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10 | CIÊNCIAHOJE | VOL. 49 | 289 Era para ser um dia normal na vida de Leonard Mlodinow. Ele levava seu filho para a escola (jardim da infância) do outro lado da rua. Ao olhar para o céu de Nova York, viu um avião de passageiros de grande porte voando (muito) baixo. Estranhou. Segundos depois, a um quarteirão dali, a aeronave perfura uma das torres do World Trade Center, e o edifício passa a cuspir fogo. Pessoas pulam do topo do prédio. Mlodinow ajuda uma mãe desesperada com um bebê. Sua mente procura uma razão para tudo aquilo, enquanto corre com seu filho, para fugir da fumaça e da chuva de pedras e estilhaços... Este é um detalhe (desagradável) na biografia de Mlodinow. Uma das partes boas de seu currículo: autor de renome mun- dial de livros de divulgação científica. O mais recente é O an- dar do bêbado (Zahar, 2009) sobre fenômenos aleatórios (ver ‘O acaso despercebido’ em CH 269). Como físico teórico, conviveu com um luminar da área, o norte-americano Richard Feynman (1918-1988) – conta isso em O arco-íris de Feynman (Sextante, 2005). Como escritor, colaborou com Stephen Hawking em Uma nova história do tempo (Ediouro, 2005) e The grand design (O grande desenho, sem tradução). O tema de seu próximo livro será o inconsciente. Em visita ao Brasil, no fim do ano passado, Mlodinow – que diz sentir falta dos cálculos e da abstração da física teórica – conversou com a CH. A seguir, os melhores momentos da entrevista. MARCO MORICONI | INSTITUTO DE FÍSICA, UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CÁSSIO LEITE VIEIRA | CIÊNCIA HOJE | RJ COLABORARAM SOFIA MOUTINHO | CIÊNCIA HOJE | RJ E CAROLINA DRAGO | CH ON-LINE LEONARD MLODINOW DOS NÚMEROS ÀS LETRAS entrevista FOTO CÁSSIO LEITE VIEIRA

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10 | CIÊNCIAHOJE | VOL. 49 | 289

Era para ser um dia normal na vida de Leonard Mlodinow.

Ele levava seu filho para a escola (jardim da infância) do outro

lado da rua. Ao olhar para o céu de Nova York, viu um avião de

passageiros de grande porte voando (muito) baixo. Estranhou.

Segundos depois, a um quarteirão dali, a aeronave perfura

uma das torres do World Trade Center, e o edifício passa a

cuspir fogo. Pessoas pulam do topo do prédio. Mlodinow ajuda

uma mãe desesperada com um bebê. Sua mente procura uma

razão para tudo aquilo, enquanto corre com seu filho, para fugir

da fumaça e da chuva de pedras e estilhaços...

Este é um detalhe (desagradável) na biografia de Mlodinow.

Uma das partes boas de seu currículo: autor de renome mun -

dial de livros de divulgação científica. O mais recente é O an -

dar do bêbado (Zahar, 2009) sobre fenômenos aleatórios (ver

‘O acaso despercebido’ em CH 269).

Como físico teórico, conviveu com um luminar da área, o

norte-americano Richard Feynman (1918-1988) – conta isso

em O arco-íris de Feynman (Sextante, 2005). Como escritor,

colaborou com Stephen Hawking em Uma nova história do

tempo (Ediouro, 2005) e The grand design (O grande desenho,

sem tradução). O tema de seu próximo livro será o inconsciente.

Em visita ao Brasil, no fim do ano passado, Mlodinow – que

diz sentir falta dos cálculos e da abstração da física teórica

– conversou com a CH. A seguir, os melhores momentos da

entrevista.

