Entrevistas Com Sennett

50
Entrevistas com Sennett Juntos agora. Entrevista com Richard Sennett "Fazer é pensar", afirma Richard Sennett , um dos mais importantes sociólogos contemporâneos. Seu trabalho reflete sobre como os sujeitos podem se tornar intérpretes competentes da própria experiência a despeito dos obstáculos que a sociedade possa oferecer. Para ele, pensamento e sentimento estão contidos no processo de fazer, transformando em falsa a divisão entre o "homem que faz" e o "homem que pensa" - aqui se remete às reflexões da filósofa alemã Hannah Arendt , de quem foi aluno. Sennett acaba de ter lançado no Brasil o livro "Juntos: Os Rituais, os Prazeres e a Política da Cooperação", segundo volume do seu "Projeto Homo Faber", trilogia que tem no centro a ideia do homem como artífice de si mesmo. A reportagem e a entrevista é de Giovanna Bartucci, psicanalista, professora doutora de teoria psicanalítica (UFRJ), autora de "Fragilidade Absoluta. Ensaios Sobre Psicanálise e Contemporaneidade" (Planeta), entre outros livros, e publicada no jornal Valor, 24-08-2012. Com mais de 15 livros publicados sobre como as cidades são organizadas - as relações entre classes sociais, oportunidades econômicas e relações familiares -, e também sobre as consequências sociais e emocionais do capitalismo contemporâneo, as pesquisas de Sennett se voltaram, nos últimos tempos, para os estudos culturais, estabelecendo um diálogo entre sociologia, história, antropologia e psicologia social.

Transcript of Entrevistas Com Sennett

Page 1: Entrevistas Com Sennett

Entrevistas com Sennett

Juntos agora. Entrevista com Richard Sennett

"Fazer é pensar", afirma Richard Sennett, um dos mais importantes sociólogos contemporâneos. Seu trabalho reflete sobre como os sujeitos podem se tornar intérpretes competentes da própria experiência a despeito dos obstáculos que a sociedade possa oferecer. Para ele, pensamento e sentimento estão contidos no processo de fazer, transformando em falsa a divisão entre o "homem que faz" e o "homem que pensa" - aqui se remete às reflexões da filósofa alemã Hannah Arendt, de quem foi aluno. Sennett acaba de ter lançado no Brasil o livro "Juntos: Os Rituais, os Prazeres e a Política da Cooperação", segundo volume do seu "Projeto Homo Faber", trilogia que tem no centro a ideia do homem como artífice de si mesmo.

A reportagem e a entrevista é de Giovanna Bartucci, psicanalista, professora doutora de teoria psicanalítica (UFRJ), autora de "Fragilidade Absoluta. Ensaios Sobre Psicanálise e Contemporaneidade" (Planeta), entre outros livros, e publicada no jornal Valor, 24-08-2012.

Com mais de 15 livros publicados sobre como as cidades são organizadas - as relações entre classes sociais, oportunidades econômicas e relações familiares -, e também sobre as consequências sociais e emocionais do capitalismo contemporâneo, as pesquisas de Sennett se voltaram, nos últimos tempos, para os estudos culturais, estabelecendo um diálogo entre sociologia, história, antropologia e psicologia social.

Seu "Projeto Homo Faber" defende a urgência em pesquisar "as habilidades necessárias à vida cotidiana", ao explorar práticas sociais e materiais - isto é, os objetos, as ferramentas e as máquinas criadas pelo homem e o modo pelo qual ele interage com elas - presentes em um mundo globalizado e pleno de incertezas.

Se em "O Artífice" (Record, 2009), primeiro volume da série, Sennett analisa a artesania, ou seja, o empenho de fazer bem as coisas materiais, no livro recém-lançado ele aborda a natureza da cooperação, traça a evolução de seus rituais desde a Idade Média até a atualidade e detém-se nas razões pelas quais a cooperação se tornou débil e na maneira pela qual pode ser fortalecida.

"Juntos" foi uma consequência natural de "O Artífice", já que "a artesania prospera em comunidades com laços sociais fortes e em organizações que encorajam a cooperação", afirma o sociólogo, professor da New York University, da London School of Economics e da Cambridge University - onde é professor-visitante emérito. Sennett define a cooperação habilidosa

Page 2: Entrevistas Com Sennett

como um ofício que tem o seu fundamento no aprendizado de escutar o outro com atenção e na capacidade de dialogar, em oposição a debater ou discutir. No entanto, se na economia contemporânea artesania e cooperação estão ameaçadas e o desafio de conviver com a diferença - seja racial, étnica, religiosa ou econômica - é extremo, Sennett entende que a prática da cooperação se torna fundamental para a prosperidade da sociedade.

Considerando ainda que as relações e "condições" espaciais têm importância enorme no modo por meio do qual "estranhos" (ou pessoas diferentes umas das outras) se relacionam nas grandes cidades, o autor espera que o terceiro volume da trilogia, ainda em elaboração, possa produzir ideias de valor sobre como as cidades podem ser mais bem construídas visando a qualidade de vida das pessoas.

É provável que seus escritos sobre as cidades tenham sido fortemente influenciados por sua experiência de vida familiar. Nascido em 1º de janeiro de 1943, em Chicago, o autor morou, dos 3 aos 9 anos, com a mãe, escritora e destacada assistente social, em Cabrini Green, conjunto habitacional construído com o objetivo de suprir a escassez de moradia causada pela Segunda Guerra, mas também de combater a segregação racial.

O relacionamento passivo com o conjunto habitacional, cuja austeridade arquitetônica, com seus caixotes baixos e compridos, representava a bandeira modernista do projeto, deixou marcas na "comunidade mista de negros, brancos pobres, mutilados [de guerra] e perturbados mentais [que] compunha o objeto do experimento de inclusão social", escreve o autor no livro "Respeito - A Formação do Caráter em um Mundo Desigual" (2004, Record). Frequentando uma escola católica e mergulhado em estudos musicais iniciados aos 5 anos, Sennett passou a infância emCabrini Green. Aos 15, já tendo morado com a mãe em Washington, durante seis anos, o então músico saiu de casa e, de volta a Chicago, passou a viver de seu trabalho como violoncelista.

Músico profissional dos 15 aos 19, quando passou a sofrer de síndrome do túnel carpal, foi obrigado a abandonar a carreira precocemente e a investir, ainda que à época de maneira descomprometida, na sociologia. Assim, não soa estranha sua afirmação: "Minha sociologia é construída em torno do modelo de aquisição da habilidade de tocar um instrumento, e a prática e o aprimoramento da prática têm sido sempre o centro do que tenho realizado em sociologia". E mais: "No que diz respeito à cooperação e relações de autoridade, a maneira por meio da qual músicos trabalham juntos se constituiu em um modelo de sociabilidade para mim".

Detentor de numerosos prêmios e com obras traduzidas para diversos

Page 3: Entrevistas Com Sennett

idiomas, Richard Sennetttambém publicou três livros de ficção na década de 1980, ainda inéditos no Brasil.

Eis a entrevista.

Antes de começar a trabalhar na sua trilogia, o senhor escreveu de maneira extensa sobre as consequências sociais e emocionais do capitalismo contemporâneo. Como vê o mundo hoje?

A década de 1990, período durante o qual escrevi esses ensaios críticos ["A Corrosão do Caráter", "Respeito" e "A Cultura do Novo Capitalismo"], foi um período de boom   para o neoliberalismo . O que está acontecendo agora é que estamos vivendo uma crise, a era neoliberal entrou em colapso, no que diz respeito à sua manutenção financeira, e suas fontes têm se provado insustentáveis. Tive um vislumbre disso, na época, quando percebi que a experiência de trabalho das pessoas estava se tornando muito empobrecedora. Hoje, eu diria que a ideia de encontrar uma alternativa não é um projeto utópico, mas algo que precisamos fazer porque esse sistema não funciona. No entanto, encontrar uma alternativa significa repensar coisas muito básicas, como o que é trabalhar bem, cooperar, criar um lugar no mundo para si. Estou interessado em pesquisar de maneira aprofundada sobre como as nossas atitudes e os nossos comportamentos devem mudar para que sejamos capazes de responder a essa crise.

A sua trilogia é, então, a sua resposta a esse estado de coisas?

Sim, exatamente. Eu me cansei de ser apenas um crítico do capitalismo. É deprimente escrever somente sobre o que não funciona bem. Comecei, então, a pensar sobre qual seria a melhor maneira de compreender como as pessoas exercem um ofício e trabalham. E todo esse novo campo que diz respeito a questões relacionadas às habilidades, à busca da qualidade e à forma que as atividades produtivas podem estar associadas a como as pessoas cooperam umas com as outras, estabelecem relações sociais e criam espaços para viver nas cidades, se abriu para mim. São esses os temas da trilogia.

Quais são os valores e práticas capazes de manter as pessoas "juntas", cooperando umas com as outras, neste momento em que as instituições se encontram desacreditadas?

