ENTRE O OLHAR E O GESTO: comentários sobre as vozes em ... · experiência do mundo dos sujeitos...

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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 7 a 10 de junho de 2016 1 ENTRE O OLHAR E O GESTO: comentários sobre as vozes em Conversas no Maranhão 1 BETWEEN THE LOOK AND THE GESTURE: comments about the voices in Conversas no Maranhão Laís Ferreira Oliveira 2 Resumo: Este artigo estuda a composição e a reverberação das diferentes vozes que animam o documentário “Conversas no Maranhão” (Andrea Tonacci, 1977), atentando principalmente para a maneira como o filme se faz permeado pela experiência do mundo dos sujeitos filmados. Para tanto, recorremos à teoria do perspectivismo ameríndio, à discussão da polifonia no filme, além de reflexões sobre a forma do documentário. Palavras-Chave: documentário; vozes; povos indígenas; experiência. . Abstract: This article discusses the composition and how reverberate the voices at the documentary Conversas no Maranhão (Andrea Tonacci, 1977), paying attention specially to the way how the movie is made crossed by the experience of the world of the people filmed. Regarding on those aspects, we recur to the theory of Amerindian perspectivism, to the discussion of polyphony on this movie, beside reflections about the aesthetics of the documentary. Keywords: documentary; voices; indigenous people; experience. 1.Um cinema de invenção e de busca Nascido na Itália, em 1944, Andrea Tonacci veio para o Brasil em 1953, quando sua família se mudou para São Paulo. Considerado um dos cineastas mais importantes do cinema marginal brasileiro, em 1965, Tonacci dirigiu o curta Olho por olho. Três anos depois, em 1968, produziu Blá, blá, blá. Em 1971, é lançado Bang bang, primeiro longa-metragem do diretor. Marcados fortemente pela experimentação, seus filmes foram associados ao movimento do cinema marginal. Tonacci desenvolveu mecanismos de produção tensionados pela abertura ao imprevisto. No caso da experiência com os povos indígenas, como em Conversas no Maranhão(1977) e Os Arara(1981-1983), Serras da Desordem (2006), o diretor optou pela 1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Estudos do cinema, fotografia e do audiovisual do XXV Encontro Anual da Compós, na Universidade Federal de Goiás, Goiânia, de 7 a 10 de junho de 2016. 2 Mestranda em Comunicação, com ênfase em estudos do cinema e do audiovisual, na Universidade Federal Fluminense.

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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 7 a 10 de junho de 2016

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ENTRE O OLHAR E O GESTO: comentários sobre as vozes em Conversas no

Maranhão1

BETWEEN THE LOOK AND THE GESTURE: comments about the voices in Conversas no

Maranhão

Laís Ferreira Oliveira2

Resumo: Este artigo estuda a composição e a reverberação das diferentes vozes

que animam o documentário “Conversas no Maranhão” (Andrea Tonacci, 1977),

atentando principalmente para a maneira como o filme se faz permeado pela

experiência do mundo dos sujeitos filmados. Para tanto, recorremos à teoria do

perspectivismo ameríndio, à discussão da polifonia no filme, além de reflexões

sobre a forma do documentário.

Palavras-Chave: documentário; vozes; povos indígenas; experiência..

Abstract: This article discusses the composition and how reverberate the voices at

the documentary Conversas no Maranhão (Andrea Tonacci, 1977), paying attention

specially to the way how the movie is made crossed by the experience of the world

of the people filmed. Regarding on those aspects, we recur to the theory of

Amerindian perspectivism, to the discussion of polyphony on this movie, beside

reflections about the aesthetics of the documentary.

Keywords: documentary; voices; indigenous people; experience.

1.Um cinema de invenção e de busca

Nascido na Itália, em 1944, Andrea Tonacci veio para o Brasil em 1953, quando sua

família se mudou para São Paulo. Considerado um dos cineastas mais importantes do cinema

marginal brasileiro, em 1965, Tonacci dirigiu o curta Olho por olho. Três anos depois, em

1968, produziu Blá, blá, blá. Em 1971, é lançado Bang bang, primeiro longa-metragem do

diretor. Marcados fortemente pela experimentação, seus filmes foram associados ao

movimento do cinema marginal.

Tonacci desenvolveu mecanismos de produção tensionados pela abertura ao

imprevisto. No caso da experiência com os povos indígenas, como em Conversas no

Maranhão(1977) e Os Arara(1981-1983), Serras da Desordem (2006), o diretor optou pela

1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Estudos do cinema, fotografia e do audiovisual do XXV Encontro

Anual da Compós, na Universidade Federal de Goiás, Goiânia, de 7 a 10 de junho de 2016. 2 Mestranda em Comunicação, com ênfase em estudos do cinema e do audiovisual, na Universidade Federal

Fluminense.

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construção de filmes marcados pela opacidade (na relação com os sujeitos e universos

filmados) e pela afirmação da diferença irredutível entre índios e brancos, mas sem deixar de

destacar seu interesse pelos dramas humanos. Nos dois primeiros filmes, produzidos

respectivamente junto aos povos Canela e Arara, recusa-se, no gesto de filmar, toda ilusão de

transparência e de distanciamento objetivo. Implicado no processo de filmar, o cineasta, sem

apagar seus rastros, aproxima-se do mundo do outro filmado, mas sem invadi-lo.

Nesse sentido, os filmes de Tonacci não pretendem oferecer interpretações definitivas

sobre os povos que eles mostram. As obras são antes uma tentativa de recorte de mundo, que

busca se aproximar do modo como os povos indígenas vivem em seu mundo e veem o nosso.

Essa visão do nosso mundo visto do lado de lá, ou em confronto com o mundo dos índios, é

algo que o espectador vive como uma experiência de alteridade, mediada pelos recursos do

cinema. No caso de Os Araras e Conversas no Maranhão, esse encontro da câmera com o

mundo dos índios tem diferenças irredutíveis, como afirma Clarissa Alvarenga: “Tonacci lida

com essa diferença entre mundos ao invés de apagá-la ou mesmo tentar controlá-la”

(ALVARENGA, 2012, p. 44). O cineasta se distancia, inteiramente, dos discursos e imagens

que reduzem a realidade dos povos indígenas aos elementos típicos.