MARCO MORICONI | INSTITUTO DE FÍSICA, UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

CÁSSIO LEITE VIEIRA | CIÊNCIA HOJE | RJ

COLABORARAM SOFIA MOUTINHO | CIÊNCIA HOJE | RJ

E CAROLINA DRAGO | CH ON-LINE

LEONARD MLODINOW

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O que veio à mente do senhor poucos segundos depois do início do atentado? Você não entende o real significado das coisas que estão ocorrendo à sua volta. Qualquer um que estivesse assistindo àquilo pela TV saberia bem mais do que as pessoas que estavam naquele momen - to na rua. A primeira coisa que vi foi o avião e pensei: “Há algo de errado, porque eles não voam tão baixo assim”. Achei que havia algo errado com o sistema de navegação ou com o piloto.

Em minha memória, está o avião desaparecendo dentro [de uma das torres], mas a cauda ainda está intacta. E, então, o fogo irrompeu, e, pouco depois, chega o som... meio segundo.

Eu sabia o que estava acontecendo, porque vi o im-pacto do avião... Mas, no momento, eu estava buscan - do uma razão. Pessoas gritavam e corriam. Uma se- nhora agarrou o filho dela, gritando e chacoalhando o bebê... [ele faz o gesto com as mãos e os braços]. Então, peguei o bebê e o coloquei no carrinho. Tivemos que correr também, para nos proteger dos tijolos caindo.

Estou lendo um livro sobre o inconsciente e o quan-to isso afeta o comportamento de uma pessoa. Tudo isso que acabo de contar pode ter sido criado em mi - nha mente...

Vamos mudar de assunto. Em 1985, o senhor decidiu se mudar para Los Angeles com US$ 6 mil dólares no bolso. O senhor era um físico com pós-doutorado e havia trabalhado com cientistas famosos. Por que decidiu mudar de lado, da física para a literatura? Sempre gostei de escrever e achei que queria fazer isso. Mas não acho que essa mudança tenha explicação lógica... Comecei a escrever no 3° ano [do ensino médio], histórias curtas. Na universidade [Bran-deis, em Boston], não escrevia muito. Cursei mais disciplinas científicas. Mais tarde, voltei com as histó-rias curtas e pensei em um dia escrever um romance ou algo assim. Lembro-me de que um amigo meu me disse que não pensasse que seria fácil escrever.

Escrever é difícil? Sim [risos]. Bom, conto isso em O arco--íris de Feynman. Pensei que, como estava em Los

Angeles e sempre havia gostado muito de filmes, que deveria escrever roteiros. Fiz isso, e eles compraram meus roteiros. Mas nunca achei que pararia com a física. Achava que seria possível escrever como uma atividade à parte.

Ao se ler O arco-íris de Feynman, fica a impressão de que, no Caltech [Instituto de Tecnologia da Califórnia], havia muita pressão para publicar, não? Sim, foi um período árduo. Mas, na época, eu havia conseguido uma proposta de posto permanente de professor titular em Munique [Alemanha]. Visto de hoje, é possível pensar nas várias coisas que eu poderia ter feito. Mas é muito difícil saber se eu teria sido mais feliz.

Sinto falta da física, de fazer cálculos. O último artigo que publiquei foi em 2005, e publicar tem se tornado mais e mais difícil neste momento. E essa falta tem fica-do maior nos últimos anos. Uma das minhas metas é voltar à física e fazer algo interessante.

Como era Feynman? As pessoas gostavam dele ou ele era também criticado? Nunca conheci alguém que não gostasse dele. Bem, Murray [Gell-Mann] dizia coi - sas [sobre ele], algumas negativas, por vezes – lem - bro - me, em especial, do obituário na revista Physics Today. Acho que menciono isso em O arco-íris de Feyn-man. Nunca falei com Murray sobre Feynman, e ele nunca disse nada ruim sobre ele para mim.

Por vezes, as pessoas diziam, meio livremente, coi - sas como “Feynman gosta dos holofotes”, “Feynman não gosta de publicidade”, por acharem que ele era as-sim. Mas Feynman alimentava histórias sobre ele mes-mo. Então, talvez, fosse um pouco ambíguo sobre es - sas coisas, porque ele realmente não parecia gostar da tensão [que essas citações criavam], mas acho que ele gostava de ser estimado e da reputação que tinha.

