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Entre patrimonialismo e racismo: Reflexões sobre a corrupção do Estado brasileiro
a partir de Tropa de Elite: o inimigo agora é outro.
Felipe Biguinatti Carias (UFMT/CAPES)
Thaís Leão Vieira (Orientadora – Professora Adjunta PPGHIS/UFMT)
No dia 07/12/2010, José Padilha e Bráulio Mantovani – diretor e roteirista dos
filmes Tropa de Elite – participaram de uma roda de conversa para o lançamento número
6 da revista “Dicta e Contradicta”, no teatro Eva Herz – SP, para falarem sobre os filmes
da série Tropa de Elite. José Padilha, ao responder uma pergunta: “Se o Tropa de Elite II
seria uma forma de pedir desculpas as acusações que o Tropa de Elite I havia recebido?
por ser acusado de ser um filme fascista”. Padilha organizou uma resposta longa para
dizer que Tropa de Elite II não seria uma forma de pedir desculpas, mas sim, de
demonstrar como é gerida a má administração do Estado
José Padilha pronuncia o respectivo raciocínio nos momentos finais de sua fala.
Então no ônibus 174 o que eu falei? Eu falei, olha... O Estado transforma
miséria em violência, com a má administração do sistema prisional, do sistema
socioeducativo etc etc... No Tropa de Elite, eu fiz a mesma coisa – daí o mesmo
nome do personagem – com a polícia, né? Eu disse assim. Oh, o Estado, porque
ele administra muito mal a polícia, e são 40 mil policiais, ele pega aquelas
pessoas, coloca em uma organização kafkaniana que forma policiais
corrompidos e violentos. Então que que eu disse? O Estado faz isso nos dois
casos e o que converte miséria em violência em grandes taxas é em parte, não
só, mas em partes a atuação do próprio Estado. Tropa I e ônibus 174, e no
Tropa II eu tentei dizer porque o Estado faz isso. (DICTA E CONTRADICTA,
2011)
Como foi possível perceber, para José Padilha as grandes taxas de violência na
cidade do Rio de Janeiro são produtos da má administração do Estado. O diretor afirma
durante a sua fala e nas suas obras cinematográficas de maior repercussão: Ônibus 174,
Tropa de Elite: Missão dada é missão cumprida e Tropa de Elite: O inimigo agora é
outro.
O questionamento que se instaura é o seguinte, em relação ao filme Tropa de Elite:
O inimigo agora é outro (2010): Como seria possível discutir sobre a violência do Rio de
Janeiro sem abordar a questão do racismo e, segundo, quais seriam os elementos estéticos
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e de conteúdo que proporcionaram uma fruição positiva dos espectadores tanto de
“esquerda” como de “direita” em relação à concepção de “Estado”.
Tentaremos mostrar que José Padilha só conseguiu atingir tamanha empatia com
o conceito de Estado trabalhado em sua obra porque estaria dialogando – talvez
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inconscientemente – com uma acepção muito aceita no meio acadêmico, que seria o
conceito de patrimonialismo, trabalho por Sérgio Buarque de Holanda na obra Raízes do
Brasil. Segundo Jessé Souza:
Minha tese é que tamanho sucesso e ubiquidade é resultado da ação combinada
de dois fatores: o primeiro é o fato de Sérgio Buarque haver construído uma
narrativa totalizadora – como a das religiões que não podem deixar margem a
lacunas e dúvidas – do Brasil e de sua história; e o segundo ponto é o de ter
criado a legitimação perfeita para uma dominação oligárquica e antipopular
com a aparência de estar fazendo crítica social. É isso que o faz tão amado pela
direita e pela esquerda. (SOUZA, 2017: 8)
Jessé Souza questiona a tese de patrimonialismo de Holanda porque tal concepção
não trabalhara a questão do racismo com as devidas atenções, além de generalizar o Brasil
no lado do extremo oposto do “racionalismo” estadunidense, como se o brasileiro, por
essência e herança portuguesa, fosse sentimental, passional e familiar, desfazendo
qualquer possibilidade de estruturação do Estado moderno com a separação entre público
e privado bem definido.
