Enunciado 44 do CNJ - Jornada de Direito da Saúde

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Enunciados da I Jornada de Direito da Saúde do CNJ e a Ética Médica. Comentários ao Enunciado nº 44. ENUNCIADO N.º 44 O absolutamente incapaz em risco de morte pode ser obrigado a submeter-se a tratamento médico contra a vontade do seu representante. A I Jornada de Direito da Saúde do Conselho Nacional de Justiça, realizada em maio deste ano, definiu Enunciados importantes sobre “Saúde Pública, “Saúde Suplementar” e “Biodireito”. Alguns desses Enunciados, sem dúvida, irão gerar bastante polêmica e um deles é o de nº 44, que prevê o tratamento médico obrigatório , no caso de incapacidade absoluta do paciente, quando houver risco de morte, à revelia da vontade do representante. O Enunciado adota como foco principal o denominado “absolutamente incapaz”, induzindo assim à necessária aplicação do conceito de “absolutamente incapaz para os atos da vida civil”, determinados pelo artigo 3º do Código Civil brasileiro, como sendo: “I. os menores de dezesseis anos; II. os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos e, III. os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade.” Os incisos II e III trazem uma definição mais tranquila, posto que indicam pessoas que não possuem condições, ainda que momentâneas, de externarem a sua manifestação de vontade; um exemplo prático é a hipótese do paciente que se encontra inconsciente e, neste caso, existindo risco de morte, o Enunciado vai ao encontro do próprio Código de Ética Médica que, em seu artigo 31, define ser vedado ao médico “desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte .” Todavia, o próprio Código de Ética Médica define, por intermédio do parágrafo único do seu artigo 41 que “nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente, ou na sua impossibilidade, a de seu representante legal.” Tal hipótese ética indica que o médico não deve praticar a chamada distanásia, ou obstinação terapêutica, levando sempre como norte a vontade do paciente ou de seu representante; neste ponto específico, podemos vislumbrar um conflito entre a norma ética e o Enunciado. Isto porque a ordem de não ressuscitar, por exemplo, um paciente terminal que se encontra inconsciente e, portanto “absolutamente incapaz,” pode e deve partir de seu representante. Pacientes terminais estão em constante risco de morte, sendo que a orientação ética e bioética tem avançado bastante no sentido de que procedimentos que visem apenas a prolongar a vida de maneira artificial, dolorosa e obstinada não devem prevalecer, respeitando-se a vontade do paciente e do seu representante, no sentido da não intervenção, quando há a falência do corpo. Entretanto, o ponto que pode trazer maior discussão repousa na ausência de respeito à vontade do paciente menor de 16 anos e, portanto, absolutamente incapaz civilmente.

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Enunciado 44 do CNJ. I Jornada de Direito da Saúde. Comentários.

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Enunciados da I Jornada de Direito da Saúde do CNJ e a Ética Médica.

Comentários ao Enunciado nº 44.

ENUNCIADO N.º 44

O absolutamente incapaz em risco de morte pode ser obrigado a submeter-se a

tratamento médico contra a vontade do seu representante.

A I Jornada de Direito da Saúde do Conselho Nacional de Justiça, realizada em maio deste ano,

definiu Enunciados importantes sobre “Saúde Pública, “Saúde Suplementar” e “Biodireito”.

Alguns desses Enunciados, sem dúvida, irão gerar bastante polêmica e um deles é o de nº 44, que

prevê o tratamento médico obrigatório, no caso de incapacidade absoluta do paciente, quando

houver risco de morte, à revelia da vontade do representante.

O Enunciado adota como foco principal o denominado “absolutamente incapaz”, induzindo assim

à necessária aplicação do conceito de “absolutamente incapaz para os atos da vida civil”,

determinados pelo artigo 3º do Código Civil brasileiro, como sendo: “I. os menores de dezesseis

anos; II. os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento

para a prática desses atos e, III. os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua

vontade.”

Os incisos II e III trazem uma definição mais tranquila, posto que indicam pessoas que não

possuem condições, ainda que momentâneas, de externarem a sua manifestação de vontade; um

exemplo prático é a hipótese do paciente que se encontra inconsciente e, neste caso, existindo

risco de morte, o Enunciado vai ao encontro do próprio Código de Ética Médica que, em seu

artigo 31, define ser vedado ao médico “desrespeitar o direito do paciente ou de seu

representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou

terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte.”

