Entrevista com a pesquisadora Fernanda Bruno

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Dispositiva v.2 n.1 mai.2013/out.2013 75 Entrevista: Fernanda Bruno// Interview: Fernanda Bruno Vigilância hoje// Surveillance today Por Eduardo de Jesus 1 Como podemos pensar as questões ligadas à vigilância hoje em dia? Quais são as tensões e enfrentamentos típicos que as diversas formas de vigilância nos trazem? A vigilância é um tema central na cultura contemporânea e se desdobra pelos mais diversos domínios e campos do conhecimento. Fernanda Bruno, professora do programa de pós graduação em Comunicação e Cultura da UFRJ, é autora de “Máquinas de ver, modos de ser: vigilância, tecnologia, subjetividade” (Sulina, 2013) e uma das principais pensadoras da vigilância na contemporaneidade. Na entrevista abaixo, Fernanda trata de algumas questões emergentes ligadas à vigilância 1 Eduardo de Jesus é professor do Programa de Pós-graduação em Comunicação Social da PUC Minas; mestre em Comunicação pela UFMG (2001) e doutor em Artes pela ECA/USP (2008)

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A professora associada da UFRJ Fernanda Bruno é referência nas pesquisas e nos debates sobre vigilância e comunicação.

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    Entrevista: Fernanda Bruno// Interview: Fernanda Bruno

    Vigilncia hoje// Surveillance today

    Por Eduardo de Jesus1

    Como podemos pensar as questes ligadas vigilncia hoje em dia? Quais so as tenses e enfrentamentos tpicos que as diversas formas de vigilncia nos trazem? A vigilncia um tema central na cultura contempornea e se desdobra pelos mais diversos domnios e campos do conhecimento. Fernanda Bruno, professora do programa de ps graduao em Comunicao e Cultura da UFRJ, autora de Mquinas de ver, modos de ser: vigilncia, tecnologia, subjetividade (Sulina, 2013) e uma das principais pensadoras da vigilncia na contemporaneidade. Na entrevista abaixo, Fernanda trata de algumas questes emergentes ligadas vigilncia

    1 Eduardo de Jesus professor do Programa de Ps-graduao em Comunicao Social da PUC Minas; mestre em Comunicao pela UFMG (2001) e doutor em Artes pela ECA/USP (2008)

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    1. Guattari em seu texto Da produo de subjetividade aponta que os contedos da subjetividade dependem, cada vez mais, de uma infinidade de sistemas maqunicos. Nas diversas redes sociais mediadas por computador que experimentamos hoje em dia vemos uma complexa e mltipla relao entre vigilncia e visibilidade. Esses so novos caminhos para a produo de subjetividade na contemporaneidade? Qual forma de subjetividade pode emergir dessa tenso?

    Este texto do Guattari, especialmente esta passagem, fez certamente grande sentido para muitos de ns nos anos 1990, mas naquele momento ainda no experimentvamos esta produo maqunica da subjetividade com a intensidade de hoje. Esta produo ganha recentemente propores ao mesmo tempo ntimas e grandiosas, atravessando desde o nosso cotidiano mais ntimo at conexes em escala global. A complexidade e ambiguidade desta produo maqunica, tambm apontada por Guattari neste texto, persiste plenamente presente. Os processos de vigilncia e visibilidade nas redes sociais da Internet so especialmente significativos quanto a este aspecto. De um lado, as dinmicas de visibilidade nestas redes permitem uma diversidade de modos de expresso da subjetividade, tanto individuais como coletivos. De outro lado, toda esta dinmica atravessada por processos de vigilncia de diversas ordens: familiar, afetiva, comercial, securitria, policial, estatal. O diagnstico de Foucault permanence verdadeiro: a visibilidade uma armadilha. As redes que ampliam a visibilidade dos indivduos so tambm aquelas que ampliam a vigilncia.

    Se as prticas de visibilidade so muito evidentes para todos os que habitam estas redes, os processos de vigilncia, por sua vez, so mais discretos e menos conhecidos. Dois acontecimentos recentes, contudo, tornaram mais clara parte desta vigilncia nas redes sociais. O vazamento do documento que revela o programa de vigilncia implementado pela NSA, o PRISM, que tem como um de seus focos privilegiados os dados que doamos ao Facebook, ao Google, ao Skype, entre outros. Para usar os termos que circularam na imprensa, todas estas plataformas teriam uma porta dos fundos por onde entram os estados, violando gravemente a privacidade dos usurios. O outro evento se passou no Brasil e teve menos repercusso, mas foi

    claramente percebido por uma srie de usurios do Facebook que, entre os dias 21 e 22 de junho, dias seguintes s ltimas grandes manifestaes no Rio de Janeiro, So

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    Paulo, Belo Horiozonte, entre outras, tiveram suas contas suspensas ou bloqueadas. Usualmente isto ocorre atravs de denncias de outros usurios, o que mostra como forte a vigilncia lateral (Andrejevic) no Facebook, que nestes dias parecia uma comunidade de neighbourhood watch.

