Entrevista Revista PSYCHE - Universidad San Marcos - Brasil

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Psyché Universidade São Marcos [email protected] ISSN (Versión impresa): 1415-1138 BRASIL 2001 Jacirema C. Ferreira / Carmem Molloy ENTREVISTA COM SILVIA BLEICHMAR Psyché, julho-dezembro, año/vol. V, número 008 Universidade São Marcos São Paulo, Brasil pp. 193-203

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  • Psych Universidade So [email protected] ISSN (Versin impresa): 1415-1138BRASIL

    2001 Jacirema C. Ferreira / Carmem Molloy

    ENTREVISTA COM SILVIA BLEICHMAR Psych, julho-dezembro, ao/vol. V, nmero 008

    Universidade So Marcos So Paulo, Brasil

    pp. 193-203

  • Psych Ano V n 8 So Paulo 2001 p. 193-203

    Entrevista com Silvia Bleichmar 1Jacirema C. Ferreira

    Carmem Molloy

    Aentrevista com Silvia Bleichmar foi realizada em 18 de maro de 2001.

    Para contextualizar os leitores no familiarizados com sua obra, apre-

    sentamos uma sntese de seu percurso acadmico e terico.

    Silvia fez sua carreira em Psicologia na Universidade de Buenos Aires e

    l mesmo deu continuidade sua formao, na poca dos grandes movimen-

    tos polticos, inclusive dentro da Psicanlise.

    Nos anos setenta, Lacan chega Argentina, juntamente com Althusser,

    influenciando significativamente seu pensamento. Na poca, Bleichmar dedi-

    cava-se ao estudo sistemtico e minucioso da obra de Freud e, paralelamente,

    comeou a estudar Lacan. Um momento marcante desse estudo foi o texto do

    Colquio de Bonneval o debate e a ruptura entre Lacan e Laplanche, queocorreu nesse momento. Este debate aproximou-a do eixo que contm a pers-pectiva na qual, posteriormente, conceituou a represso originria comofundante.

    poca, entretanto, era muito jovem e sentia-se angustiada pela dificul-dade em estabelecer uma prtica clnica com crianas, sem os parmetros teri-cos necessrios. Alm disso, havia a herana kleiniana, a qual hesitava em aban-donar, por reconhecer seu papel representativo na psicanlise com crianas;embora no pudesse continuar sustentando a idia da interpretao como apli-cao de um cdigo um modo muito irracional de apreciao dos fenmenos,segundo seu ponto de vista. Afinal, perguntava-se: o que determinava, na leitu-ra de um jogo, que eu fornecesse uma interpretao e no outra?

    Ademais, no compartilhava a idia que o inconsciente existisse desdeas origens, como se fosse uma delegao do biolgico no psquico. A partir deLacan, encontrava-se totalmente desarmada na psicanlise com crianas. Istoporque o pressuposto de que a psicanlise s transcorre no campo da lingua-gem, tornava impossvel o trabalho com crianas.

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    A obra de Maud Manonni, ainda que muito importante, no forneciadefinies de como realizar a anlise de uma criana, uma vez que a causali-dade era exterior, ou seja, a causa estava sempre no outro, na me. A possibi-lidade de ordenar seus pensamentos iniciada com o trabalho acerca da hip-tese do recalque originrio. Debruou-se em um estudo amplo em Lingsticae Epistemologia, motivada pela necessidade de estabelecer uma refundaodo campo da anlise e uma redefinio dos parmetros da prtica.

    Neste momento, foi surpreendida pelo golpe de Estado em 1976, exilan-do-se no Mxico. A despeito do isolamento, a sada da Argentina possibilitouuma ampliao em seu pensamento, abrindo-se um panorama insuspeitadode questes. Em seu pas de origem era muito difcil pensar alm do institu-do, em funo da tradio militar bastante arraigada.