Penso que há duas, inicialmente. A primeira diz respeito ao tempo, à duração de tempo, que instituições da sociedade civil e organizações como ambientes de trabalho mantêm as pessoas em contato umas com as outras. Atualmente, o mundo social tem se organizado em torno de trocas de curto prazo, ao invés de relações de longo prazo. Expandir o tempo significa, por exemplo, possibilitar que trabalhadores estabeleçam contratos de longo prazo, em lugar

Page 4: Entrevistas Com Sennett

de curto prazo. Essas são aplicações muito práticas. No que diz respeito às empresas, implica manter trabalhadores em suas equipes, ao invés de deslocá-los permanentemente, de maneira flexível. Ou seja, tempo funcionando aqui como cimento, como uma narrativa. A segunda habilidade que as pessoas têm que aprender, para enfrentar essa crise, diz respeito à capacidade de lidar com a agressividade e a competição, na medida em que formas agressivas de competição são recompensadas, enquanto outras formas não o são, provocando uma desigualdade enorme. Penso que é importante repensarmos a competição tanto culturalmente quanto economicamente.

O senhor tem afirmado que a "cooperação" tem se deteriorado na esfera política e também na sociedade civil e define o termo como "trabalhar com os outros para fazer algo que não se consegue fazer por si próprio". No entanto, a expectativa é de que os homens e mulheres contemporâneos sejam autossuficientes e autocentrados. O que pensa desse paradoxo?

O problema aqui está em como pensar em precisar de pessoas com as quais não se está conectado intimamente, que não se conheça bem ou mesmo de quem não se gosta. Ou seja, de um modo mais adulto e complexo. E essa é a realidade adulta que está presente na "cooperação". No entanto, para que isso seja feito é necessário imaginar que as relações sociais são como uma oficina [workshop] na qual as pessoas, com diferentes qualidades e habilidades, trabalham sobre um problema comum. Uma oficina não é apenas uma oficina de artesanato; existem laboratórios científicos que funcionam da mesma maneira. O paradoxo, então, não está na sociedade como um todo, mas exatamente no fato de que o sistema econômico recompensa e premia uma forma não produtiva de trabalho conjunto. E o sistema trata as pessoas como autossuficientes porque recompensa aqueles poucos que o são e não recompensa muito bem aqueles que não têm esse tipo de "capital humano" ou posição social. Desse modo, se há um paradoxo, aqui, diz respeito ao fato de que o sistema está cego para aquilo que é, de fato, produtivo.

"Uma das coisas que espero que fiquem claras é que não faço distinção entre corpo e mente, ao me ater a como os seres humanos produzem coisas"

Como o senhor vê as mobilizações sociais como Occupy Wall Street e os movimentos sociais omo a Primavera Árabe?

Com prazer! Mas são formas muito diferentes de cooperação. O que chamamos de Primavera Árabe foram movimentos de massa nos quais as pessoas cooperavam em grandes multidões, e o fato de se juntarem em uma quantidade enorme de pessoas foi parte de sua força. Os movimentos Occupy   foram bem menores - e isso é algo que as pessoas esquecem, que eram de apenas 200 ou 300 pessoas. Esses movimentos não se apoiaram na quantidade de participantes e, sim, na persistência em provocar

Page 5: Entrevistas Com Sennett

uma conscientização no público, de maneira geral, por meio da mídia. Em outras palavras, não era um movimento de massa, como o entendemos, mas tornou-se um na medida em que despertou o público de maneira bem diferente. E a cooperação, aqui, está no fato de que essas 200 ou 300 pessoas, dormindo juntas no parque, em Nova York, criaram laços sociais que permitiram que perseverassem. Os movimentos Occupy não eram "demonstrações", que teriam a duração de algumas horas ou um dia, mas "ocupações" de longo prazo - o que deu às pessoas envolvidas a força para continuar a tentar despertar o público. Nos movimentos da África do Norte havia uma massa de pessoas que não precisava ser acordada. Elas haviam vivido sob tirania por décadas. O que precisavam era de um "instrumento" por meio do qual se juntar. Mas na Inglaterra e nos Estados Unidos os movimentos Occupy aconteceram após três anos de colapso financeiro, durante os quais a maioria das pessoas comprou a história de que o sistema tinha de ser restaurado ao que era antes, e os ocupantes desafiaram isso. As formas de cooperação são, então, muito diferentes, uma impessoal e outra bastante pessoal, com objetivos distintos. Mas ambas são formas de cooperação política.

O seu livro "Carne e Pedra" (1992) é um estudo sobre como a experiência do corpo tem sido moldada pela evolução das cidades. Como é que o terceiro volume de sua trilogia está relacionado ao seu trabalho anterior?

É claro que vou me apoiar em minhas pesquisas anteriores, mas a diferença está em que o terceiro volume tem como tema o design urbano, o planejamento e a arquitetura como ofícios. O foco estará menos na maneira em como as pessoas habitam espaços que não construíram e mais em como construir cidades de melhor qualidade por meio do design.

O corpo como sítio, como uma "cidade". O que o senhor pensa dessa ideia? 

O corpo é uma cidade! Sim, é um sítio tanto de conhecimento quanto de ação. E uma das coisas que espero que fiquem claras ao final dessa trilogia é que não faço distinção entre corpo e mente, ao me ater em como os seres humanos produzem coisas. Desconfio absolutamente da ideia de que as pessoas, quando produtivas, estejam fisicamente desconectadas e de que tenham uma vida espiritual divorciada dos sentidos. É estranho, mas esse é um tipo de romantismo que tem persistido: acreditar que se tenha uma vida interior divorciada da vida exterior.

E os seus romances? Como estão relacionados ao seu trabalho sociológico?

Gosto bastante de "Palais Royal" (1987). O que aconteceu foi que, quando

Page 6: Entrevistas Com Sennett

terminei "O Declínio do Homem Público" (1974), senti que a minha escrita estava se deteriorando e eu estava perdendo a habilidade de escrever de maneira "evocativa". Leio ficção sempre; decidi, então, que começaria a escrever romances para encontrar caminhos por meio dos quais rejuvenescer a minha escrita. Escrever não é algo natural para mim; os resultados são satisfatórios, mas preciso fazer um esforço. Assim, escrevi romances porque precisava fazer o meu workshop pessoal.

Page 7: Entrevistas Com Sennett

O declínio da autoridade e o exemplo da música. Entrevista com Richard Sennett

O nosso breve périplo em torno de uma das palavras mais importantes e alusivas da vida social – "autoridade"– concluiu em um pequeno escritório da London School of Economics. Na companhia do professor Richard Sennett .

A reportagem é de Franco Marcoaldi, publicada no jornal La Repubblica, 29-11-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Dificilmente poderíamos encontrar um melhor interlocutor para nós para fechar esta nossa investigação. Não apenas porque Sennett é autor de um ensaio de 1981, republicado pela editora Bruno Mondadori em 2006, intitulado justamente Autorità. Subordinazione e insubordinazione: l'ambiguo vincolo tra il forte e il debole. Mas ainda mais porque esse brilhantíssimo professor de Chicago, que há muitos anos se deslocava entre aLondon School of Economics e a New York University, é um acadêmico muito particular. Capaz de fazer convergir nos seus estudos sociológicos (centrados sobretudo no mundo do trabalho e na vida urbana) as contínuas reflexões de paixões não menos intensas pela arte e a filosofia, pela literatura e a música. Sobretudo a música, disciplina à qual Sennett era devotado como violoncelista de talento, se uma doença da mão não tivesse intervindo para lhe impedir de empreender aquela carreira artística.

Não por acaso, no seu pequeno escritório, estão fixados nas paredes dois pôsteres que retratam as caixas harmônicas de muitosStradivarius. E não por acaso o mundo musical continua sendo a estrela-guia dos seus estudos científicos.

Eis a entrevista.

Professor, eu lhe proporia novamente a primeira consideração a partir da qual esta viagem começou. Falo daquele duplo sentimento que, de um lado, nos leva a desconfiar da autoridade, na tentativa de descartá-lo, enquanto, de outro, evidencia uma necessidade generalizada

Page 8: Entrevistas Com Sennett

dela.

Essa duplicidade é totalmente natural, mas hoje salta aos olhos como nunca antes. A necessidade de autoridade é primário, mas, ao mesmo tempo, tememos a sua influência como uma ameaça à nossa liberdade. E é claro que essa tenaz se aperta ainda mais quando nos parece impossível proteger o espaço da legitimidade do da dominação. E é isso que ocorre na sociedade contemporânea, com o triunfo absoluto daquele neoliberalismo que substituiu a autoridade legítima pelo mercado: um deus escondido, cego e abstrato, que de fato anulou a tradicional esfera da autoridade enquanto unidade de medida da legitimidade do poder.

Entre as definições de autoridade, há uma particularmente feliz de Mommsen: "Mais do que conselhos e menos do que uma ordem".

Isso tem a ver com o meu caso, já que eu falo de relação temporária, vínculo entre desiguais, submissão voluntária. Porque o verdadeiro teste da autoridade não é representado tanto por aquilo que a figura dominante propõe, mas sim pelo grau de aceitação da figura submissa. Tome por exemplo a atual cultura popular: são totalmente evidentes a facilidade e a passividade com a qual se obedece coletivamente a um sistema de desejos materiais e de prazeres que nos são propostos. O fato é que, em um momento de crise social e econômica gravíssima, como a que estamos passando, justamente esse tipo de autoridade corre o sério risco de entrar em colapso.

Ainda em seu ensaio de 1981, o senhor também tentava delinear os aspectos positivos da autoridade.

Uma boa autoridade é aquela capaz de determinar a participação ativa daqueles que são chamados a segui-la. Eu escrevi muito sobre o mundo do trabalho e, como velho marxista, eu continuo pensando que aí está o verdadeiro coração da questão. Vou lhe dizer uma coisa que talvez vai lhe surpreender, mas eu acho que uma certa empresa artesanal do norte italiano oferece um excelente exemplo do que estou dizendo. Justamente porque faz referência a termos como cooperação e participação. Exatamente o oposto do que indicam os processos capitalistas hoje dominantes, que evidenciam uma crescente financeirização da economia e uma crescente injustiça social.

