Entrevista Nestor Canclini

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Estudos sobre cultura: uma alternativa latino americana aos cultural studiesEntrevista com Nestor Garcia Canclini onde ele aponta a inclusão dos processos socioeconômicos no campo que prefere chamar de “estudos sobre cultura”, como necessária remodelação aos cultural studies, mantendo seu protocolo básico mas evitando uma “hiper-textualização com pouca análise de contexto” que ele reconhece sobretudo na vertente norte-americana dos estudos culturais.

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7Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 30 • agosto 2006 • quadrimestral

ENTREVISTA

Estudos sobrecultura: umaalternativa latino-americana aoscultural studiesRESUMO Nesta entrevista, destacando o que se vem fazendo naAmérica Latina, Canclini aponta a inclusão dos processossocioeconômicos no campo que prefere chamar de “estudossobre cultura”, como necessária remodelação aos culturalstudies, mantendo seu protocolo básico mas evitando uma“hiper-textualização com pouca análise de contexto” que elereconhece sobretudo na vertente norte-americana dos estu-dos culturais.

ABSTRACTIn this interview, Canclini points out the inclusion of thesocioeconomic processes in the field that he prefers to call“studies on culture”, as a necessary alternative to the cultu-ral studies, avoiding a “hiper-textualization with littlecontext” analysis which he recognizes in line with the NorthAmerican field of the cultural studies.

PALAVRAS-CHAVE (KEY WORDS )- Estudos sobre cultura (studies on culture)- Globalização (globalization)- Interculturalidade (interculturality)

Entrevista com

Néstor García-Canclini1

NASCIDO NA ARGENTINA em 1939 mas radica-do no México desde 1976, onde dirige oprograma de Estudos sobre Cultura Urba-na do Departamento de Antropologia daUniversidade Autônoma Metropolitana(Iztapalapa), o filósofo e antropólogo Nés-tor García-Canclini é doutor pela Universi-dade de Paris X e já foi professor-pesquisa-dor nas Universidades de Stanford, Austin,Barcelona, Buenos Aires e São Paulo. Aolongo dos anos, festas populares, artesana-to, arte, globalização, consumo e políticasculturais despontam como algumas das li-nhas de pesquisa recorrentes na obra deCanclini, dentre as quais destacam-se: Lasculturas populares en el capitalismo (prêmioCasa das Américas de 1981, Havana/Cuba,publicado em 1982); Culturas híbridas: Estra-tegias para entrar y salir de la modernidad (prê-mio íbero-americano Book Award da Lan-tin American Studies Association, publica-do em 1990); Consumidores y ciudadanos.Conflictos multiculturales de la globalización(1995); Cultura y comunicación: entre lo globaly lo local (1997); La globalización imaginada(1999); Latinoamericanos buscando lugar en estesiglo (2002) e Diferentes, desiguales y desconec-tados: mapas da interculturalidad (2004). Gar-cía-Canclini foi um dos expoentes do VIIISeminário Internacional da Comunicação: Medi-ações tecnológicas e a reinvenção do sujeito, rea-lizado na PUC-RS, de 3 a 4 de novembro de2005, quando também ministrou o seminá-rio Interculturalidade e Globalização.

RF - Desde As culturas populares no capitalismoo senhor vem desenvolvendo uma idéia dediscurso científico no sentido da impossibili-dade de construir ou alcançar uma verdadegeneralizada e definitiva. Isto, de alguma

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forma, vai se associar a uma postura em tor-no do relativismo que, sabemos, atrai muitascríticas. Como o senhor se coloca hoje em re-lação a esse posicionamento epistemológico?

