Entrevistas Adirley Queirós

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Quando você propõe uma pessoa a contar a realidade dela, na minha cabeça, a pessoa tem esses paradigmas todos do politicamente correto. Se eu vou abordar um personagem periférico, o que ele tem de construção narrativa periférica são os telejornais, são as narrativas “sociais”. Então esse cara começa a dramatizar, sofrer, a se colocar num lugar de sofrimento e piedade. Se internaliza essa narrativa, como se a pessoa que fosse ouvir aquele personagem necessariamente estivesse em um lugar de classe maior do que ele. Como se necessariamente essa outra pessoa tivesse um poder de juiz. Porque ela vem pra julgar aquele personagem e enquadrá-lo numa narrativa. Mas se a gente propõe a esse narrador periférico que ele apareça dentro de um arquétipo de ficção, essa narrativa dele virá amarrada à ideia de filme de ação e aventura. E aí acho que esse personagem chega num certo ponto, em que não existe uma orientação de corte, e ele tem que responder à própria fruição do pensamento, e aí ele começa a ter gagueira. E isso eu acho massa. Na gagueira sai o filme. Ele se livrou daquele espírito do homem cordial, e passa a atuar a partir de sua memória, e aí ele começa a se emocionar. Acho minha busca é no limite dessas coisas: a narrativa enquanto documentário e a narrativa desse cara ficcional. E aí vem também uma

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trechos de entrevistas do direitos de Branco sai, preto fica

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Quando voc prope uma pessoa a contar a realidade dela, na minha cabea, a pessoa tem esses paradigmas todos do politicamente correto. Se eu vou abordar um personagem perifrico, o que ele tem de construo narrativa perifrica so os telejornais, so as narrativas sociais. Ento esse cara comea a dramatizar, sofrer, a se colocar num lugar de sofrimento e piedade. Se internaliza essa narrativa, como se a pessoa que fosse ouvir aquele personagem necessariamente estivesse em um lugar de classe maior do que ele. Como se necessariamente essa outra pessoa tivesse um poder de juiz. Porque ela vem pra julgar aquele personagem e enquadr-lo numa narrativa. Mas se a gente prope a esse narrador perifrico que ele aparea dentro de um arqutipo de fico, essa narrativa dele vir amarrada ideia de filme de ao e aventura. E a acho que esse personagem chega num certo ponto, em que no existe uma orientao de corte, e ele tem que responder prpria fruio do pensamento, e a ele comea a ter gagueira. E isso eu acho massa. Na gagueira sai o filme. Ele se livrou daquele esprito do homem cordial, e passa a atuar a partir de sua memria, e a ele comea a se emocionar. Acho minha busca no limite dessas coisas: a narrativa enquanto documentrio e a narrativa desse cara ficcional. E a vem tambm uma coisa de preparao da equipe pra essas reaes, porque ela tem que estar preparada pra gagueira do cara. A nossa busca de cinema muito por essas narrativas. At a ideia de ver os filmes passa por isso. Dia desses vimos aquele documentrio careta, o Lixo Extraordinrio, um filme perverso, reacionrio, e a comeamos a discutir como aqueles personagens esto enquadrados nessa leitura do pobre que transforma, mas que conhece seu lugar.Eu ia praquele baile, o Quarento. E essa lembrana do Quarento narrada hoje pelas pessoas com um tom preconceituoso. E eu tambm sou preconceituoso. bvio que eu tenho internalizado em mim a homofobia, o racismo, o machismo. Isso no sai da gente de uma hora pra outra. Mas produzir um trabalho de cinema que lide com isso entender que essa contradio est ali colocada. Quando eu ia entrevistar os caras que frequentavam o Quarento, e que so meus amigos, eles me falavam que odeiam funk, por exemplo. Porque acha que funk msica de ignorante. exatamente o mesmo preconceito que aquela gerao deles sofreu, porque o que eles escutavam era msica de preto. Eles refletem esse preconceito porque a memria deles est no passado. E a memria tem uma assepsia, ela vem idealizada, pelos filmes, novelas. Meu medo com isso a carga preconceituosa que sempre vem junto, que no liberta. Quando eu coloco a Dana do Jumento em Branco Sai Preto Fica, que um forr esculachado e passo depois pra um funk, pensando nesse embate de geraes. Eu lembro de um debate em Minas, depois da exibio do filme, em que um pessoal falou que gostava de tudo e tal, mas no via sentido na Dana do Jumento ali. preciso entender que meu filme no sobre funk ou black music. sobre memria coletiva.Penso que a gente amputado 24 horas. Quando fiz o filme, pensava tambm que a prpria leitura da cmera sobre o corpo dos caras era tambm extremamente ertica, tem cena fechada no cara malhando e tal. Partiu dessa ideia que a gente poderia resignificar o corpo da gente, pois ele constantemente policiado. A gente no pode ser gago, no pode ser gordo, temos que ser sempre formatados com essa ideia de beleza impressa. O homem amputado existe porque a cidade amputada. O corpo no existe sem a cidade, ele a cidade. E esses corpos que foram amputados pela polcia era a coisa mais interessante que tnhamos. Porque aquilo foi uma ao criminosa para cortar aquela identidade muito forte que era a black music. A black music era a coisa mais potente que existia nos anos 80, porque era o corpo que mais radicalmente negava o que era Braslia, representada pelo homem branco, pelos filhos de embaixadores que escutavam The Cure. A black music surge no Brasil para negar o parmetro de consumo do homem do centro. Ento ele inicialmente criminalizado, porque se aquele corpo tem potncia, ele revoluo. O Frantz Fanon fala que a primeira priso o sonho. O homem colonizado s tem liberdade no sonho, e ali onde ele esvazia tudo. E isso uma mentira. No d pra ficar sonhando.