    Com o auxlio de conhecidos, abriu-se a perspectiva de um doutorado naUniversidade de Paris VII, orientado por Laplanche. Silvia j havia comeado,no Mxico, a tese sobre as origens do sujeito psquico, cujo nome em definiti-vo foi Reflexes sobre a constituio do sujeito psquico luz da psicanlise decrianas e logo parte dela se transformou no livro sobre as origens do sujei-to psquico. Os examinadores de sua tese foram Fdida, Laplanche e JeanLuis Lang. Ela recorda, com emoo, o momento de sua defesa. No ano de1983, a Argentina acabava de voltar democracia e, quando vieram dar anota de qualificao, Fdida que era o presidente da banca, foi extraordin-rio saudou-a pela nova fase de democracia que se iniciava na Argentina.Tinha havido, previamente, um debate muito interessante com Laplanche eque prossegue at hoje: ele disse que o trabalho continha simultaneamenteduas ou trs idias fortes sobre a constituio do sujeito infantil e vriosmodelos. Uma delas a passagem do eu-prazer ao eu-princpio-de-realida-de, que toma o modelo de ligaes ou modelo dos tempos do dipo. Nessemomento, ele perguntou: J no estava na hora de voc abandonar o modelodos tempos do dipo de Lacan?. E ela disse: Eu no vou abandonar nada queeu no saiba por que abandonar, sem ter com o qu substituir.

    Neste instante, Laplanche fez um gesto, como dizendo: touch! Doisdias depois, despedindo-se dela, abraou-a e disse: No est na hora de vocabandonar os tempos do dipo?.

    No sentiu necessidade de contest-lo, pois uma das coisas que a ajudoumuito em Paris foi a condio de estrangeiridade. Ela acredita ser mais fcildebater as idias e sustentar-se nos princpios quando no se espera nada,

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    nem se depende de nada salvo o que nos liga, do ponto de vista da transfe-rncia e dos afetos. Isto permite muita liberdade, com a qual: a tpica deminha vida que transcorre entre Argentina, Mxico e Frana me dava umacerta liberdade, porque no me produzia uma claustrofobia, um fechamen-to nos relacionamentos imediatos. No ano de 83, entra um novo governo naArgentina e em 86 Silvia retorna sua ptria.

    Referindo-se s influncias recebidas, qualifica Laplanche como seumestre. Dentre os ps-freudianos destaca: Bion, Castoriadis, Piera Aulagnier,Leclaire, Octave e Maude Manonni. Dedica-se ainda leitura dos clssicos dapsicanlise: Fenichel, Abraham, at Groddeck, por muitas razes: primeiroporque a encanta esta etapa quase de descoberta e de uma certa ingenuidadeem alguns (embora em outros, nem tanto). Ademais, por ter a impresso deque uma das grandes perverses na histria da psicanlise aquela questodo auto-engendramento, a idia que cada gerao tem de que precisa come-ar tudo de novo. Por exemplo, as polmicas que esto nas minutas de Viena,hoje voltam a ser discutidas como se fossem novas.

    Silvia acredita na existncia de dois grandes momentos no desenvolvi-mento de seu pensamento: em primeiro lugar, a idia de que a represso ori-ginria fundante do psiquismo e permite definir o momento no qual se podecomear a implementar o mtodo psicanaltico. E, paralelamente a isto, a ne-cessidade de verificar de que maneira se conservam certas premissas da an-lise, ainda quando o mtodo no possa ser aplicado em sua totalidade. Estaconcepo foi estendida ao trabalho com adultos, sobretudo nos momentos defracasso da represso originria e, nas patologias graves, nos momentos emque se chega a ncleos des-simbolizados do psiquismo.

    Em segundo, a idia concebida h pouco tempo, como umaprofundamento da anterior, no sentido de levar s ltimas conseqncias ades-intencionalizao do inconsciente de um inconsciente como materialidadepsquica, de um pensamento sem sujeito, o qual produz uma variao muitoimportante nos modos de interveno na prtica.