Sei muito bem que, quando se fala de crise da autoridade, na maior parte dos casos, se faz referência à escola, à família, à política. No entanto, eu acho que deveríamos concentrar a atenção sobre o mundo do trabalho. Especialmente a esquerda

Page 9: Entrevistas Com Sennett

deveria fazer isso, que, ao contrário, se preocupa muito com o poder e com a "politique politicienne", deixando de lado os processos sociais e comunitárias, a vida concreta das pessoas. Mas a maior ou menor vitalidade de uma sociedade está ligada às suas práticas cotidianas e generalizadas, mais do que a hipotéticas reformas políticas que caem do céu.

O senhor escreveu que só reconhecendo dentro de nós a necessidade de autoridade é que conseguiremos retirar-lhe o espinho da onipotência. Só assim poderemos colocá-la à distância e, portanto, relativizá-la.

Eu escrevi também que a essência dessa consciência interior se dá na relação entre a autoridade e o tempo. Ninguém é forte para sempre. Os pais envelhecem e morrem, os filhos tomam o seu lugar. A autoridade não é um estado ontológico, mas sim um evento temporal, governado pelo ritmo do nascimento e da morte. Ser consciente do vínculo entre força e tempo significa saber que nenhuma autoridade é onipotente. É somente um processo, um fluxo, uma relação, uma prática.

Ainda nesse livro, o senhor tomava como modelo de autoridade o regente de orquestra. O senso comum propõe, a esse respeito, duas figuras opostas: o diretor-ditador (cujo protótipo, nem é preciso dizer, seria Toscanini) e o diretor-democrático. Questionado sobre isso, Lorin Maazel me disse que não se reconhecia em nenhum dos dois.

E tinha razão. Porque essas distinções abandonam o tempo que encontram. O meu professor de violoncelo parecia justamente com Toscanini e, obviamente, lembrava os seus terríveis e célebres excessos de fúria. Mas ele acrescentava que, uma vez alcançada a recíproca confiança, essa fúria cessava. Como se vê, retorna novamente a ideia de autoridade como processo, busca de uma relação. Acrescento que, mesmo nesse âmbito, o problema da confiança se refere aos professores antes mesmo do que o regente. Pude verificar isso justamente com Maazel, vendo os professores literalmente se abandonarem a ele. Na consciência de que ele existia, estava ali para eles, até o fim. Eu não saberia encontrar uma melhor representação plástica da autoridade.

Mas há também um outro aspecto em que a música, e a arte em geral, pode nos ajudar a definir a boa autoridade, que, por sua natureza, nunca é estática, definida, fixada uma vez por todas, como, ao contrário, pretende o poder político autoritário. Quem nos lembra disso é um pequeno episódio que se refere a Matisse. Estamos em 1914, e um grupo de admiradores vai ver os seus últimos quadros, nos quais as relações entre as cores parecem ter atingido níveis de sublime perfeição. Diante de tanto estupor

Page 10: Entrevistas Com Sennett

cheio de admiração, Matisse responde: o que para vocês é o absoluto equilíbrio e a absoluta perfeição, para mim é apenas uma etapa da mudança necessária. O que quero dizer é que a boa autoridade é aquela que é perenemente posta em discussão.

O artista, portanto, como modelo de autoridade em um mundo que parece ter que enfrentar o declínio da autoridade política conhecida no passado?

Sei que pode parecer bizarro dito por quem estuda os fenômenos sociais. Mas eu acho exatamente isso: senão, não teria escolhido o regente de orquestra como figura paradigmática do livro sobre a autoridade, e o quarteto de cordas no meu novo livro sobre a cooperação, que a editora Feltrinelli irá publicar na Itália no ano que vem. Quanto à autoridade política, eu acho que deveria ser abandonada uma certa fantasia romântica que ainda a envolve. Senão, continuaremos indo ao encontro de decepções inevitáveis, como aconteceu recentemente com Obama.

O Homo faber, apesar de tudo, continua sendo a figura central da nossa sociedade. São os objetos, os artefatos, as obras de arte que representam o verdadeiro laço entre as diversas gerações, portanto também a ocasião de confronto e de reações com relação ao passado. Segundo as modalidades das quais já se falou: primeiro, interiorização do modelo de autoridade, depois a sua objetivação, distanciamento e crítica. A relação com a autoridade pode se tornar profícuo se ele for pensado como algo semelhante ao ritmo cardíaco, como uma sucessão contínua de sístoles e diástoles.

Page 11: Entrevistas Com Sennett

"O capitalismo se tornou hostil à vida’. Entrevista com Richard Sennett

O capitalismo financeiro mudou o mundo. E não para melhor. A opinião é do sociólogo Richard Sennett. A aversão ao longo prazo deste capitalismo foi um dos fatores que originaram a atual crise e que mudou radicalmente as nossas vidas nas últimas décadas. Sennett esteve em Barcelona, na Espanha, apresentando seu último livro, O Artífice (Record, 2009), que parte de uma antiga conversa com sua professora Hannah Arendt, a autora de A condição humana, na qual ela separava a produção física, na qual seríamos pouco mais que bestas de carga, da criação mental. Para Arendt, a mente entra em funcionamento uma vez terminado o trabalho. Para Sennett, no processo de produção do artesão – todo aquele que deseja realizar uma tarefa bem feita, e que inclui não apenas a produção manual, mas também programadores, médicos, artistas ou padres – o pensar e o sentir estão integrados. A mão e a cabeça não estão separadas, mesmo que a nossa sociedade valorize apenas uma.

A entrevista é de Justo Barranco e está publicada no jornal argentino Clarín, 23-12-2009. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.

Por que a relação entre a mão e a cabeça é básica?

Nossa potência mental se desenvolveu através das mãos, da manipulação de coisas. Hoje pensamos nas atividades materiais como coisas estúpidas, percebemos nossos cérebros como uma máquina auto-suficiente. É errado. Há um processo aberto entre melhorar as capacidades físicas e o pensamento, uma relação estreita entre a mão, a cabeça e o coração. Pensamos um desenho e acreditamos que essa imagem mental pode projetar-se no mundo. Uma péssima política: não aprendemos da prática.

Parece aquela velha divisão filosófica entre alma e corpo.

Não é apenas a filosofia, a política também. O capitalismo fomentou esta divisão. Nas últimas décadas os bancos negociaram com abstrações, teorizam sobre os valores e perdem o contato com o que é uma fábrica, uma oficina. Muitos compram e vendem empresas que não entendem. Nem precisam, porque compram o seu valor monetarizado. E não há possibilidade, artesanato, de fazer com que a empresa seja boa ou má, não há conhecimento. Compram uma empresa de colchões e a vendem a outra, mas com mais dívida, esta faz o mesmo. A empresa tem cada vez menos capital e tende a quebrar. Perguntei a um dos compradores: viste como se faz um colchão? Me respondeu: para quê,

Page 12: Entrevistas Com Sennett

se seria proprietário por apenas três meses. Assim se desenvolve agora a economia capitalista, se despreza a práxis, a mão na massa, não sabem o que fazer porque de fato nunca administraram nada.

É a exploração atual?

Sim, a dominação das finanças sobre a economia real. As finanças são uma operação abstrata. Sempre pensamos que o capitalismo é hostil ao artesanato porque descapacita o artista, mas é mais sofisticado: não está implicado na prática. Teoriza. Por exemplo, com a dívida. É uma das razões da crise atual.

E as outras?

Outra é a forma do tempo no capitalismo hoje: tudo é curto prazo. A economia global se reorienta para o comércio de preços das ações mais que os seus benefícios finais. A noção de administrar uma empresa para ter benefícios a longo prazo desapareceu. Podes ganhar dinheiro com empresas que estão perdendo. De maneira que quando chegas a uma economia como esta não tens interesse em conseguir que a economia real funcione.

Que pensa o autor de A corrosão do caráter do alarma pela alta taxa de suicídios em empresas como a Renault ou a France Télécom?

Na minha equipe estamos estudando o desemprego a longo prazo em Wall Street e encontrando coisas muito similares. Alcoólicos e suicídios não apenas entre os que perdem o trabalho, mas entre os que permanecem e que estão tão estressados porque para preservar o posto de trabalho têm que fazer cada vez mais. O capitalismo nos últimos 20 anos se tornou completamente hostil à construção da vida. No antigo capitalismo corporativo de mediados do século XX podias sofrer injustiças, mas construir a vida. Nos últimos 20 anos se converteu em algo desumano, e a esquerda está tão contente por serem homens práticos que podem falar com os banqueiros. De fato, o primeiro movimento na crise foi ajudar os bancos. Na Inglaterra foram comprados quatro e mesmo assim se decidiu não interferir no que fizeram.

Qual é a alternativa?

Não podemos voltar ao antigo capitalismo. A esquerda deve refletir sobre como fazer crescer empresas que realmente permaneçam. Empresas de tamanho pequeno como as do norte da Itália e do sul da Alemanha, com trabalhos muito especializados. Não fabricam em massa e trabalham mais a longo prazo, desde a formação dos trabalhadores até as suas relações de exportação. Um trabalho artesanal, que pode ser muito avançado, como telas de alta definição para cirurgias.

Page 13: Entrevistas Com Sennett

O Artífice é o início de uma trilogia de despedida.