C – Eu concordo com a primeira parte datua afirmação: não creio que haja verdadesdefinitivas. Parece-me que - para estabele-cer uma data, a partir de 1934, quando KarlPopper publica Lógica da pesquisa científica -não se pode falar que a ciência (nem sequera ciência física de que ele trata também)pretenda estabelecer verdades definitivas,mas que desenvolve construções conceitu-ais que se aproximam ao máximo do quesupõe ser o real. Nunca se pode afirmarque essas construções conceituais sejamverdadeiras, disse Popper. Pode-se dizerque não foram refutadas em seu tempo ouque são as aproximações mais consistentes,mais persuasivas, mais plausíveis... até quevenha outra teoria ou outro paradigma. Pa-rece-me que esta questão é reforçada porquase toda a epistemologia contemporâ-nea. A problematização feita por ThomasKuhn - acerca da fragilidade dos paradig-mas e a inexistência de paradigmas defini-tivos, através do histórico da sucessão deparadigmas que alguns acreditam verda-deiros e são refutados por outros - seguena mesma direção. Em posições mais con-temporâneas, temos deixado de falar deparadigmas, porque a noção de paradigmaimplica que haja um só modelo de conheci-mento, de natureza universal. Falamos denarrativas. Não compactuo plenamentecom a interpretação pós-moderna de narra-tiva. Parece-me importante reconhecer quequase todos os conhecimentos, inclusive osdas ciências físicas, astronômicas ou econô-micas, são relatos sobre o real, sobre omundo. Isto permite conviver com o fatode que coexistem muitas narrativas quepretendem ser científicas. Mas não creioque a conclusão necessária desta pluralida-de de narrativas seja o relativismo, porqueo relativismo - sobretudo no sentido da an-tropologia, a disciplina que mais o tem ela-borado - é uma concepção que não toma

partido a respeito da pluralidade de narra-tivas ou da pluralidade de culturas. O rela-tivismo antropológico se desenvolveu aolongo do século XX, especialmente depoisda II Guerra Mundial e como conseqüênciado descobrimento das muitas formas de or-ganizar a cultura, de pensar e perguntar-sesobre o social. E se pensava naquele mo-mento que era possível resolver a questãoda diversidade cultural e da heterogenei-dade de modelos de conhecimento com asimples aceitação de que “cada uma teriarazão em si mesma”. Isto nunca foi muitocorreto, mas é menos consistente ainda emépoca de transnacionalização de culturas,quando as sociedades interatuam intensa-mente e necessitamos arbitrar entre as in-compatibilidades ou incomensurabilidadesdos paradigmas críticos e a aspiração a al-gum tipo de governabilidade mundial.Não digo de governo, mas de organizaçãoque faça possível em escala global a convi-vência de muitas culturas, o que implicatomar partido, não para estabelecer uma hi-erarquia de verdades ou de aproximaçõesmais ou menos legítimas, mas sim paracontrolar os processos de conhecimento eas formas de vida que vão ser destrutivasou autodestrutivas.

RF - O senhor sempre disse que o hibridis-mo era um posicionamento metodológiconas intersecções, e seu último livro proble-matiza como colocar em relação três visões:da diferença, da antropologia; da desigualda-de, que vem da sociologia; e a conexão-des-conexão, da comunicação. Em princípio, pa-rece que persiste o posicionamento do pes-quisador num espaço de intersecções. É isso?

C - Sim, intersecções em vários sentidos.Por um lado, a noção de hibridação implicaconsiderar as intersecções entre culturas eestabelecer como propósito do trabalho dasciências sociais situar-se entre as culturas,nos lugares de cruzamentos, fusões, confli-tos e contradições. Neste último livro refi-ro-me, sobretudo, à intersecção de discipli-nas, como colocar em relação os enfoques

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antropológicos, que tendem a destacar adefesa de cada cultura, a capacidade de au-togestão, o direito à existência autônomade cada cultura, ou seja, a antropologiacomo a teoria da diferença; às teorias ma-cro-sociológicas - penso especialmente emPierre Bourdieu mas podemos falar demuitos outros, do marxismo, de todas asoutras concepções macro-sociológicas quetêm se organizado como explicações e in-terpretações para a desigualdade social - e,em terceiro lugar, às teorias da conexão co-municacional ou sistêmicas que acentuama organização social que se realiza atravésdo acesso ou da exclusão, a desconexão.São três modos de ver a organização social,a interação entre classes, países, culturasou grupos sociais. Não creio que sejam ex-cludentes. Nesse sentido, a minha percep-ção é entre disciplinas. Tratar de reconhe-cer, desde as fortalezas disciplinárias, quenos processos sociais a diferença se confun-de com a desigualdade (a desigualdadeimplica diferenças que às vezes não se re-solvem corrigindo a desigualdade) e quefinalmente, sobretudo na segunda metadedo século XX, a possibilidade de conectar-se ou de estar desconectado gera tambémnovas diferenças e desigualdades. Tudoisto está articulado em processos sociais,todavia sem que tenhamos instrumentossuficientemente elaborados para pensá-losefetivamente.

RF – Mas, de alguma forma, este pensar“entre as disciplinas” é algo que persisteem seu trabalho metodológico, porque istojá estava em Culturas híbridas. A noção dehibridismo ainda tem validade conceitualhoje ou a interculturalidade seria a concep-ção adotada atualmente para entender asrelações entre as culturas?

