Entrevista de Carlos Sá ao Jornal de Barcelos

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quarta-feira 8 setembro 2010 Jornal de Barcelos Vencedor do Grand Raid des Pyrénées Carlos Sá, o homem da mar ZITA FONSECA Um grande feito desportivo. É o mínimo que se pode dizer da vitó- ria do barcelense Carlos Sá, 36 anos, na ultra-mara- tona de montanha dos Pirenéus, em França, com 761 participantes à par- tida. O atleta dos Amigos da Monta- nha correu os 160 km da prova em 26 horas, 40 minu- tos e 45 segundos, tornando-se um nome de referên- cia no ultra trail. Esta vitória é o ponto alto dum ano recheado de excep- cionais resultados numa modalidade desportiva durís- sima que exige pre- paração metódica e resistência física e psicológica invul- gar. Sonha agora com as areias do deserto do Sahara: duzentos e cin- quenta quilómetros sob temperaturas extremas na mara- tona dos Sables. A prova que ganhou era para ser feita no máximo, em 50 horas. Fê-la em pouco mais de metade. Como é que se gere o tempo? É uma luta contra o relógio. Mas teve de parar para comer e descansar um bocadinho. Tal como nas provas de BTT há abastecimen- tos. Naquele caso havia abastecimentos a cada 15 km. Somos obrigados a levar uma mochila com material de sobrevivên- cia para o caso de nos perdermos. Atingimos quase três mil metros de altitude e as temperatu- ras de noite são bastante baixas. Temos de levar na mochila roupas quentes, corta-vento e manta de sobrevivência. E não dispõem de nenhum meio de comu- nicação? Somos obrigados a levar telemóvel mas, como deve calcular, no meio da montanha nem sempre há rede e é só para ser utilizado para números de emergência. Correu de noite…. Comecei a prova às quatro horas da manhã em Portugal, corri esse dia todo e a noite toda e cheguei à meta às seis da manhã. Como é correr assim em plena montanha, no meio da escuridão? A minha primeira esco- lha para uma prova deste género era o ultra trail do Monte Branco, nos Alpes, onde está o centro económico deste tipo de corridas em monta- nha. Eles aceitam 2.400 participantes, inscreve- ram-se 4.000 e teve de haver sorteio. Eu fui um infeliz/feliz porque fiquei de fora, mas essa prova, realizada no mesmo dia, teve de ser anulada aos 30 quilómetros por más condições climatéricas. Acabei por ser condu- zido para esta segunda escolha que é mais difícil. Esta prova tem quase 20 mil metros de desnível acumulado. Embora a distância seja a mesma, em termos de terreno e de desnível é mais difícil. Durante aquelas 26 horas quantas vezes parou? Tinha de parar em todos os abastecimentos o mínimo de tempo possível. E para descansar? Para descansar nunca parei. Fui forçado a parar porque já ia muito mal dos pés. Optei por levar umas palmilhas de gel anti-choque e, como era possível trocar de calçado aos 70 km e aos 120, troquei aos 70. Portanto, não dormiu um minuto que fosse. Não dormi nessa noite da partida, a noite seguinte foi sempre a correr e também não consegui dormir na outra noite com o entu- siasmo. Em que é que se pensa quando se está assim, sozinho, a correr no meio duma montanha? Na primeira parte de corrida fui muito caute- loso. Na zona dos 40 km (tinha feito um reco- nhecimento cinco dias antes. Aquilo sobe muito e vi que as características se adequavam à minha condição física) apostei. Disseram-me que iam quatro à minha frente e tentei aproximar-me deles. Acabei por bater o recorde de subida ao pico mais alto [Pic du Midi], quase 2.000 metros. Até fui notícia no L’Équipe. Na descida desse pico acabei por me colar a esse grupo de quatro. Um ficou para trás e estávamos três: eu, um catalão e um francês. Até à volta dos 80 km andámos sempre juntos. Depois o francês fez um sprint numa descida e desapareceu comple- tamente. Fiquei com o catalão mas por volta dos 90 km ele come- çou a ficar muito fraco. Então, decidi ir sozinho. Foram mais de 80 km a correr sozinho. Foi uma experiência incrível. Com todas as bolhas que eu tinha nos pés, foi um sofrimento… Em termos físicos, como é que se chega ao fim da prova? Por muito bom que o calçado seja, os pés devem ficar em muito mau estado. Os meus ficaram, realmente. Desde que cheguei ainda não consegui correr. Tenho um objectivo para daqui a 15 dias e não sei se vou participar. Essa palmi- lha não foi a melhor e andei mais de 80 km com bolhas nos pés. Sentia a água a deslizar dum lado para o outro. Num abastecimento fui a um enfermeiro que me cortou a pele das bolhas e meteu uma vaselina, ou coisa do género, e nem protecção nem nada. E isso acabou por ser ainda pior? Senti muita mais dor. Ao calcar as pedras pare- ciam lâminas. Conseguia subir muito bem com a ajuda dos bastões. A descer, quando tinha de fazer pressão na parte da frente do pé, e quando apanhava pedras, dava berros no meio da mon- tanha. Se não fosse nos primeiros lugares, não sei se chegaria ao fim. Desistia? Acho que sim. Foi um sacrifício tremendo. Do ponto de vista físico como é que se prepara uma prova destas? Tive a facilidade de encontrar nos Amigos da Montanha uma pessoa que faz montanhismo e alpinismo comigo e é formada em desporto de alto rendimento. Há mais de um ano que me está a acompanhar e a orientar todos os treinos.