A argumentação de Jessé Souza se torna compreensível quando vamos à obra de
Holanda, onde podemos encontrar os seguintes argumentos:
É compreensível, assim, que jamais se tenha naturalizado entre gente hispânica
a moderna religião do trabalho e o apreço à atividade utilitária. Uma digna
ociosidade sempre pareceu mais excelente, e até mais nobilitante, a um bom
português, ou a um espanhol, do que a luta insana pelo pão de cada dia. O que
ambos admiram como ideal é uma vida de grande senhor, exclusiva de
qualquer esforço, de qualquer preocupação. E assim, enquanto povos
protestantes preconizam e exaltam o esforço manual, as nações ibéricas
colocam-se ainda largamente no ponto de vista da Antigüidade clássica. O que
entre elas predomina é a concepção antiga de que o ócio importa mais que o
negócio e de que a atividade produtora é, em si, menos valiosa que a
contemplação e o amor. (HOLANDA, 1995: 38)
Ou quando o autor fala:
Outro visitante, de meados do século passado, manifesta profundas dúvidas
sobre a possibilidade de se implantarem algum dia, no Brasil, formas mais
rigoristas de culto. Conta-se que os próprios protestantes logo degeneram aqui,
exclama. E acrescenta: “É que o clima não favorece a severidade das seitas
nórdicas. O austero metodismo ou o puritanismo jamais florescerão nos
trópicos. (HOLANDA, 1995: 151)
Ficou notório que para Holanda a modernização do Brasil só seria possível caso a
herança passional portuguesa fosse suprimida. A partir desse ponto de vista a justificação
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para a má administração do Estado fica muito abstrata e generalizada – ao generalizar o
Estado brasileiro como “órgão passional”, o autor retira qualquer possibilidade de
racionalização e eficiência ao órgão- 1, sem trazer as questões mais sui generis do Brasil,
que seria a escravidão e o conceito de patriarcalismo para o cerne do debate2
José Padilha não dá indicio, por meio da obra, que o problema da administração
do Estado estaria na herança portuguesa, mas expõe que na sua visão a premissa básica
da lógica de funcionamento do Estado brasileiro seria a corrupção. Porém, ao atribuir a
corrupção como artefato a priori do Estado, Padilha declara intrinsicamente que o espaço
público e a democracia representativa não são eficazes para organização da nação. A
problemática não estaria em ser contrário à democracia representativa, mas em
essencializá-la pejorativamente com o discurso de neutralidade. Ao narrar o problema da
administração do Estado com essa premissa, o autor não evidencia a corrupção do espaço
privado e não discute sobre o racismo como premissa da corrupção.
O objetivo do respectivo trabalho seria de exercer uma leitura do Tropa de Elite
II e utilizá-lo contra ele mesmo, mostrando que, inconscientemente, o filme nos fornece
elementos para demonstrar que o racismo possui um peso maior para a questão da
corrupção do que a própria tese que o filme se propõe a defender, que seria a corrupção
simplesmente com o objetivo de angariar poder político e capital financeiro.
Para melhor dissecação do filme, utilizaremos o paradigma de Syd Field, discutido
na obra Manual do roteiro. Interpretaremos a obra nos momentos dos pontos de virada,
pois são nesses instantes que a obra ganha maior carga dramática e desdobramento do
sentido da narrativa.
Tropa de Elite: O inimigo agora é outro contra ele mesmo.
1 A crítica ficou restrita ao conceito de patrimonialismo trabalhado por Sérgio Buarque de Holanda, sem
entrar na discussão sobre o que é razão e o modelo de Estado moderno para o autor. 2 Sérgio Buarque de Holanda discute sobre ambos os conceitos na obra Raízes do Brasil, porém não são
eles os conceitos fundantes para pensar os problemas de organização do Estado brasileiro.