C - Eu preferiria falar não de hibridismo,mas de hibridação. Parece-me que hibridis-mo, como todos os “ismos”, alude a umacerta absolutização daquilo que se nomeiae pode implicar um certo dogmatismo ouuma intenção de impor esta concepção a

outros processos que não sejam implicá-veis. Na introdução que escrevi no ano de2001, para a última edição de Culturas híbri-das2 , assumindo o debate dos anos 90, emespanhol e inglês e um pouco em portugu-ês, sobre hibridação, tratei de precisar epis-temologicamente algumas noções que nãohaviam sido assinaladas na primeira edi-ção do livro. Uma delas é que a noção dehibridação, para mim, é uma noção descri-tiva, caracteriza processos sociais em quese dão cruzamentos, intersecções, sem nospermitir estabelecer o caráter dessas inter-secções ou dessas hibridações. Parece-meque os que temos trabalhado sobre hibrida-ção, tanto em inglês como em espanhol,usamos o termo como uma noção descriti-va. E quando alguém lhe quer imprimiruma maior especificidade, como no caso deHomi Bhaba, precisa agregar-lhe um suple-mento e falar de hibridação dominação ou hi-bridação de resistência nos processos de colo-nização no oeste da Índia e os modos comoas culturas locais, nacionais ou popularesresistiram a esta hibridação imposta pelacolonização. A noção de hibridação me pa-rece útil para reunir vários processos queforam estudados separados, porque o ter-mo sincretismo quase sempre se aplica aprocessos religiosos ou a mestiçagem, aprocessos interétnicos, quando se fala tam-bém de “crioulização”. Essa diversidadede processos de fusão ou de cruzamentos,alguns de nós apostamos em reunir sobuma noção mais abarcadora, de hibridação,que não só reúne essas formas históricas deorganização heterogêneas, como outras,modernas, como podem ser as articulaçõesou mesclas do culto com o popular e omassivo ou do moderno com o tradicional.O desenvolvimento que têm elaboradomuitos autores nesta linha de criação pare-ce-me que mostra a utilidade e a fecundi-dade dessa noção. Mas, contrariamente aosque às vezes têm me criticado, que falar dehibridação implique uma conciliação entrecontrários, não creio que a noção de hibri-dação implique afirmações rotundas acercado caráter e conteúdo da hibridação. Tería-

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mos que analisar em que medida há fu-sões, há tradições que permanecem, anta-gonismos que coexistem com a atração dopré-estabelecido. Então a noção de hibrida-ção necessita associar-se a outras noçõesdas ciências sociais como as de negocia-ções, contradições, etc.

RF – Em alguns textos, o senhor observaque sob o manto do consumo cultural exis-tem muitos trabalhos de recepção, de uso eaté mesmo de opinião pública, que não sãoexatamente estudos de consumo cultural.O que o senhor consideraria, hoje, o consu-mo cultural e no que ele se diferenciaria,por exemplo, da questão do uso ou recep-ção dos meios? Existe um diferencial doconsumo cultural que o coloca de uma ma-neira diferente em relação a estes outros es-tudos sobre os meios de comunicação?

C - Tenho a impressão que esse tema foianalisado já há muitos anos e eu não estouinteiramente a par dos estudos de consumoe recepção, hoje. Mas o que me parece éque eles têm avançado, sobretudo nos pro-cedimentos empíricos dos processos e nãotanto na teorização e na reconceitualização.Se for assim, eu diria que o consumo conti-nua sendo um conceito duro das ciênciassociais, que por sua vez vem da economia,da análise do ciclo de produção, reprodu-ção e circulação e consumo. E que, portan-to, é o momento terminal do ciclo sócio-econômico. Eu não diria só econômico, masbasicamente é uma noção da economia e dasociologia. De certa maneira, desenvolve-ram-se de maneira separada e independen-te dos estudos de recepção: de um lado ateoria literária; de outro os estudos comu-nicacionais. E alguns poucos autores os ar-ticulam, por exemplo, Eliseo Veron há 30anos dizia ser mais pertinente aplicar a no-ção de recepção aos processos comunicaci-onais, para captar a complexidade e a di-versidade na etapa final do modo como osconsumidores se relacionam com os bensculturais e comunicacionais. E estudar a re-cepção revelou-se algo que abarca uma sé-

rie de processos específicos que requeremoutras noções, como a de apropriação e ela-boração simbólica, para dar conta das ativi-dades dos consumidores. Nunca o consu-mo é um fenômeno passivo, mas a noçãode consumo está carregada de um certocondicionamento e, às vezes, até determi-nismo, que vem da produção e da circula-ção. Então os trabalhos de recepção e deapropriação têm tratado de criar noçõespara caracterizar as atividades dos destinatá-rios, portanto, dos receptores, apropriadorese transformadores daquilo que recebem.