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quarta-feira 8 setembro 2010Jornal de Barcelos�

Vencedor do Grand Raid des Pyrénées

Carlos Sá, o homem da maratonaZita Fonseca

Um grande feito desportivo. É o mínimo que se pode dizer da vitó-ria do barcelense Carlos Sá, 36 anos, na ultra-mara-tona de montanha dos Pirenéus, em França, com 761 participantes à par-tida. O atleta dos Amigos da Monta-nha correu os 160 km da prova em 26 horas, 40 minu-tos e 45 segundos, tornando-se um nome de referên-cia no ultra trail. Esta vitória é o ponto alto dum ano recheado de excep-cionais resultados numa modalidade desportiva durís-sima que exige pre-paração metódica e resistência física e psicológica invul-gar. Sonha agora com as areias do deserto do Sahara: duzentos e cin-quenta quilómetros sob temperaturas extremas na mara-tona dos Sables.

A prova que ganhou era para ser feita no máximo, em 50 horas. Fê-la em pouco mais de metade. Como é que se gere o tempo?É uma luta contra o relógio.

Mas teve de parar para comer e descansar um bocadinho.Tal como nas provas de BTT há abastecimen-tos. Naquele caso havia abastecimentos a cada 15 km. Somos obrigados a levar uma mochila com material de sobrevivên-cia para o caso de nos perdermos. Atingimos quase três mil metros de

altitude e as temperatu-ras de noite são bastante baixas. Temos de levar na mochila roupas quentes, corta-vento e manta de sobrevivência.

E não dispõem de nenhum meio de comu-nicação?Somos obrigados a levar telemóvel mas, como deve calcular, no meio da montanha nem sempre há rede e é só para ser utilizado para números de emergência.

Correu de noite….Comecei a prova às quatro horas da manhã em Portugal, corri esse dia todo e a noite toda e cheguei à meta às seis da manhã.

Como é correr assim em plena montanha, no meio da escuridão? A minha primeira esco-lha para uma prova deste género era o ultra trail do Monte Branco, nos Alpes, onde está o centro económico deste tipo de corridas em monta-nha. Eles aceitam 2.400 participantes, inscreve-ram-se 4.000 e teve de haver sorteio. Eu fui um infeliz/feliz porque fiquei de fora, mas essa prova, realizada no mesmo dia, teve de ser anulada aos 30 quilómetros por más condições climatéricas. Acabei por ser condu-zido para esta segunda escolha que é mais difícil. Esta prova tem quase 20 mil metros de desnível acumulado. Embora a distância seja a mesma, em termos de terreno e de desnível é mais difícil.