Originado de um convite dos antropólogos Gilberto Azanha e Maria Elisa a Andrea

Tonacci para acompanhá-los em uma expedição para a aldeia de Porquinhos, no município de

Barra do Corda, no interior do Maranhão, em 1977, o filme só se torna possível a partir desta

experiência singular que Tonacci teve do universo dos Canela. No início da produção de

Conversas no Maranhão, Tonacci não possuía estudos prévios sobre o povo Canela

Apanyekrá e foi somente a partir do contato com ele que o filme se tornou possível. A obra se

constitui a partir do atravessamento e do risco do real, permeada pela presença, pela fala (seja

na língua dos Canelas, de origem Jê, ou em português), pelos gestos e pelos desejos e

reivindicações do povo Canela. Filmado no confuso e problemático contexto de demarcação

das terras desse povo, a obra possui um caráter nitidamente político, pois permitiu que os

índios expressassem seu descontentamento e sua vontade também diante de um processo que

ocorria à sua revelia, manobrado por instituições como a FUNAI, pressionada pelo poderio

econômico dos fazendeiros. Esse valor político do filme alcança outras dimensões, o que é

significativo na indeterminação e a opacidade das coisas filmadas. O diretor escolhe, por

exemplo, não utilizar legendas que traduzam as conversas na língua dos Canela, ou que

facilitem a compreensão dos momentos em que os índios conversam (seja entre si ou com o

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cineasta) e modificam a norma padrão do português. Em mais de uma sequência, o filme não

oferece associações imediatas entre o som e a imagem, o que nos convida a experimentar

(pela mediação do cinema) a realidade dos Canela Apanyekrá de uma maneira que resiste à

impregnação pelos significados que nossa cultura, necessariamente, projeta sobre o mundo

deles. Este mundo, o deles, surge – não poucas vezes – irredutível em sua alteridade,

alcançado somente pela experiência sensível que nos é oferecida, e não pelo entendimento ou

pelos esquemas explicativos.

As conversas que dão título ao filme se estruturam sob a forma de uma escuta atenta

(por parte do cineasta, mesmo que ele não entenda o que os seus interlocutores falam) e de

uma circulação e reverberação de vozes que o filme promove em sua montagem. Se uma

conversa se estabelece a partir da troca de experiências entre os interlocutores, o filme ouve,

registra e põe em circulação, polifonicamente, as muitas vozes dos índios Canela tal como

eles se expressam, sem que uma outra voz, autorizada, venha a “falar por eles” ou “em nome

deles”. Nesse câmbio de discursos, opiniões e cantos, a língua portuguesa ou o conhecimento

do branco não são sobrepostas ao cotidiano dos Canela por meio de legendas ou explicações

históricas ou etnográficas. O que não entendemos – e o que de nós também é opaco aos

Canela – é constitutivo de uma possível relação entre os brancos e este povo indígena.

2. Pontos de conversa: a mise-en-scène porosa à presença do outro

Segundo Xavier, “Andrea Tonacci desenvolve um trabalho no qual cinema e vídeo

funcionam como mediação entre tribos indígenas, pontos de conversa” (XAVIER, 2011,

p,91). Nessa conversa entre mundos distintos, o mundo dos sujeitos filmados resiste à

perspectiva com que tentamos olhá-los e explicá-los. Podemos dizer que, sob certos aspectos,

é o mundo deles que olha para nós; nós é que somos vistos por eles. O filme escapa, assim,

ao regime da representação. Não é um caso de construir um ponto de vista sobre o mundo dos

Canela ou dos Arara, mas estabelecer uma conversação com eles, feita dos elementos

sensíveis que o cinema inventa e maneja.

Tonacci constrói um outro-cinema, em que se busca a abertura para um ponto de vista

que seja o dos índios, em confronto ou em atrito com o nosso mundo. O cineasta torna-se

um ser à escuta do que lhe chega mesmo sem que ele compreenda, e seu olhar se põe à espera

do olhar que lhe será dirigido. Incompreensões e equívocos permeiam a cena filmada, mas

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ainda assim, ela é sustentada por aquele que filma. O processo fílmico de Tonacci estabelece

uma relação de partilha entre o cineasta e os filmados, que nos faz lembrar daquilo que Jean-

Luis Comolli escreveu em Ver e poder :

Hoje, o problema do documentário não é colocar em cena aqueles que filmamos,

mas deixar aparecer a mise-en-scene deles. A mise-en-scéne é um fato

compartilhado, uma relação, algo que se faz junto, e não apenas por um, o cineasta,

contra os outros, os personagens. Aquele que filma tem como tarefa acolher as

mise-en-scènes que aqueles que estão sendo filmados, regulam, mais ou menos

conscientes disso, e as dramaturgias necessárias àquilo que dizem (COMOLLI,

2008, p.60)

Quando o cineasta escolhe acolher a mise-en-scéne do outro, ao invés de impor uma

mise-en-scéne já preparada para enquadrá-lo, ele estabelece, de certo modo, o exercício

prático de manter as diferenças como elemento constitutivo da obra. Construir a imagem com

os sujeitos filmados e não simplesmente apanhá-los em uma moldura explicativa,

previamente construída, é um exercício de alteridade. Para Tonacci, em Os Arara ou em

Conversas no Maranhão, a mise-en-scène nunca é anterior ao encontro com os sujeitos que

ele buscar filmar e à situação na qual ele os encontra.

O documentário existe em conflito e em fricção com o mundo. No cinema

documental, as estruturas sociais e os valores de uma sociedade são, ao mesmo tempo,

registrados e tensionados. Conversas no Maranhão é um filme que se estrutura a partir da

experiência e do risco do real. Desde as condições de produção à mise-en-scène, o filme só se

tornou possível no contato com os índios Canela Apanyekrá. É a partir dele que Tonacci pode

filmar o que aquele povo considera importante em um filme e que possa ajudá-los a demarcar

as terras da sua aldeia.