RF – No seu artigo “El consumo cultural:una propuesta teórica”3 , o senhor apresen-ta seis modelos para se analisar o consumoe propõe uma espécie de desafio de comoconectar essas seis noções. O senhor temavançado nestas questões teóricas e meto-dológicas para fazer essa conexão entre asabordagens que vem tanto da psicologiaquanto da antropologia, da economia e dasociologia? Qual seria a situação hoje destaabordagem sociocultural do consumo?

C - Não tenho trabalhado muito além doque já foi publicado, e o que está publica-do já tem muitos anos. Tenho trabalhadosobre outras noções ou outros processosculturais, não avancei muito neste campo,tenho pequenos estudos, como por exem-plo, a recepção da arte no México e os pú-blicos que se relacionam com o patrimôniohistórico manifestado nos murais. (...) Nogeral há uma grande dificuldade para cap-tar os discursos pós-revolucionários domuralismo e os receptores, principalmenteos mexicanos, vêem os murais a partir deduas formações: uma é a da escola e a ou-tra a dos meios de comunicação. A escoladá informações sobre os períodos históri-cos e às vezes sobre as próprias obras dosmuralistas. Isto permite a alguns reconhe-cer figuras, porém muito poucas. E por ou-tro lado, aparece o acesso através dos mei-os. Um exemplo é peculiar: uma guia demuseu perguntava para um grupo de ado-lescentes se sabiam quem era Diego Rivera

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e a resposta do estudante foi que Diego eranoivo de Frida Khalo. Ele havia visto o fil-me “Frida”, onde a personagem mais im-portante era Frida. Na história da arte me-xicana (...) a obra de Diego tem maior im-portância do que a de Frida. Mas, inverteu-se, o personagem histórico de Frida foi seconstruindo por uma operação mediática eé a partir desta cultura mediática que agorasão lidos os murais. Então, encontrar estesdesacordos me parece mais interessante doque pensar o modelo. Não quero dizer que omodelo não seja pertinente para se pensar te-oricamente a questão, porém o que tem mepreocupado mais é perseguir estes processosinterculturais, estes desencontros e desencai-xes entre a oferta cultural que oferecem umtipo de leitura sobre a história da sociedade eos lugares dos quais os mexicanos ou estran-geiros se relacionam com esses bens.

RF - Em Consumidores e cidadãos, o senhorfalava de uma “norte-americanização doplaneta”, que mais do que a hegemoniados capitais e das corporações norte-ameri-canas poderia ser associada a certos traçosestéticos, dentre eles o predomínio da açãoespetacular sobre formas mais reflexivas eíntimas de narração. O que dizer, então, so-bre os programas chamados de reality sho-ws, onde a intimidade de algumas pessoasoriundas do segmento da recepção dos me-dia se oferece à produção do espetáculo?

C - Há efetivamente uma reorganização dosgêneros e estilos televisivos e mediáticosem geral, desde aquela época. Alguns des-tes novos programas televisivos fazememergir uma subjetividade e uma certa in-timidade familiar ou pessoal, mas sob o re-gistro de espetáculo, não como instância re-flexiva, como oportunidade para elabora-ção, como fazem outros programas televisi-vos, por exemplo, os consultores sentimen-tais ou outras formas, como os consultoressexuais das televisões de muitos países.Mas os programas que tem mais êxito,como os reality shows, são os que espetacu-larizam os dramas subjetivos e intersubjeti-

vos. Um reality show que não culmine se-quer numa confissão simples ou num es-cândalo na família que se apresenta na tele-visão é um fracasso. O que se busca emcena é a ação. Creio que se está sofisticandomuito mais a oferta televisiva do que a ci-nematográfica dos EUA. Existem muitopoucos filmes estadunidenses que traba-lham sobre a subjetividade, existem maisnos cinemas europeu, asiático ou latino-americano. Mas na televisão, sim. E sepode suspeitar que isto tenha a ver com arelação da televisão com o lar, com a famí-lia, com a casa, com as rotinas domésticas.RF – Na sua palestra no VIII Seminário In-ternacional da Comunicação, o senhor citouBourdieu sobre o longo tempo despendidona formação do habitus. E falou que se asinterpelações são feitas para os grupos, asrespostas são sempre individuais. Então,com essas ressalvas, o que o senhor classifi-caria como contribuição da televisão naconstrução dos processos de mudança des-ta época já chamada (por Gilles Lipo-vetsky) de hipermoderna?

