justifica-se a utilização, neste trabalho, de outros textos de Capistrano, alguns de
seus artigos e, em especial, fragmentos de seu extenso epistolário.
Se Capítulos de História Colonial pode ser interpretado como um
diagnóstico sobre o Brasil, como aqui está suposto, tal perspectiva direcionou este
estudo para uma análise pautada no uso e na significação de alguns conceitos.
Formar/dissolver, verbos imbricados que norteiam a interpretação proposta e
caracterizam uma imagem de nação, sua fisionomia, suas contradições. Nessa
qualidade, figuram, na narrativa histórica dos Capítulos de Capistrano, a natureza,
o território, a raça, os grupos etnográficos, a ética de conduta, a psicologia dos
povos, o passado, o presente. Ao eleger problematizar tais conceitos, sem a
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pretensão de esgotá-los, busca-se, entre outros aspectos, destacar o que, como
impasse, tonalizou a herança colonial e sua superação, fosse o transoceanismo,
fosse a dispersão do povoamento, a interferir, em larga medida, em
comportamentos que muito fragilizaram a unidade identitária da comunidade
imaginada como nação. Distanciando-se de alguns de seus contemporâneos,
aproximando-se de outros, numa rede de sociabilidade em muito guardada na
intensa correspondência deste autor, Capistrano de Abreu quis apresentar o Brasil
“tal e qual” ele havia sido e, em alguns aspectos, ainda era, no alvorecer do século
XX.
O primeiro momento desta dissertação corresponde à parte em que tais
análises vieram a ser prioritariamente desenvolvidas. Optei por organizá-lo em
tópicos de tal forma que essa eleição temática e conceitual, eixo desta empreitada
interpretativa, pudesse vir a ser explicitada. Pretendo, então, no primeiro
Capítulo, fazer uma leitura detida dos Capítulos de História Colonial procurando
entender como se constitui a noção de inacabamento da Nação que o texto
mobiliza. Em um primeiro instante, reflito acerca da polêmica entre Capistrano de
Abreu e Sílvio Romero, mesmo presente em um artigo de juventude, para
compreender como Abreu tornou a Natureza um elemento primordial para a
formação histórica da nação. Logo em seguida, investe-se em uma leitura
intensiva dos Capítulos analisando como a paisagem inicial, composta de
variadas regiões, vai sofrendo a alteração da ação humana - ocupando o território
- e, simultaneamente, gerando a “transfiguração”, a “diferenciação paulatina do
reinol”. Enfim, o papel do jesuíta será analisado como a experiência que conjuga
constância e linearidade dos atos a serviço da Nação; uma espécie de personagem,
por excelência, que aglutina as qualidades de certo tipo de conduta ética que
Capistrano não visualizava nem no passado, nem no presente.
Frente à relevância da correspondência de Capistrano de Abreu, não pude
me furtar a sua utilização naquilo que essa socorreu na construção do argumento.
Por mais que ela tenha sido utilizada no corpo de toda a dissertação, a análise
mais intensiva da mesma, como registro da visão de mundo do autor/ator, veio a
ser reservada para a segunda parte do texto. Nesse caso, como esclarecimento
deste intróito, cabe pontuar que este ensaio tem como particularidade o fato de
lidar com dois objetos diferenciados em cada uma das partes: um texto teórico em
seu primeiro momento e a epistolografia, em um segundo instante. Tenciono, a
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partir de dois caminhos diferenciados, encontrar questões e perspectivas
particulares a cada um e, logo em seguida, encontrar um ponto de conexão entre
ambos a partir de um argumento particular; novamente a noção de constância
parece atender a esta demanda, pois alimenta tanto a visualização deste mundo
inacabado e em ruínas, quanto propicia o contraste com as categorias formação e
dissolução. Inacabamento este, ainda enquanto esclarecimento, que gerava
imagens em choque, fruto de um fundo romântico em seus escritos, e que
perpassava toda a sua obra teórica e epistolografia. Inacabamento de si,
inacabamento da nação, inacabamento de projetos pessoais. Em outras palavras: a
construção de um argumento particular a esta dissertação, fruto da demanda por
lidar com dois materiais heterogêneos, que propiciasse jogar com os termos
formação e dissolução, assim como com a noção de processo inacabado.
Nesta instância, no segundo capítulo, interessa pensar de maneira mais
detida o indivíduo. No imenso teatro que é a vida em sociedade, as máscaras, as
figuras dramáticas, as imagens simuladas e as palavras empregadas constituem
um primoroso jogo de comunicação, no qual o que se controla é a própria
espontaneidade da conduta. Na vida social, a encenação tem valor de face e o
indivíduo, concebido como ator, ao projetar sua figura e suas características
pessoais, define-se aos olhos de seus semelhantes. 2
Nesse palco, no tempo em que Capistrano viveu, Rui Barbosa era
imbatível, sendo aclamado como o maior entre todos, a maior inteligência do
planeta. Dominava a “arte do bem dizer” e de encantar o público com palavras tão
sonoras e períodos tão bem decorados que parecia mesmo querer arrebatar o
espírito dos auditores encantados. No período em que Barbosa era o principal
ator de uma cidade-palco, Capistrano não fazia apresentações, evitava estar diante
do grande público. Não possuía a técnica da oratória, não possuía vasta memória,
não possuía o cuidado necessário para a exibição em público. Antes disso,
Capistrano se construía por diferença, delineando, em suas cartas, justamente, a
ausência de memória e o gosto e pesar pela solidão. Um exercício que visava
contrastar com estes intelectuais, dos quais além de Rui Barbosa, Joaquim
Nabuco também seria presença constante. Este último, na leitura de Capistrano,
seria, assim como Rui Barbosa, um ator de diferenciadas máscaras; aquele que
2 Muito deste desenvolvimento segue as reflexões de GOFFMAN, Erwin A representação do Eu
na vida cotidiana 8° ed. Petrópolis: Vozes, 1995.