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O sucesso e a repercussão do filme Tropa de Elite: Missão dada é missão
cumprida de 2007 foi colossal3, a obra suscitou a produção de demasiadas matérias de
jornais, resenhas, resumos e trabalhos acadêmicos em geral. A imagem de Capitão
Nascimento (Wagner Moura) – protagonista da obra – ficou tão conhecida e comentada
que a discussão sobre a caricatura da personagem se tornou o maior desafio de José
Padilha, Wagner Moura e Bráulio Mantovani para a confecção do Tropa de Elite: O
inimigo agora é outro.
O objetivo da equipe era de representar a personagem de forma mais madura, mais
consciente e reflexiva sobre o funcionamento da corrupção da polícia militar, da secretaria
de segurança e da democracia representativa.
Bráulio Mantovani, em entrevista ao Estadão em dezembro de 2010, responde à
pergunta de Sonia Racy da seguinte maneira.
Você disse que acha Tropa de Elite 2 muito melhor do que o primeiro.
Em que sentido?
Em todos. O primeiro foi um filme feito com um remendo. Sou meio
frustrado porque trabalhamos o protagonista somente na montagem,
não no roteiro. No Tropa 1, Nascimento não tem uma curva dramática,
ele é igual durante o filme todo. Quem tem uma transformação
importante é o Matias. Já no Tropa 2, pudemos ir a fundo no
personagem. Isso resultou num roteiro mais complexo, dramático e
menos descritivo. (RACY, 2010)
Mas a tarefa não foi nada fácil, como alegam José Padilha e Wagner Moura no
making of de Tropa de Elite II, para Padilha a empreitada iria ser muito difícil tendo em
vista que o público já possuía uma caricatura da personagem.
3 Tropa de elite teve 2,5 milhões de espectadores nos cinemas, deixando para trás o segundo colocado, A
grande família, com 2 milhões de espectadores, e sucessivamente Primo Basílio (839 mil), A turma da
Mônica (631 mil) e Xuxa gêmeas (572 mil), os dois últimos dirigidos ao público infantil. Além disso, ficou
em sétimo lugar na avaliação geral das bilheterias, e, somando-se também o público pressuposto que viu o
filme via internet, Tropa de elite também deixou para trás os blockbusters estrangeiros que são sempre os
campeões de bilheteria no Brasil: Homem Aranha 3 (6,1 milhões), Shrek terceiro (4,8 milhões), Harry
Potter 5 (4,3 milhões), Piratas do Caribe 3 (3,8 milhões), Uma noite no museu (3 milhões) e 300 (2,7
milhões) (MENEZES, 2013: 64)
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Caricatura que condizia bastante com a personagem, um policial militar
incorruptível, violento com os “bandidos”, “policiais corruptos” e sentimental com a
família, que vivia em constante conflito psicológico por não ser um pai presente.
Na narrativa de Tropa de Elite I, o inimigo/sistema de Nascimento eram os
policiais corruptos e o tráfico de drogas. O primeiro filme tem como finalidade descrever
o funcionamento diegético de ambas as organizações. Os primeiros trinta minutos do
segundo filme também parte dessa premissa, mas se altera posterior ao primeiro ponto de
virada da narrativa, sendo no instante que o Governador Gelino discursa incisivamente
que Nascimento estaria fora do Bope pelo fato de Capitão Matias – patente inferior e sob
comando de Nascimento – ter assassinado o presidiário Beirada que estava no comando
da rebelião ocorrido no presídio Bangu I.
Governador não expulsou Nascimento por ser contrário a ação truculenta da
personagem, mas pelo fato de ter ficado receoso em relação a recepção da população, pois
a personagem Fraga – que posteriormente se torna deputado estadual – havia produzidos
diversas matérias nos jornais denunciando a ação violenta de Nascimento, além de ter
aparecido diante das câmeras – pós-chacina no presídio – com a camiseta escrita Human
Rights toda manchada de sangue. O governador não queria a sua imagem associada à
imagem violenta de Coronel Nascimento, ainda mais em anos de eleição.