Conversas no Maranhão é um filme cuja proposta política é construída a partir do

registro do cotidiano do povo Canela. Tonacci, no entanto, não sabe com precisão qual

abordagem adotará antes de vivê-la. Algo semelhante também acontece nas cenas de rituais.

Nelas a câmera não se fixa por muito tempo em nenhuma imagem, e parece – ao mesmo

tempo em que conhece o que acontece no real – tecer um registro em torno dele. Há, por

exemplo, uma sequência, quando os Canelas aparecem no interior de uma cabana. Nesse

trecho, não temos quase nenhum elemento que possibilite acessar o significado dessa

manifestação ali existente. Como demonstra a figura 1, em um determinado momento, a

câmera aproxima-se muito dos rostos dos índios, em plano fechado, a ponto de não mais

conseguirmos distinguir as faces dos indígenas, que se tornam desfocadas a partir desse

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ponto. Esse gesto não dura muito tempo, e em seguida, o plano torna-se aberto outra vez, e a

câmera passa a registrar outras cenas do ritual. Esse olhar que se interessa por uma imagem,

que se aproxima, mas em seguida, distancia-se, é próprio de uma mise-en-scène que

compreende e aborda a realidade no momento em que se vive. Atravessado pela experiência

do desconhecido, Tonacci possibilita ao espectador se ver diante do mundo dos Canelas

Apanyekrá, mas tomado pela dúvida e em mais de um momento, também pela

incompreensão do que escuta e observa.

FIGURA 1: Frame do filme Conversas no Maranhão.

FONTE :Conversas no Maranhão (Andrea Tonacci, 1977).

Em uma das primeiras sequências do filme, indicada pela figura 2, os índios criticam

os limites da demarcação proposta pela Funai e sugerem outras fronteiras para as suas terras.

Essa conversa é feita, a princípio, em português e exemplifica como o filme, de certo modo,

interferiu na realidade daquele povo. É por meio do dispositivo fílmico que eles usam uma

língua que não é a sua e podem expressar a sua insatisfação e suas aspirações em torno da

demarcação de suas terras. O filme torna-se, assim, o mediador de uma conversa que não era

possível antes. Pelo filme, os Canela se dirigem aos administradores da FUNAI e às demais

autoridades brasileiras.

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FIGURA 2: Frame do filme Conversas no Maranhão

FONTE: Conversas no Maranhão (Andrea Tonacci, 1977).

A mise-en-scène do filme é estabelecida, portanto, a partir do contato com os povos

indígenas. Para Fernão Ramos, essa opção contribui para uma poética particular do longa-

metragem:

Conversas no Maranhão tem um pouco deste olhar, que se direciona à realidade,

para captar a poesia que paira como transparente poeira entre as coisas. Ela parece

tímida em seu encontro com a ‘coisa’ que vai sendo imprimida na película. Ela

como que se retira para deixar a ‘respiração’ da ‘coisa’ fluir naturalmente entre seus póros. A poesia já está lá, a câmara apenas lhe assopra a face” (RAMOS, 2012,

p.190)

3. A opacidade que nos permite aproximar do outro.

Na abertura de Conversas no Maranhão, percebe-se a opção por não nos apresentar a

realidade da tribo dos Canelas Apayenkrá de uma forma circunscrita ao olhar do diretor.

Nesse momento, avista-se a logomarca da produtora Extrema e da Interpovo, que anunciam o

filme e, antes mesmo que possamos reconhecer alguma imagem que desvende essa situação,

ouvimos um som extra-diegético que lembra o som de águas correntes. Essa cena de abertura

nos permite levantar algumas questões em torno das expectativas costumeiras relativas ao

cinema que aborda os povos indígenas. O que é possível de se esperar da abertura de um

documentário realizado com comunidades indígenas? A explicação da história deles e do

espaço que habitam? E quanto ao espectador, o que ele espera conhecer da realidade dos

índios filmados? Os “costumes” deles, sua diferença transformada em coisa exótica?

Conversas no Maranhão rompe com essas expectativas logo de saída, como nos indica a

figura 3.

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FIGURA 3: Frame do filme Conversas no Maranhão

FONTE: Conversas no Maranhão (Andrea Tonacci, 1977).

Como se contentasse em acompanhar o fluxo do real, essas imagens e sons nos

chegam sem que saibamos muito bem os sentidos que as envolvem. Para além de reconhecer

o propósito da construção da ponte improvisada, todo o resto da cena nos escapa, opaca: o

que eles cantam? Por que cantam? O que desejam? Nada sabemos. Em seguida, avistamos

alguns elementos que estão próximos aos espectadores não indígenas: alguém, vestido como

branco, com camiseta, calça jeans e boné está com uma ferramenta no para-choque frontal da

caminhonete. Alguns minutos depois, temos uma suspeita de sentido para o que estava

acontecendo até então: a caminhonete atravessa o rio sobre os troncos de madeira. Mas o que

isso significa de fato não podemos saber. Qual o significado do que escutamos? Há algo nos

cantos que poderá explicar a razão dessa travessia e da presença da caminhonete? O filme

não nos oferece essas respostas. Não há legendas ou traduções para nos explicar o que vemos.

FIGURA 4: Frame do filme Conversas no Maranhão

FONTE: Conversas no Maranhão (Andrea Tonacci, 1977).

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Essa maneira de apresentar a realidade dos Canelas Apanyekrá, por meio de múltiplos

sentidos, alguns até mesmo inacessíveis ao espectador, pode ser entendida como

“polifônica”. Para caracterizar essa relação, podemos recorrer ao pensamento de James

Clifford (1998). Em Sobre a autoridade etnográfica, Clifford discute quatro modelos de

abordagem antropológica: o da autoridade, o da experiência, o interpretativo, o dialógico e o

polifônico.