Como o senhor escolhe um tema para um livro? Gasto boa parte do meu tempo trabalhando em ideias dife-rentes que escolho. Às vezes, gasto alguns meses nelas, mas aí percebo que não estou realmente interessado >>>

A PRIMEIRA COISA QUE VI FOI O AVIÃO E PENSEI: “HÁ ALGO DE ERRADO, PORQUE ELES NÃO VOAM TÃO BAIXO ASSIM”. ACHEI QUE HAVIA ALGO ERRADO

COM O SISTEMA DE NAVEGAÇÃO OU COM O PILOTO

Fábio Monteiro
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nesses temas. E sigo assim, até achar aquele que real-mente me interessa.

O senhor está trabalhando em um livro sobre o inconsciente, tema mais ligado às neurociências. Como o senhor faz? Estuda, vai a palestras ou apenas lê coisas gerais sobre o assunto? Interessei-me por esse tema há uns cinco anos e comecei a assistir a palestras e cursos mais téc-nicos. Mudei minha sala para um laboratório de neu-rociências do Caltech. Então, estou agora trabalhan - do dentro de um laboratório e, nos últimos cinco anos, estou estudando, fazendo cursos, indo a seminários e conversando com um monte de pessoas...

Meu novo livro é mais sobre o inconsciente. É so - bre como o cérebro trabalha em segundo plano, fazen - do coisas que você nem percebe, mas que afetam o mo-do como você pensa e sente.

O senhor acha que a neurociência é a próxima grande coisa na ciência? Há muitas coisas excitantes para serem estudadas, como cosmologia, genética e epigenética [novo campo da genética]... Lembro-me daquele livro estúpido, publicado há uns 10 anos, O fim da ciência, do John Horgan. Não o li, mas o título me irrita.

Como o senhor trabalha? Pergunta quando tem dúvidas? Sim, faço perguntas. Quando escrevo, faço perguntas e envio mensagens eletrônicas a meus amigos da área, mando parágrafos inteiros e pergunto se estão corretos... Não sou bom entrevistando pessoas.

Como foi sua experiência com A janela de Euclides, seu pri-meiro livro de divulgação? Na verdade, eu queria chamar o livro de A forma do espaço, mas meu editor não quis e sugeriu Janela de Euclides. Achei que soava bem, mas que as pessoas poderiam ouvir ‘Euclides’ e pensar em geometria do ensino médio, enquanto A forma do espa-ço era atraente para um livro de ciência, mas não para um livro de matemática. No final, é um livro de mate-mática, e ‘Euclides’ é mais vendável para um livro de matemática do que para astrofísica ou outra área.

Foi meu primeiro livro, e eu não sabia muita coi- sa [sobre todo o processo]. Há coisas que sei que errei. Ouvi pessoas falando que alguns números estavam

incorretos, e me senti mal sobre isso... Agora, sou mais cauteloso na dupla checagem – antes, confiava na pes soa que fazia a revisão do livro; agora, não confio mais [risos].

O senhor deu as provas desse livro para que seus amigos lessem antes? Sim, tenho uns dois ou três amigos mate-máticos que leram o livro. Mas, mesmo assim, ficaram alguns erros. No processo de reescrita, em alguns luga-res, em que era melhor dizer ‘somente’ ou ‘só’, esqueci de mudar, e deu totalmente errado. Em matemática, você tem que ser cuidadoso.

Como foi a interação com Hawking? Foi bem lenta. Sabe-mos que ele depende de uma máquina para se comu-nicar – ele falava cerca de seis palavras por minuto quando comecei a vê-lo. Então, para dizer uma ou duas frases, podia levar até 15 minutos. Foi bem lento. No final de O grande desenho, era cerca de uma pala - vra por minuto; era bem difícil. Na maior parte do tem-po, eu me sentava com ele por oito ou 10 horas por dia, e conversávamos.

