Entrevista Favela. Territorio de Sobrevivencia e Criatividade-libre

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23/12/14 00:24 Favela: território de sobrevivência e criatividade | ACESSA.com - Direitos Humanos Página 1 de 3 http://www.acessa.com/direitoshumanos/arquivo/cidadania/2014/12/16-favela-territorio-de-sobrevivencia-e-criatividade/ Aline Maia 16/12/2014 Favela: território de sobrevivência e criatividade Construção histórica e social (e, também, midiática), as favelas e periferias fazem parte do cenário urbano brasileiro há muitas décadas. No entanto, tal presença não é livre de conflitos e contradições: discursos de ausência de civilização e de criminalização do território e de seus moradores permeiam as relações sociais, empurrando cada vez mais para as margens geográficas e simbólicas a diversidade que compõe as regiões periféricas e faveladas. Paralelamente, é notável a absorção, por todo canto das cidades (principalmente nos grandes centros), de músicas, danças e outras produções originadas nestes lugares. O desafio é: livrar-se dos estereótipos de violência e de carência que atravessam o imaginário quando se fala em favela (seja em Juiz de Fora, no Rio de Janeiro ou em qualquer parte do Brasil) para dar lugar a uma concepção de espaço rico, plural, produtivo culturalmente e que é parte da cidade – não um apêndice. Estaríamos mais próximos de conceber, então, a favela como um território de sobrevivência e também de criatividade. Sobre este assunto entrevistamos a antropóloga Adriana Facina, professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Adriana pesquisa a produção cultural em favelas cariocas e acredita que são necessárias "políticas públicas que de fato mudem a vida das pessoas" para assim conseguirmos acabar com a estigmatização de determinados grupos sociais. Facina também defende a diversidade como um valor e a importância da arte produzida na favela como via de compreensão deste lugar enquanto parte da cidade, e não um território de exceção. Confira a seguir: Aline Maia - Por que pesquisar favela? Adriana Facina - Eu comecei a pesquisar funk, depois produção cultural de favelas e periferias. A favela acaba sendo o contexto de onde certo tipo de produção estética e artística me interessa. É um contexto onde as pessoas estão muito envolvidas com sobrevivência, tem uma série de precariedades aí, não só materiais, mas de direitos. E que tipo de produção cultural, que tipo de criação artística acontece neste contexto? É uma criação extremamente rica e, ao mesmo tempo, muito criminalizada. Então meu interesse em pesquisar favela vem daí. Geralmente, o senso comum rejeita o conceito de tolerância por considerar que este representa uma atitude neutra de quem não quer aceitar o outro, mas apenas 'tolerar', suportar o diferente. A partir de suas pesquisas e experiências sobre a favela e os favelados, como define tolerância e como percebe esta prática em relação a grupos sociais recorrentemente marginalizados? - Tolerância, na verdade, é um valor liberal, que tem a ver com uma concepção de liberdade individual, aquele famoso ditado "Minha liberdade começa onde termina a do outro". Teria muito mais a ver com uma sociedade individualista e encapsulada do que propriamente com o convívio com a diversidade. Acho que o mais interessante para a construção de uma sociedade democrática é o convívio e a troca, tendo a diversidade como um valor. Porque com a tolerância parece que a gente está dizendo que o ser diverso é ruim, que a gente tem que tolerar, mas que o melhor seria convivermos só, entre iguais. Isso é bastante perverso. Eu acho que a criminalização dos grupos sociais que têm a ver com a favela, mais especificamente os artistas que eu estudo, está totalmente relacionada a isso. Tanto é que as pessoas são criminalizadas, no entanto, o tipo de arte e cultura que elas produzem é consumido, absorvido, relido e reapropriado das mais diversas formas. Então, na verdade, o que não se tolera é o favelado, e não propriamente a arte que ele produz. Há muitas décadas, as periferias fazem parte das cidades brasileiras, principalmente das maiores, inseridas nos processos de crescimento urbanístico. O processo de surgimento destes espaços não foi livre de conflitos, de forma que os cidadãos favelados e periféricos sofreram e ainda sofrem o estigma da marginalidade e da criminalização da pobreza. O que pensa sobre isto? - Se a gente for ver o surgimento das áreas onde a pobreza habita e a sua criminalização, não tem só a ver com os processos de crescimento urbanístico. As periferias sim, que foi a expulsão das populações mais pobres dos centros, das áreas mais valorizadas. Mas sempre existiram entre nós, na História das nossas cidades, estes lugares de concentração da pobreza, da população escrava ou ex-escravizados, onde a marginalidade e a criminalização foram sempre presentes. Isso é um processo de longa duração entre nós. A criminalização e marginalização das favelas e periferias hoje é mais um capítulo desta história. Quando a gente fala que a favela surge no início do século XX isso não significa dizer que os territórios da pobreza marginalizada surgiram naquele momento. Isso é muito mais antigo, com os próprios quilombos e os cortiços. Sempre tivemos esta marca que é uma desigualdade brutal, que tem a escravidão como seu símbolo máximo, e produz na configuração das cidades estas zonas, estes enclaves vistos como lugares de perigo, de falta de civilização, que deveriam ser controlados, civilizados, enfim, dependendo de como cada momento histórico vai lidar com isso. Você acha possível acabar com essa estigmatização de determinados grupos sociais, como os favelados? Direitos Humanos