A discussão das diversas subjetividades existentes na tessitura do discurso etnográfico

acentua-se no modelo polifônico. Questionando a autoria do trabalho pelo etnólogo, que

escreve a partir do contato com a realidade e os discursos dos outros, essa perspectiva propõe

dar um lugar visível às interpretações nativas da realidade: “a multiplicação das leituras

possíveis reflete o fato de que a consciência ‘etnográfica’ não pode mais ser considerada

como monopólio de certas culturas e classes sociais no Ocidente” (CLIFFORD, 1998, p.57).

Podemos dizer que em Conversas no Maranhão sobressai uma escritura fílmica

polifônica, a despeito das muitas situações de incompreensão literal dos acontecimentos e dos

sentidos em jogo. Nas cenas de rituais, por exemplo, o filme não explica nem interpreta o que

ele registra. No caso da cena indicada pela figura 5, não se oferecem elementos de pesquisa

no filme sobre o que significa o gesto de bater levemente com o pedaço de madeira no tronco

do garoto ou tampouco como essa ação se relaciona com os cânticos que ouvimos ao fundo.

O filme não oferece nenhuma metalinguagem para “traduzir” o que surge em cena. A forma

do filme abriga sentidos múltiplos que ele não se propõe a explicar, e convida o espectador a

uma experimentação sensível e sensorial da realidade dos índios Canela Apanyekrá.

FIGURA 5: Frame do filme Conversas no Maranhão

FONTE: Conversas no Maranhão (Andrea Tonacci, 1977)

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Outras duas noções que nos auxiliam a entender Conversas no Maranhão são o

perspectivismo e a equivocação, presentes nos trabalhos de Eduardo Viveiros e Castro e

Tânia Stolze Lima. Em Metafísicas Canibais(2015), Eduardo Viveiros de Castro pontua que

a distinção entre natureza e cultura não pode ser feita sem passar internamente pelas

cosmologias que constituem o sujeito. Castro discute as diferenças entre o conceito de cultura

para os povos brancos e para os ameríndios. No primeiro caso, a cultura seria o elemento que

particulariza o indivíduo, diferenciando-o da natureza. Segundo o autor, “a concepção

ameríndia suporia, ao contrário, uma unidade do espírito e uma diversidade dos corpos. A

‘cultura’ ou o sujeito seriam aqui a forma do universal, a ‘natureza’, ou o objeto, a forma

particular”(CASTRO, 2015, p. 43). Se brancos e ameríndios possuem formas de reconhecer a

própria identidade e as relações sociais de maneira distinta, a perspectiva de um sobre a

realidade do outro também é atravessada por diferenças. Segundo Viveiros de Castro, “a

‘personitude’ e a ‘perspectividade’ – a capacidade de ocupar um ponto de vista – são uma

questão de grau, de contexto e posição, antes que uma propriedade distintiva de tal ou qual

espécie” (CASTRO, 2015, p.46). Os elementos identificados por Viveiros de Castro para a

existência de uma perspectiva – grau, contexto e posição – são importantes para entender

como um filme, quem sabe, pode oferecer vestígios ou indícios do mundo do outro filmado,

que não se reduz à representação que se constrói sobre ele ou em torno dele. Um filme pode

dar a ver as diferenças inconciliáveis (e intraduzíveis) entre os mundos dos índios e dos

brancos, desde que ele abandone toda ilusão em torno do “ponto de vista”. Afinal, como

Viveiros de Castro acentua, a diferença é entre os mundos e não entre os pontos de vista.

Conversas no Maranhão é um filme no qual não há uma estrutura cronológica,

apresentação clara dos personagens, uso de letreiros e legendas para esclarecer as falas e as

conversas que ele nos põe para escutar. Não sabemos o porquê, mas os índios Canela

Apanyekrá aparecem carregando toras de madeira – como indicado no frame abaixo –, ou

cantando com chocalhos amarrados aos tornozelos, dançando em roda ou sentados em

grandes áreas abertas para conversar. O filme nos permite que tenhamos proximidade com

todos esses elementos que são registrados na imagem. O possível conhecimento que o

espectador poderia adquirir sobre os Canela é propositadamente barrado. O filme assume a

irredutibilidade da diferença e a opacidade como uma via possível para mostrar o contexto e

as reivindicações dos Canela Apanyekrá, mas de tal maneira que suas diferenças não sejam

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simplesmente apagadas pelas formas de representação construídas com a câmera,

predominantes na nossa cultura.

FIGURA 6: Frame do filme Conversas no Maranhão.

FONTE: Conversas no Maranhão (Andrea Tonacci, 1977)

Graças a essas escolhas, Conversas no Maranhão oferece meios de aproximação e

contato com os índios Canela Apanyekrá, sem querer explicar o mundo dele para nós. Para

melhor compreender esse gesto, devemos nos voltar para a maneira pela qual a antropologia

contemporânea tem lidado com a comparação entre as culturas. Viveiros de Castro afirma

que a “antropologia compara para traduzir, e não para explicar, justificar, generalizar,

interpretar, contextualizar, revelar o inconsciente”(CASTRO, 2004, p.5)3

Para Lima, por sua vez, as relações de autoridade no trabalho etnógrafo e a construção

da identidade podem ser modificadas a partir de uma nova postura no trato das diferenças

entre os povos. Segundo a autora, “o entendimento da diferença como uma questão de

contexto tem pressuposto a ideia de que a diferença deve (obrigatoriamente, se preciso for)

conduzir a uma identidade (unidade, totalidade de ordem superior)” (LIMA, 2011, p.617).