Queria unir as preocupações básicas da minha obra, a relação entre o material e o social, o concreto e o abstrato. Depois me dedicarei ao violoncelo, terei recuperado a possibilidade de tocá-lo, mas só me restam dez anos na mão. Certamente, todos os músicos são artesãos, sabem que não existe uma ideia musical sem base física. O segundo livro será dedicado à relação entre o material e o social: a confiança, o respeito, a cooperação, a autoridade, o artesanato das relações sociais. E o terceiro, à nossa relação com o meio ambiente.

Você não aceita o que está por trás da ideia de sustentabilidade.

Porque não somos proprietários da natureza. Sustentabilidade significa manter as coisas como estão. É uma metáfora errônea. Podemos viver com muito menos. Menos tráfego, menos carbono. Diferentes tipos de prédios. Devemos mudar a noção da modernidade de que o ser humano sempre dominaria a natureza. Produz autodestruição. Copenhague foi terrível, especialmente os chineses, que cinco dias antes diziam "verde, verde", e depois que não, que não queriam que ninguém interferisse nem conhecesse a sua tecnologia. Aterrador. E os europeus, fora do jogo.

Page 14: Entrevistas Com Sennett

Cortina rasgada. Entrevista com Richard Sennett

Nos últimos dez anos, o sociólogo Richard Sennett (EUA) estudou o giro copernicano que o neoliberalismo impôs ao mundo do trabalho.

A reportagem e a entrevista são de Matilde Sánchez e publicadas pelo jornal Folha de S. Paulo, 08-11-2009.

Seus estudos "A Corrosão do Caráter" e "O Ar tífice " (ambos pela Record) analisam tanto as grandes mudanças na gestão do mundo fabril como a subjetividade do operário ao ser substituído por máquinas ou jovens empregados por um quarto de seu salário - e sem memória sindical.

Sennett, que é professor emérito da London School of Economics, defende na entrevista abaixo a tese de que a queda do Muro de Berlim não foi determinante para a globalização.

Para ele, esse processo já vinha ocorrendo fazia tempo.

 Eis a entrevista.

Existe uma crença generalizada de que o colapso do bloco socialista desencadeou a globalização. Mas o sr. e outros estudiosos separam os dois processos.

É tentador tomar a queda do muro como metáfora perfeita para a globalização, mas ela não procede.São dois desdobramentos distintos. Não se deve enfocar a queda e a dissolução do império comunista como consequências do ímpeto capitalista; a rigor, isso está mais ligado a um processo europeu, e não ao capital financeiro ou à irrupção da China na economia.

Uma das surpresas é que o debate nacional alemão não versou sobre a globalização, mas sobre a inclusão de forças do território oriental.

Quando a União Soviética foi dissolvida, muitas dessas economias soberanas imaginavam que poderiam se beneficiar do sistema mundial. Mas não demoraram a compreender que por muito tempo seriam apenas os parceiros pobres.

De que data o sr. identifica o atual ciclo de globalização?

De muito antes, de 1971, com a ruptura do acordo de Bretton Woods, negociado em 1944, que regulava o fluxo comercial e financeiro no mundo

Page 15: Entrevistas Com Sennett

ocidental. Aconteceu quando os EUA abandonaram unilateralmente a conversibilidade de sua moeda e o padrão-ouro.

Ao contrário do que se acredita, os EUA hesitaram bastante. Investiram pouco no Leste Europeu, o equivalente a 10% dos investimentos na China nos últimos 20 anos. Buscavam uma escala bem maior de investimento. Desde 1995, já tinham a China como foco.

O que isso significou para as massas de trabalhadores comunistas desempregados?

As liberdades políticas trouxeram instabilidade, e foi então que eles começaram a computar suas perdas e ganhos. Essa foi uma das ironias do processo: eles haviam passado a ter liberdades, mas alguns se enriqueceram demais e outros empobreceram muito.

Aconteceu o oposto do que o proletariado esperava; tanto nas pequenas empresas como nas universidades, empregos foram perdidos.

Na verdade, aconteceu uma tragédia para toda uma geração. Minha impressão pessoal é que, nos anos 1990, a geração de transição sofreu uma grande decepção retrospectiva no Leste Europeu.

Esse trauma será superado pelas gerações seguintes.

O sr. acredita que a reforma deveria ser "nacional" e mais gradual?

Os processos estavam sujeitos à situação das empresas estatais. Muitas delas eram obsoletas, com parques de maquinaria antiquados e graves deficiências nos quadros de gestão.

Um dos problemas comuns no campo socialista era uma ética de trabalho pobre, com grande alienação dos trabalhadores quanto ao próprio ofício.

Quando visitei Weimar, na Alemanha Oriental, tudo exalava uma sensação de abandono; quando foi que os comunistas alemães se entregaram à indolência? Nem mesmo colocavam vasos de plantas em suas varandas...

Os novos governos não foram capazes de resolver problemas estruturais tão graves. A queda da União Soviética foi uma implosão, uma decadência interna; não houve uma derrota, o que causa espanto. O império soviético não foi conquistado pelo capitalismo mundial.

O sr. não crê, portanto, que os EUA tenham vencido a Guerra Fria?

Page 16: Entrevistas Com Sennett

Isso é uma estupidez. Nos anos 80, o presidente [dos EUA] Ronald Reagan havia aumentado imensamente os gastos com armamentos, e costumava-se dizer que esses gastos militares induziram a bancarrota soviética: bobagem.

Muitos dos países do Leste Europeu eram incapazes de gerenciar a própria transformação. O interessante é determinar por que os chineses, que também tinham um comunismo estatal muito rígido, não desabaram.

E isso dependia de qualidades que a China possuía antes da era comunista.

A China sempre teve uma estrutura estatal disciplinada e um sistema educativo magistral, bem como uma base popular muito entusiástica. E também o que chamei de "as tartarugas chinesas", uma imensa massa de trabalhadores emigrados para o mundo inteiro que reinvestiram dinheiro em seu país de origem.

Culturalmente, tinham todo o necessário para decolar.

Page 17: Entrevistas Com Sennett

Futuro de artífices da técnica e da mente. Entrevista com Richard Sennett

Richard Sennett, professor da London School of Economics, vê nas novas tecnologias a possibilidade de virar a página de modelos onde se faziam funções mecânicas, sem noção de conjunto. Mas em vez de considerar a internet o lugar de uma comunicação mais emocional, destaca em “O artífice” (Record) a importância de recuperar, na era das novas técnicas, antigos valores das oficinas de trabalhos manuais, desde a Idade Média. Nelas, o ofício não era necessariamente mecânico e levava o sujeito a adquirir uma autonomia criativa e social. Segundo Sennett, o capitalismo se moldou de forma destrutiva, mas precisa agora, para se reerguer, sobretudo dos artífices, que saibam trabalhar coletivamente, e com esmero.

A entrevista com Sennett é de Rachel Bertol e publicada pelo jornal O Globo, 07-06-2009.

Eis a entrevista.

Como conectar este livro com seus trabalhos anteriores?

Há duas razões. Por longo tempo, escrevi sobre problemas do trabalho no capitalismo moderno, em geral de forma bastante crítica em relação à maneira como as pessoas trabalham. Mas era sempre questionado por leitores e colegas sobre o que eu considerava uma boa maneira de trabalhar. O novo livro tenta mostrar aspectos mais positivos do trabalho. A outra razão é mais pessoal: tenho uma outra vida como músico — toco violoncelo —, embora não viva disso. E eu estava bastante interessado, neste momento da minha vida, em entender um pouco o que significa adquirir uma habilidade técnica, a partir da minha própria experiência como violoncelista.

Falo bastante de música no livro. Mas a questão básica é desvendar a relação entre a experiência física, a técnica manual, e a compreensão mental do que se faz. É um tipo de conexão que todo artífice, seja ele um artesão ou músico, faz.

É algo válido, como busco mostrar, também para programadores de informática, que devem desenvolver uma habilidade que parece exclusivamente mental. Isso compõe o pano de fundo do livro.

Muito do que diz se baseia em entrevistas feitas com o apoio dos alunos, não?

Page 18: Entrevistas Com Sennett

Tenho estudantes em Nova York e Londres que fazem entrevistas com vários tipos de trabalhadores de nível médio. As pesquisas, em geral, focam ou nos que estão na base, os muito pobres, ou nos muito ricos. Faz tempo, eu me disse que deveríamos ter mais compreensão dos que se encontram no meio, em como são explorados. Estamos entrevistando agora, por exemplo, profissionais técnicos da BBC, que fazem a parte mais burocrática e estão nos bastidores.

A mídia tem se mostrado um campo rico para estudar as transformações hoje...

A principal questão, para os jornalistas, é como manter o sentido de bom manejo artesanal, beneficiando-se das tecnologias.

Onde, na era do blog, podemos achar informações confiáveis. Os jornais tradicionais têm pesquisadores, pessoas que tentam contar histórias corretamente, que fazem entrevistas. Muito disso foi substituído, na internet, por pura opinião em blogs. Mas como se pode usar bem a nova mídia, com essa ferramenta maravilhosa que é a internet. É algo que se refere ao artesanal, e não simplesmente a um lugar onde há uma comunicação mais emocional.

