Entrevistas com pesquisadores

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Atribuição-Uso não comercial- compartilhamento pela mesma licença 2.5 Brasil- Vedada a criação de obras derivadas Você pode: • copiar, distribuir, exibir e executar a obra Sob as seguintes condições: Atribuição: você deve dar crédito ao autor original, da forma especificada pelo autor ou licenciante. Uso não-comercial: você não pode utilizar esta obra com finalidades comerciais. • Para cada novo uso ou distribuição, você deve deixar claro para outros os termos da licença desta obra. • Qualquer uma destas condições podem ser renunciadas, desde que você obtenha permissão do autor. Qualquer direito de uso legítimo (ou “fair use”) concedido por lei, ou qualquer outro direito protegido pela legislação local, não são, em hipótese, alguma afetados pelo disposto acima.

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Apresentação

Criada em 2005, a Fundação Tide Setubal é uma instituição que nasce como

objetivo de apoiar o desenvolvimento local e fortalecer o exercício da cidadania

nas comunidades em que atua. Os projetos e as atividades desenvolvidos

acontecem prioritariamente em São Miguel Paulista, zona leste da cidade de

São Paulo.

Na concepção e realização dos projetos, a Fundação Tide Setubal utiliza uma

metodologia participativa aberta a moradores e lideranças locais, aliada a

pesquisas, estatísticas e indicadores sociais da região.

Nesse contexto surte o Centro de pesquisa e documentação – CPDOC, criado

em 2008 a partir da formação dos jovens do projeto São Miguel Paulista e

Brasileiro – SMPB, que tem como foco a memória local especialmente nas áreas

de educação, cultura e cidadania.

O Caderno de Entrevistas a distância é um compêndio das entrevistas

realizadas com especialistas, educadores, formadores de opinião que abordam

temas relacionados aos eixos de atuação do Centro. Elas são realizadas por

meio comunicadores pessoais (MSN,Talk, e-mails). O objetivo é proporcionar a

utilização dessas novas tecnologias de comunicação a distância para favorecer

o acesso a informação e a circulação do conhecimento de forma ágil e

interativa.

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Índice:

Elaine Lourenço............................................................................................................05

José Renato de Campos Araújo.....................................................................11

Mauricio Érnica.............................................................................................................15

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Elaine Lourenço

Graduada em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Pós-Graduada Lato-Sensu em Ciências Sociais pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo e mestre em Geografia (Geografia Humana) pela Universidade de São Paulo. Atualmente é Professora da Universidade Nove de Julho.

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CPDOC: Para iniciarmos nossas questões, seu mestrado foi "Americanos e Caboclos: Encontros e desencontos em Fordlândia e Belterra - PA". Conte-nos um pouco sobre a Fordlândia.

Elaine Lourenço: Nos anos 1920, Henry Ford, o fundador da companhia que leva o seu nome, preocupava-se com o domínio inglês na produção de borracha. Para fugir a este controle, ele resolve investir em uma plantação de seringueiras na Amazônia brasileira. A área escolhida fica relativamente próxima a Santarém, e o industrial conseguiu uma concessão do governo do estado de Pará que lhe cedeu 1 milhão de hectares de terra às margens do rio Tapajós, em um local conhecido como Boa Vista. Rapidamente iniciaram-se as obras e um núcleo urbano foi construído, com casas, comércio e área destinada para o plantio. Os materiais necessários vieram de navio, diretamente de Detroit, onde se situava a sede da Ford. Para gerir o empreendimento, os americanos criaram a Companhia Ford Industrial do Brasil. Os trabalhos de instalação iniciaram-se em 1927 e na década seguinte, quando as árvores cresceram, notou-se que elas eram atacadas por um fungo que causava o “mal das folhas”, que fazia com que estas caíssem e danificava as árvores, dificultando a produção do látex, matéria-prima que interessava aos americanos. Isto levou a empresa a trocar uma parte da concessão por outras terras, situadas um pouco mais longe das margens do rio, em um local mais plano, e lá se construiu Belterra, em 1934. Para trabalhar nas plantações, inicialmente buscou-se mão de obra local e alguns estrangeiros, como foi o caso de um grupo de barbadianos que lá se empregaram. No entanto, a mão-de-obra local era escassa, o exame médico era muito rigoroso e com isto não se supria as necessidades da companhia. Os barbadianos, por sua vez, envolveram-se em muitas brigas frente à rejeição que tiveram, o que fez a empresa abandonar este tipo de contrato. Desta forma, a solução nacional foi chamar os nordestinos, que, pressionados pela miséria, atendiam aos chamados da empresa. Há muitos pontos de contratação e de embarque nos navios da companhia espalhados por esta região do Brasil. Ainda assim, a Companhia nunca conseguiu empregar toda a mão-de-obra necessária para o funcionamento pleno da empresa. As localidades de Fordlândia e Belterra eram muito diferentes do seu entorno: lá havia escolas, hospitais, casas para os empregados e um rígido controle do consumo de bebidas alcoólicas, que eram proibidas na área da concessão. Os salários eram pagos em dinheiro, o que também era novidade, e os trabalhadores do campo recebiam quinzenalmente. No entanto, em meados da década de 1940 a situação se modificara: a matriz da Ford concentrava cada vez mais sua produção na área da produção/montagem de automóveis. De outro lado, havia a possibilidade da produção de borracha sintética e a empresa imaginava que esta poderia substituir a original. Por fim, a Companhia Ford Industrial do Brasil não chegara a atingir os objetivos traçados pela matriz, seja pelo “mal-das-folhas”, ainda que a empresa já dispusesse de clones capazes de conter o vírus causador da moléstia, seja pela dificuldade de recrutamento de empregados. Assim, em

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1945, a concessão é devolvida para o governo brasileiro, que indeniza a empresa pelas benfeitorias no local.

CPDOC: Seria possível traçar um paralelo entre a instalação da Ford (Belterra - Fordlândia) e da Nitro-química (São Miguel Paulista) no que diz respeito ao desenvolvimento das regiões?