À vista disso, ambas as personagens estabeleciam uma simetria na visão de
mundo, Nascimento só é expulso por conta das “obrigações” políticas do governador. A
expulsão da personagem da corporação é preponderante para mudança dramática de
Nascimento, fazendo com que pensasse de forma diferente sobre a sua truculência na
polícia, pois agora estava em um espaço administrativo – Secretaria de Segurança do
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Estado do Rio de Janeiro – e podia observar internamente a articulação dos interesses do
poder.
Porém, Nascimento não muda os seus pensamentos de forma autônoma, há três
personagens importantíssimos para esse processo, que seriam Capitão Matias, Diogo
Fraga e Clara Vidal. Portanto, dissecaremos um plano relevante composto por coronel
Nascimento e capitão Matias para pensarmos sobre.
Se Nascimento foi para secretaria de segurança, Matias terminou ao lado da
polícia militar, que no filme é tratada como essencialmente corrupta. Indignado com a
humilhação, Matias resolve chamar a jornalista Clara Vidal para publicar uma matéria
denunciando a ação do governador, alegando que ele e Nascimento não são os
responsáveis pela atrocidade no presídio, mas sim a própria estrutura do Estado, que
deixou o Bope e a polícia militar as traças.
Quando Clara publica a matéria, Matias é imediatamente preso pela corporação.
Nascimento, atordoado com toda a situação, resolve visitar Matias para ver se conseguia
ajudar o amigo aconselhando-o a ficar quieto, pois dando entrevista difamatória à imagem
do governador não ia proteger em nada o batalhão.
Matias indigna-se ao ouvir os pronunciamentos de Nascimento, alegando que o
único que iria mudar com ele dentro da secretaria de segurança seria ele próprio. Matias
permeia toda a conversa tentando alertar Nascimento que o lugar que estava pisando era
demasiadamente perigoso e que ele precisava tomar cuidado. Porém, Nascimento não dá
atenção, pensa que a única solução para findar o problema da violência no Rio de Janeiro
seria fortalecendo a repressão policial, transformando o Bope em uma máquina de guerra.
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No avançar do filme, nós visualizaremos que Nascimento estava errado e Matias
estava certo. A única coisa que Nascimento conseguiu fazer transformando o Bope em
uma máquina repressiva foi de expulsar os traficantes e abrir as portas para o
enraizamento das milícias nas favelas; processo que confirma o pensamento de Matias,
pois a própria secretaria de segurança auxiliou no desenvolvimento do novo “sistema” e
na autarquia dos políticos em parceria com os milicianos.
Ao desenrolar do diálogo entre Matias e Nascimento não é possível saber quem
estava certo ou não em relação a forma de agir, porque o aparecimento e desenvolvimento
do novo “sistema” se daria nas cenas posteriores. Mas, por meio da estética, a obra nos
fornece informações imagéticas para percebemos que Nascimento estava adentrando em
um campo problemático.
Quando Nascimento chega na cela para conversar, Matias estava dentro do
banheiro escovando os dentes, no momento que vemos Matias, o plano apresenta-se como
plano americano, tendo a nuca, cabeça e ombro de Nascimento em primeiro plano e
Matias de costas fazendo gargarejo em segundo plano. Matais percebe a presenta de
Nascimento e se vira para frente, nesse instante, Matias está em estatura menor locado no
segundo plano e Nascimento maior em primeiro. A imagem mostra que em hierarquia, na
estrutura social, Nascimento está acima de Matias.
Porém, no plano das ideias, no pensamento, é Matias o “superior” da história, pois
em terceiro plano há um espelho, onde reflete a imagem de ambas as personagens, tendo
Matias em primeiro plano em estatura maior e Nascimento em segundo plano,
consequentemente, em menor estatura. Para além desses fatores, temos mais um elemento
semântico na imagem, a presença de uma lâmpada acesa no banheiro, que também se
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reflete no espelho, acentuando o imaginário do plano das ideias. A própria imagem
fílmica conota que Nascimento está em uma posição enigmática.