Ambos os autores discutem o conceito de perspectivismo ameríndio. Castro defende a

importância da adoção, pela antropologia, de uma linguagem para os povos indígenas

“radicada nas linguagens que constituem sinteticamente esses mundos” (CASTRO, 2003,

p.15). Segundo Viveiros de Castro:

O perspectivismo indígena é uma teoria do equívoco, isto é, da alteridade

referencial entre conceitos homônimos; o equívoco aparece ali como o modo por

excelência de comunicação entre diferentes posições perspectivas – e portanto como

3 No original, “ in anthropology, comparison is in the service of translation and not the opposite. Anthropology

compares so as to translate, and not to explain, justify, generalize, interpret, contextualize, reveal the

unconscious”(CASTRO, 2004, p.5).

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condição de possibilidade e limite da empresa antropológica (CASTRO, 2004,

p.5).4

Adotar o equívoco como guia significa sustentar uma postura que assuma, ao invés de

explicar, as diferenças entre os sujeitos que estão em relação. Segundo Viveiros, “o Outro dos

outros é sempre outro” (CASTRO, 2004, p. 12). Dessa maneira, não é possível utilizar

somente a autoridade e a linguagem do etnógrafo que estuda comunidades tradicionais e

tribos indígenas para abordar as diferenças entre eles. É necessário alcançar uma forma de

linguagem e de observação, cuja metodologia reconheça estar sempre equivocada em alguma

medida, tendo em vista que a perspectiva dos povos estudados não pode ser representada com

plena fidedignidade.

Considerando as dificuldades existentes para a antropologia em englobar a forma de

conhecimento dos povos indígenas em sua teoria de construção do conhecimento, Viveiros de

Castro propõe assumir essa diferença como parte constitutiva da escrita etnográfica. O autor

propõe a noção de equivocação controlada, em que a impossibilidade de se traduzir

totalmente um conhecimento ameríndio para a compreensão branca é assumida como

método. Castro destaca que o perspectivismo ameríndio é uma das teorias da antropologia em

que há o uso da equivocação controlada, pela qual é estabelecida uma “alteridade referencial

entre conceitos homônimos” (CASTRO, 2004, p.3).

Para o antropólogo, o perspectivismo reúne práticas difundidas entre os índios que

constituem uma cosmologia. Essa cosmologia “imagina um universo povoado por diferentes

tipos de agências subjetivas, humanas e não-humanas, todas dotadas de um mesmo tipo de

alma, isto é, de um mesmo conjunto de disposições cognitivas e volitivas” (CASTRO, 2004,

p.6)5. A possibilidade de diversos seres possuírem almas implica que eles mesmos mantêm

perspectivas próprias sobre os demais seres. O perspectivismo assume a diferença existente e

oculta entre conceitos homônimos em línguas e povos diferentes. Esse gesto encontra

consonância com o equívoco, que é um “dispositivo de objetivação”(CASTRO, 2004, p.9) e

4 Versão no original, em inglês, “In doing so I shall make the claim that perspectivism projects an image of

translation as a process of controlled equivocation—“controlled” in the sense that walking may be said to be a

controlled way of falling. Indigenous perspectivism is a theory of the equivocation, that is, of the referential alterity between homonymic concepts. Equivocation appears here as the mode of communication par excellence

between different perspectival positions—and therefore as both condition of possibility and limit of the

anthropological enterprise”(CASTRO, 2004, p.5). 5 Trecho no original, em inglês: “imagines a universe peopled by different types of subjective agencies, human

as well as nonhuman, each endowed with the same generic type of soul, that is, the same set of cognitive and

volitional capacities” (CASTRO, 2004, p.6).

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aparece sempre quando um conceito antropológico tenta dizer e sintetizar uma realidade que

é do outro.

A noção de equívoco pode nos auxiliar na compreensão de Conversas no Maranhão.

Tonacci assume a impossibilidade da linguagem cinematográfica traduzir o universo dos

índios Canela Apanyekrá, escolha que conduz os recursos expressivos e o método do filme.

Algumas das sequências em que podemos usar a noção de equívoco para analisar o filme são

aquelas em que os índios aparecem reunidos, começam conversando em português e, sem que

seja explicado ao espectador, passam a conversar na língua deles. Em uma das sequências

iniciais do filme, os índios conversam com um homem branco que parece ser responsável

pelo projeto de demarcação de terras. Enquanto ele e os índios fazem gestos com as mãos

para demonstrar onde deveriam ser as fronteiras, o branco diz: “Essa daqui já suspendi, não

vai tocar essa daqui. Eu vou tocar do Coda até esse córrego aqui”. O índio retruca e parece

indicar outros limites: “Não! Cê vai tratar do Coda para cá”. Poucos planos depois, sem que o

filme nos ofereça uma decisão precisa sobre essa conversa, a câmera mostra um dos índios do

mesmo grupo sentado, e começamos a escutar a língua dos Canelas novamente. Desse modo,

parece-nos que a questão da demarcação das terras não pode ser resumida simplesmente a

uma divergência entre os pontos de vista e as opiniões de índios e brancos. Ao sustentar a

fala na língua dos índios, incompreensível para o espectador, o filme assume, em sua forma e

em seu processo, a impossibilidade da tradução.

FIGURA 7: Frame do filme Conversas no Maranhã.

FONTE: Conversas no Maranhão (Andrea Tonacci, 1977).

Tomemos outro exemplo, aquele das sequências que mostram as reuniões e rituais nos

pátio da aldeia Canela. Nesse ambiente, reúnem-se vários índios, muitos do Conselho de

Idosos. Nessas cenas, eles aparecem conversando ou cantando. Na maioria delas, não há

nenhuma inserção de falas em português ou a presença de legendas. Surgem conversas e

rituais que escapam, inteiramente, aos esquemas de sentido que dispomos para compreendê-

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los ou explicá-los. O que nos resta a fazer, como espectadores, é aguçar nossos olhos e

ouvidos para experimentar a dimensão sensível do que surge na tela. Entramos em uma zona

de contato com o mundo dos Canelas que não é regida pelo significado.

FIGURA 8: Frame do filme Conversas no Maranhão (Andrea Tonacci, 1977).

FONTE: Conversas no Maranhão (Andrea Tonacci, 1977).