Elaine Lourenço: Não conheço muito sobre a instalação da companhia Nitro-química. O que sei que há de semelhante é que ambas se valem do uso da mão-de-obra dos nordestinos e se tornam pólo de atração regional. No caso da Companhia Ford Industrial do Brasil, a empresa, no seu início, trouxe mais problemas do que soluções para Santarém, a cidade mais próxima às instalações: os rejeitados da empresa, que não passavam no exame médico, buscavam refúgio naquela cidade, que não tinha condições de absorver a todos. Isto aparece na imprensa local, no começo dos anos 1930. Como a empresa é multinacional, há um limite para as relações locais, ou seja, os lucros são remetidos para a matriz e pouca coisa fica na subsidiária. De qualquer forma, os salários pagos em dinheiro criam uma circulação local, bem como o constante fluxo de funcionários. Havia uma grande rotatividade na empresa, era muito comum os empregados deixarem os serviços para realizarem outras tarefas, como a colheita da castanha, por exemplo, e depois retornarem. Como a empresa não conseguia substitui-los, acabava por reempregá-los. Havia, inclusive, um espaço na ficha do empregado no qual constava uma questão para o capataz perguntando se este concordaria com uma volta do empregado. Penso que na Nitro-química este processo de desenvolvimento é mais notável, já que a empresa cria uma nova referência para o bairro, faz com que ele cresça num ritmo maior do que o próprio crescimento de São Paulo.

CPDOC: Memória e História, quais seriam as diferenças entre elas?

Elaine Lourenço: A memória é o conjunto das lembranças, sejam as individuais, sejam as coletivas. É o que nós valorizamos, o que nos dá identidade, nos unifica como grupo social. As memórias coletivas são, inclusive, um campo de disputa social: diferentes grupos buscam manter suas memórias como as “verdadeiras” lembranças, até porque este processo é dinâmico. As memórias sociais não são imutáveis, ao contrário, precisam ser constantemente relembradas para que se tornem efetivas. Na história paulista, por exemplo, os eventos ligados à Revolução de 1932 nomearam um grande número de ruas e alguns monumentos. No entanto, pouco a pouco, este acontecimento foi deixado de lado, pela ausência de uma rememoração mais efetiva, o que ocasiona o esquecimento. Já a história, enquanto conhecimento científico do

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passado, usa uma metodologia de análise que parte dos vestígios deixados pelo que se quer estudar, analisa-os, critica-os e faz sínteses, os chamados “fatos históricos”, que são certificados pelos outros estudiosos da área.

CPDOC: Como acontece a transformação da memória individual ou coletiva para a História social?

Elaine Lourenço: A memória, individual ou coletiva, não tem nenhum compromisso com a verdade dos acontecimentos, com a exatidão das lembranças. Já a história, enquanto ciência, só pode existir a partir de uma reconstrução minuciosa do passado, apoiada nas fontes de estudo que este nos legou. Neste sentido, a história pode partir das memórias como uma fonte de informações sobre o passado, mas não pode se confundir com elas.

CPDOC: Qual a importância da re significação do patrimônio material e imaterial para a construção da cidadania e pertencimento de uma região?

Elaine Lourenço: O patrimônio, tal como a memória, é um campo de disputas dos grupos sociais. Assim, quando diferentes grupos se apropriam e dão novos significados ao passado e a patrimônio que este nos legou, buscam legitimar a sua identidade no presente, buscam mostrar o seu lugar no passado e no presente. De um lado, é preciso mostrar que os patrimônios são divididos pelos grupos sociais e que os mais poderosos impõem suas representações aos outros grupos. Ao desconstruir esta imagem, mostrar como ela não passa de uma visão unilateral, podemos tanto dar um novo significado para o patrimônio existente e reconhecido pela sociedade, como também podemos valorizar novos patrimônios, dos excluídos da sociedade, que passam a ter direito à voz, a se sentirem pertencentes ao mesmo grupo, à mesma região. Estas relações criam novas formas de exercer a cidadania, onde não há um predomínio de um grupo, mascarado pela ideologia, mas no qual as disputas se dão as claras, conscientemente.

CPDOC: A Capela de São Miguel Arcanjo foi um importante marco no desenvolvimento da cidade de São Paulo no sec. XVI. Como você analisa a importância desses patrimônios para o desenvolvimento das localidades onde estão inseridos?

Elaine Lourenço: Sinceramente, pouco sei da capela de São Miguel, mas acho importante a preservação destes monumentos. De alguma forma, eles trazem incorporadas as marcas do passado, nos mostram diferentes formas de convivência, diferentes formas de sociabilidade, de construções urbanas etc. No mínimo, então, estes marcos nas paisagens nos mostram que há diferentes formas de viver, que um outro mundo é possível. Além disso, para os estudiosos do passado estes marcos são valiosas fontes de estudo. No caso da capela de São Miguel, uma das construções mais antigas de São Paulo, é

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primordial cuidar e preservar a fim de que não desapareça, tal como aconteceu com suas contemporâneas.

CPDOC: Houve um grande deslocamento de nordestinos para a Zona Leste entre as décadas de 40 e 60, na sua avaliação qual a importância desse fato para o crescimento da cidade de São Paulo, em e particular a zona leste ?

Elaine Lourenço: Os nordestinos tiveram um importante papel na construção da cidade de São Paulo. A partir do refluxo dos imigrantes para a cidade, seja pelas novas condições de seus locais de origem, seja pelas políticas públicas nacionais que não mais desejavam este tipo de mão-de-obra, foram os migrantes nordestinos, aqui incluídas as populações do norte de Minas, que os substituíram. No entanto, a ascensão social dos imigrantes, proporcionada pelo crescimento econômico do país ao longo dos anos, fez com que este grupo impusesse a memória da “São Paulo imigrante” sobre a de “São Paulo migrante”. Desta forma, a impressão que se tem é que quem construiu a cidade foram os estrangeiros, em especial os italianos, sendo que estes têm um papel mais destacado apenas no início do século XX. De outro lado, esta memória justifica o preconceito contra os nordestinos, que são vistos como intrusos na cidade que ajudaram a construir. A própria memória consolidada só dá visibilidade para estes grupos na década de 1970, quando há um crescimento grande no setor da construção civil. No entanto, esta migração já data dos anos 1930. Há que se notar, também, que os nordestinos são desvalorizados na sociedade, são vistos como uns miseráveis, que migraram em busca de um pedaço de pão, enquanto os imigrantes são valorizados, estão nas profissões liberais, nas universidades etc. É preciso lembrar, entretanto, que os primeiros imigrantes chegaram aqui na mesma condição que os migrantes nacionais: impelidos pela fome e pela miséria. Um grande estudioso da migração nordestina para São Paulo é o professor Odair da Cruz Paiva, docente da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Marília.