    Silvia cr que esta concepo abra grandes possibilidades para trabalharsobre os aspectos mais des-subjetivizados do psiquismo em especial nacompulso e em tudo que est relacionado com os modos em que falta aregulao do sujeito nas aes e que podem levar destruio. Na psicanlisede crianas, pode ter como conseqncia toda a perspectiva de anlise dosfracassos da simbolizao e da inteligncia fundamentalmente no que serefere ao fracasso da inteligncia.

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    Damos, agora, palavra a Silvia Bleichmar.

    P Com relao aos estudos sobre esquizofrenia, enquanto voc traba-lhava em sua tese e toda a preocupao com a questo do recalque origin-rio a sua clnica, na qual se embasava esta pesquisa terica, inclua casos deautismo, psicose infantil, etc.?

    S Sim, uma das coisas que eu tenho colocado em meus livros que noso exemplificaes: minhas teses no exemplificam o que eu penso; so casosnos quais os problemas que me foram colocados, me fizeram reformular pro-blemas tericos. Em outras palavras, incorreto dizer que a teoria surge daprtica; de fato, a clnica o lugar onde se colocam os limites da teoria que nstemos. Com isso, quero dizer que, quando Freud se encontra com a teoria doencanador em Hans, este traz um problema a Freud, que precisa resolv-locom uma reformulao da teoria, incluindo a questo cloacal. Isto ocorre detal maneira, que os casos clnicos marcam os limites da teoria com a qualtrabalhamos e nos obrigam a reformulaes.

    Os casos com os quais trabalho me conduziram a reformulaes em di-versos aspectos de minha teoria. E foi assim que eu cheguei a trabalhar aspec-tos das defesas precoces sobretudo no livro A fundao do inconsciente, noqual os casos de psicose ou certas correntes psicticas da vida psquica, melevaram a redefinir questes acerca do modo de funcionamento da tpica demaneira que psicose infantil e autismo so dois tipos de patologias especficasdos pacientes com os quais eu mais tenho trabalhado. Minha prtica iniciouem hospital, quando comecei a trabalhar: meus dois primeiros casos foram depsicose infantil. Um de psicose e outro de autismo. E eu sempre tenho algumacriana grave em consultrio nunca vrias, em virtude do compromisso ps-quico que me exigem tais pacientes. Tambm me consultam muito para casosde difcil definio; porm, a questo da psicose e do autismo problemtica.Faz muitos anos que eu tenho me colocado principalmente a questo do autismo um eixo ao redor do qual giram as polmicas atuais mais importantes embora seu ndice de incidncia seja mnimo.

    A discusso sobre o autismo a discusso sobre causalidade psquica.Isto quer dizer que a idia de que o autismo um quadro puramente biolgi-co uma polmica na qual se investe muitssimo dinheiro por parte dos labo-ratrios, porque se est discutindo a causalidade psquica. At entre ns, apolmica muito grande: hoje seria impossvel colocar o autismo nos termosem que o colocou Bettelheim (que eu li muitssimo nos primeiros anos de

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    minha formao e que hoje volto a ler, porque me comovem suas descriesde casos, seu compromisso com os pacientes, etc.): como uma defesa extremafrente ao desejo de aniquilamento dos pais seno que o adulto mesmo estprisioneiro de uma depresso, como diz F. Tustin, no caso das mes.

    De todo modo, indubitvel que, hiptese puramente psicogenticado autismo, o que lhe tem feito obstculo como pura determinao o fatode que existem crianas que, embora vivendo a mesma situao, no tenhamdesenvolvido um autismo o que nos faz indagar: por que no? Experinciaslamentveis como as das creches de Ceaucescu, na Romnia, mostram que sepode autistizar 100 ou 200 crianas, quando no lhes oferecida a mnimaestimulao relacionada com a constituio da humanizao, em termos daproduo libidinal. Acompanhando as investigaes neurobiolgicas com oautismo, relacionadas hiptese de haver um certo tipo de determinao,penso que poderiam conduzir concepo de que um certo tipo de maternagemem dficit ocasionaria o autismo.