Todavia, o próprio Código de Ética Médica define, por intermédio do parágrafo único do seu

artigo 41 que “nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados

paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas,

levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente, ou na sua impossibilidade, a de

seu representante legal.”

Tal hipótese ética indica que o médico não deve praticar a chamada distanásia, ou obstinação

terapêutica, levando sempre como norte a vontade do paciente ou de seu representante; neste

ponto específico, podemos vislumbrar um conflito entre a norma ética e o Enunciado.

Isto porque a ordem de não ressuscitar, por exemplo, um paciente terminal que se encontra

inconsciente e, portanto “absolutamente incapaz,” pode e deve partir de seu representante.

Pacientes terminais estão em constante risco de morte, sendo que a orientação ética e bioética

tem avançado bastante no sentido de que procedimentos que visem apenas a prolongar a vida de

maneira artificial, dolorosa e obstinada não devem prevalecer, respeitando-se a vontade do

paciente e do seu representante, no sentido da não intervenção, quando há a falência do corpo.

Entretanto, o ponto que pode trazer maior discussão repousa na ausência de respeito à vontade

do paciente menor de 16 anos e, portanto, absolutamente incapaz civilmente.

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O paciente que se encontra consciente, psicologicamente capaz de decidir, mas possui 15 (quinze)

anos de idade poderá ser forçado a um procedimento médico, absolutamente contrário à sua

vontade, por que há o risco de morte? E mais ainda, tal paciente necessita sempre de um

“representante” para decidir por ele?

Não nos parece que o Enunciado tenha andado bem ao utilizar o termo “absolutamente incapaz”,

posto que na seara médica, esta “incapacidade” é decidida entre médico e paciente e a vontade

deste é respeitada não com base em sua idade, mas no limite da sua capacidade de compreensão.

Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente, o período da adolescência se inicia aos 12 anos

de idade, sendo assegurado, por exemplo, o direito à crença e ao culto religioso (art. 16, III),

destacando-se que o artigo 17 também lhe garante o direito à inviolabilidade da sua autonomia.

Entretanto, como respeitar a vontade e a autonomia de um adolescente de 15 anos que, por

convicção religiosa, não queira se submeter a uma transfusão de sangue, plenamente consciente

dos riscos inerentes a esta forma de não intervenção?

O fato é que como regra geral, a ninguém é concedido o poder absoluto de intervenção contra a

vontade do paciente, mesmo que com risco de morte e, quanto a este aspecto entendemos que o

Enunciado ultrapassou os limites do que prega a bioética e o biodireito.

Ao chamado “menor incapaz”, no âmbito médico, é permitida a tomada de decisões, mesmo sem

a presença de seus pais, sendo inúmeros os casos de pacientes atendidas em unidades de saúde,

para primeiro atendimento ginecológico, com 17 (dezessete) anos, sem a presença da mãe, em

pleno direito à autonomia e privacidade; a capacidade de discernimento das informações que são

trocadas é que deve ser avaliada pelo médico.

Situações de terminalidade da vida, não excepcionadas pelo Enunciado, podem ter complicadores

de difícil solução com a sua aplicação hermética.

Viver é um direito, não um dever, e cada um tem autonomia para lidar com este direito de acordo

com as suas próprias convicções.

Evidentemente que o presente artigo busca apenas levantar questões a serem discutidas, pois

uma das principais funções da bioética é descobrir perguntas e não respostas.

O Estado laico deve proteger a vida contra intervenções de terceiros, mas jamais contra o próprio

titular deste direito quando, de forma consciente, tem pela capacidade para decidir; a caminhar

assim, em breve surgirão propostas para que o suicídio seja punido, por exemplo, com o

perdimento dos bens do de cujus em favor do Estado, como era feito em alguns países da Europa,

no século XVIII ou, ainda, o sepultamento fora do solo sagrado, como na antiga Roma.

Osvaldo Pires G. Simonelli Advogado–Chefe do Departamento Jurídico do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo - CREMESP

Pós-graduado em Direito Administrativo e Constitucional, e Direito Processual Civil.

Mestrando em Medicina – UNIFESP.

Professor e Coordenador de Cursos na área do Direito Médico e da Saúde.

Autor do Livro “Manual do Médico Diretor”, Ed. Satius, 2010.

Contato: [email protected]