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Aline Maia16/12/2014

Favela: território de sobrevivência e criatividade

Construção histórica e social (e, também, midiática), as favelas e periferiasfazem parte do cenário urbano brasileiro há muitas décadas. No entanto, talpresença não é livre de conflitos e contradições: discursos de ausência decivilização e de criminalização do território e de seus moradores permeiamas relações sociais, empurrando cada vez mais para as margens geográficas esimbólicas a diversidade que compõe as regiões periféricas e faveladas.Paralelamente, é notável a absorção, por todo canto das cidades(principalmente nos grandes centros), de músicas, danças e outrasproduções originadas nestes lugares.

O desafio é: livrar-se dos estereótipos de violência e de carência queatravessam o imaginário quando se fala em favela (seja em Juiz de Fora, noRio de Janeiro ou em qualquer parte do Brasil) para dar lugar a umaconcepção de espaço rico, plural, produtivo culturalmente e que é parte dacidade – não um apêndice. Estaríamos mais próximos de conceber, então, afavela como um território de sobrevivência e também de criatividade.

Sobre este assunto entrevistamos a antropóloga Adriana Facina, professora do Programa de Pós-Graduação em AntropologiaSocial do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Adriana pesquisa a produção cultural em favelascariocas e acredita que são necessárias "políticas públicas que de fato mudem a vida das pessoas" para assim conseguirmosacabar com a estigmatização de determinados grupos sociais. Facina também defende a diversidade como um valor e aimportância da arte produzida na favela como via de compreensão deste lugar enquanto parte da cidade, e não um territóriode exceção. Confira a seguir:

Aline Maia - Por que pesquisar favela?

Adriana Facina - Eu comecei a pesquisar funk, depois produção cultural de favelas e periferias. A favela acaba sendo ocontexto de onde certo tipo de produção estética e artística me interessa. É um contexto onde as pessoas estão muitoenvolvidas com sobrevivência, tem uma série de precariedades aí, não só materiais, mas de direitos. E que tipo de produçãocultural, que tipo de criação artística acontece neste contexto? É uma criação extremamente rica e, ao mesmo tempo, muitocriminalizada. Então meu interesse em pesquisar favela vem daí.

Geralmente, o senso comum rejeita o conceito de tolerância por considerar que este representa uma atitude neutra dequem não quer aceitar o outro, mas apenas 'tolerar', suportar o diferente. A partir de suas pesquisas e experiênciassobre a favela e os favelados, como define tolerância e como percebe esta prática em relação a grupos sociaisrecorrentemente marginalizados?