    Eu deixaria aberta esta questo, tal como deixamos aberta a possibilida-de da disposio de rgo, ou da facilitao de rgo, em certas patologiaspsicossomticas. No como determinao, seno como substrato sobre o qualpode produzir-se. De todo modo, ao contrrio, o que nunca deixei de encon-trar uma certa falha no modelo de estabelecimento de funcionamento ps-quico, no caso de autismos. Mas, segundo um neurologista argentino muitoimportante com quem eu tenho um vnculo pessoal muito bom, mas muitasdiscrepncias tericas ele diz: eu no encontro nada nos pais dos autistasque me faa pensar que foi o vnculo dos pais que o produziu. E eu digo:voc no est procurando o que eu busco. Voc est buscando pessoas msou abandonadoras; e eu estou buscando um dficit de um tipo de intervenode uma funo relacionada com algo que eles mesmos desconhecem. E arespeito das psicoses infantis, eu creio que h uma questo central tambm,tentando definir a presena da psicose infantil ou da potencialidade psictica,como a chama P. Aulagnier a terminologia no importa nisso, o que importa a possibilidade ou o que Diatkine e seu grupo chamou de pr-psicose. Algoque, a meu ver, est no centro da questo das psicoses infantis so as falhasna produo da inteligncia. Estas marcam o que se chama de retardamentoou transtornos do desenvolvimento e que, em sua maioria, so formas dedficit da produo simblica, ou formas da produo simblica paralela, queno conduzem a uma organizao da tpica que permite a produo simblicaem sua forma mais apurada.

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    O que quero dizer que, por exemplo, grande parte da regulao do que chamado transtornos do desenvolvimento ou perturbaes na evoluoda linguagem, so transtornos na constituio do sujeito psquico (constitui-o do ego, da personalidade psquica, da temporalidade) que esto relacio-nados com a exteriorizao e estrutura do ego no interior da tpica, com acapacidade relacional.

    Grande parte do que chamado transtorno de desenvolvimento, soformas perturbadas da constituio da tpica, muitas das quais acabam to-mando a forma de psicose. uma enorme faixa de crianas com aparenteretardo, com problemas de desenvolvimento como chamado hoje ou,inclusive, com os famosos transtornos de desateno com hiperatividade (ofamoso ADD), que so falhas na organizao da tpica e na estrutura de liga-o, que permitem a constituio da ateno e que, em ltima instncia, aforma pela qual o ego se permite inibir e escolher, dentro do conjunto deestmulos que recebe, acarretando evolues posteriores muito mais gravesdo que as previstas.

    Esta situao acarreta que estas crianas sejam medicadas aos 7 anospela hiperatividade e aos 22 por bipolaridade o que chamam de bipolar, ouformas de psicose mais graves o que acaba produzindo uma hiptese falsade que a hiperatividade uma precursora da bipolaridade, e no que ambasesto determinadas por uma falha na constituio da tpica.

    Acredito que o problema atual uma questo de como definimos, den-tro de nossos parmetros, a compreenso destes quadros, uma vez que umaparte importante dos psicanalistas aderiram neurocincia, para a prpriaclassificao, na qual j est implicada a teoria com a qual se est trabalhando.O que fazer com a hiperatividade, por exemplo? Com a hiperatividade ne-cessrio primeiro definir de que estrutura se trata e h vrias estruturaspresentes, no sempre a mesma. Ou, por exemplo, j em outro plano, quan-do ns, analistas, acabamos falando de transtornos da alimentao. E eudigo que seria como se, na poca de Freud, as histricas tivessem sido chama-das de portadoras de transtornos do andar ou da viso.

    Acredito que estas sejam questes muito importantes, as quais temosque enfrentar claramente, mantendo a ateno em questes que vo sendodescobertas e que so interessantssimas no campo da Biologia e reas espe-cficas de determinaes epistmicas defendendo, em nosso campo de com-preenso dos fenmenos, acredito eu, a idia da psicognese e, particular-

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    mente, da determinao libidinal da patologia mental. Esta seria, para mim, aproposta central hoje a ser resgatada na Psicanlise.