Durante aquelas 26 horas quantas vezes parou?Tinha de parar em todos os abastecimentos o mínimo de tempo possível.

E para descansar?Para descansar nunca parei. Fui forçado a parar porque já ia muito mal dos pés. Optei por levar umas palmilhas de gel anti-choque e, como era possível trocar de calçado aos 70 km e aos 120, troquei aos 70.

Portanto, não dormiu um minuto que fosse.Não dormi nessa noite da partida, a noite seguinte foi sempre a correr e também não consegui dormir na outra noite com o entu-siasmo.

Em que é que se pensa quando se está assim, sozinho, a correr no meio duma montanha?Na primeira parte de corrida fui muito caute-loso. Na zona dos 40 km (tinha feito um reco-nhecimento cinco dias antes. Aquilo sobe muito

e vi que as características se adequavam à minha condição física) apostei. Disseram-me que iam quatro à minha frente e tentei aproximar-me deles. Acabei por bater o recorde de subida ao pico mais alto [Pic du Midi], quase 2.000 metros. Até fui notícia no L’Équipe. Na descida desse pico acabei por me colar a esse grupo de quatro. Um ficou para trás e estávamos três: eu, um catalão e um francês. Até à volta dos 80 km andámos sempre juntos. Depois o francês fez um sprint numa descida e desapareceu comple-tamente. Fiquei com o catalão mas por volta dos 90 km ele come-çou a ficar muito fraco. Então, decidi ir sozinho. Foram mais de 80 km a correr sozinho. Foi uma experiência incrível. Com todas as bolhas que

eu tinha nos pés, foi um sofrimento…

Em termos físicos, como é que se chega ao fim da prova? Por muito bom que o calçado seja, os pés devem ficar em muito mau estado.Os meus ficaram, realmente. Desde que cheguei ainda não consegui correr. Tenho um objectivo para daqui a 15 dias e não sei se vou participar. Essa palmi-lha não foi a melhor e andei mais de 80 km com bolhas nos pés. Sentia a água a deslizar dum lado para o outro. Num abastecimento fui a um enfermeiro que me cortou a pele das bolhas e meteu uma vaselina, ou coisa do género, e nem protecção nem nada.

E isso acabou por ser ainda pior?Senti muita mais dor. Ao

calcar as pedras pare-ciam lâminas. Conseguia subir muito bem com a ajuda dos bastões. A descer, quando tinha de fazer pressão na parte da frente do pé, e quando apanhava pedras, dava berros no meio da mon-tanha. Se não fosse nos primeiros lugares, não sei se chegaria ao fim.

Desistia?Acho que sim. Foi um sacrifício tremendo.

Do ponto de vista físico como é que se prepara uma prova destas?Tive a facilidade de encontrar nos Amigos da Montanha uma pessoa que faz montanhismo e alpinismo comigo e é formada em desporto de alto rendimento. Há mais de um ano que me está a acompanhar e a orientar todos os treinos.

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quarta-feira 8 setembro 2010 Jornal de Barcelos �

Carlos Sá, o homem da maratona

Que tipo de treino faz para uma prova destas? Diário, intenso, de longa duração?Depende. É um treino diário. Os meus colegas adversários normal-mente fazem treino bi-diário: bicicleta e corrida. Eu não tenho tempo para isso. Trabalho oito horas, tenho mais duas horas de

viagem e tenho a família. Por isso, faço uma média de duas horas por dia. Corro aqui nos montes dos arredores e, aos fim-de-semana, dou umas fugidas ao Gerês e aproveito as provas em Portugal e Espanha para me preparar melhor.