Porém, o ponto crucial da iluminação, pegando a metáfora da lâmpada, do
“sistema” se desenrola no ponto de virada interno do Ato III – momento conclusivo -,
quando Nascimento escuta a gravação entre deputado Fraga e Clara Vidal, onde Clara
constata a ligação entre os milicianos (Major Rocha) e os políticos (Fortunado, Guaracy
e o governador Gelino), descobrindo todo o esquema de corrupção diegético.
É nesse ponto narrativo que Nascimento alcança o ápice da iluminação da
corrupção, percebendo que o inimigo estava mais próximo do que ele imaginava.
Mediante à descoberta, Nascimento formula uma concepção de “sistema”, descrevendo
da seguinte maneira: “Só que o sistema não tem planejamento central... e nem diretoria,
parceiro. O sistema é um mecanismo impessoal, uma articulação de interesses escrotos.”
É notório que para Nascimento a única finalidade do “sistema” seria de angariar
poder e capital financeiro, independente da concepção política, ideológica e social. A obra
transparece uma ideia de Estado que impossibilita presenciar algum tipo de seriedade em
relação ao bem comum, como se estivéssemos condenados ao fracasso público, bem
próxima a narrativa do visitante destaco por Sérgio Buarque de Holanda, na tentativa de
teorizar sobre a incompatibilidade ao culto racional dos portugueses e brasileiros.
Não estamos estabelecendo uma inferência direta entre Sérgio Buarque de
Holanda e a equipe produtora de Tropa de Elite II, representada na imagem de José
Padilha, mas interpretando que obra estaria dentro de um “espaço de experiência” bem
aos moldes koselleckiniano, onde as experiências, ainda mais de uma teoria tão difundida
e aceita, se interseccionasse dentro de uma temporalidade.
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Para além de Holanda, temos também os inúmeros escândalos de corrupção
iniciado em 2005 com o mensalão do PT, 2009 com o mensalão do DEM e 2003 com a
CPI do Banestado. Portanto, qual seria a relação entre os escândalos de corrupção e o
conceito de sistema em Tropa de Elite?
Segundo Zampar e Passetti no artigo Memória e escândalos políticos: a cobertura
do “mensalão do DEM” pela folha de São Paulo. O jornal folha de São Paulo utilizaria
as características particulares do mensalão do PT (2005) para interpretar o mensalão do
DEM (2009), construindo uma lógica abstrata entre ambos os escândalos, olhando o
escândalo do PT como modelo apriorístico, compondo a corrupção como ente indivisível
e único, sem particularidades e interesses específicos.
Ao projetar a corrupção dessa forma impessoal e abstrata, o conceito se modela
em qualquer espaço de poder, sendo passível a seleção, que na maioria das vezes ocorre
quando as classes populares começam a ascender nos espaços de poder, segundo Jessé
Souza em entrevista para Tv Fepesp em setembro de 2017. Consequentemente, a
corrupção se torna algo seleto e restrito ao espaço público, deixando o espaço privado
imaculado.
A outra sequela de lidar com a corrupção de forma abstrata seria em relação ao
apagamento do histórico da escravidão na sociedade brasileira para pensar a dinâmica da
corrupção. Tropa de Elite II, por exemplo, não aborda a questão da escravidão para falar
sobre a violência no Rio de Janeiro. Bom, não discute de forma direta, porém demonstra
caraterísticas do racismo ao estruturar a performance das personagens.
Em 2007, Juliana Alencar publica uma matéria sobre Fátima Toledo e o processo
de preparação dos atores de Tropa de Elite. Para Toledo, o trabalho performático precisa
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ser uma coisa muito séria e demasiadamente dolorida, precisa deixar o ator/atriz em uma
linha tênue de insegurança, segundo Toledo.