    Assim, nos anos 60, Lacan se deparou com a psicologizao; hoje esteno nosso problema e tambm no temos que nos confundir com quemtemos que discutir.

    P Quando voc se referiu psicogense, foi introduzido o novo concei-to de neognese. Este conceito se vincula, de alguma forma, ao conceito deconstituio do psiquismo infantil, do qual voc falava em seus primeiros tra-balhos?

    S O conceito de neognese na minha opinio, ou do jeito que eu te-nho trabalhado um conceito que est diretamente relacionado com a cons-tituio do psiquismo. Isto tem sido central para mim: a idia de que, quandotrabalhamos com uma criana, no trabalhamos encontrando o recalcado (queproduzir a transformao da neurose), mas trabalhamos produzindo atra-vs de intervenes um modo de rearticulao do psiquismo. Neste sentido, interessante porque, eu diria que tomo a idia de normalizao do dipo,que foi usada pelos lacanianos em uma poca porm trabalho com o conceitode historicizao, de historicidade psquica.

    O psiquismo se produz no somente porque h uma estrutura que odetermina, seno porque esta estrutura opera em tempos reais. O analistaintervm em tempo real da constituio psquica e, ento, produz transforma-es na estrutura que no apenas anlise, mas naquilo que eu denomino deintervenes analticas: intervenes em pontos de bifurcao como dizia aTeoria dos Sistemas em Equilbrio3.

    Por outro lado, o conceito de neognese alude a que nenhuma anliserealiza a proposta originria da psicanlise de apenas trabalhar com o reprimi-do; seno que toda anlise uma transformao das relaes existentes entreos sistemas e possibilita a neognese em vrios pontos.

    Laplanche, por exemplo, falava da possibilidade da neognese em nvelpulsional a saber, que nem toda sexualidade determinada pelo infantil,embora suas bases o sejam. Vou dar um exemplo muito simples: todos sabe-mos que os quadros de anorgasmia feminina, de frigidez feminina, no soapenas produtos da represso, como tambm do fato de que, pela represso,no foi constituda uma zona ergena capaz de produzir o gozo vaginal. Oextraordinrio da anlise que, transformando os sistemas representacionais,

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    permite-se o acesso a um tipo de vnculo sexual da histrica ou de qualquermulher com esta dificuldade que acaba por instalar uma zona ergena vagi-nal, que no tinha sido constituda previamente. Porque, se h algo de interes-sante em tudo isso, que a sexualidade vaginal feminina uma aquisiotardia inclusive posterior s relaes amorosas na medida em que a sexua-lidade feminina , em princpio, clitoridiana e, posteriormente, vaginal. Por-tanto, no se constitui em zona ergena seno a partir do encontro com oobjeto que permita o gozo. Digo isto porque incrvel que tenhamos passadotanto tempo pensando que este gozo era reprimido quando, em realidade, nohavia encontrado um estatuto fixado no interior da tpica e, por isso, podiacircular desde o plo motriz. Algo que denominei o arcaico em meu livro Lafundacin de lo inconciente.

    Este um ponto de vista para lhes dar a idia de como, em qualqueranlise, podem ser produzidos processos de neognese parciais. Mas tambmpenso que, nas patologias graves, iniciadas no momento oportuno, h proces-sos de neognese. Quero dizer que, quando trabalhamos com um pacienteesquizofrnico, em certo momento de sua vida pode-se recompor algumasformas de funcionamento psquico. Ainda que isto no implique que se adqui-ra uma normalidade, produzem-se transformaes no funcionamento psqui-co, que possibilitam um equilbrio (ainda que instvel), indicativas de um pro-cesso de neognese. E o trabalho com a psicose infantil tende a isto: a produzirprocessos de neognese ou seja, que a gense tenha um carter que permitaordenar de uma maneira distinta, ou articular processos psquicos distintos.

    Tambm verdade que o processo de neognese produto espontneona vida dos seres humanos produto de traumatismos graves, que marcamnas experincias-limite.