(Aproveito a chance para sugerir uma entrevista com ele. O Odair conhece e estuda este processo a fundo e, além de professor da Unesp, é pesquisador do Memorial do Imigrante, que guarda parte da documentação relativa a este período).

CPDOC: Como podemos avaliar a questão do desraizamento provocado pelo fluxo migratório dessas populações para os centros urbanos e o impacto gerado nas relações sociais ?

Elaine Lourenço: A migração é um processo doloroso, sofrido, do ponto de vista pessoal, e conflituoso do ponto de vista social. Os novos grupos que chegam, precisam encontrar seu espaço, se legitimar, e isto não se faz sem grandes, e graves, conflitos. Para o migrante, é preciso assimilar um novo

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padrão cultural, isto não significa esquecer a sua cultura de origem, mas é preciso achar formas de assimilar e de mesclar os padrões novos e os antigos. Do ponto de vista de quem recebe estes grupos há também uma nova situação: ainda que eles sejam vistos como atrasados, que a sua incorporação seja marginal, ainda assim há uma troca cultural, novas influências se estabelecem. Em relação ao desenraizamento cultural, é preciso não esquecer que tanto a migração quanto imigração são igualmente marcantes, é preciso atravessar uma “fronteira”, pouco importa se para isto se atravessa um oceano ou um riacho, é preciso dar um novo significado para a própria vida, é preciso reconhecer que o seu lugar de origem não foi capaz de te acolher, de te abrigar e que é preciso achar um novo lar. Tudo isto é muito triste e só pode ser amenizado pelas redes de sociabilidade que estes grupos desenvolvem. Assim, os novos que chegam são acolhidos pelos que chegaram antes, que lhes apresentam a nova realidade, lhes abrigam, lhes indicam possíveis empregos e assim por diante. No caso dos nordestinos, isto é especialmente marcante e a própria história de São Miguel atesta isto. Assim, a dor da saudade é amenizada e é possível construir vida nova, a ponto de muitos migrantes afirmarem não desejar voltar de forma nenhuma. Os que voltam, passam a se sentir estrangeiros em seu próprio local de origem. A fronteira, uma vez cruzada, traz consigo tantas modificações que a vida não consegue voltar atrás...

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José Renato de Campos Araújo

Coordenador do curso de Gestão de Políticas Públicas da USP Leste.

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CPDOC: Nossa primeira pergunta, houve um grande fluxo imigratório para São

Paulo, e qual foi à contribuição para cidade?

José Renato: A cidade de São Paulo somente se tornou uma grande metrópole após os processos de deslocamento populacional que se iniciaram na segunda metade do século XIX, quando aqui começaram a chegar em número considerável muitos imigrantes europeus. Esse processo será longo, iniciar-se-á por volta de 1870, com seu ápice na virada para o século XX, mas nunca cessará dado que São Paulo sempre recebeu um número considerável de migrantes, tanto estrangeiros como nacionais. Importante demarcar que o início deste fluxo não era direcionado para a cidade de São Paulo, mas sim para o interior de SP. A partir da década de 50, isso não será mais verdade, dado que o Brasil entrará num processo denominado de substituição de importações, e o centro dinâmico deste processo de industrialização será o eixo SP-RJ, com destaque para a cidade de São Paulo, momento em que também haverá a presença marcante de migrantes nacionais, Este fluxo migratório mudará de cara então, começara a contar com a maioria de pessoas advindas de outras regiões do país eqto que o número de estrangeiros diminuirá sensivelmente se compararmos com a virada do século XIX para o XX CPDOC: Há registro desse fluxo de imigrantes para a zona leste? E qual a

contribuição para o desenvolvimento da região?

José Renato: Não há nenhuma fonte oficial, pelo menos que eu conheça, que registre o destino preciso destes migrantes. Mas se acompanharmos o processo de urbanização das áreas periféricas da cidade, na qual a Zona Leste, terá algum destaque podemos inferir que uma parte considerável destes migrantes iriam se fixar nesta região da cidade, dado que a Zona Leste será mais densamente povoada e urbanizada a partir da década de 60, com grande destaque para as décadas de 70 e 80, principalmente CPDOC: O que são políticas públicas? Como são elaboradas e implementadas?

José Renato: No geral, podemos dizer que políticas públicas é a ação estatal que visa intervir na realidade social de uma determinada localidade. O agente principal das políticas públicas é o Estado (nos seus diferentes níveis, no caso brasileiro, União, Estados e Municípios), mas não se restringe somente a este ator político, há também instituições de caráter privado que participam ativamente dos processos de elaboração, implementação e avaliação de políticas públicas, um bom exemplo disto é a atuação das ONGs, que são entidades privadas que atuam no espaço público. Podemos resumir dizendo que políticas públicas são ações praticadas em benefício da coletividade, portanto restringir a política pública a atuação estatal é ter uma visão restrita do espaço público

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CPDOC: Fale sobre políticas públicas existentes para a Zona Leste.