    Chegando enfim questo sobre as formas de subjetividade que podem emergir destas tenses, eu ressaltaria um aspecto, que certamente no esgota o problema, mas merece ateno. Falo da dimenso coletiva desta produo maqunica de subjetividade. No incio da popularizao destas redes sociais, uma srie de pesquisas, inclusive minhas, chamavam a ateno para uma ampliao das margens de visibilidade do que se entendia como intimidade. Eu particularmente estava interessada nas novas topologias que tais subjetividades assumiam, os deslocamentos das fronteiras pblico/privado e as mudanas no estatuto do olhar do outro. Estas anlises estavam muito atentas aos processos que de algum modo ampliavam os investimentos num Eu que, mesmo requisitando o olhar do outro, permaneceria voltado para si. Mas felizmente as coisas no param por a e percebemos tambm a emergncia de dinmicas coletivas na produo dessas subjetividades. Esta passagem do eu ao ns me parece o processo ao qual devemos estar atentos, ainda que ele possa ser minoritrio. A transio dos murmrios e desejos individuais s insurreies e afeces coletivas. Os recentes protestos polticos no Brasil so um caso desta passagem, que colocou em ao um outro pathos nestas redes, mobilizando a ocupao poltica das cidades e novos agenciamentos coletivos das subjetividades. As prticas de visibilidade e vigilncia e as disputas que elas envolvem deixaram de concernir apenas aos indivduos e seus crculos pessoais, e ganharam um corpo coletivo que toma as ruas e alimenta as redes em retorno direto das manifestaes, assemblias e ocupaes, fazendo circular imagens, relatos, eventos e sentidos que operam na contra-mo da vigilncia, da violncia policial e da forma como a chamada grande mdia est reportando estes acontecimentos. As disputas esto em curso e nada est decidido, tudo est aberto, mas h, para retomar os termos de Guattari no texto citado, uma produo maqunica da subjetividade em que processos de re-singularizao e de constituio de novos territrios existenciais coletivos se tornam possveis. Este no um caso isolado, processos similares se passam em toda parte e esta me parece a face mais interessante da produo de subjetividade netas redes hoje.

    2. Em artigo recente publicado na revista Galaxia, voc trabalha com os

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    esquemas inteligentes de vigilncia, cmeras associadas a sistemas sofisticados de rastreamento, mesmo que apenas das superfcies. Esses sistemas, a seu ver, sistematizam as caractersticas de uma passagem de formas de vigilncia mais disciplinares para outras mais de controle, retomando as ideias de Deleuze em

    sua leitura de Foucault? Sim, eu diria que estes sistemas materializam uma passagem da disciplina ao

    controle, mas ao mesmo tempo entendo que tais regimes no se organizam historicamente segundo um passado e um presente absolutos. Isto : vemos nas sociedades atuais, domnios de convivncia ou de sobreposio de procedimentos disciplinares e procedimentos de controle no campo da vigilncia. Alm disso, h zonas de indefinio que no cabem plenamente em nenhuma destas noes disciplina ou controle - e que nos foram a pensar para alm delas.

    No caso dos sistemas de video-vigilncia que se proclamam inteligentes, seguindo a linha de outros produtos smart (smartphones, smart cars etc.), patente a presena dos ideais do controle, nos termos apontados por Deleuze e tambm por outros autores que vm contribuindo, de formas distintas, para explorar esta modalidade de exerccio do poder nas sociedades contemporneas. Destaco neste campo os trabalhos do Nicholas Rose e do Michalis Lianos, e no caso mais especfico dos estudos de vigilncia, autores como Kevin Haggerty, Mark Andrejevic e Alex Galloway.