- Tolerância, na verdade, é um valor liberal, que tem a ver com uma concepção de liberdade individual, aquele famosoditado "Minha liberdade começa onde termina a do outro". Teria muito mais a ver com uma sociedade individualista eencapsulada do que propriamente com o convívio com a diversidade. Acho que o mais interessante para a construção de umasociedade democrática é o convívio e a troca, tendo a diversidade como um valor. Porque com a tolerância parece que agente está dizendo que o ser diverso é ruim, que a gente tem que tolerar, mas que o melhor seria convivermos só, entreiguais. Isso é bastante perverso. Eu acho que a criminalização dos grupos sociais que têm a ver com a favela, maisespecificamente os artistas que eu estudo, está totalmente relacionada a isso. Tanto é que as pessoas são criminalizadas, noentanto, o tipo de arte e cultura que elas produzem é consumido, absorvido, relido e reapropriado das mais diversas formas.Então, na verdade, o que não se tolera é o favelado, e não propriamente a arte que ele produz.

Há muitas décadas, as periferias fazem parte das cidades brasileiras, principalmente das maiores, inseridas nosprocessos de crescimento urbanístico. O processo de surgimento destes espaços não foi livre de conflitos, de forma queos cidadãos favelados e periféricos sofreram e ainda sofrem o estigma da marginalidade e da criminalização da pobreza.O que pensa sobre isto?

- Se a gente for ver o surgimento das áreas onde a pobreza habita e a sua criminalização, não tem só a ver com os processosde crescimento urbanístico. As periferias sim, que foi a expulsão das populações mais pobres dos centros, das áreas maisvalorizadas. Mas sempre existiram entre nós, na História das nossas cidades, estes lugares de concentração da pobreza, dapopulação escrava ou ex-escravizados, onde a marginalidade e a criminalização foram sempre presentes. Isso é um processode longa duração entre nós. A criminalização e marginalização das favelas e periferias hoje é mais um capítulo destahistória. Quando a gente fala que a favela surge no início do século XX isso não significa dizer que os territórios da pobrezamarginalizada surgiram naquele momento. Isso é muito mais antigo, com os próprios quilombos e os cortiços. Sempre tivemosesta marca que é uma desigualdade brutal, que tem a escravidão como seu símbolo máximo, e produz na configuração dascidades estas zonas, estes enclaves vistos como lugares de perigo, de falta de civilização, que deveriam ser controlados,civilizados, enfim, dependendo de como cada momento histórico vai lidar com isso.

Você acha possível acabar com essa estigmatização de determinados grupos sociais, como os favelados?

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- Acabar com a estigmatização de determinados grupos sociais não depende só de questões que têm a ver com a ordem dosimbólico. Elas são muito importantes, mas dependem de políticas públicas que de fato mudem as vidas das pessoas, queintegrem os favelados, os pobres da cidade, de formas mais igualitárias, e não de formas subalternizadas como a gente temhoje. Isso implicaria você ter outra cidade, portanto, outra sociedade: mais permeável, mais acessível, mais aberta aodiálogo entre os diferentes. O diferente não pode significar esta desigualdade brutal que a gente vive. Então isso implicariaoutro esquema de transporte público, outro tipo de investimento e de organização da educação pública, da saúde pública, dodireito a moradia. Na verdade, a gente tá falando de direitos de cidadania básica. Enquanto estes direitos não estiveremgarantidos, vai ser muito difícil a gente propor acabar com a estigmatização destes grupos sociais. O máximo que a genteconsegue é uma integração meio carnavalizada, meio folclórica.

Em muitos conteúdos midiáticos dos anos 1990, encontramos os moradores de favelas e periferias reduzidos aestereótipos de bandidos, marginais... Representações perversas para sujeitos que por muito tempo foram invisíveis nas'telonas' e nas 'telinhas', conforme a pesquisadora Esther Hamburger. Considerando a favela como uma construçãohistórica, social e, também, midiática, você percebe nos meios de comunicação uma mudança na forma derepresentação do espaço favelado atualmente?

- Sim, percebo uma mudança. Por um lado você tem a continuidade destas representações perversas, só que elas são maismediadas, acredito. Temos toda uma história de movimentos sociais e lutas políticas que hoje impedem discursos muitoabertos, muito explícitos de racismo, de discriminação, de preconceito em relação a esta população. Então acho que sãodiscursos mais mediados, mais sutis. Não é que esta perspectiva tenha desaparecido, mas ela se coloca de outras formas eisto é mérito das lutas políticas, das lutas sociais que defenderam os direitos destas populações, inclusive o direito àrepresentação. Então acho que temos mudança neste sentido.