José Renato: Isto é um assunto imenso, pois podemos falar sobre diversas áreas, mas logicamente que há áreas prioritárias e mais urgentes. Há por exemplo, as políticas sociais: educação, saúde, segurança, entre outras. Mas a meu ver há uma área das políticas públicas que precede a todas estas, a urbanização e a integração das políticas nas áreas periféricas da cidade de São Paulo, entendo que falta uma definição mais clara de políticas públicas para a urbanização desta região da cidade, o que incluiria uma série de políticas públicas de infra-estrutura, por exemplo: trânsito, transporte público, criação de equipamentos públicos para fixação da população nesta região da cidade (praças, centro culturais, emprego, etc.) e integração com cidades da região metropolitana que fazem fronteira com esta região da cidade, pois não é possível uma cidade com estas dimensões ter sua atividade econômica baseada nos deslocamentos de milhões de pessoas por extensas áreas da cidade. CPDOC: Qual a papel da USP Leste na implantação de políticas públicas na

região, uma vez que se trata de uma universidade que como sabemos tem uma

finalidade pública?

José Renato: A USP ao implantar uma parte de seu campus na Zona Leste da cidade é parte integrante de uma política pública do governo do estado de SP de expansão das vagas nas universidades públicas paulistas, muito motivada pela expansão da rede pública de ensino superior iniciada pelo governo federal. O principal estado da federação brasileira tinha por obrigação acompanhar esta tendência. Agora a instalação de um curso de Gestão de Políticas Públicas aqui na EACH/USP, parece-me significativo como um sinal que a USP tem a contribuir de forma mais sistemática com a formulação, a implementação e avaliação de políticas públicas na cidade, no estado e no país. A contribuição de uma universidade como a USP deve ser entendida com um ator que fomenta o debate e produz conhecimento sobre diversas áreas que interessam diretamente aos atores políticos e sociais que participam dos processos de geração de políticas públicas. A USP não pode e não deve ser entendida como uma fonte direta de produção de políticas públicas, mesmo que possa fazer algumas, por exemplo, no que se refere a uma maior inclusão de mais segmentos sociais em sua estrutura, mas o fim da USP não é a produção direta de políticas públicas, mas sim com suporte necessário para tal. CPDOC: Existe algum grupo de pesquisa na USP leste que desenvolve esse tema

( políticas públicas e desenvolvimento local)?

José Renato: Sim, em fase inicial, mas já existe o Observatório de Políticas

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Públicas, que vem reunindo diversos pesquisadores que desenvolvem projetos individuais que se relacionam a esta temática. É preciso compreender que estes primeiros 4 anos de existência da EACH/USP foram muito concentrados na implantação de 10 novos cursos de graduação, agora neste momento estamos iniciando os primeiros passos para a implantação da pós-graduação, e a consolidação de grupos de pesquisa. CPDOC: E o quais os resultados esperado dessas ações?

José Renato: Os resultados são para daqui alguns anos, mas são a consolidação destas novas carreiras que a USP inaugurou com seus novos cursos, a criação de programas de pós-graduação multidisciplinares que abarquem temáticas transversais entre os cursos. Tornar-se referência na pesquisa, na extensão e no ensino de graduação em algumas áreas como, por exemplo, a Gestão de Políticas Públicas, que era uma lacuna histórica na estrutura acadêmica da USP. A formação de grupos de pesquisa de ponta que poderão interagir com mais eficiência e realmente com a sociedade, não só de seu entorno mas logicamente que a Zona Leste será um dos lócus de atuação e pesquisa da EACH/USP, como já vem sendo nestes últimos anos, os resultados ainda serão conhecidos melhor nos próximos anos. CPDOC: E para finalizar como a USP leste pretende inserir os alunos,

comunidade do entorno, entidades públicas e privadas na produção de

conhecimento que corrobore com essas ações existentes visando o a criação de

políticas públicas que beneficiem a zona leste e a cidade de São Paulo como um

todo?

José Renato: Isto é uma tarefa longa, mas a inclusão desta comunidade deve ser através de parcerias e atração desta comunidade para os processos de debate e de geração de conhecimento, pois a universidade precisa da prática e da realidade que somente esta comunidade conhece e vivencia para estimular a produção deste conhecimento, além de ter a necessidade de difundir o conhecimento aqui gerado nesta própria comunidade. Isto será um processo longo e natural, no qual a USP tem que estar sempre atenta em não se fechar em si só, mas que não contêm fórmulas mágicas e instantâneas, mas deve criar canais, que já existem e devem se multiplicar, para a participação ativa desta comunidade na produção deste conhecimento, pois será este que subsidiará as políticas públicas que por ventura virão. Beneficiar a Zona Leste como um todo, o que por conseqüência beneficiará a cidade de SP, o Estado de SP e o Brasil. CPDOC: Muito obrigada pelo seu depoimento.

José Renato: De nada, estarei sempre à disposição

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Mauricio Érnica

Graduado em Ciências Sociais pela Univerdade de São Paulo (USP), Mestre em Antropologia Social pela Universidade de Campinas (Unicamp) e Doutor em Lingüistica Aplicada e Estudos de Linguagem pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Atualmente é colaborador do Cenpec, pesquisador da Fundação Tide Setubal e professor da Faculdade de Campo Limpo Paulista.

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CPDOC: Uma questão para iniciarmos: o fluxo migratório das décadas de 1940 a 1970 para a cidade deixou algumas marcas culturais, entre elas marcas nas formas de sociabilidade. Como podemos verificar hoje a existência destes traços culturais numa cidade mais cosmopolita? Mauricio: O primeiro ponto a observarmos é que o fluxo migratório começa a reduzir por volta do meio dos anos 1970, tornando-se negativo anos depois. A partir dos anos 1980 a população da cidade começa a crescer em taxas cada vez mais reduzidas, tendência que é mantida até nossos dias. Portanto, SP não é mais aquela cidade que tem uma população constantemente renovada, sobretudo por gente vinda de outras partes do Brasil. Essa é a nossa base, o nosso ponto de partida.

Segundo ponto importante: por que isso aconteceu? Basicamente, por conta da crise econômica dos anos 1980 e por conta da desindustrialização de SP, que ganharia ritmo mais intenso nos anos 1990. Temos, portanto, que a cidade das décadas de 1940 a 1970 não existe mais. Aquela foi uma cidade industrial com fortes taxas de crescimento econômico e com grande fluxo migratório. Hoje temos uma cidade desindustrializada e com saldo migratório negativo.