Parte do estudo que estamos fazendo refere-se ao que está acontecendo com os jornalistas tradicionais que, na Grã-Bretanha, estão sendo substituídos por blogueiros. Aliás, eu gostaria de enfatizar que a ideia de artífice difere da ideia de um simples artesão. Com isso, quero falar do esforço de se fazer bem um trabalho, por conta própria — este é o sentido da palavra craftsmanem inglês. Porque você se importa com a qualidade do que faz. A grande questão neste livro é como podemos manter a qualidade num mundo de produção de massa, de informação de massa. As pessoas se importam com a qualidade do trabalho que fazem, e é isso que busco explicar no livro.

Está mais otimista...

Estou perversamente otimista (ele ri), e esta é uma resposta muito inglesa. O colapso do capitalismo nos EUA e na Europa levou as pessoas a pensar sobre novas formas de trabalhar. Estão começando a mudar os valores das pessoas sobre para que serve o trabalho. Isso aparece claramente nas entrevistas que fazemos.

Estou otimista de que um tipo diferente de valor social e cultural sobre o trabalho vai emergir dessa terrível crise. As pessoas tinham prosperidade, mas passavam horas em excesso trabalhando. Hoje, o desemprego na Grã-Bretanha é da ordem de 10% e, nos EUA, perto de 9% oficialmente, embora na realidade chegue a 14%. Depois dos colapsos nos últimos meses, as pessoas pensam se valeu a pena ter se envolvido tanto, ter sacrificado seu

Page 19: Entrevistas Com Sennett

tempo e sua família — todo tipo de consideração. Muitas gostariam de um trabalho em que fossem mais respeitadas, mesmo sem ganhar tanto, por isso estou perversamente otimista.

No século XIX, as máquinas eram vistas como ameaças, por serem consideradas substitutas da força de trabalho. Mas agora seu livro mostra como essa relação se transforma.

Agora é muito melhor. São diferentes tipos de máquinas, que respondem melhor à direção humana. As máquinas industriais tinham, digamos, uma programação mais rígida, cumpriam uma única tarefa. É o tipo de trabalho mecânico característico do fordismo. Uma das razões por que estou mais otimista é que as máquinas são tão mais inteligentes, flexíveis e sofisticadas, inclusive as máquinas industriais, que se as usarmos bem, tornam-se amigas, em vez de inimigas. Gosto de máquinas, de todo tipo de ferramentas, como se pode ver pelo meu livro. Esta é outra razão para olhar o passado dos trabalhos artesanais: estamos entrando numa nova era artesanal com essas máquinas, sobretudo se compreendermos como fazer uso das novas possibilidades tecnológicas. No momento, estou fascinado como o novo buscador Wolfram Alfa, que consegue dar respostas bem mais inteligentes que o Google, que simplesmente lista sites. Ainda está no início, mas o programa ajuda a resolver uma série de problemas, faz seleções bem mais inteligentes. Mas precisamos estar mais treinados do que quando usamos o Google. É o tipo de coisa que vem acontecendo o tempo todo.

Seu livro enfatiza o sucesso das formas de trabalho coletivas, inclusive em grandes empresas. Isso já se tornou um lugar-comum, mas na prática, de forma proliferada, talvez ainda não...

É preciso capacitar as habilidades dos trabalhadores, em vez da habilidade do trabalho. Nos últimos 30 anos, tivemos essa fantástica mudança no quadro técnico, tudo muito ligado à informática, em todo campo do trabalho. E a tendência das firmas foi migrar para lugares onde era possível pagar menos por essas habilidades, como na China e sobretudo na Índia, onde os salários são mais baixos, como os de programadores, por exemplo. Investe-se no trabalho, e não no trabalhador.

Como resultado, as pessoas, dessa forma, são muito mais facilmente abandonadas.

Uma das características da valorização do artesanal é o investimento no trabalhador. Trata-se de um processo lento, no qual as pessoas acumulam a capacidade de realizar muitas coisas, em vez de uma única. O capitalismo tem sido muito ruim para o artesanal. Usa habilidades e não desenvolve o potencial para o artesanal. Mas agora o capitalismo precisa disso. O próprio

Page 20: Entrevistas Com Sennett

governo — espero que o governo britânico invista no treinamento dos profissionais. Todo país terá de enfrentar essa questão.

O jeito como o capitalismo se organizou na última geração, em que usa as pessoas e as abandona, é muito destrutivo para a sociedade. O capitalismo moderno foca no curto termo e não desenvolve capital humano. É algo terrivel. Mas os seres humanos podem fazer muitas coisas, são capazes de aprender.

E a ideia de originalidade é algo que não lhe agrada...

Não acredito em originalidade, mas sobretudo não estou interessado nela. Em vez de focar em um gênio entre mil pessoas, prefiro falar das capacidades das outras 999.

Seu livro terá uma continuação, o senhor escreveu que se trata do primeiro de uma trilogia. Já está escrevendo o próximo?

Estou trabalhando num livro sobre capacidades sociais, tentando entender o que podemos aprender sobre essas capacidades básicas da artesania. Como as pessoas podem se desenvolver. Estou no meio do livro, por isso não posso falar muito, mas deve se chamar “O workshop”. O terceiro livro será sobre lugares físicos, sobre as cidades, como podem ter bons designs, serem bem talhadas. Tudo isso sempre pensando na coletividade.

O senhor observou que, hoje em dia, pensar como artífice representa uma forma crítica de ver o mundo. Até que ponto?

Isso significa fazer julgamentos, levar em conta o que tem boa qualidade, valorizar um jeito de trabalhar levando em conta a boa qualidade. Tem a ver com pensar o quanto vale a pena perder o tempo e ter estresse, só pelo dinheiro. Tem a ver com o retorno que as pessoas conseguem do trabalho.

Por exemplo, no que se refere a todos esses instrumentos financeiros destrutivos da economia, se as pessoas estivessem entendendo o que estavam fazendo, poderiam ter evitado muita coisa que está acontecendo agora nesta crise. Mas, por serem artífices precários, não davam importância para a substância do que faziam. Não queriam saber o que estavam fazendo.

Ainda eram como os trabalhadores na linha de montagem fordista...

Exatamente. É por isso que pensar como artífice significa pensar de maneira mais crítica sobre os valores do que se faz, do trabalho que se realiza. É o que busco provocar com meu livro.

Page 21: Entrevistas Com Sennett

Acredita que este tipo de pensamento pode ter de fato consequencias práticas? Mudar as empresas, por exemplo?

Sim, para nós, aqui na Grã-Bretanha, a ideia de que os bancos possam administrar seus negócios do jeito que faziam é insuportável. Se isso acontecer, se a Grã-Bretanha nos próximos cinco anos se parecer com o país dos anos 1990, haverá grandes revoltas. Muita gente foi à ruína, os jovens não têm dinheiro, as aposentadorias estão em colapso, simplesmente não se tem dinheiro. A nação vai questionar esse sistema incompetente em que as pessoas ficam ricas sem entender o que fazem. Isso é agora insuportável aqui, então realmente acredito que haverá mudanças.

Page 22: Entrevistas Com Sennett

Os mestres do fazer e o homem artesão de Richard Sennett

“L`Uomo artigiano” [O Homem artesão, em tradução livre] é o novo livro do estudioso norte-americano Richard Sennett. Nele, o autor expõe uma figura do trabalho considerada extinta. Mas que tem os contornos pós-modernos dos produtores do sistema operativo Linux.

A reportagem é de Benedetto Vecchi, publicada no sítio Il Manifesto, 27-11-2008. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Se o “A corrosão do caráter” (Ed. Record, 2004)  concluía com um capítulo que abordava o “trabalho em equipe”, julgando-o como a última fronteira do controle e da “corrosão do caráter” da força-trabalho, a nova obra sobre o Homem artesão de Richard Sennett propõe a figura do artesão para responder à alienação que caracteriza a organização do trabalho no “capitalismo flexível” (Editora Feltrinelli, tradução de Adriana Bottini, p.320, 25 euros). O estudioso estadunidense não acredita, de fato, que o trabalho em equipe e o “just in time” permitem, como sustentam ao contrário os seus defensores, a recomposição das tarefas, encerrando assim a era da divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual. Defende, ao contrário, que a produção em massa, independentemente de como é organizada, seja fundada na separação entre projeção e execução, entre pensar e fazer. Para Richard Sennett um trabalho analisado pela recomposição entre projeção e execução, entre pensar e fazer deve ser buscado na vasta comunidade de programadores “open source, chegando à conclusão de que esses produtores de software são a encarnação contemporânea da figura do artesão”.

Os animais de Hannah Arendt

É dessa convicção que começou um projeto de estudo que deveria fornecer uma radiografia nítida assim como uma análise pontual sobre as formas de ação social que caracterizam exatamente o capitalismo flexível. A publicação de “O Homem artesão” deve, por isso, ser considerado como o primeiro de três ensaios sobre as estruturas da ação social, apesar de que Richard Sennett nunca se deixa levar por uma grade de análise funcionalista, nem está muito interessado em evidenciar as ambivalências de alguns processos sociais, como, ao contrário, um dos decanos da sociologia norte-americana, Robert K. Merton, gostava de fazer e que dedicou ao artesão um dos capítulos da sua obra maior, “Teoria e estrutura social”. E é com o estilo elegante comum e todavia circunstanciado que Sennett toma distância do funcionalismo e das teorias de Merton. O seu objetivo é de sublinhar como algumas formas do

Page 23: Entrevistas Com Sennett

trabalho e de vida da sociedade pré-industrial não estã desaparecendo, mas, como um rio cárstico, estão reemergindo, apresentando, porém, características diferentes do passado.