C - Não sei se sou suficientemente conhece-dor do que está acontecendo na televisãointernacional e seu modo de afetar distin-tos públicos. A minha impressão é que oimpacto da televisão, que descobrimoscom os estudos comunicacionais desde osanos 60 e 70 e que se elaborou com umpouco mais de sofisticação nas últimas dé-cadas do século XX, está se modificandopor um caráter “intermedial”, isto é, entreos muitos meios da comunicação atual. Istose nota tanto na estrutura da indústriacomo nos modos de apropriação e recep-ção dos usuários. Na estrutura das indús-trias, sabemos que há crescentes processosde fusão entre os proprietários de emisso-ras, entre produtoras de cinema e televisão,que produzem para os dois meios simulta-neamente e, nos últimos anos, também aAmerican On Line e todas as produtoras decomunicação eletrônica da Internet. Cadavez, as instituições criam relações maiscomplexas, mais articuladas e poderosas. E

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do lado dos receptores, percebe-se que so-bretudo as gerações jovens se relacionamcom produtos complementares, que che-gam por diversos meios. Eles vêem teleno-velas para jovens, buscam informações so-bre os atores na Internet (sobre sua vida ex-tratelevisiva) e compram produtos que sãooferecidos na televisão mas que adquiremvia Internet. Tudo está internamente inter-relacionado e supõe um nível de consumomédio e alto, ter televisão e computadorem casa e poder comprar esses produtos.Todavia, na América Latina nem a metadeda população tem ou acessa computador(ainda que em um lugar público), e nãopassa de 20% o acesso à Internet. Emborapara os mais jovens o índice seja maior,para a maioria da população a televisão se-gue sendo o recurso mais predominante ese combina pouco com outros lugares deacesso a oferta cultural. Mas me parece quevamos numa crescente combinação dosmeios. Cada vez menos, podemos ler o queoferece a televisão como um produto isola-do, precisamos vê-la como um processo co-mercial, mediático e de recepção que arti-cula várias possibilidades, vários cenários.Embora eu não conheça estudos sobre isto,por observação de meus filhos e de seusamigos percebo que há uma mudança gera-cional muito grande. Minha filha mais ve-lha (29 anos), quando tinha 15 anos ia parao seu quarto assistir à televisão, meu filhode 15 anos vai para o quarto ocupar-se como computador. Em parte, a televisão temum papel ambíguo, ora se apresenta comocomplementar aos outros meios, ora comoum concorrente. Também é o caso da Inter-net, onde é possível baixar músicas.

RF - As questões que levantamos até aquiremetem a leituras de García-Canclini dosanos 80 e 90, talvez deixando de lado o quecomeça aparecer em Consumidores e cidadãos,continua em A globalização imaginada, e quetambém teve ênfase no Seminário, em rela-ção à utilização dos dados duros e sobretu-do, dessa preocupação bastante atual nasua reflexão, da integração dos estudos da

cultura e da economia da cultura. Comopensar isto hoje? Qual o seu percurso nestaquestão que de alguma maneira tambémremete àquela discussão bastante antiga docontexto anglo-americano, dos estudos cul-turais versus a economia política?