    As tais cmeras inteligentes so programadas para deteco automatizada e em tempo real de situaes consideradas irregulares e/ou suspeitas em ambientes especficos: aeroportos, estaes de metro, estdios de futebol, praas, ruas. Assim, estes dispositivos pretendem prever incidentes, crimes e todo tipo de evento indesejvel, de modo a frustr-los, a impedir que se realizem. No artigo que voc menciona, tentei ler as caractersticas destes dispositivos procurando entender como elas atualizam prticas, discursos, atores e dinmicas prprias ao controle dos corpos e comportamentos nos espaos urbanos em que os cidados so entendidos e tratados como usurios. Espaos que devem conciliar segurana, consumo e conforto sem interromper a mobilidade dos corpos. Assim, elas operam no prprio fluxo das aes, detectando comportamentos suspeitos, de risco ou simplesmente irregulares que so previamente classificados como ndice de um perigo iminente.

    Notamos aqui um modo de operar distinto da disciplina, que organizava os corpos no interior de espaos fechados para dociliz-los atravs de procedimentos que

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    investiam o corpo, mas visavam sobretudo a alma e mecanismos de interiorizao da norma. Atravs das smart cameras, o controle se exerce diretamente sobre a ao dos corpos em movimento, prescinde de maiores esforos sobre a interioridade dos indivduos e atua num nvel que pode ser dito infra ou supra individual. A reside outro aspecto que aproxima estes dispositivos da lgica do controle: importa menos agir sobre o agente do que sobre a ao. Dito de outro modo, esta forma de vigilncia se diz menos invasiva na medida em que monitora os corpos sem precisar necessariamente identific-los, sem violar sua privacidade e saber quem so os indivduos em jogo. Como atuam diferenciando e detectando padres de condutas regulares (entendidas como seguras) e irregulares (entendidas como suspeitas, perigosas ou indesejveis), como se dissessem: importa o que voc faz e no quem voc . Mas fundamental ressaltar que esta retrica da vigilncia inteligente e indolor no menos cheia de perigos que as tecnologias disciplinares.

    O carter preditivo, proativo e preventivo desta vigilncia inteligente pretende ver adiante e agir antes da ao, do evento, condenando assim o futuro antes que ele se realize. Alm do carter um tanto ilusrio deste poder em prever e prevenir, ele se encontra relativamente livre para atuar sem referncia a um acontecimento ou evento,

    o que extremamente perigoso e torna uma contra-prova e por vezes uma reao

    bastante mais complicadas. Se por exemplo me impedem ou dificultam a minha entrada num territrio ou espao qualquer porque h na minha conduta ndices de ameaa, como posso resistir a esta antecipao do que virei a fazer? Como posso escapar desta anteviso? O investimento nesta modalidade preditiva e proativa de vigilncia crescente no apenas no mbito da leitura algortmica de imagens mas tambm na anlise de dados que circulam na Internet. A pretenso de gerir o possvel uma das faces mais eloquentes do tipo de controle prometido por tais tecnologias. Termino aquele artigo chamando a ateno para o perigo poltico desta promessa, ainda que seu carter ilusrio seja flagrante.

    3. Em sua prtica acadmica como tem sido o trabalho no Medialab.UFRJ? Quais so os principais projetos e como se estruturam as cartografias da controvrsia?

    O MediaLab.UFRJ um fruto do meu ps-doutorado, onde tive contato com a abordagem de cartografia de controvrsias desenvolvida por Bruno Latour, Tommaso Venturini e outros autores da chamada teoria ator-rede. Achei que seria interessante

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    experimentar esta abordagem na comunicao explorando o potencial das mdias e redes digitais de comunicao distribuda. Para falar breve e de forma muito simples, a cartografia de controvrsias um modo de fazer pesquisa em que o foco da ateno est nas matrias, processos, sentidos que esto em disputa e portanto ainda no decididos. Este foco permite acompanhar os objetos de nossas pesquisas em ao (e no j estabilizados, decididos, formados). Esta estratgia possibilita acompanhar as negociaes e mediaes em curso, seja por exemplo na realizao de um filme ou na montagem de uma exposio, na implementao de uma tecnologia de vigilncia, na emergncia de um movimento social etc. Cartografar as controvrsias permite, nos termos de Latour acompanhar a linha de montagem da fbrica social, em vez de partir de grandes pr-definies do que seriam, nos exemplos mencionados, o cinema, a arte, vigilncia ou a politica.