    Retomando a teoria dos sistemas afastados do equilbrio com seu pos-tulado de que todo sistema afastado do equilbrio tende a se recompor espon-taneamente em um outro equilbrio as experincias-limite mostram que hprocessos de neognese que, depois de processos de desestabilizao, articu-lam a tpica sob novas regras um sujeito que passou por uma experincia-limite no quer dizer que v ficar psictico para sempre. Ento, o que a anlisefaz conduzir o processo de neognese em certa direo.

    Porm, na vida h constantes alteraes da gnese prvia e das articula-es da neognese. Por isso, temos que manter uma relao complexa entre odeterminismo e o acaso. Temos que levar em conta que o determinismo a

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    conservao de sistemas de relao ele no destino. A diferena entre deter-minismo e destino que todo o conceito de neognese est embasado nestasidias em uma ruptura do determinismo ao acaso, em uma recomposio.

    P Uma curiosidade: quem sustenta, ainda hoje em dia, a questo dodeterminismo psquico?

    S Grande parte dos psicanalistas ainda a sustentam. O estruturalismoainda mantm a imutabilidade da estrutura, embora haja atualmente um movi-mento entre os colegas lacanianos para sair da determinao estrutural. EmFrana, ainda se pensa em termos de determinao estrutural bsica e ver-dade que h uma determinao, a questo se esta determinao ltima, no-transformvel. A mesma coisa ocorre no que diz respeito ao conceito de pulsode morte no kleinianismo: a idia de que um ser humano tem ou determinadoa partir de certos sedimentos instintuais, que o constituram para seguir umcerto percurso. Todavia, est em Freud o conceito de neurose de destino, quepode ser pensado de duas maneiras distintas, dentro do mesmo texto.

    Por um lado, como a teoria de que ns, os seres humanos, nascemos doacaso, relacionada onipotncia e, por outra parte, a teoria de que tudo que da ordem do acaso produzida por nossa neurose. Retornamos sempre aomesmo tema. A compulso repetio, pensada como a impossibilidade desair de um certo ponto. Parece-me que esta se mantm ainda como uma idiaforte em psicanlise; ainda mais a forma como so concebidas algumas doen-as somticas. O cncer, por exemplo, tem muitos analistas que ainda pensamque o paciente produz o cncer por fantasias e que, analisando-se, pode securar. O que, por um lado, indica uma enorme onipotncia e, por outro,melancoliza espantosamente. Porque a pergunta seguinte : o que eu fizpara ter um cncer? O que eu no analisei como dizia uma mulher em estadoterminal ao seu analista: o que no analisamos?. Ou seja, existe esta fortetendncia, que ainda permanece na Psicanlise.

    A inversa tambm problemtica: a idia de que no existe a determi-nao, que tudo existe in situ. uma herana da Teoria dos Sistemas emPsicanlise e que muito presente na Familiologia Psicanaltica4.

    Acho que estamos frente a problemas interessantssimos na Psicanlise:a redefinio de campo. Inclusive, costumo afirmar sempre que, quando al-gum trabalha interdisciplinarmente, esta pessoa o faz a partir dos limites deseu prprio campo. Sendo necessrio definir o que se sabe e o que no se sabee, no necessariamente, isto significa dizer que o ignorado ser resolvido pelo

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    outro campo. Sempre brinco e digo que esta questo da interdisciplinaridadeparece o Mercosul o que juntamos so as nossas misrias, o pouquinho quecada um tem. Mas, de fato, eu creio que, para trocar, preciso primeiro enri-quecer internamente.

    P Quais so as conseqncias clnicas, para o campo da psicanlise in-fantil, de tudo que voc vem teorizando?

    S Eu acho que ao contrrio: eu comeo a trabalhar com a psicanliseinfantil e vou estendendo algumas consideraes sobre a anlise de adultos como ocorre sempre com os casos-limtrofes. Em todos os campos de frontei-ra, todos os campos-limite tm tido que reformular suas hipteses centrais naPsicanlise. As grandes transformaes na Psicanlise surgem da anlise dascrianas ou das psicoses. Da que meu campo de investigao fundamental ocampo da anlise de crianas e, a, eu penso e curto muito da prtica.