Terceiro ponto: as décadas de 1940 a 1970 foram décadas de construção das periferias de SP. Grandes áreas despovoadas, ou com povoamento rarefeito, deram lugar a novos bairros. A literatura específica aponta esse período como a época de expansão de loteamentos e de expansão de moradias auto-construídas. Vejam, desemprego e favelização não eram grandes problemas até então. Aquela era uma cidade com uma economia geradora de muitos empregos. A partir daí, da expansão do fluxo migratório e do emprego industrial, as periferias foram construídas. Nelas, foram construídos laços de solidariedade vicinal, laços comunitários que guardavam muitas características do Brasil rural.

Notem que do ponto de vista econômico era o emprego industrial que dava sustentação à construção das periferias e às formas de sociabilidade que se desenvolvia nelas. Como aquele também foi um período de estabilidade muito maior das pessoas em seus empregos, aqueles bairros construíram laços de vizinhança que duravam por muito anos, freqüentemente por mais de uma geração. As famílias de vizinhos que moravam em casas próprias se conheciam, seus filhos eram criados juntos, havia namoros, casamentos.. etc. Enfim, havia um vasto leque de relações construídas pelas pessoas que moravam perto, que tinham histórias de vida assemelhadas e que habitavam na mesma rua, na mesma casa, por longos anos. Essa é a velha periferia (na falta de termo melhor). É o que podemos ver na área hoje urbanizada da zona leste, mas também da zona norte, por exemplo. A zona norte é bastante marcada pelas indústrias do eixo Lapa-Barra Funda. A Zona Leste marcada pelas indústrias do eixo Canindé-ABC e pelo eixo do Brás em direção ao Leste propriamente dito.

Aquela era uma sociedade que acreditava no progresso, que se via como beneficiária do progresso. No cotidiano, os símbolos do progresso eram -

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além do emprego nas multinacionais e nas grandes empresas nacionais - os bens de consumo industrializados, sobretudo, os bens de consumo semi-duráveis e duráveis. Observem a cultura material das famílias até os anos 1940 e depois. Comparem os objetos. Vejam a revolução nos eletrodomésticos. Vejam a chegada da TV e o que ela representou. Vejam a popularização do automóvel (em especial, o velho fusca). Vejam o impacto da industrialização dos alimentos, com os enlatados. O que acontece de 1980 em diante? Desemprego! Desindustrialização! Inflação! Há, em suma, uma crise nas relações econômicas que davam sustentação àquela cidade, àquelas formas de sociabilidade.

Assim, os antigos bairros vão mudando de cara. Famílias se mudam, vendem suas casas ou as põem para alugar. Chegam novos habitantes, desconhecidos de todos. Em alguns pontos da cidade, ainda, há grandes obras urbanas mudando radicalmente a cara dos bairros. Em outros pontos (na linha do metrô, por exemplo), há a demolição de casas e a construção de prédios - que traz gente sem vínculo estabelecido com o bairro. Outros bairros vivem um boom de valorização, com a chegada de novos habitantes mais endinheirados levando para além os antigos moradores.

Além do desemprego, do final dos anos 1970 até 1994 há um gigantesco processo inflacionário. Para quem vivia de salário - e salário curto - a inflação era como a redução do poder de compra do salário: redução real da renda das famílias. Com desemprego e inflação, não é à toa que as favelas crescem, em SP, a partir de meados dos 1970. As famílias estavam empobrecendo a olhos vistos. As áreas favelizadas crescem onde, na cidade de SP? Onde ainda havia algum terreno disponível: áreas públicas, alças de viadutos, várzeas de rios, margens das represas, a serra da Cantareira... Notem que a favelização se dá no mesmo período em que há redução do fluxo migratório. É gente que já estava em SP, portanto.

A partir dos anos 1980 começa a construção de uma nova periferia. Em São Miguel isso é claro: o centro e sua área próxima, os eixos das grandes avenidas são a antiga São Miguel Paulista. A várzea do Tietê, a nova São Miguel Paulista. Na Zona Norte isso também é claramente visível. Grosso modo, a área mais próxima ao rio é a antiga Zona Norte. Para além dela, acompanhando grandes avenidas (que ligam SP a outros municípios), foi sendo construída uma nova Zona Norte. E o que acontece com aquelas velhas formas de sociabilidade da velha periferia? Somem por completo? Desaparecem do mapa? Certamente não! Fragmentos dela são reproduzidos e mesmo recriados. Contudo, o que temos é uma nova cidade.

Além disso, a nova cidade é a cidade da crise. Não é mais a cidade da esperança no progresso. É uma cidade marcada pelo desemprego e pela violência. Ao mesmo tempo, é uma cidade muito rica, com regiões muito ricas que mantém laços com outros centros de riqueza do mundo. São Paulo fica mais desigual ainda. O fosso social se aprofunda após os anos 1980.

A atividade econômica central da cidade muda para o setor de serviços. E, detalhe, o setor de serviços gera remunerações muito mais desiguais que o setor industrial. Sem contar que o setor de serviços - nas suas atividades mais

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bem remuneradas e com mais prestígio - requer formação universitária de qualidade. No caso de algumas multinacionais, ainda, os profissionais estão concorrendo no mercado de trabalho internacional. Um exemplo simples: até os anos 1980 havia muitos publicitários sem formação universitária. Gente que praticamente fundou a publicidade moderna no Brasil. Naquela escala, isso é virtualmente impossível, hoje. CPDOC: Em relação ao São Miguel antigo e o atual, quais reflexões podemos fazer sobre este período e qual a percepção em relação a participação do bairro na vida da cidade? Mauricio: Nosso ponto de partida: São Miguel tem marcado no seu território as várias fases de sua formação. Desde o antigo aldeamento até a nova periferia dos anos 1980 em diante, a diversidade de épocas históricas é visível no território, nas casas, no arruamento... Essa é a realidade atual. Essa é a São Miguel de hoje. A primeira observação é que o mundo que durou de 1940 ao final dos anos de 1970 acabou! Não há mais como voltar a ele. Não há mais a velha Nitro. Não há mais as velhas fábricas do Belém, do Brás, da Moóca. A Nitro chegou a empregar mais de 5000 pessoas. Hoje é uma empresa super rentável e emprega menos de 500 pessoas. E não só a Nitro. A indústria não voltará a empregar pessoas nos mesmos moldes dos anos 1940-1970.