Do elenco de "Tropa", talvez Wagner Moura tenha sido o primeiro a pensar
em gritar "eu desisto!". O ator teve uma experiência um pouco mais brutal com
a preparadora e seu método. Wagner, que acabara de se tornar pai quando foi
convidado para participar do longa, não conseguia "colocar para fora" o
Capitão Nascimento.
- Wagner estava ainda mais zen por causa do bebê. Tínhamos que tirá-lo do
sério - conta.
A solução encontrada não foi nem um pouco ortodoxa. - Chamei o Storani
(Paulo Storani, ex-Bope, que ajudou na preparação) e ele pegou no ponto fraco:
falou mal da família dele. Wagner partiu para cima, quebrou o nariz dele. Foi
aí que nasceu o personagem. (ALENCAR, 2012)
É notório que Wagner Moura precisou fomentar uma relação de verossimilhança
demasiadamente grande com a ação truculenta do Bope. À vista disso, seria possível
interpretar as características do racismo exercida pelo Bope e grande parte da sociedade
brasileira a partir da performance de Wagner Moura?
Dentro da diegese fílmica e analisando grande parte das entrevistas com os
membros produtores do filme (José Padilha, Bráulio Mantovani, Wagner Moura, Daniel
Resende) Tropa de Elite II teria representado coronel Nascimento com aspectos mais
maduro, consciente e reflexivo, pois havia conseguido desvendar a estrutura de corrupção
do “sistema”.
No caso, o ponto fulcral interpretativo sempre parte de Nascimento, ele é o sensor
moral da narrativa, não há fenômeno fílmico que não perpasse pela interpretação de
Nascimento, é função da personagem alegar quando há ou não corrupção, quem está certo
ou não no enredo. Nascimento nunca é observado, ele apenas observa com o seu olhar
panóptico Porém, e se pensarmos que a chave interpretativa sobre a corrupção estaria na
própria performance de Nascimento e não no “sistema”.
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Logo após o início do Ato II, localizado no instante do segundo ponto de virada,
deputado Diogo Fraga resolve abrir uma CPI para investigar os crimes cometidos pela
milícia, ao longo do diálogo, Fraga é incisivo em dizer que a única preocupação dele é de
solucionar os crimes, pois estávamos falando da morte de diversas pessoas, independente
se a CPI iria virar campanha eleitoral ou não, sendo esse o motivo da não abertura da CPI
pelo o juiz. O filme não fornece nenhum elemento para interpretarmos que Fraga queria
abrir a CPI para fazer campanha eleitoral, quem exerce essa leitura são os agentes do
poder (Juiz, Deputado Fortunato, coronel Nascimento etc). Segundo Nascimento.
Com o crescimento das milícias, o Fraga tinha ganho mais uma causa para
defender em nome dos direitos humanos, e como todo bom político, ele
explorou isso ao máximo. A estratégia do Fraga era bater de frente com o
governo, ele vivia provocando a gente para ver se saía alguma coisa na mídia,
o Fraga queria ser deputado estadual, e aquela CPI era o passaporte dele para
Brasília. (NASCIMENTO, 2010)
Nascimento, com a sua narrativa onisciente, interpreta tudo a partir da sua ótica,
independente da mensagem pronunciada, mesmo Fraga não demonstrando que queria
utilizar a CPI como campanha política, Nascimento interpreta como tal, distorcendo a fala
de qualquer personagem que não compactua com a sua interpretação. A característica de
Nascimento interseciona com o paternalismo de Estácio, personagem da obra “Helena”,
de Machado de Assis, interpretado por Sidney Chalhoub no livro Machado de Assis
historiador. Segundo Chalhoub.