C - Há várias vias por que cheguei, masnão quero colocar a resposta em termospessoais. Parece-me um processo que eucompartilho. E parece-me que esta remode-lação dos estudos culturais ou comunicaci-onais tem a ver com mudanças que já exis-tiam há 20 anos, mas que agora são muitomais visíveis. Por um lado, eu assinalaria a“rua sem saída” a que chegamos nos estu-dos culturais, sobretudo na sua versão nor-te-americana. Em parte, pelo fato de que amaioria dos autores dos cultural studies nor-te-americanos provinha da literatura e dashumanidades e tenderam a construir con-cepções críticas humanistas (no sentido dashumanidades) sobre os processos culturais.Eles fizeram críticas muito valiosas, elegen-do os processos culturais através de gêne-ro, etnia, ou propondo, os mais radicais,uma crítica ao capitalismo. Então, o quemuitos de nós percebemos é que chegamosa uma hiper-textualização com pouca ênfa-se na análise de contexto, dos processos so-cioeconômicos que assinalavam de ummodo ou de outro a indústria da cultura.Parece-me que isto ocorreu menos na Amé-rica Latina, porque tratamos de incluir osprocessos socioeconômicos. Nem sempreda melhor maneira, porque não tínhamosquase nenhum economista da cultura e nosfaltavam os instrumentos técnicos apropri-ados para fazer uma análise rigorosa dasbases socioeconômica da cultura, mas meparece que nos dávamos conta disso. Naatualidade, nos Estados Unidos e na Ingla-terra e também em outros países há um co-nhecimento muito mais cuidadoso destesprocessos básicos e estruturais na produ-ção da cultura. Por exemplo, obras como ade George Yúdice e Toby Miller me pare-cem exemplares sobre o conhecimento, nãosomente do papel socioeconômico da cul-

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tura, senão de como a explicação de ques-tões de estilo, de recepção, de eleição degêneros estão articuladas, mas precisam serentendidas como parte dos processos soci-oeconômicos. Outra via para explicar estaremodelação dos estudos culturais comu-nicacionais é o fato de que já contamos comuma certa quantidade de estudos de econo-mia da cultura, que têm sofisticado muito ainformação. Estou pensando nos trabalhosde Luiz Monet, na Espanha, ou de ErnestoPiedras, no México, que são economistascom boa formação em sua disciplina e àsvezes se dedicam a fazer investigação noscampos culturais e comunicacionais. Háuma terceira linha, que me parece menosdesenvolvida enquanto economia da cultu-ra, mas igualmente importante e que ofere-ce elaborações complexas de aspectos maisestéticos, por exemplo, a análise da indús-tria editorial. Tem sido evidente, nos últi-mos 10 a 15 anos, a passagem das indústri-as editoriais encabeçadas por especialistasque liam os livros antes de publicá-los,para essa espécie de corporações transnaci-onais que produzem livros com a exigênciade rendimentos, que reelaboram catálogos,decidem o que vão publicar ou não, dei-xam de publicar livros que têm certo êxito,porque não têm um público massivo. Pro-duzem livros de ficção, romances, como seestivessem produzindo carros ou produtosderivados do petróleo. Inclusive nos EstadosUnidos muitos dos donos das editoras pro-vém da produção petroleira e da Disneylân-dia, a grande corporação de espetáculos.

RF - Já que entramos na pauta dos estudosculturais, há um texto seu sobre “O mal-estar nos estudos culturais”4 , que faz men-ção ao seu entendimento acerca do desen-volvimento dos estudos culturais, sobretu-do nos Estados Unidos. É possível falar deestudos culturais na América Latina? Sabe-se que Daniel Matto, da Venezuela, emboraparticipe de uma maneira bastante intensana Associação Internacional dos EstudosCulturais, fala que na América Latina o im-portante seria demarcar uma área estudos

em cultura e poder. Nesse sentido, foi sur-preendente uma entrevista que o senhor deupara a revista Cultural Studies, no finalzinhodos anos 90, quando pela primeira vez umlatino-americano dizia ser possível pensarem estudos culturais na América Latina.

C - Tudo depende como definimos estudosculturais. Eu prefiro falar de estudos sobrecultura, principalmente para nos distin-guirmos dos cultural studies, que tampoucosão os mesmos em todas as áreas anglo-saxônicas. Na Grã Bretanha têm um certodesenvolvimento, nos Estados Unidos, ou-tro, e no mundo asiático é diferente. Mas,em parte eu compartilho, na América Lati-na, com preocupações e estilos básicos doscultural studies. A vocação transdiscipliná-ria, a reflexão e investigação sobre culturaem relação a estrutura e poder, a divisãode classes e grupos de consumo na socie-dade e o interesse de estudar sociológicaou socioantropologicamente os produtosculturais, não analisar isoladamente asobras de arte ou as obras literárias, mas vê-las na trama complexa de relações de pro-dução cultural. Tudo isto tem sido caracte-rístico dos cultural studies e também dos es-tudos culturais ou estudos de cultura naAmérica Latina. Se bem aí existem uns 10 a15, 20 autores que eu poderia identificar naAmérica Latina com uma produção vincu-lável aos estudos culturais, eu não encon-tro nenhum dos mais importantes ou quetenham obras e trabalhos mais consistentesque sejam simplesmente afiliáveis aos es-tudos culturais, que cumpram com um re-quisito de um paradigma internacional, oque por outro lado não existe, é uma con-venção. Uns interpretam de uma maneira eoutros de outra. Assim, é possível encon-trar autores como Beatriz Sarlo, que citamuito Raymond Williams e outros autoresdos estudos culturais, sobretudo os britâni-cos, através dos quais aprendeu a analisaros textos ou a relação texto e contexto soci-al. Porém, Beatriz Sarlo também reivindica,no mesmo nível que Raymond Williams,um Roland Barthes, por exemplo. E outros,