Outra coisa: a empresa que mantinha uma vasta estrutura assistencial e desportiva não existe mais. E não voltará a existir. Além disso, a época do pequeno comércio também já se foi. Esse é um dado interessante. São Miguel Paulista um centro de rotas. Há avenidas ligando a toda a Zona Leste e às cidades vizinhas. Há a Ayrton Senna do lado. Há a linha de trem e várias linhas de ônibus. Por conta desse nó de vias de comunicação e por conta de haver, desde os anos 1940, um centro comercial em São Miguel Paulista, o bairro foi se consolidando como um centro regional de comércio e serviços. Como centro regional, a região atrai milhares de pessoas que vão para aí todos os dias resolver suas vidas: vão às compras, vão ser atendidas na rede de serviços, vão estudar etc.

Esse mercado consumidor atraiu para aí grandes redes de comércio e serviços. Resultado: houve um gigantesco estreitamento das oportunidades atuação no mercado para os pequenos proprietários. Como concorrer com a Cia Brasileira de Distribuição (Pão de Açúcar, Extra etc)? Como concorrer com o Carrefour? Com as Lojas Marabrás, Casas Bahia, Ponto Frio? Isso também marca o novo bairro: a antiga classe de proprietários é, hoje, uma classe com dificuldades para se reproduzir como classe social.

Em resumo, os problemas da região, hoje, são muito diferentes dos antigos problemas. Não dá para olhá-los com as velhas lentes. Agora a segunda parte de sua pergunta: a percepção em relação à participação do bairro na vida da cidade. Talvez (veja bem, minha formulação é uma hipótese) São Miguel tenha perdido suas características de "cidade do interior" e seja mais do que nunca parte de São Paulo. Um movimento autonomista hoje é praticamente impensável. Tanto em termos econômicos como em termos simbólicos. Pode

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parecer paradoxal, mas pelos relatos sobre o passado e pelo que ouço e observo hoje, São Miguel me parece hoje muito mais periferia de São Paulo do que pequena cidade do interior. Digo que isso pode parecer paradoxal porque eu havia dito antes que o fosso social está mais aprofundado hoje em relação aos anos 1940-1970. Ou seja, aprofundaram-se as desigualdades e aumentaram as inter-relações.

Os caminhos da mobilidade social eram maiores antes e hoje são mais estreitos. Contudo, antes a vida social podia acontecer toda ela aí, em torno das fábricas e do comércio local. Hoje não pode mais. Os deslocamentos pelo território e os intercâmbios com pessoas de outras regiões da cidade são muito mais intensos. CPDOC: O desenvolvimento de São Miguel foi alavancado com a instalação da Nitro na década de 40, e conseqüentemente houve o aumento populacional e a abertura de pequenos negócios. Como podemos avaliar a participação do comercio local hoje no desenvolvimento do bairro, sobretudo no que se refere a geração de trabalho e renda? Mauricio: Antes, uma pequena observação. Há um discurso sobre a história de São Miguel Paulista que valoriza excessivamente a participação da Nitro no povoamento do bairro. Certo, a Nitro foi decisiva e isso não se discute. Mas a partir dos anos 1950 São Miguel Paulista passa a ter centenas de milhares de habitantes enquanto a Nitro empregava, no máximo, 5 ou 6 000 pessoas. Ora, depois da Nitro, foi a rede de transportes (trem e ônibus) que alavancou o crescimento populacional de SMP. As pessoas iam comprar terrenos na região e todos os dias pegavam trem e ônibus para ir trabalhar nas fábricas de outros pontos da Zona Leste. É a fase de expansão dos loteamentos.

Agora, a sua pergunta. A pequena e média empresa, de modo geral, emprega muita gente no Brasil. Porém, como eu falei, quando as pequenas empresas têm de concorrer com grandes grupos, elas tendem a viver maus bocados. Por conta dessa concorrência, o pequeno comércio de São Miguel está em crise. Um outro ponto importante: a remuneração do pequeno comércio é baixa. Em muitos casos, aliás, é baixa para o proprietário também. Observem... Há inúmeros comércios que são mantidos pelo trabalho familiar e, no máximo, mais um dois funcionários recebendo o salário mínimo do comércio.

Segundo dados da Fundação Seade, disponíveis no site da instituição, o rendimento médio do comércio, em 2005, era de R$ 948,00. Isso é a média. Inclui o grande comércio, que paga os maiores salários do setor! Esse valor era mais baixo que a média da construção civil (R$ 1320,00), que a média da indústria (R$ 1345,00), que a média do setor de serviços (R$ 1362,00), sendo superior apenas à média dos serviços domésticos (R$ 420,00).

Certamente há poucos pequenos comércios hoje pagando a média de 2005. Se paga bem menos, em geral. Aí você faz as contas. Quanto custa a vida de classe média em São Miguel? (não digo da classe média mais rica, a do

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chamado "Morumbizinho"... falo da grande maioria da população que manteve um padrão de vida médio na velha São Miguel Paulista, a dos tempos da indústria). Quanto custa morar na parte urbanizada de São Miguel Paulista? Quanto custa se deslocar pela cidade? Quanto custam os alimentos? Vestuário? Educação? E se formos acrescentar saúde e lazer? A conta não fecha com o salário do pequeno comércio. A conta fecha, isso sim, para os proprietários dos comércios, sobretudo dos maiores e mais bem estruturados. O que é bom... Mas não dá para pensar no pequeno comércio como fiador do desenvolvimento.