    Uma vez tive um lapso muito curioso eu ia dizer que o meu consultrioprecisava de sangue jovem, me referindo s crianas, das quais eu gostomuito e, no lugar, falei: meu corao precisa de sangue novo. Foi um lapsoincrvel: as crianas, para mim, so um campo central de descobrimento e deprazer tambm no trabalho. muito prazeroso trabalhar com crianas a talponto que, faz pouco tempo, a me de uma menina que terminara a anlise,me indagou se, em alguns anos, ela precisasse de anlise novamente, se eu aatenderia e eu disse: no, nesse momento no, pois ela precisar de um ana-lista adulto. E ambas demos risada do que eu acabava de dizer.

    Ento, fundamentalmente, minha preocupao no campo das crianascomea por definir a relao objeto-mtodo. Quando uma criana passvelde ser analisada? No que o mtodo se aplique a qualquer objeto, existe umarelao intrnseca objeto-mtodo, que define quando possvel comear aanlise de uma criana.

    Segunda questo: se eu no posso dar incio a uma anlise de uma crian-a, o que pode ser feito? Eu no sou partidria da soluo fcil de trabalharcom os pais, ou com a famlia, o que eu preciso definir o ncleo patognico.Em que ponto est se produzindo uma articulao que vai definir, ou que vaiproduzir a patologia, ou os transtornos maiores da constituio do psiquismo. a que trabalharei a relao entre a constituio da tpica e suas condiesiniciais nas figuras de origem. Eu no gosto de falar de famlia prefiro falarem estrutura edpica ou em modalidades de constituio em relao s condi-es iniciais, dentro da assimetria adulto-criana, no caso de uma criana de-

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    terminada. De tal forma, que a que, para mim, vai se definindo a estratgia.Acredito que o campo da anlise de crianas um campo que est em cons-tante risco um tanto pela familiologia, que acaba por deslocar o incons-ciente infantil para o inconsciente parental; ou pela tendncia de trabalharcom os pais exclusivamente.

    Notas

    1. Entrevista, transcrio, traduo e estabelecimento do texto: Carmen S. Molloy e JaciremaC. Ferreira.

    2. Agradecimento especial pela inestimvel colaborao de: Cassandra Pereira Frana e Ma-ria Teresa de Melo Carvalho psicanalistas; professoras doutoras da UFMG na elaboraodas questes, troca de opinies e reviso conceitual.

    Carmen Molloy, nossa gratido pelas muitas horas dedicadas consecuo deste projeto,acompanhando-o em todos os momentos, com competncia mpar e generosa dispo-nibilidade.

    Cris Lemos, por seu auxlio na transcrio.

    3. Trata-se de sistemas afastados do equilbrio que podemos tambm encontrar nos mo-mentos traumticos da vida psquica em cujos pontos de bifurcao e em certos momen-tos da vida, a interveno faz com que todo o aparelho possa se recompor em uma direodiferente (com intervenes ocorrendo tanto na estrutura edpica, como em certas repre-sentaes bsicas, ou em certas modificaes, nas quais se constituiu a tpica).

    4. Fao referncia aos tratamentos de famlia nos quais a tpica foi substituda pelointersubjetivo e para os quais desapareceu praticamente o conflito inter-sistmico. Com-preendo como familiologia psicanaltica tudo que produzido atravs do tipo de vnculoque se constitui, desconsiderando o fato de que o inconsciente uma estrutura produtorade efeitos, que se encontra permanentemente com o Real e que vai produzindo a suaincidncia e transformaes na totalidade do aparelho. Entretanto, sua permanncia nadeterminao dos sintomas no de carter intersubjetivo, mas sim intrapsquico.

    Jacirema Clia Ferreira

    Psicanalista; Mestranda IPUSP; Diretora do Centro de Estudos e Pesquisa em Psicanliseda Universidade So Marcos.e-mail: [email protected]

    Carmen S. Molloy

    Psicanalista.e-mail: [email protected]