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como Jesus Martín-Barbero, que tambémusam recursos dos estudos culturais britâ-nicos e norte-americanos, mas de formamais diversificada, combinando-os comanálises empíricas e com outras metodolo-gias e estratégias de investigação na Améri-ca Latina. Nesse sentido, eu me sinto muitopróximo de um autor como Martín Barbe-ro. Outra característica que parece nos dife-renciar de outros (que podemos citar comoparte de um grupo) é o fato de mantermosuma forte preocupação teórica, problemati-zando os modos como articulamos os re-cursos de diferentes disciplinas. E há auto-res que se negam a serem incluídos nos es-tudos culturais, como Renato Ortiz, aindaque não me pareça arbitrário que sua obratenha sido arrolada dentro dos estudos cul-turais nesse sentido amplo.

RF - Na introdução do livro Sociologia e cul-tura, de Pierre Bourdieu, o senhor faz umacrítica a ele, por não pensar na transforma-ção, porque o trabalho dele não incluiria autopia para se pensar uma outra socieda-de. A sua obra, ao contrário, sempre apre-senta possibilidades políticas e culturais,estratégias para escapar dos movimentosde dominação. Qual é a utopia desta novasociedade e quais são os elementos pelosquais o senhor a constrói?

C - Há duas questões aí. Uma é a crítica aBourdieu que desenvolvi no meu últimolivro, Diferentes, desiguales y desconectados,onde retomei algumas partes daquela quefizera 20 anos atrás para Sociologia e cultura.Retomei-a, referindo-me também ao livrosobre a televisão de Bourdieu e ao modocomo ele se comportou publicamente aodar as conferências na televisão, negando-se a usar os recursos lingüísticos comunica-cionais da televisão, proibindo movimen-tos de câmera, usos de estatísticas e ilustra-ções que interrompessem sua discursivida-de acadêmica. Parece-me que esta sintoma-tologia anti-mediática é expressiva e emparte explicativa do fracasso da obra tardiae final sobre a televisão. Parece-me que em

relação à questão da utopia é que podemosdizer um pouco paradoxalmente que Bour-dieu sim teria uma utopia, como um sub-texto de suas investigações e reflexões, queera uma sociedade moderna pré-mediática.Mesmo tendo um projeto cultural muitoambicioso e exaustivo sobre a sociedadefrancesa, se negou a falar destes protago-nistas-chave que são as indústrias culturaise a televisão; incluiu-os muito tardiamentee mal, com críticas ao papel da televisão nasociedade contemporânea, que se dirigiamsobretudo à incapacidade de a televisãodesenvolver receptores pensantes. O corpodesta segunda crítica é válido, mas não sepode fazer tal crítica sem abarcar tudo o quea televisão e outros meios audiovisuais têmde espetáculo, de comunicação efetiva, decompromisso, de envolvimento do receptornuma experiência que não é predominante-mente reflexiva. Não negamos que a televi-são tenha valor para desenvolver uma cida-dania crítica e pensamento reflexivo, masisto pode ser alcançado também incluindoos recursos audiovisuais de sedução, decompromisso afetivo. Então é nesse sentidoque se poderia ler como uma utopia subja-cente na obra de Bourdieu. Nos últimosanos se voltou a falar um pouco de utopia,em distintas vertentes. Uma é a pós-moder-na, que em geral encontra poucas evidênci-as empíricas que fundamentem estas pro-postas utópicas. Em boa medida, refiro-meao pensamento francês que tem feito (comoutros pensamentos pós-modernos de ou-tras nacionalidades) uma exaltação ao indi-vidualismo, à sedução do consumo ou aosimulacro nas sociedades contemporâneas.Neste sentido, parece uma reflexão poucoconsistente e que não ajuda muito a reco-locar o drama das utopias. A outra ver-tente, a de um certo pensamento políticona América Latina. São dois fenômenosdistintos. O movimento de globalização émuito heterogêneo e parecia dominar atéagora posições reativas que entendempouco a lógica estabelecida pela globali-zação, buscam afirmações no local, no regi-onal e no alternativo e têm poucas propos-