Em suma, creio que o pequeno comércio tem poucas chances de ser um setor com força para gerar trabalho e renda na dimensão que São Miguel precisa. CPDOC: Em um de seus estudos sobre o bairro, você afirma que “São Miguel contemporânea amarga as frustrações daquelas possibilidades e ergue o discurso da saudade”. Como chegou a essa conclusão e quais são os indicativos que apontam para esse fato? Mauricio: Primeiro, justiça seja feita, o discurso da saudade não é exclusivo de São Miguel Paulista. Vá ao Bom Retiro e converse com as velhas famílias de italianos e judeus, por exemplo. Vá à Casa Verde, à Freguesia do Ó, à Penha. Como disse antes, a velha periferia perdeu as condições para se reproduzir. Não só São Miguel, repito. Toda a velha periferia industrial perdeu as condições para se reproduzir.

Havia, naquele mundo que existiu nas décadas de 1940 a 1970, todo um leque de possibilidades para se construir projetos de vida. Ensino Médio já garantia boas oportunidades no mercado de trabalho. Um curso universitário, então... Como havia pouco desemprego e uma população com baixa escolaridade, havia relativa escassez de trabalhadores aptos a ocupar os postos de trabalho mais complexos. Esses postos compunham o caminho da ascensão social.Aquele mundo desapareceu por toda a cidade.

O que é particular a São Miguel Paulista é que os anos 1970 e 1980 foram, para dizer o mínimo, efervescentes. Politicamente efervescentes, culturalmente efervescentes. Assim, quando nós começamos a ouvir as pessoas que viveram aqueles anos, todos, das mais diversas colorações políticas, sociais e culturais, contavam histórias muito ricas em acontecimentos sobre o passado. E alguns casos, só histórias sobre o passado.

Notamos, então, que São Miguel construiu um discurso que idealiza os anos 70 e 80. Não que seja falso. Mas é uma idealização. Para alguns, lá tudo se realizava. Tudo era possível. E aí vieram os anos 1990... Desemprego. Favelização. Desindustrialização. Fim das esperanças revolucionárias. Democratização e fim das esperanças redentoras pelos partidos políticos. Fim da efervescência cultural que marcou os anos 1980 em toda a cidade e não só em São Paulo. Fim do poder político dos que dominava a política local há décadas.

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Esse é o ponto: muitas das práticas sócio-culturais, das possibilidades de vida e das esperanças válidas até os anos 1980 deixaram de ser válidas a partir dos anos 1990. Viver isso não é fácil. É uma experiência dura, sofrida. O fato é que os anos 1990 e 2000 criaram outra realidade e nela muito do que existiu até 1980 não tem lugar. O duro é que muito do que se viveu até 1980 era bom - as pessoas têm razão para pensar que foram bons tempos. Por isso que sentimos de modo tão agudo a cisão entre uma Era de realizações e esperanças e uma Era de frustrações e estreitamento de possibilidades.

Agora... atenção a um ponto: isso é válido para a velha São Miguel Paulista e para as pessoas que viveram as esperanças e as realizações válidas até 1980. Isso não é válido para os recém-chegados: os novos migrantes e os jovens. É possível que os migrantes mais velhos, mesmo que não tenham conhecido a São Miguel Paulista dos anos 1980, ainda tenham saudade daquela época. Não de São Miguel, mas sim das esperanças gerais que existiam na cidade industrial. Agora... os jovens, aqueles que nasceram de meados dos anos 1980 em diante, esses não viveram a ruptura de um mundo com suas esperanças e suas possibilidades. Esses já nasceram na nova cidade. É preciso, portanto, situar bem aquele raciocínio. CPDOC: A partir de seu estudo sobre Centro do bairro – Jd Pantanal – Jd Lapenna – Cidade Nitro operaria – Jd São Vicente, vilas de São Miguel atendidas pelo Programa Ação Família (programa realizado pela Fundação Tide Setubal em parceria com a Prefeitura de São Paulo), o que pode ser constatado de realidade no que diz respeito ao desenvolvimento dessas regiões e o que existe de potencial para promover o desenvolvimento local na perspectiva de geração de trabalho e renda? Mauricio: Você tem razão em insistir no tema do trabalho e renda. É o grande problema. E, para o desenvolvimento, não se trata qualquer trabalho, ainda por cima. O que precisamos é de trabalho que permita às pessoas realização pessoal e renda suficiente para se apropriar das possibilidades de nossa cidade. Esse é o nosso ponto de vista mais geral. Agora, cada uma das regiões que você citou tem uma realidade muito diferente. Olhando para elas e suas especificidades, vemos que trabalho e renda são centrais, mas não são suficientes. Quanto o olhar se volta para o território, começamos a ver que o discurso geral pode continuar válido, mas ele deve ser nuançado e enriquecido pelo que se vive aqui e ali. Não há solução comum a todos os territórios.

Exemplo simples: a urbanização do Jd Pantanal é um baita problema a ser resolvido. Por sua vez, não é problema na Cidade Nitro Operária e no Jd São Vicente. Dito isso, vamos nos focar por um minuto no tema econômico. A geração de trabalho e renda em larga escala dificilmente será feita por pequenas iniciativas locais voltadas ao consumidor local. A distribuição de renda na cidade e mesmo em São Miguel é muito desigual. A população das áreas mais pobres vive com muito pouco dinheiro. Portanto, tem pouco poder para alavancar atividades econômicas. É preciso, assim, criar atividades que se

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voltem a um mercado fora das regiões mais pobres mas que gere riqueza neles. A geração de emprego e renda em larga escala depende, sobretudo, de atividades ligadas aos setores centrais da economia.