E este ano tem-lhe cor-

rido muito bem.Tem sido espectacular. Desde que comecei esse projecto com o meu amigo Paulo Pires a subida de rendimento foi excepcional. Estreei-me esse ano na ultra maratona de mais de 100 km, em Ponferrada, Espanha, e acabei por ganhar logo na primeira estreia. Agora estreio-me nesta de 160 km com outra vitória…. Também acabei por ir à maratona mais dura do mundo, nas serras de Gua-darrama, por cima de Madrid. É uma distância de 42 km com 5.300 metros de desnível. Só fui batido pelo campeão europeu e, mesmo assim, consegui bater o recorde da prova em 14 minutos. Tenho vindo em cres-cendo e acho que tenho muito para dar.

Como é que começou nesta modalidade que é praticamente desconhe-cida em Portugal?Era até há uns anos. Agora há provas todos os fins-de-semana. Houve um crescimento para aí de 300%, só neste último ano. Já há provas em Portugal com cerca de 400 atletas. Isto está a crescer muito. Em Espa-nha há muitas equipas profissionais e ainda mais em França e Itália.Nos Amigos da Monta-nha, onde fazia mon-tanhismo e alpinismo, tivemos um projecto durante dois anos que

era fazer a sexta mon-tanha mais alta do mundo que é o Cho Ouyo [Himalaias]. Para nos preparamos, eu e outro amigo decidimos começar a fazer corridas de montanha. Começou assim. Já conhecia alguns amigos que faziam provas de corridas de montanha e decidi expe-rimentar. A primeira vez adorei e dois ou três meses depois fui a uma maratona no Gerês, a ultra trail de Jeira. Fui, comecei a correr e nunca mais estava cansado. Acabei por chegar ao fim em segundo. Pensei: se calhar tenho jeito para isto.

Para provas destas é preciso conciliar, ao nível físico, o pouco peso com as reservas.Cada quilo que tenhas a mais, ao fim de mil passos é uma tonelada que arrastas. Depois, depende da morfologia. Se perder peso a mais sinto-me fraco e depois não consigo estar no meu máximo. Tento, com o meu treinador, manter o peso ideal para estar na melhor forma possível.

Isso requer muita regra na alimentação?Muita, mesmo. Sou um bom garfo, gosto de comer de tudo e muito e esse é um dos grandes sacrifícios, chegar à mesa e não poder comer tanto ou aquilo que gosto.

Como é que se consegue suportar a dor durante tanto tempo?Tens de ser forte, psi-cologicamente. E tens de querer muito atingir aquele objectivo. Só isso. Os meus amigos dizem que eu sou um testa de ferro. Nunca tive nenhuma desistência e já acabei provas muito mal. Esta, se calhar, foi das piores. Mas, essa sensa-ção de estar nos da frente é um alento muito forte para continuar.

O Carlos atingiu um patamar que lhe traz grandes responsabilida-des. Como é que vai ser daqui para a frente?Cá estarei. Vou conti-nuar a estar nas grandes provas. Terei de ter apoios que não tive até agora.

Deve custar algum dinheiro participar numa prova destas.Os Amigos da Montanha pagam-me algumas ins-

crições. Tenho o sonho de para o ano participar na maratona dos Sables, no deserto, em Mar-rocos. São mais de 250 quilómetros em tempe-raturas extremas. Sinto que tenho possibilidade de ficar nos primeiros 20 ou dez, se as coisas me correrem bem. Tenho esse sonho, mas a parti-cipação anda na casa dos 4.000 euros.

Precisa de patrocina-dores.Preciso. Já arranjei um que me fornece calçado.

Por enquanto ser-lhe-á difícil dedicar-se exclusivamente a esta modalidade?Já não peço isso. O que eu pedia era mesmo poder continuar a participar. Com o espírito de sacrifício que tenho, poder continuar a trabalhar e a treinar. Desde que não tivesse de trabalhar para isto, já ficava contente.

Paulo Vila

Agradecimento e missa de 7.º Dia