O segundo movimento da fala de Estácio é a oposição entre “independência
absoluta” e “escravidão moral”. Como vimos, na situação ideal, a tal
“independência absoluta”, Estácio não tem entraves morais, pois a moral e tudo
o mais são apenas produtos de sua vontade; o oposto disso é a dependência
moral absoluta, a escravidão. A expressão “escravidão moral” nesse contexto
não é apenas eufemismo ou qualquer outro recurso de retórica: ao contrário,
ela exprime o lugar preciso da instituição da escravidão no imaginário
senhorial. A escravidão é a situação de máxima dependência nessa sociedade
em que o centro da política de domínio é a produção de dependentes. Não é
por acaso que, logo em seguida, Estácio procura exemplificar e reforçar o seu
argumento contrastando a sua situação diretamente com a do preto, que era,
“ao parecer, escravo”. Senhor e escravo são os dois extremos de uma cadeia
que começa na “independência absoluta” e termina na “escravidão moral”, na
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submissão completa, que seria a característica da escravidão. (CHALHOUB,
2003: 18)
Estabelecendo um paralelo, coronel Nascimento estaria lotado na independência
absoluta e os demais personagens - Fraga, os traficantes do bairro tanque, os policiais
militares etc. – estariam no outro extremo da relação social, na escravidão moral. Por mais
que Nascimento não apareça como corrupto no filme, ele pensa em simetria com os
corruptos, por exemplo, no início do filme, quando Nascimento queria executar uma
chacina no presídio Bangu I, pensamento idêntico ao dos agentes do poder, ou quando
Nascimento entre no restaurante para conversar com o comandante Formoso e a
população o aplaude pela execução de Beirada em Bangu I.
Quiçá, os ensinamentos de Paulo Storani, tenha sido valioso para performance de
Wagner Moura para mostrar o quão próximo os agentes do Bope estão com o pensamento
racista patriarcal, onde, dentro da “independência absoluta”, o agente pode fazer o que
quiser com o Outro, nos mesmos moldes de Brás Cubas, quebrando a cabeça de uma
negra escrava porque não queria lhe dar um pouco de doce ou montando em um negro
como se fosse o seu cavalo de estimação. Podemos pensar que o encorajamento para
qualquer ato de corrupção esteja lotado na visão patriarcal, como o próprio filme nos
mostra quando Governador Firmino dá mais atenção ao material de campanha do que o
destino de milhares de inocente que estavam na iminência de morrerem com a execução
da invasão ao bairro tanque.
A cena mostra, por meio de uma interpretação ficcional, como se estabelece a
relação entre os agentes do poder e a população em geral. Naquele curto espaço de tempo,
o patriarcalismo é representado na sua forma mais crua, demonstrando todo o seu ódio ao
Outro, que não seja homem, branco e proprietário. Ao observar a cena, o espectador
interpreta, caso esteja dialogando com a leitura do patriarcalismo, que o motivo da
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corrupção se funda pelo incendiário ódio ao outro, do que a busca vazia e incessante de
poder e acumulo de capital financeiro.
Portanto, ver o outro como lixo, como um não ser, um corpo que está lotado na
escravidão moral, seria a premissa básica para corrupção brasileiro, arquétipo que
transcende todas as personagens de Tropo de Elite II, principalmente coronel Nascimento,
o menos corrupto da narrativa.
Conclusão
O objetivo do trabalho foi de refletir sobre o conceito de corrupção e as suas
acepções, utilizando o filme Tropa de Elite: O inimigo agora é outro como fonte. A
primeira abordagem destacada para pensar a corrupção brasileiro foi o conceito de
patrimonialismo de Sérgio Buarque de Holanda. Para Holanda, o enraizamento ou a
primazia para estruturação da corrupção brasileira seria a herança passional portuguesa,
partindo sempre dessa composição para pensar as instituições brasileiras, desde as
“ocupações aventureiras do espaço” ao positivismo na transição do século XIX para o
XX.
À vista disso, ao teorizar o arquétipo apriorístico do patrimonialismo, o
pesquisador fica refém ao modelo, perdendo toda a potencialidade de pensar as
características particulares da corrupção, debilitando a interpretação historicizante do
objeto.