Ao meu ver, esse é o desafio: criar atividades econômicas que gerem emprego decente a essas pessoas e que estejam ligadas aos setores centrais da economia. Isso só abre a lista dos problemas. O primeiro é a formação educacional. Há avanços notáveis desde os anos 1990, mas a qualidade da educação deixa a desejar na imensa maioria dos casos. E, como já disse, para se ligar às atividades econômicas geradoras de trabalho decente é preciso escolaridade de qualidade. Você me perguntou sobre os potenciais. Talvez um dos grandes potenciais seja, de fato, a localização. Como eu falei, SMP é um centro regional, está ligado por vários meios a outras regiões da cidade e a outros municípios. Isso pode ser usado favoravelmente, seja produzindo bens que circulem em outras regiões, seja produzindo bens e serviços para quem vai a São Miguel Paulista. Mas é importante que se diga: a localização, por si só, não resolve nada. CPDOC: A partir dos estudos realizados sobre São Miguel, quais as perspectivas de desenvolvimento você apontaria para o bairro? Mauricio: Desenvolvimento não é um processo que depende de só uma dimensão. É um processo com várias dimensões. A partir daí, a gente deve falar levando em conta essa multiplicidade de dimensões. Tudo o que eu disser, portanto, será apenas parte do problema. Como já falamos um pouco de trabalho e renda. Vou falar de algumas outras dimensões.

A urbanização é um problema sério de toda a várzea do Tietê, de Ermelino até o Itaim. Não se pode falar em desenvolvimento sem se encarar de frente essa questão. Ela não diz respeito só a quem mora lá. Não diz respeito só a São Miguel. Diz respeito à cidade como um todo. Diz respeito a Guarulhos também. Nesse caso, não se trata só de urbanizar: é preciso regularizar juridicamente a ocupação.Ao mesmo tempo, há áreas urbanizadas que viveram um esvaziamento da população e da vida social. É o caso da Cidade Nitrooperária, por exemplo.

Outro problema é o da cobertura dos serviços públicos. A ocupação do território se deu num ritmo muito mais veloz que o da expansão dos serviços públicos. Em São Miguel, os equipamentos públicos se concentram na área central e são mais escassos nas áreas de maior vulnerabilidade social. Isso nos levaria a outro problema, que não será abordado aqui: o crescimento populacional das áreas mais afastadas do centro deixou muitos equipamentos públicos sub-utilizados nas áreas centrais. É preciso ocupar as áreas mais centrais da cidade, preferencialmente com pessoas que migraram a contra-gosto para áreas mais distantes do centro. Para além da cobertura do atendimento dos serviços públicos, há a grande questão da qualidade.

Todas as pesquisas indicam que a população tem muitas queixas dos serviço público de saúde da região. Esse é problema dos mais sérios. Na área da educação, o grande problema não é tanto de falta de vagas. No caso da

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educação infantil, ainda faltam vagas. Talvez (não há números atualizados) só faltem algumas vagas no Ensino Médio. Contudo, o grande problema não é tanto falta de vagas. O grande problema é a qualidade do ensino. Há algumas escolas de São Miguel Paulista com desempenho bom, com desempenho no IDEB e no ENEM equivalente ao das melhores escolas públicas da cidade. Mas essas são poucas. No geral, a qualidade da educação pública de São Miguel é equivalente à qualidade média da educação pública na cidade. É preciso melhorar e muito. Não só em São Miguel.

Um outro grande problema, ainda, é a ampliação da oferta de práticas culturais para os jovens. As pesquisas indicam que os jovens se queixam muito da falta de opções de cultura e lazer na região. Você me perguntou de perspectivas. Eu preferi pensar em dimensões do desenvolvimento, pois é a partir dessas dimensões que podemos descer ao concreto e ver o que pode e o que deve ser feito. De todo modo, acho importante não nos esquecermos de que o desenvolvimento de uma região depende de aspectos subjetivos também. Falamos de desenvolver a região sempre tendo em mente em ampliar as possibilidades das pessoas se apropriarem das riquezas disponíveis no mundo e construírem seus projetos de vida. Visto deste ângulo, chegamos ao seguinte ponto: o desenvolvimento depende daquilo que as pessoas querem para elas e para a sociedade em que vivem. A pergunta de quais são as perspectivas de desenvolvimento deve ser feita para a sociedade, portanto. CPDOC: Mauricio, desde já agradecemos pela entrevista. Mauricio: Foi um prazer. CPDOC: Para finalizar. Quais livros você indicaria para melhorar a reflexão sobre os temas que foram abordados? Mauricio: A literatura sobre São Miguel é ampla. Recomendo os trabalhos do Paulo Fontes e dois trabalhos mais antigos:

1) Boytempo, Sylvio. (1970) O Bairro de São Miguel Paulista: a aldeia de São Miguel de Ururaí na história de São Paulo. Prefeitura de São Paulo (série história dos bairros, vol VII) e 2) Caldeira, Teresa Pires do Rio. (1980) A política dos outros: o cotidiano dos moradores da periferia e o que pensam do poder e dos poderosos. São Paulo: Brasiliense.

Sobre as mudanças na economia da cidade de São Paulo, recomendo essa excelente coletânea: Szmrecsányi, Tamás (org.) (2004). História Econômica da cidade de São Paulo. Editora Globo.

Sobre a construção da velha periferia da cidade, recomendo os estudos clássicos de Lúcio Kowarick. "A espoliação urbana" e "Escritos urbanos". Nesse mesmo assunto, é muito interessante o trabalho recente coordenado por Vera da Silva Telles. “Nas tramas da cidade”.

Recomendo vivamente a leitura de Carvalho, José Murilo. (2001). Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

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Trata-se de uma história do caminho particular dos direitos sociais, civis e políticos no Brasil. Muito bom.

Por fim, sobre desenvolvimento, recomendo a leitura de Celso Furtado. Uma apresentação sintética de seu pensamento pode ser encontrada no pequeno "Capitalismo global".

A lista já está grande. Paro por aqui. CPDOC: Muito obrigada pela entrevista e pelas indicações. Mauricio: Foi um prazer. Estou à disposição.

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Fundação Tide Setubal

Presidente Maria Alice Setubal

Conselheiros

Guilherme Setubal Souza e Silva José Luiz Egydio Setubal

Olavo Egydio Setubal Junior Rosemarie Teresa Nugent Setubal

Marlene Beatriz Pedro Cortese

Centro de Pesquisa e Documentação São Miguel Paulista

Coordenador

Mauro Bonfim

Auxiliares de projeto Camila Tavares Brandão Diego Albino Figueiredo