Você acredita que o crescimento do poder aquisitivo de camadas populares nos últimos anos interfere nestasrepresentações?

- Certamente interfere. Numa sociedade como a nossa, a inclusão via consumo é uma inclusão muito importante. Ela não seconfunde com a cidadania, mas ela também tem a ver com uma determinada forma de cidadania. Você consegue ter umacoisa que parece ser esdrúxula, mas é o que ocorre, de você ter acesso ao consumo, cada vez mais 'democratizado', sem queisso esteja relacionado a ampliação de direitos. Para dar um exemplo, nas favelas do Rio de Janeiro nunca tivemos tantas tv'smodernas, inclusive muitas com TV a cabo. No entanto, o 'caveirão' continua entrando. Então acho que interfere nasrepresentações, mas não resolve todos os problemas de déficit de cidadania.

Em uma de suas pesquisas, você liderou um mapeamento cultural na Favela de Acari, no subúrbio do Rio de Janeiro. Nasua opinião, qual a importância da produção artístico-cultural nas favelas para o estabelecimento de um novo olharsobre a própria favela e seus moradores?

- Primeiro é uma importância em si: muita coisa boa se faz, independentemente de seus efeitos sociais ou políticos. Muitacoisa criativa, inovadora, está sendo feita nas favelas do Rio de Janeiro hoje e Acari é uma delas. Mas, além disso, há esteimpacto simbólico, político, importante que é você ver a favela não só como espaço de ausência, ou de carência e deviolência, mas também de potência, de criatividade, de talentos. Isso é muito importante para entender as favelas comoparte da cidade e não como território de exceção, como o poder público as trata e, frequentemente, a grande mídia, osgrandes meios de comunicação.

Você acredita em uma produção cultural genuína da favela? Ou o que temos hoje, de alguma forma, sempre apresentarávestígios de uma Indústria Cultural imperativa?

- Eu não acredito em produção cultural genuína. Esta ideia de genuína, autêntica, são ideias construídas. Em cada períodovocê vai entender como isso se dá. Estas culturas são culturas híbridas que, obviamente, dialogam, sim, com a IndústriaCultural. O interessante é que, quanto mais investimento público para que estas produções culturais possam ter autonomia eque estes sujeitos possam viver da sua arte, menos a Indústria Cultural será imperativa. Mais este diálogo vai ser nãosubalternizado, mas um diálogo que faz parte de um dado de nosso mundo contemporâneo. Não tem como pensar em culturasem pensar em Indústria Cultural. Ela media muito da produção cultural, do consumo cultural. A questão é: em que termos?Quanto mais opções as pessoas tiverem, quanto mais democratizada for a cultura, quanto mais acesso a políticas públicas decultura que se contraponham muitas vezes ao mercado e que criam alternativas - não só alternativas de produção e fruição,mas alternativas de fazer a vida, de garantir a vida das pessoas com seu trabalho artístico e cultural -, melhor. Eu prefirofalar em riqueza, em florescimento, em dinamismo desta cultura do que propriamente se ela é genuína ou não, autentica ounão. A gente sabe que não existem no nosso contexto culturas que não sejam híbridas, não existem culturas puras; para asculturas que são produzidas na favela, mesma coisa.

Nossas pesquisas são motivadas por nossos ideais. Em quê você acredita, por que ou quem você luta?

- Luto pela democratização da cultura, pelos direitos humanos, pela produção intelectual crítica, pela liberdade deexpressão.

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Discutir e agir: a situação da população negra em pautaDesarticulando discriminações: o 'Passinho' do Brasil para o mundo

Aline Maia é jornalista e professora universitária. Doutoranda em Comunicação na Pontifícia Universidade Católica do Riode Janeiro. Tem experiência em internet, rádio e TV. Interessa-se por pesquisas sobre mídia, juventude e cidadania.

Atuante em movimentos populares e religiosos

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