Na abertura desse volume, no interior de um capítulo que oscila entre a autobiografia e a reconstrução do clima cutlural de um país que duramente tomava distância do macartismo, o autor recapitula a sua formação intelectual, reconhece em Hannah Arendt a estudiosa que mais do que outros influenciou a sua decisão de continuar sobre o caminho da pesquisa social, procurando conjugar a necessária adesão ao princípio da realidade com o forte impulso ético. Sennett escreve sobre como foi tocado por “Vida do espírito”, o ensaio em que Hannah Arendt redimensiona o papel do trabalho na sociedade, considerando a política como a atividade principal do animal humano. E de como ele, jovem estudante com o sonho de trabalhar para a formação de uma “boa sociedade”, começou a refletir em torno da distinção entre animal laborans e homo faber proposta pela filósofa alemã, para destacar o fato de que, enquanto o animal laborans produz os meios para a reprodução da espécie, questionando-se, acima de tudo, sobre como produzi-los, o homo faber, no desenvolver do próprio trabalho, se coloca a pergunta do porquê estar desenvolvendo-o.

Em ambos os casos, havia uma prioridade com relação ao pensar da necessidade com relação à liberdade. A denúncia do trabalho como atividade degradada do ser humano indicada por Hannah Arendt não tinha nada a ver com a crítica ao trabalho assalariado de memória marxista. Mas não era por esse motivo que não convencia e ainda não convence Sennett, que a considerada marcada por dicotomias (o fazer e o pensar, por exemplo), que no trabalho, pelo contrário, convivem em um equilíbrio medido por outra dicotomia, a entre autoridade e autonomia. E é de então que o estudioso estadunidense começou a procurar definir qual é o lugar ocupado pelo trabalho na sociedade contemporânea, procurando no próprio artesão a figura que supera as dicotomias que acompanharam, teórica e socialmente, a categoria do trabalho.

Os demiurgos do presente

O artesão, de fato, para ficar na “Vida do espírito” de Hannah Arendt, responde tanto à pergunta do como se desenvolver trabalho, como também o do porquê desenvolvê-lo, por meio de uma habilidade singular no fazer que concede aos artesãos uma espécie de missão civilizatória também quando são relegados às margens da vida pública.No trabalho artesão, de fato, não há só habilidade técnica, atenção à qualidade do artefato a ser produzido, mas também e sobretudo um cuidado nas relações sociais que congregam tanto o mestre quanto o discípulo, ou a centralidade do varlo de uso do artefato com relação ao valor de troca. Mesmo que Richard Sennett tenha destacado como

Page 24: Entrevistas Com Sennett

o artesão não constitui a simples permanência de uma forma arcaica de trabalho nas sociedades contemporâneas, o seu livro deve ser considerado não só como uma crítica da análise de Hannah Arendt, mas também como a sofisticada e sugestiva proposta dos demiurgos (assim eram chamados os artesãos na antiga Grécia) como figura salvífica da alienação e da anomia da atual organização produtiva capitalista.

É o trabalho concreto que se contrapõe ao trabalho abstrato, para se usar cateogiras marxistas. Mas também a encarnação em uma mesma pessoa ou experiência social de uma recomposição daqueles fragmentos que a divisão do trabalho revela em termos de eficiência e produtividade. A maestria técnica sobre a qual Sennett escreve deve ser, por isso, entendida como uma prática cultural que representa a solução dos problemas sob o sinal de um “fazer de qualidade”. Mas também o cuidado com o qual os mestres artesão transmitiam as atividades na época das corporações medievais deve ser entendido como uma socialização do virtuosismo desenvolvido pelo indivíduo.

É, portanto, o primado da qualidade, mas também de um “saber semântico”, que é transmitido seja pela via oral como pelo aprendizado pela imitação. Fatores que compõem uma “consciência material”, que por meio da manipulação dos materiais, da presença, enquanto garantia do selo do autor e o antropomorfismo impresso nos próprios materiais constituem os componentes de uma autonomia do trabalhador, mas também o exercício da autoridade por parte do “mestre” dentro dos laboratórios artesanais. Uma hierarquia em que o binomia entre autoridade e autonomia convive em uma organização produtiva que tem como referência não o mercado, mas um encomendeiro às vezes caprichoso às vezes generoso mecenas. E são uma verdadeira pérola as páginas de “O Homem artesão” que contam como os instrumentistas Stradivari e Guarnieri e o ourives e escultor Cellinihaviam manifestado os mesmos sentimentos contraditórios com relação à transmissão de suas habilidades ou a relação de amor e ódio com os comissários, dos quais dependiam para o pagamento de seu trabalho.

O virtuosismo do Linux

Nenhuma nostalgia, vale a pena repetir, do passado, quanto a convicção que a ordem dos problemas que os artesãos tiveram que enfrentar constitui o background estrutural do capitalismo “flexível”. Em primeiro lugar, a superação da organização taylorista do trabalho ditada pela necessidade, assim diz o pensamento dominante, de reagir a uma feroz competição pela melhor qualidade das mercadorias produzidas e por uma contínua inovação tecnológica, organizativa e de produto. Elementos, todos, que podem ser resolvidos justamente pela reproposição da poiesis que caracteriza o trabalho artesão. Isso não significa, porém, a anulação ou a renúncia ao sistema de máquinas, nem a reproposição do pequeno laboratório como dimensão ideal

Page 25: Entrevistas Com Sennett

para a produção da riqueza. O artesão em que Sennett pensa é, de fato, o homem ou a mulher que sabe usar com maestria as tecnologias digitais, mas que considera a qualidade, a inovalçao e as cooperações sociais como valores absolutos. Daqui surge a representação nos programadores do sistema Linux como os artesãos de que o capitalismo pós-fordista tem necessidade.

A proposta de Sennett deve ser, portanto, levada a sério, porque melhor do que tantos outros estudiosos críticos do capitalismo contemporâneo, ele sustenta que o saber e a inovação são expressões de uma inteligência coletiva que acidentalmente pode ser melhor interpretada por um indivíduo ou por uma “comunidade virtual”, como justamente a dos programadores Linux. Por isso, a consciência política de um “reformista radical” de que no capitalismo a autoriddade sobre o trabalho não deve apagar a autonomia dos trabalhadores em decidir a “one best way”, definida, diferentemente do que ocorria na empresa fordista, de tempos em tempos justamente pela cooperação social em que a hierarquia é flexível e na qual a autoridade é da maestria em um “fazer inteligente” mas coletivo. Uma tese muito mais aderente a um princípio de realidade do que as que ainda propõem o trabalho de fábrica como paradigmático para compreender o capitalismo flexível. Não se dando conta asism que, mesmo ao trabalho operário, são exigidas atitudes típicas do homem artesão proposto por Richard Sennett.

Page 26: Entrevistas Com Sennett

Richard Sennett: da autoridade ao declínio do homem público

Richard Sennett é considerado um dos maiores estudiosos de ciências sociais nos Estados Unidos. Nascido em Chicago, é professor na London School of Economics, no Massachussets Institute of Technology (MIT) e na New York University. Como gosta de lembrar freqüentemente, teve que abandonar uma precoce carreira de violinista por causa de um acidente com a sociologia.

A reportagem é do jornal Il Manifesto, 27-11-2008. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

E é no início dos anos 60 que ele inicia uma longa pesquisa sobre as “diferenças de classe” nosEstados Unidos a partir de uma pesquisa sobre a organização do trabalho na indústria automobilística. Expoente da “nova esquerda” norte-americana, ele destaca com freqüência que a sua formação intelectual deve muito a Hannah Arendt, mas também ao pragmatismo.

São muitos os seus livros traduzidos na Itália [assim como no Brasil. Aqui, a editora Record já publicou “Carne e pedra – O corpo e a cidade na civilizaçao ocidental”, “Autoridade”,“Respeito – A formação do caráter em um mundo desigual”, “A corrosão do caráter” (em que indaga sobre as mutações no trabalho), e, recentemente, “A cultura do capitalismo”. Há mais tempo, a Companhia das Letras publicou “O declínio do homem publico – As tiranias da humanidade”].

Page 27: Entrevistas Com Sennett

O triunfo da superficialidade. Richard Sennett denuncia o "Novo Capitalismo"

O sociólogo americano Richard Sennett se tornou um dos maiores e mais importantes críticos da globalização. Para Sennett, trata-se de um novo sistema, batizado por ele de "Novo Capitalismo", que só faz aumentar a concentração de riqueza no mundo e, em conseqüência, a desigualdade social. 

Na avaliação do sociólogo, que é professor da London School of Economics e da Universidade de Nova York, as primeiras vítimas desse sistema são os funcionários das empresas globais. Mais estressados, mais ansiosos, com uma carga de trabalho bem maior, essas pessoas estão revendo seus valores para sobreviver num novo ambiente econômico, no qual as companhias estão se tornando tão ou mais poderosas do que os países. 

Autor do livro Cultura do Novo Capitalismo (Record), que está sendo lançado no Brasil, Richard Sennett concedeu uma entrevista para o jornal Valor, 17-2-05, que reproduzimos na íntegra. 

Richard Sennett, autor entre outros, do importante livro A corrosão do caráter, está sendo convidado pela Unisinos para uma conferência a ser proferida em 2007, no Simpósio Internacional que está sendo organizado pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU. 

Valor: A economia mundial está mudando velozmente. Tudo está mais rápido, maior e mais global. Ao mesmo tempo, as pessoas estão mudando a maneira como vivem. Afinal, são as pessoas que estão demandando tais mudanças ou são as grandes corporações que as impõem? 