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tas culturais e comunicacionais. (...) O neo-liberalismo está exibindo o seu fracasso emtodo o mundo mas não há um modelo ela-borado que lhe faça oposição. Por outrolado, na América Latina tem aparecido mo-vimentos de protestos muito fortes e triun-fos eleitorais de partidos ou caudilhos quetêm uma trajetória de esquerda ou críticadiante do neoliberalismo. Inclusive se fala-va em 2001, 2002, de um eixo de esquerdana América Latina: Chaves, Lula, Kichnnere também o governo cubano. Apesar disto,são muitos distintos em si e não são com-paráveis nem constroem um modelo alter-nativo em relação ao neoliberalismo. O quese encontra são alianças táticas entre algunspaíses para resolver alguns problemas estru-turais. Não vejo um pensamento utópico ela-borado e pensado com os requisitos que de-veriam ter. Formular uma alternativa ao neo-liberalismo deveria ser o primeiro objetivopraticável e em segundo lugar reformular omodo como o pensamento de esquerda de-veria administrar as contradições sociais e ainserção competitiva da economia numa eco-nomia globalizada.

RF - O senhor coloca que não há uma pro-posta consistente que se oponha ao neoli-beralismo. Isto não produz um novo desen-cantamento do mundo? Isto, aliado ao fra-casso de alguns governos de esquerda ou arepetição de erros de governos neoliberaisem governos de esquerda?

C - Está produzindo, mas não do mesmomodo em todos os países. Houve um mo-mento demasiadamente utópico na saídadas ditaduras nos anos 80, quando se en-tendia que a redemocratização no continen-te traria um bem estar socioeconômico. Istonão ocorreu. Em certa medida, poderia serlógico imaginar uma relação de causa efei-to, onde o bem estar socioeconômico seriaa resultante. Nesse sentido, há um desen-canto compartilhado, mas com dinâmicasdiferentes em vários países. A minha avali-ação agora é que há outras expectativas so-ciais que a esquerda tem subvalorizado e

que aparecem como importantes para o de-senvolvimento da sociedade. Uma é a esta-bilidade macroeconômica e microeconômi-ca, com indicadores duráveis a respeito doque se pode esperar, onde eu posso inves-tir, o que eu posso esperar para meus fi-lhos. Outra expectativa é a segurança navida urbana. Corrupção, narcotráfico, vio-lência urbana. E este último processo ocor-re tanto em países que não tiveram ditadu-ras, quanto naqueles que as tiveram. Essessão processos de decomposição social quetêm sido agravados nas sociedades. Nassociedades que passaram por ditadurasesse processo de insegurança teve um res-paldo; na medida em que as ditaduras con-tribuíram para a insegurança, inclusivepossibilitando privatizações e a passagema informalidade de mais de 50% de traba-lhadores: a desconstrução de um estado debem estar. Assim, esses processos de inse-gurança devem ser vistos conectados amuitos fenômenos mais amplos. E não hásinal de mudança, justamente por isto a se-gurança aparece em primeiro lugar nas pes-quisas a respeito das preocupações públicas,enquanto deveria ser a estabilidade socioeco-nômica, durabilidade dos comportamentos,segurança urbana. Não há muito lugar paraas utopias. Entretanto, é com estas condiçõesque deveremos construir as utopias .

Notas

1 Entrevista concedida a Ana Carolina Escosteguy (professora doPPGCOM/PUCRS), Ana Luiza Coiro (doutoranda doPPGCOM/PUCRS) e Renê Goellner (doutorando do PPGCOM/UFRGS), na cidade de Porto Alegre, em 02/11/2005.

2 A tradução para o português foi publicada pela EDUSP, em 2003.

3 In Sunkel, Guillermo (comp.) Consumo cultural en América Latina. SantaFé de Bogotá: Convênio Andrés Bello, 1999. pp. 26-49.

4 “El malestar en los estudios culturales”. México, 1997,Revista Fractal ano 2, v. 2, nº 6, p. 45, jul/set. Disponívelem: http://www.fractal.com.mx/F6cancli.html. Acessoem: 15 de maio de 2006.