Outro fator preponderante para o questionamento da visão patrimonialista seria
que o conceito pensa a escravidão como ruptura e não como continuidade. Para Sidney
Chalhoub, até a década de 1980 havia um paradigma ou muro de Berlim historiográfico
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que defendia a ideia do paradigma da ausência ou anomia social, dentre os autores do
paradigma estavam, Florestan Fernandes, Emília Viotti da Costa, Fernando Henrique
Cardoso etc. Para os autores, os negros, mediante tamanho sofrimento da escravidão,
perderam a total capacidade de construir uma relação afetiva com os seus pares, logo, o
problema da não inserção do negro da sociedade de classe não seria por conta do racismo
que sofriam, mas pela sua característica de anomia social e de desconhecimento do mundo
liberal moderno. Restava-lhe educá-los ao mundo liberal para conseguirem se ascender
socialmente.
Basta analisar Tropa de Elite II para perceber que a defesa teórica e historiográfica
de Chalhoub tem coerência, tendo em vista que a personagem Nascimento confabula, por
meio de inferências, com o conceito de patriarcalismo trabalhado por Machado de Assis
nas obras Helena e Memórias póstumas de Brás Cubas. Não só Nascimento, mas todas
as personagens do poder representadas no filme.
Nascimento não perpassa ao longo da narrativa com o mesmo pensamento
violento, a sua reflexão sobre a ação truculenta da polícia inicia próximo ao começo do
Ato III, quando a personagem descobre a relação entre milicianos e políticos, mas o seu
auge só ocorrerá nas cenas finais do filme, quando Nascimento pronuncia o seguinte
discurso na CPI do Fraga.
Quando o meu filho tinha dez anos, quando o meu filho tinha 10 anos ele me
perguntou porque que o meu trabalho era matar. O meu filho Rafael que está
agora no hospital vítima de um tiro de pistola... eu não ser responder à
pergunta... eu tenho 21 anos de polícia e não sei dizer por que eu matei? Por
quem eu matei? Mas o que eu posso afirmar com certeza, senhores deputados,
é que policial não puxa esse gatilho sozinho. (NASCIMENTO, 2010)
Porém, mesmo com toda a reflexão a visão patriarcal ainda se faz presente, pois
na mesma cena o campo estético possui um peso dramático exacerbado para legitimar a
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onisciência de Nascimento, por exemplo, o uso de plano fixo e sereno, a utilização do
equipamento dolly junto com a filmagem aérea para universalizar o panorama discursivo.
Mecanismo cruciais para chegar à seguinte conclusão: Nascimento está no ápice da
“tomada de consciência” e agora o seu discurso é indubitavelmente inquestionável. E é
exatamente nesse momento que a personagem usa de fato a palavra “corrupção”, até então
Nascimento pronunciava somente a palavra “sistema”. E ao falar sobre a corrupção,
Nascimento traz o espectador para dentro da narrativa perguntando: “Agora me responde
uma coisa, quem você acha que sustenta tudo isso? – pausa dramática... – é, e custa caro”.
Declaradamente Nascimento alega que a corrupção só ocorre no espaço público e que não
há possibilidade nenhuma de seriedade na democracia representativa.
À vista disso, Nascimento não pensa a escravidão como continuidade, para ele,
mesmo no ápice do esclarecimento, o racismo não se faz presente para pensarmos sobre
a lógica da corrupção.
Ao levantarmos as duas concepção sobre o conceito de corrupção, constatamos
parcialmente, que a escravidão não tem tanto crédito para interpelar sobre as questões
debilitadas do espaço público no Brasil, pois quando olhamos para a recepção de Tropa
de Elite: O inimigo agora é outro, percebemos que grande parte do público interpreta o
conceito de “sistema”/corrupção de forma positiva, como se Padilha, na imagem de
Nascimento, estivesse despindo o “real”, a verdadeira estrutura da corrupção brasileira.
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REFERÊCIAS
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