    Neste momento, estamos (professores e alunos) cartografando: - controvrsias acerca do controle de dados pessoais na Internet (coordenado por mim); - dinmicas do ativismo poltico na Internet (aqui atuamos em parceria com o Cibercult/UFRJ, coordenado pelo Henrique Antoun, e com o Labic/UFES, coordenado pelo Fabio Malini), com nfase atual nos conflitos em torno do Marco Civil da Internet e nos protestos polticos recentes no Brasil; - conflitos implicados nas tecnologias de auto-monitoramento da sade, especialmente aquelas utilizadas pelo movimento Quantified Selves; - controvrsias envolvidas na ocasio do julgamento do homem que veio a ser o primeiro interno do Manicmio Judicirio do Rio de Janeiro; - mapeamento dos commons urbanos (projeto realizado por Pablo de Soto, que dialoga com a cartografia de controvrsias, mas tem uma metodologia prpria);

    Alguns destes projetos envolvem o mapeamento e a anlise de dados da Internet, o que uma outra via importante da cartografia de controvrsias. A arquitetura da internet cria uma cascata de inscries de nossas aes, construindo bases de dados fazem a fortuna do marketing, da publicidade, do comrcio, bem como das indstrias e polticas de segurana e vigilncia. Um dos problemas que nos ocupa o de uma outra poltica cognitiva possvel para estes rastros. Como nos apropriar dos dados e rastros digitais que deixamos na Internet? Que estratgias e metodologias podem ser interessantes para as pesquisas em cincias humanas e sociais? Quais so

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    as armadilhas s quais devemos estar atentos? Estamos experimentando algumas estratgias, especialmente com os rastros deixados no twitter, para visualizar o modo como os atores se associam e se posicionam numa determinada controvrsia e como redes se formam. Est sendo interessante perceber, por exemplo, que quando trabalhamos com essas grandes quantidades de dados e com certos filtros de anlise, a posio de um ator numa rede no depende dele, de suas intenes ou de suas crenas, mas do modo como os outros atores reverberam ou no a sua ao (o que nos termos do twitter significa replicar a postagem de algum ou mencion-la numa postagem). Visualizar estas conexes, suas dinmicas e as redes que se formam a partir da nos permite um tipo de perspectiva sobre uma dada controvrsia que certamente no a esgota, mas oferece pistas interessantes a serem exploradas e complementadas por outros instrumentos de observao e leitura.

    4. A arte contempornea tem frequentemente tomado os esquemas de vigilncia como elemento para o desenvolvimento de obras. Como voc v essas aproximaes estticas e em que medida elas podem trazer novos olhares para os estudos de vigilncia e visibilidade?

    O dilogo com as prticas artsticas que se apropriam de esquemas de vigilncia tem sido decisivo. Infelizmente, o investimento em outros caminhos de pesquisa me desviaram um pouco deste foco e no tenho acompanhado os trabalhos de arte mais recentes neste campo. De toda forma, at onde pude acompanhar, at 3 anos atrs, aproximadamente, percorri especialmente duas vias. A primeira consistiu em explorar as estticas da vigilncia que vinham se configurando recentemente no apenas no campo da arte, mas tambm no campo das mdias e prticas cotidianas. Nestas ltimas, pude notar uma progressiva naturalizao da vigilncia como modo de exercer a percepo e a ateno tanto nos espaos urbanos, pblico ou privado, quanto nas mdias. Este processo se tornou especialmente visvel com a circulao de imagens capturadas por celulares e por circuitos de video-vigilncia privados tanto na chamada mdia de massa quanto na Internet. Ressaltei, nestas imagens, a pregnncia de uma esttica do flagrante que misturava elementos jornalsticos, libidinais e policiais. Esta naturalizao da vigilncia tambm ganha uma face participativa na internet, envolvendo outras tecnologias e prticas, como dispositivos de geolocalizao e produo de mapas colaborativos voltados, por exemplo, para a

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    visualizao de crimes nas cidades. Ainda vale mencionar aqui a incorporao da videovigilncia como gnero narrativo no cinema e em programas televisivos, ou do que Thomas Y. Levin chama de retrica da vigilncia, chamando a ateno para a incorporao da vigilncia no apenas como contedo mas como estrutura narrativa no cinema. A segunda via procurou explorar trabalhos artsticos que colocavam em obra uma forma de ateno que de algum modo problematizava esta naturalizao da vigilncia, em vez de reiter-la. Trabalhos do The Atlas Group (Walid Raad), Surveillance Camera Players, Roberto Bellini, Harun Farocki, entre outros, foram decisivos para apontar como a naturalizao da vigilncia como modo de ver e estar atento nas sociedades contemporneas tambm encontra resistncias, brechas, rudos em diversos domnios, ainda que minoritrios. Afinal, um regime de visibilidade

    jamais homogneo ou uniforme, mas heterogneo em seus elementos, sentidos e efeitos.