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encarnava o enquadramento perfeito nas regras de etiqueta, estilizado de maneira
perfeita e acabada, possuindo extremo cuidado com as aparências. Capistrano, ao
contrário, era o ator de uma máscara só. Aquele que explicitava a impossibilidade
de mudança, que não sucumbia ao condicionamento externo – seja de editores ou
de livrarias – e que, apenas, preocupava-se com sua obra.
Lidando com estes aspectos, através de sua correspondência, busca-se
compreender o exercício contínuo de um olhar para si como estratégia de
enfrentamento de questões que disseram respeito a seus projetos historiográficos,
a sua forma de interpretar a nação e de prefigurar o valor do próprio trabalho
intelectual. A intenção, neste segundo instante do texto, é compreender como
ocorreu sua “automodelagem”3 e como esse processo dialogou com algumas das
idéias antes analisadas em seus Capítulos, e, por fim, identificar a correlação
entre essas idéias e aquilo que particularizava uma espécie de comportamento
ético do intelectual, almejado por Capistrano de Abreu, na ambiência por ele
vivenciada.
Em outras palavras, busca-se, neste caminho, entender os apontamentos
esparsos sobre si, sobre a Nação e sobre a história, como um endereçamento para
o mundo; a construção de um discurso capaz de uma intervenção na sociedade,
através de uma auto-representação edificada pelo indivíduo. Tal afirmação visa
ponderar que Capistrano construiu para si um auto-retrato que foi corroborado
pelos seus interlocutores: a imagem do intelectual que vela pelo estudo,
isolamento e constância nas idéias, qualidades elogiadas pelo próprio autor de
Capítulos de História Colonial em José de Alencar, uma referência de Capistrano
para falar de si mesmo. Cabe lembrar que foi José de Alencar que apresentou
Capistrano de Abreu para imprensa, quando este chegou pela primeira vez ao Rio
de Janeiro, e de que Capistrano escreveu o seu necrológio que, segundo alguns
biógrafos, havia sido superior ao de Machado de Assis4. Abreu descreveria, no
necrológio antes referido, um conjunto de atributos que singularizariam Alencar,
3 O que está em jogo na utilização desse conceito é exatamente o destaque do artifício de elaborar a própria identidade, o processo de self-fashioning, considerado como a modelagem de si, a construção da singularidade individual a partir de um conjunto de experiências culturais diversificadas. In: GREENBLATT, Stephen Renaissance self-fashioning. From More to
Shakespeare, Chicago & London, 1980. 4 O relato do encontro de Capistrano com José de Alencar, ainda no Ceará, e da leitura de Machado de Assis do necrológio escrito por Capistrano está presente em CÂMARA, José Aurélio Saraiva Capistrano de Abreu. Biobibliografia Rio de Janeiro: José Olimpio Editora, 1967.
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demarcando o seu lugar entre aqueles autores preocupados com a Nação, e que
seriam, também, recomendados aos outros correspondentes.
Seguindo estas ponderações, foi alinhavado o segundo capítulo. Ainda
aqui, aquela pergunta acerca da formação ou dissolução permanece enquanto
tema, mas agora dialoga em outro terreno: mapeia-se o conjunto de impressões de
Capistrano em seu presente em diálogo com a constituição de seu auto-retrato.
Em um primeiro instante, problematiza-se o próprio conceito de formação,
aproximando e diferenciando de outros intelectuais, como Oliveira Lima e João
Ribeiro, por exemplo, e quais referenciais possibilitavam ao autor compreender
um período como de “transição”; a sensação do provisório pautada na tensão
política e na assincronia entre Estado e Nação. Por último, empreende-se uma
leitura mais detida de suas cartas, pensando como se construiu um olhar para si
que reiterou valores exaltados por certa tradição intelectual, e como a disritmia do
espaço público aguçou a expressão de sua individualidade. Em sua
correspondência, Capistrano encenou uma determinada postura de relacionamento
com o conhecimento, alicerçada na idéia de Bildung, a qual, por sua vez, e como
procuraremos discutir, pareceu estar diretamente associada a seu modo de
conceber a nação e ao valor da história como crítica que a fundava e,
paradoxalmente, demonstrava sua dissolução.
Ao lidar com determinados impasses, na sua escrita da história, nas suas
experiências de vida, Capistrano de Abreu fez da dúvida sobre a formação e/ou
dissolução da Nação, sua inscrição no seu tempo, a inquietude que tanto o
mobilizou em projetos, por vezes, inacabados. Neste texto, faço da pergunta de
Capistrano o meu instante inicial para mobilizá-lo enquanto questão, e, além
disso, faço dela um acompanhamento ao longo de todas estas linhas. Que o leitor,
ao percorrer as próximas páginas, possa partilhar um pouco dessas indagações.