4. Formas possíveis de engajamento do documentário no mundo

Na medida em que Conversas no Maranhão apresenta os povos indígenas Canela

Apayenkrá e mescla o uso do português com a língua dos Canelas, ele conduz a uma série de

reflexões sobre como pode se incluir a voz do outro em um documentário, e a quem – e como

– ela se destina. Há também o questionamento acerca do modo como a voz – ou enunciado –

de quem dirige e sustenta a câmera existe no filme. Nesse caso, entender o que dizem os

movimentos e as posições da câmera na mise-en-scéne é fundamental para entender como a

imagem que se constrói do outro alcança – ou não – aquele que assiste ao filme.

A extensão da voz do documentário a todos os meios criativos utilizados pelo diretor

é importante porque nos auxilia a pensar a fotografia, o som e a montagem do filme também

como vozes. No caso de Conversas no Maranhão, por exemplo, a movimentação da câmera

constitui uma forma própria de enunciação, na medida em que é por meio dela que

conhecemos a voz e o discurso do cineasta em um contexto que as conversas são permeadas

pelas diferenças de linguagem entre cineasta e índios. Se a consideramos como voz, a forma

como a câmera opera e como dá a ver a realidade do outro é um elemento de diálogo entre

quem filma, os filmados e aquele que assiste ao longa-metragem. Da mesma maneira, a

forma como se estrutura o som no filme, concedendo ritmo e oferecendo sentidos à imagens

que não apresentam correspondência visual imediata – como, por exemplo, o uso de cantos

dos Canela cuja tradução é desconhecida – representa uma voz – e um ponto de escuta –

sobre a realidade filmada. Por sua vez, se a montagem é o discurso do cineasta que organiza

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os fragmentos da realidade e os planos filmados, é também uma voz que estabelece relações

com as demais. Se não é a voz do cineasta aquela que narra, explica e justifica o que se vê no

filme, mas as relações entre o que nos dizem aqueles que filmamos, a escolha estética e a

forma fílmica empregada, os sentidos possíveis a voz do documentário amplificam-se.

As escolhas que orientam e determinam as vozes no documentário nos possibilitam

discutir como um filme posiciona-se social e politicamente em relação ao mundo filmado. Se

Conversas no Maranhão opta por um sentido radical de conversa, na medida em que a forma

do diálogo assume o não-entendimento como parte constitutiva, o que se escolhe dizer do

mundo representando não é um recorte em que predomina o que o cineasta pode nos dizer

acerca do outro e do seu mundo. No filme, as diversas conversas circulam entre uns e outros,

sem serem encerradas em uma narrativa que as ordena e a hierarquiza. Trata-se de uma

opção estética e política que dá a ver os muitos conflitos e atos de violência que envolvem a

demarcação das terras indígenas no Brasil.

Junto com as conversas, a observação é outro elemento importante e constitutivo do

longa-metragem. A câmera de Tonacci funciona como um olho atento que se move

habilidosa e livremente em direção a diferentes assuntos que a atraem, muitas vezes sem

estabelecer uma hierarquia entre eles, construindo, assim, pequenas narrativas em aberto. Em

uma das sequências iniciais do filme, por exemplo, a câmera que, até então em plano aberto,

observava o agrupamento de vários índios, desloca-se para acompanhar um índio que carrega

uma tora por alguns instantes, como notamos na figura a seguir:

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FIGURA 9: Frames do filme Conversas no Maranhão.

FONTE: Conversas no Maranhão (Andrea Tonacci, 1977).

Ao se comportar dessa maneira, a observação em Conversas no Maranhão parece

acomapanhar o movimento e o tempo próprio da vida dos Canela, surpreendendo-se diante de

ações não previstas, atenta a gestos menores. No filme de Tonacci, a observação não

acontece de forma distanciada. Em vários momentos, a câmera se movimenta em estreita

proximidade dos corpos que filma. Na sequência representada pela figura abaixo, em que os

índios correm juntos, enquanto cantam, a câmara aproxima-se bem perto dos corredores e

acompanha o ritmo deles. Assim, apesar de somente observar aquilo que acontece o que a

câmara captura é afetado pela proximidade com os corpos, pois o cineasta partilha com eles

um espaço comum, próximo.

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FIGURA 10: Frames do filme Conversas no Maranhão.

FONTE: Conversas no Maranhão (Andrea Tonacci, 1977).

A voz do documentário se estabelece não somente por meio do que é dito no filme,

mas envolve todos os elementos plásticos e visuais que o compõem, envolvidos por uma

argumentação que convoca o espectador. Fernão Ramos (2008) elabora categorias para

compreender a enunciação no filme documentário que apanham de forma mais ampla e

integrada os elementos de constituintes da obra. Em A imagem-câmera e em Mas, afinal, o

que é o mesmo o documentário, Fernão Ramos apresenta categorias que apanham a

estruturação das vozes no cinema documentário:

os enunciados utilizados pela imagens-câmera para asserir possuem um estatuto

completamente diferenciado (singular, portanto) dos enunciados assertivos feitos

através de linguagem escrita, oral, ou daqueles que são acompanhados por

representações pictóricas. (RAMOS, 2008, p. 77).