Richard Sennett: É uma via de mão dupla, reforçada por aqueles que estão se beneficiando economicamente com essas mudanças. Um número cada vez menor de pessoas está ganhando com as transformações dos bens e dos serviços que são oferecidos e demandados pela população mundial. Essas mesmas poucas pessoas estão conseguindo forçar um aumento da demanda nunca visto antes e têm conseguido concentrar esse crescimento neles mesmos. O resultado é um nível de desigualdade crescente. 

Valor: Não se trata apenas de um novo ciclo do capitalismo? 

Sennett: Não. Acredito que estamos vendo o surgimento de um novo sistema. Pela primeira vez as empresas não estão mais ligadas aos países. Há 200 anos, uma empresa britânica era motivo de preocupação política ou militar para o Reino Unido. Hoje não. Houve um descolamento total entre Estado e

Page 28: Entrevistas Com Sennett

economia. Veja o exemplo do Wal-Mart, que nasceu para ser um vendedor em massa de produtos americanos. Hoje seu maior fornecedor é a China. No antigo sistema imperialista, as desigualdades sociais eram dos países dominantes sobre os países dominados. Era como se a Inglaterra dominasse a economia do Brasil ou da Colômbia. O domínio agora é das empresas, independente de seu país de origem. Muitos acham que a globalização é apenas mais um capitulo na história do imperialismo. Eu, no entanto, acho que é um novo sistema, que funciona de forma diferente. 

Valor: Como esse novo sistema influencia a vida das pessoas? 

Sennett: Os valores estão mudando. O fato de se ter menos segurança nos empregos, com uma alta rotatividade, está pressionando os trabalhadores de uma forma inédita. As pessoas estão mais desorientadas, não sabem como agir estrategicamente, não sabem como devem se comportar para sobreviver nas companhias. Por outro lado, as empresas, como instituição, estão cada vez mais fracas. E, por fim, as pessoas estão desorientadas, sem saber como usar suas habilidades e talentos. A economia global enfatiza cada vez menos a habilidade para executar um trabalho e dá mais valor às pessoas mais adaptáveis, que desempenham várias atividades. 

Valor: O senhor afirma que as empresas têm possibilitado mais flexibilidade aos trabalhadores, mas que isso os aprisiona. Não é paradoxal? 

Sennett: Sim, é. A liberdade que as pessoas têm hoje é a liberdade de trocar de emprego com uma facilidade muito maior do que a de algumas décadas atrás. Mas as empresas são bem mais instáveis e, em conseqüência, a capacidade de os funcionários as influenciarem diminui sensivelmente. Isso significa , na verdade, menos liberdade para trabalhar. São livres apenas para trocar de emprego. 

Valor: O senhor afirma que esse novo modelo econômico está criando uma série de traumas sociais e emocionais. Que traumas são esses? 

Sennett: Fizemos algumas pesquisas de campo para comprovar tal fato e vimos que as pessoas têm hoje um nível muito alto de ansiedade. O antigo sistema capitalista prometia premiar o trabalho. Se a pessoa trabalhasse bem, seguindo as normas institucionais, elas seriam premiadas com a permanência no trabalho, aumentos de salário e afins. Era uma regra clara. Com essas novas empresas altamente flexíveis e instáveis, as estruturas de recompensa são completamente diferentes e variáveis. O trabalho ficou mais informal - e mais volumoso, a ponto de as pessoas os levarem em domicílio, mostrando que são competentes o bastante para se manterem em seus empregos. E isso, óbvio, aumenta consideravelmente o estresse. Essa mudança radical é

Page 29: Entrevistas Com Sennett

traumática para a maior parte dos empregados. E cada vez mais pessoas vão experimentar essa transição, porque esse modelo será dominante no futuro. 

Valor: Quem vai conseguir atravessar essas mudanças com tranqüilidade? Existe algo em comum entre as pessoas que estão se adaptando bem a esse novo sistema? 

Sennett: Sim, há. São pessoas que estão dispostas a migrar, mesmo que apenas fisicamente, para seguir o trabalho onde ele está. São pessoas que têm pouca necessidade de relações humanas de longo prazo. Há também aqueles que se sentem mais confortáveis em aprender diferentes habilidades pela metade, ou seja, não têm a necessidade de serem muito boas em algo específico. Aqueles que conseguem viver de uma forma mais superficial terão sucesso nesse novo modelo. 

Valor: O senhor acredita que o conceito de família fica ameaçado com esse cenário? 

Sennett: Nos estudos que realizamos conseguimos traçar uma linha clara entre trabalho e família. A princípio, parece não haver uma ameaça clara. Quem prospera nesse sistema são pessoas que se sentem confortáveis com a instabilidade. E isso tem a ver com a idade. O novo capitalismo funciona muito bem para os jovens. Mas quando as pessoas chegam aos 40 anos, no meio de sua vida, não conseguem administrar bem essa instabilidade.

O fantasma da inutilidade. Uma resenha do livro "A cultura do novo capitalismo"

"Tudo o que é sólido desmancha no ar, disse Karl Marx, há 160 anos, pensando no capitalismo do século XIX. No mundo veloz e volátil do novo capitalismo, sua célebre máxima continua a valer, abrindo espaço para o triunfo da superficialidade. Autor de Respeito: a Formação do Caráter em um Mundo Desigual e A Corrosão do Caráter, um dos mais respeitados intelectuais americanos de esquerda, Richard Sennett, recorre ao capitalismo remoto de Karl Marx para compreender a realidade em fragmentos do século XXI", escreve José Castello, comentando o novo livro de Richard Sennett A cultura do novo capitalismo. 

Eis a íntegra da resenha, publicada no jornal Valor, 17-2-06. 

"Não é fácil dar um mergulho em uma paisagem que se define, antes de tudo, pelo superficial. Sennett não tem ilusões a respeito dos limites, estreitos, de sua empreitada. "Estou consciente de que jogo para baixo do tapete aquele que é talvez o mais fundamental dos problemas culturais", afirma no recém-lançado A Cultura do Novo Capitalismo. "Boa parte da realidade social

Page 30: Entrevistas Com Sennett

moderna é ilegível para as pessoas que tentam entendê-la." 

Ainda assim, é preciso arriscar-se, e ele se arrisca. Até porque, rememora, a inconstância não chega a ser uma novidade. "Desde a época de Marx, a instabilidade parece ser a única constante do capitalismo", recorda. As turbulências de mercado, a dança dos investimentos, a ascensão e falência de negócios, a migração em massa de trabalhadores, diz, configuram aquela constante da sociedade capitalista a que o sociólogo Joseph Schumpeter chamou de "destruição criativa". 

Mas até que ponto essa destruição pode ser realmente criativa? Os defensores da nova ordem, hoje, argumentam que não estamos mergulhados em mais turbulências, mas, sim, vivendo novos tempos. Haverá, por detrás da fragmentação e da pulverização, o lastro de uma nova estabilidade? Podemos esperar uma constância da inconstância? 

Depois de longa fase dominada pela burocracia, a cultura capitalista parece se desmanchar. Os defensores da nova ordem insistem em dizer que conferiu mais liberdade às pessoas, que as libertou da jaula. Sennett não compartilha. "A velha estrutura institucional efetivamente foi desmontada", afirma. Em seu lugar entra uma nova geografia do poder. 

Nesse novo cenário, pouco sólido e profundo, os cidadãos passam a sofrer daquilo que Sennett chama de "o fantasma da inutilidade". A impotência, o tédio, a falta de utilidade se tornam os sintomas da cultura contemporânea. O que é ser capacitado? O que é ter talento? Essas perguntas, que podíamos responder com segurança, apoiados apenas em currículos, na obra passada e nos ganhos acumulados, hoje é difícil e embaraçosa. 

Indivíduos débeis e desinteressantes 

O quadro, diz Sennett, compõe um pesado drama cultural - um pesadelo no qual os indivíduos se sentem débeis e desinteressantes. Como tornar-se importante e útil aos olhos dos outros? A nova sociedade produziu também uma tecnologia de busca do talento. Porém, as organizações que gerem essa tecnologia "usam os mesmos instrumentos para uma finalidade mais ampla: não só promover, mas também eliminar indivíduos", argumenta. 

Em outras palavras: já não importa o que cada um realizou ou acumulou, mas, sim, se o sujeito tem recursos internos para se adaptar à velocidade com que os novos cenários se abrem e se fecham. Em outras palavras: interessa saber se o indivíduo é capaz de abandonar a si mesmo e sincronizar com aquilo que dele esperam. A palavra de ordem é desistir. 

A questão do consumo nos leva ao cerne da nova economia, afirma

Page 31: Entrevistas Com Sennett

Sennett 

Surge também uma política do consumo. "A questão do consumo leva-nos ao cerne da nova economia", diz. Nesse contexto, a intemperança e o desperdício se combinam. "Se pudéssemos espiar o armário da residência de um funcionário parisiense do antigo regime, encontraríamos apenas alguns poucos vestidos femininos, talvez dois conjuntos de roupas masculinas e sapatos passados de mão em mão através de gerações...", compara. 