Primeiramente, fizemos um esboço e discutimos que ideia entraria em que capítulo, e dividimos quem escreveria sobre o quê. Ele me enviava, por correio eletrônico, o que escrevia, e eu enviava a ele a minha parte, e ele fazia comentários. Só devolvíamos a men-sagem um para o outro quando precisávamos tomar decisões sobre algo ou quando discordávamos sobre algum assunto. Então, nos encontrávamos em Cam- bridge [Reino Unido], uma vez por ano, por um mês, para discutir tudo, palavra por palavra.

Ele é teimoso? Extremamente teimoso. Ele admite que é assim, e isso é uma coisa boa, porque, se ele não fosse tão teimoso, não conseguiria se comunicar como se co-munica. Lembro-me de uma vez em que o convenci a mudar algo e cheguei a escrever 20 páginas na nova direção que havia aprovado. E, então, ele mudou de ideia de novo e disse “Eu não concordo”.

Quanto tempo durou essa cooperação entre vocês para es-crever O grande desenho? Cerca de quatro anos, mas, por seis meses, não fizemos nada, porque ele ficou

[HAWKING É] EXTREMAMENTE TEIMOSO. ELE ADMITE QUE É ASSIM, E ISSO É UMA COISA BOA, PORQUE, SE ELE NÃO FOSSE TÃO TEIMOSO, NÃO CONSEGUIRIA SE COMUNICAR COMO SE COMUNICA

Fábio Monteiro
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doente, e eu comecei a trabalhar em outro projeto. Gasta-mos quase um ano só no esboço.

Qual é a principal ideia do livro O grande desenho? O livro é basicamente sobre perguntas: “De onde o universo veio e como chegou aqui?” e “Por que ele é do modo que é?” Es -sas são as principais ideias do livro, fruto da refl exão de Stephen a esta altura de sua carreira. Parte do livro aborda teorias já discutidas em Uma breve história do tempo, mas a maior parte é sobre teorias dele, mais recentes, desenvol -vidas a partir de 2005, baseadas nas diferentes histórias do universo. O livro também tem como discussão de fundo as leis da física, o que elas signifi cam, como elas mudaram durante a história, como estão hoje e para onde vão.

O livro causou controvérsias, não? O controverso sobre o livro, aquilo que causou tanta discussão, é meio bobo: é dizer que o universo pode ser criado do nada. E nada aqui signifi ca um estado do vácuo quântico, ou teoria quântica de campos. Sei que essa não é defi nição física de nada, pois é alguma coisa. [O nada, no caso,] são estruturas matemáticas e suas leis que criaram aquilo [o universo].

Então, alguém sempre pode dizer que estamos tentando enganar [o leitor] e perguntar de onde essas estruturas ma-temáticas e leis vieram. Mas dizemos no livro que você po -de chamar a isso de Deus se quiser. Essa seria apenas outra defi nição de Deus.

Portanto, de certo modo, todas as controvérsias são bobas, são pegadinhas de semântica. Mas, quando se diz que Deus não é necessário, porque o universo veio do nada, as pessoas respondem dizendo que foi Deus quem criou as leis da física. E daí? Do nosso ponto vista, do ponto de vista racional, essa [as estruturas matemáticas e as leis da física] é uma defi ni -ção trivial de Deus.

O que quer que seja foi Deus quem criou... Sim, as pessoas conectam tudo a Deus. Mesmo que você diga “Tudo bem, Deus criou as leis da física”, isso não significa que ele criou a Terra em sete dias e os céus, que ele está te vendo assis-tir a seu jogo de futebol ou que você deve rezar para Deus para ser saudável. Mesmo que Deus tivesse criado o uni-verso, não sei por que as pessoas fazem tanto caso disso. As pessoas ficam hipersensíveis a qualquer coisa que ataque Deus.

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