Para caracterizar o estatuto diferenciado das asserções feitas pelo documentário,

Ramos forja as noções de imagem-câmera, tomada e fôrma-câmera. As asserções

construídas por meio da imagem-câmera “trazem o mundo em sua carne e nelas respiramos a

intensidade e a indeterminação do transcorrer” (RAMOS, 2008, p.81). A imagem-câmera é

aquela que, diante do “peso” e “intensidade” do mundo é afetada e flexionada por ele. De

acordo com Ramos, a singularidade desta imagem:

está em poder ‘fazer como’ dentro dos traços e das figuras que a conformam como

imagem-câmera. A imagem obtida pela mediação da câmera possui característica

singular que a distingue na raiz de outras imagens. No entanto, é exatamente na

negação da especificidade radical da imagem-câmera que boa parte da reflexão

sobre ela é realizada. (RAMOS, 2012, p. 14 apud WELLER,2012, p.252 )

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Ramos (2012) enfatiza que a especificidade da imagem-câmera deve ser apanhada nas

circunstâncias peculiares da tomada, nas atitudes do sujeito-da-câmera que a sustenta e nas

especificidades expressivas intrínsecas à fôrma-câmera. Ao contrário de outras teorias que

tendem a classificar a enunciação de forma mais rígida, Ramos propõe leituras que

considerem as vozes do documentário a partir da observação de cada intervenção singular no

mundo realizada por elas:

A tomada da imagem documentária define-se pela presença de um sujeito

sustentando uma câmera/gravador na circunstância de mundo, em que formas e

volume deixam seu traço em um suporte que ‘corre’ (trans-corre) na

câmera/gravador, seja essa suporte digital, videográfico ou película (RAMOS, 2008, p.82).

A concepção do sujeito-da-câmera concerne não apenas à presença do indivíduo que

sustenta a máquina, mas também à subjetividade que envolve o gesto da tomada e que se

direciona à fruição espectatorial. Tal como o enunciador que só existe mediante sua relação

com um enunciatário, a existência do sujeito-da-câmera realiza-se quando há espectador.

A maneira pela qual o sujeito-da-câmera relaciona-se com espectador (a que podemos

chamar de enunciação) é construída a partir da fôrma-câmera, que é equiparável ao

enunciado. Segundo Ramos, “a fôrma perspectiva potencializa e intensifica a relação do

espectador com o mundo da tomada. Fôrma perspectiva e situação da tomada são

componentes essenciais da imagem-câmera que parecem se completar”. (RAMOS, 2008,

p.85). A partir das ideias de Ramos podemos construir uma análise das vozes no

documentário que leve em conta a participação do sujeito-da-câmera na situação da tomada e

as relações entre enunciador e enunciatário.

5. As vozes que surgem das Conversas no Maranhão

Se “a particularidade da imagem-câmera, para o espectador, está em sua capacidade

de lançá-lo à circunstância a tomada” (RAMOS, 2008, p.85), a obra de Tonacci não somente

lança o espectador à circunstância da tomada como também o põe diante da opacidade que

permeia o gesto de filmar. Tonacci constrói cenas em que o sentido da situação não é

explicado ou se constroem sequências em que a filmagem de uma ação é interrompida por

outra cena, produzindo imagens cuja compreensão parece ser acessível apenas aos índios

Canela..

Em Conversas no Maranhão, embora o equipamento utilizado que produz a imagem

seja sempre o mesmo, a forma câmera – a modelagem e o sentido do real criados pelo

aparelho – é variável. É possível identificar quatro formas-câmera principais em Conversas

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no Maranhão: a observação; o testemunho; a incompreensão deslocada; e do diálogo com os

brancos. O primeiro caso abrange dois movimentos: o do sujeito-da-câmera que realiza

tomadas que passeiam pelas situações, e as tomadas que concedem ao espectador a

possibilidade de olhar a realidade dos Canelas Apanyekrá através de fragmentos. A

observação é encontrada, principalmente, nas sequências que abordam o cotidiano dos

Canelas de forma fluída, quando a câmara desloca-se para registrar pequenas ações e

instantes, movimentando-se de forma livre diante do que é filmado. Na sequência

representada pela figura abaixo, por exemplo, a câmera registra alguns índios, depois se

desloca para registrar brincadeiras entre dois deles, em seguida focaliza uma corrida de toras

e, de repente, corta para um grupo de mulheres.

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FIGURA11 - Frames do filme Conversas no Maranhão.

FONTE: Conversas no Maranhão (Andrea Tonacci, 1977).

Esse comportamento da câmera que olha para a realidade do outro e se movimenta a

partir de uma circunstância que a atrai, permite, também, que o sujeito da câmera se

aproxime ou se afaste diante do que surge diante do olho mecânico da câmera. Esta é uma

característica importante em algumas cenas de rituais dos Canelas, em que a câmera

aproxima-se do rosto ou do corpo de um pajé, por exemplo, como se o olhar mais próximo

pudesse captar com mais precisão e intensidade a experiência sensível que presenciamos,

mediados pelo trabalho da câmera. Na sequência indicada pelas figuras abaixo, o pajé é

filmado, inicialmente, em planos abertos, de forma distanciada, para em seguida ser

alcançado por planos que mostram os seus braços e por planos fechados que mostram as

reações do seu rosto. Assim, o sujeito da câmera estabelece uma relação de observador ativo,

que aproxima o seu olhar tal como quisesse investigar com maior densidade as atitudes e os

movimentos do pajé ao executar o ritual.

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FIGURA 12: Frames do filme Conversas no Maranhão.

FONTE: Conversas no Maranhão (Andrea Tonacci, 1977).

Outra maneira do sujeito-da-câmera se valer da observação pode ser encontrada nas

sequências de apresentação do ambiente e do espaço em que o filme acontece. Nessas

sequências, há predominância do uso de planos abertos e rápidos, que oferecem uma breve

informação sobre o espaço no qual a ação se situa. Em uma dessas sequências, indicada pelas

figuras abaixo, o sujeito-da-câmera oferece ao espectador uma visão ampliada do espaço da

aldeia, apanhado na perspectiva de quem o atravessa, de quem se move por ele.

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FIGURA 13- Frames do filme Conversas no Maranhão.

FONTE: Conversas no Maranhão (Andrea Tonacci, 1977).

A forma-câmera que configura as situações de testemunho se apresenta,

principalmente, quando a tomada registra as conversas dos índios sobre a situação da

demarcação de suas terras. Há uma sequência emblemática nesse sentido, na primeira parte

do filme, quando o entrevistador, branco, aparece agachado, mais baixo e próximo do chão

dos índios, que permanecem em pé.