A descrição de Sennett parece absurda se contraposta ao esbanjamento e desperdício que vigoram nas residências de hoje. A ênfase no consumo se traduz na busca desenfreada do novo, o que é espantoso em um mundo cada vez mais homogeneizado e que tende cada vez mais à repetição. Para Richard Sennett, o consumidor de hoje "se parece com um turista que viaja de uma cidade clonada para outra, visitando as mesmas lojas, comprando em cada uma delas os mesmos produtos". Se é para repetir, para que serviu a viagem? "Mas o fato é que ele viajou", afirma Sennett. "O estímulo está no próprio processo de movimento." 

Mover-se, ao máximo, para não sair do lugar, agitar-se para permanecer fixo, escavar para continuar na borda - eis boas imagens, dolorosas, da vida no novo capitalismo, ele propõe. Nela, o cidadão deve ser chamado, antes, de consumidor, pois já não é o status civil que o define, mas sua posição no teatro da economia. "O reino do consumo é teatral porque o vendedor, como um dramaturgo, precisa contar com a crença no faz-de-conta para que o consumidor compre", diz Sennett. 

O consumidor se interessa, sobretudo, pelo que ele não tem. "A dramatização do potencial leva o espectador-consumidor a desejar coisas que não pode utilizar plenamente", diz. Surge, assim, o grande mito dos novos tempos: a potência. Interessa não aquilo que tem valor passado, mas o que potencialmente promete valor. Não importa o que é, muito menos o que foi, mas o que pode ser. 

A cultura do novo capitalismo se interessa pelas transações únicas 

Nessa nova realidade, prossegue Sennett, desaparece qualquer vislumbre de um projeto comum. "A nova ordem se exime de responsabilidade, tentando apresentar sua própria indiferença como liberdade para os indivíduos", diz. Esse estado de eterna insatisfação pode parecer, mas não é progressista, alerta. "Temos aqui formas culturais que cultivam a mudança pessoal, mas não o progresso coletivo", distingue. A cultura do novo capitalismo se interessa pelos acontecimentos singulares, pelas transações únicas. 

Se não há projeto comum, não pode haver, também, o esboço de uma nova

Page 32: Entrevistas Com Sennett

cultura. Não que as pessoas dela não necessitem. Para Sennett, elas andam "demasiado preocupadas e inquietas, muito pouco resignadas com seu próprio destino incerto". Sentem falta, portanto, de novos valores que as ajudem a enfrentar a nova realidade. "Precisam, em suma, de uma cultura", ele diz. Não a encontram. 

A cultura do novo capitalismo não é um livro pragmático, que ofereça alternativas, ou forneça soluções. Ao fim do ensaio, o cético Sennett continua, como sempre, pessimista. "Tentei mergulhar o mais fundo possível num modo de vida cada vez mais superficial", resume. Mundo regido pelo repúdio ao esforço e ao compromisso, mundo de sujeitos isolados, enfadados e aflitos pela pressa. 

O perseverante Richard Sennett continua a acreditar, porém, que as pessoas só se sentem bem quando fazem algo bem feito. Por isso, conclui, "o triunfo da superficialidade me parece duvidoso". Termina seu ensaio com uma imprevisível previsão otimista: "É possível que a revolta contra essa cultura debilitada seja a próxima página que vamos virar". 

Page 33: Entrevistas Com Sennett

Com 6 anos Richard Sennett aprendeu a tocar o violoncelo, aos 8 compunha e, aos 13, dava concertos.

Pintava um Mozart do século XX mas a carreira de músico foi interrompida por uma doença na mão e

uma cirurgia desastrosa. Descendente de imigrantes russos, Richard é filho de pais comunistas de

carteirinha. O pai e um tio lutaram na guerra civil espanhola, primeiro contra os franquistas e, depois,

contra os comunistas. Richard ainda era criança quando o pai abandonou a família e voltou para a

Espanha. O garoto cresceu com a mãe num conjunto habitacional pobre de Chicago, o Cabrini Green,

onde a grande maioria era negra e a convivência com os brancos era difícil. As lições apreendidas no

gueto mais tarde serviriam para ensinar seus alunos e leitores.

Sem a música, Richard entrou no mundo acadêmico, se tornou um escritor e criou um vasto universo

literário com mais de uma dúzia de livros que, sem perder o faro e vigor, passam de uma receita culinária

a uma receita sociológica, atravessam séculos e continentes em conexões preciosas entre o passado, o

presente e o futuro. Estudou história em Harvard, urbanismo na MIT, deu aulas na London School of

Economics e dirigiu um centro de estudos humanísticos na New York University. Enfim, passou pela fina

flor universitária. Nos últimos anos, tem vivido entre Londres e Nova York mas a intimidade com Paris

inspirou uma de suas três ficções, “Palais Royale”, que, segundo ele, é a unica que presta e aconselha

“não perca tempo com os outros dois”. Não vou perder.

Estivemos juntos ontem a tarde, em Manhattan, durante uma entrevista para o programa Milenio. Ele

estava decepcionado porque, por motivos médicos, teve de cancelar a viagem dele para a feira literária

de Paraty. Não me deixou falar mal de São Paulo, é um admirador de Fernando Henrique Cardoso, Lula e

Dilma Rousseff. O Brasil é umas das grandes esperanças dele para um sistema socialista que vislumbra

para um futuro próximo. Países europeus também estão nesta visão de Sennett, mas os Estados Unidos

do Tea Party e da direita raivosa estão fora.

Ele me disse que nao quer se gabar mas, quando estava no fórum econômico de Davos, na Suíça, em

1998, teve uma visão da crise de 2008. Surgiu das conversas com banqueiros e investidores que falavam

em bilhões, bilhões e mais bilhões com assombrosa leviandade. A única preocupação deles era

multiplicar os investimentos e acumular fortunas: “o mundo destes caras vai implodir”, previu Sennet.

Ele dedicou os Últimos 16 anos a estudar o capitalismo moderno. Suas visões e soluções estão numa

trilogia: “Craftsman”, “Together” e, logo em seguida, um terceiro sobre urbanismo, uma das mais antigas

paixões do professor. Cada livro pode ser lido em separado mas o conjunto propõe uma substituição do

capitalismo moderno por uma fórmula que valoriza o “artesão”, promove a cooperação e uma reforma

urbana que aproxima os moradores das cidades.

Page 34: Entrevistas Com Sennett

O artesão de Sennett está em todos nós. É o trabalhador que investe dez mil horas na própria formação.

O número foi pesquisado e ele tem vários exemplos, entre eles o do jogador de futebol. Se treinar de 3 a

4 horas por dia, durante sete anos, o camarada vai brilhar no gramado. Nada garante, nem 20 mil horas,

que será um Pelé ou um Messi. Ele, super dedicado no violoncelo, nunca achou que seria um Mozart.

Gênio é outra história.

Richard Sennett é um socialista declarado e nunca teve problema para conseguir emprego nas melhores

universidades do mundo mas, durante seis anos na decada de 50, a mãe comunista teve problemas com

a perseguição macartista. Quando foi apresentado a Bill Clinton, que ele admira, o presidente se

aproximou com aquela cordialidade exuberante e disse “é um prazer conhecer gente inteligente como

você”. Ele respondeu, “obrigado, presidente, mas quero que o senhor saiba que votei no partido

socialista”. O sorriso de Clinton congelou. Sennett, com 69 anos, não tem planos de se aposentar mas a

mão voltou a funcionar e seu artesanato mais gratificante é a música.

Page 35: Entrevistas Com Sennett

Na próxima segunda-feira, o Milênio discute a importância de se repensar o trabalho e as formas

de cooperação nas sociedades para tornar o capitalismo mais humano. Não perca a entrevista que

Lucas Mendes fez com o sociólogo Richard Sennett. Segunda-feira, 23h30, na Globo News.

 

10.000 horas. Cerca de 3,5 a 5 horas de trabalho por dia durante sete anos. Esse é o número que o

sociólogo Richard Sennett afirma ser a média para formarmos um músico de orquestra, um jogador de

futebol de nível profissional, um especialista ou simplesmente alguém bom no que faz. Mas, na economia

de hoje, tempo é um bem escasso.

A incrível capacidade de fazer mais do mesmo – ou mais de quase o mesmo – para atender às demandas

incessantes dos consumidores desenvolveu competição feroz, baseada no preço baixo, que terceiriza

funções e rompe com a linearidade da produção. Menor preço, maior volume, menos qualidade. Embora

alguns fabricantes tenham escolhido nichos específicos e se preocupem em entregar um bom produto, o

que se vê é aumento do desperdício e redução do tempo de uso da maior parte do que é consumido no

planeta.

O distanciamento e a fragmentação ganham terreno. O trabalho não define mais a identidade do

indivíduo, mas apenas um período de sua vida. No mundo produtivo, as pessoas são pontos em uma

rede que podem trocar de lugar constantemente. O ritmo quase frenético e o pouco compromisso

anestesiam a criatividade de tentar descobrir novas maneiras para resolver os problemas. Há um misto de

monotonia e determinismo na aparente liberdade do mercado de trabalho.

Se vidas de pessoas são apenas números em uma tela, o que estamos criando como sociedade? Como

desenvolver valores de moral e ética, se há uma percepção de que somos insignificantes para o outro?

Como estimular a cooperação e a empatia em um contexto de indiferença? Essas são algumas questões

que norteiam Sennett em sua busca por um caminho mais humano para o capitalismo moderno. Saiba

mais no Milênio da próxima segunda-feira, às 23h30, na Globo News.

Interessante observar o título da entrevista da Globo com o Sennett “Miragens Socialistas”

E depois os tags (palavras chaves: capitalismo, colaboração, música, sociedade, trabalho ...