Na sequência indicada pelo frame abaixo, por exemplo, os índios conversam sobre a

demarcação de terras que foi feita sem consultá-los. No relato dos índios, eles comentam ter

enviado uma carta a Brasília e questionam as dimensões da terra asseguradas pelo coronel

Saul. Nesse momento, a imagem-câmera de Tonacci funciona como testemunha e presencia a

conversa que se desenrola.

FIGURA 14: Frames do filme Conversas no Maranhão.

FONTE: Conversas no Maranhão (Andrea Tonacci, 1977).

Na fôrma-testemunho, há tomadas em que o sujeito-da-câmera se apresenta como

ouvinte e apenas registra o que acontece. A índia que aparece na sequência das figuras

abaixo, por exemplo, constrói um relato contundente sobre as questões que lhe incomodam

em relação ao processo de demarcação das terras – e como isso alteraria a produção de

alimentos e o cotidiano da aldeia. Ao contrário de algumas sequências de observação em que

a câmera se desloca do enquadramento daquele que fala para apanhar outros elementos do

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entorno, aqui o sujeito-da-câmera permanece atentíssimo não só ao que é dito pela mulher,

mas também à duração na qual sua fala ganha corpo.

FIGURA 15: Frames do filme Conversas no Maranhão.

FONTE: Conversas no Maranhão (Andrea Tonacci, 1977).

A forma da incompreensão deslocada surge quando o sujeito-da-câmera realiza

tomadas em que se percebe que são os índios Canela, e não o espectador aqueles que são

atravessados pela dúvida e pelo não entendimento. Há dois elementos na tomada que

caracterizam essa forma: a conversa em português e a revelação do processo de gravação. Na

sequência indicada pelas figuras abaixo, por exemplo, um índio mais velho – que aparece na

terceira imagem – aparenta estar confuso sobre o que acontece, enquanto outros conversam

em português ao seu redor. Há uma alteração na ordem dos testemunhos, entre quem fala e

quem escuta, e também de quem observa. Enquanto alguns índios conversam em português,

outros apenas observam e não participam da conversa. Ao espectador branco, porém, nesse

momento é concedida a compreensão do que acontece.

FIGURA 16: Frames do filme Conversas no Maranhão.

FONTE: Conversas no Maranhão (Andrea Tonacci, 1977).

Nas sequências indicadas pela figura abaixo, notamos que a presença da câmera causa

estranhamento e confusão entre Canela. Há, por exemplo, um plano fechado de um índio que

aponta para a câmera e franze os olhos. De forma semelhante, há um plano médio que mostra

as crianças Canela que olham para a câmera. Algumas têm o rosto assustado ou expressam

estranhamento diante da situação. Outras, riem. Há também o estranhamento de uma índia

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que olha intrigada para câmera, enquanto leva a mão ao queixo. Esses planos demonstram

como a imagem-câmera não age no mundo sem afetá-lo.

FIGURA 17: Frames do filme Conversas no Maranhão.

FONTE: Conversas no Maranhão (Andrea Tonacci, 1977).

A forma do diálogo com o branco pode ser encontrada nas sequências em que o filme

realiza as entrevistas com a família dos Arruda e estabelece uma conversa que, dificilmente,

ocorreria sem o processo desencadeado pelo filme e a presença da câmera. Na sequência

indicada pelas figuras abaixo, quem entrevista o descendente dos Arruda chega à casa e

convida à conversa: “Eu quero ouvir umas histórias”. Em resposta, o descendente dos

Arrudas afirma que os “índios tratavam minha vó como mãe véia”, e afirma que não houve

conflitos entre os índios e a família Arruda. Mesmo diante da negação do conflito por parte

do descendente dos Arrudas, o filme mantém o diálogo por meio da montagem. Essa

sequência apresenta uma montagem intercalada de situações cotidianas, paralelas e opostas

entre os índios Canela e os descendentes dos Arrudas.

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Após a cena da conversa entre os Arrudas, vemos um índio subindo numa árvore. Ao

fundo, uma senhora e o homem das entrevistas conversam em português, enquanto ouvimos

um canto Canela. Na sequência seguinte, vemos os índios reunidos em torno da fogueira,

enquanto preparam um animal abatido para ser comido. Logo em seguida, um plano mostra

os Arrudas comendo no prato. Essa é uma das poucas sequências em que som e imagem

parecem estar diretamente associados. Enquanto os Arruda conversam sobre o que fariam se

deixassem a fazenda, se fossem para a cidade e cedessem a terra aos indígenas, vemos os

índios em atividades comuns, no meio da mata, cozinhando os bichos. É como se o filme

mostrasse: são os povos Canela os habilitados a permanecer e a viver naquele território. Ao

contrário do que é afirmado pelo herdeiro dos Arrudas, eles não têm interesse em usar as

terras para atividades agropecuárias. A demarcação das terras seria, assim, o mecanismo

necessário para garantir a sobrevivência de um povo que vive ali há gerações.

FIGURA 18: Vemos os Arrudas recebendo a equipe do filme e o herdeiro dos Arrudas construindo o seu relato.

FONTE: Frames do filme Conversas no Maranhão (Andrea Tonacci, 1977).

FIGURA 19. As imagens dos índios Canela caçando no meio da mata oferecem um contraponto à fala do

herdeiro dos Arrudas, segundo qual os índios estariam interessados nas plantações dos brancos e teriam

preguiça. Apontam, também, como aquele ambiente está diretamente relacionado com a sobrevivência dos

índios. Frames do filme Conversas no Maranhão.

FONTE: Frames do filme Conversas no Maranhão (Andrea Tonacci, 1977)

Considerando que imagem-câmera em Conversas no Maranhão não se guia pela

explicação da realidade filmada, mas sim a apresenta mais do que representa, ela exerce um

exercício de alteridade, mantendo-se como um mediador, parcialmente opaco ao nos

apresentar o mundo dos Canela, que surge nos elementos sensíveis que o estruturam e nas

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falas dos índios (seja na língua dos Canelas, seja em português). Ainda que não seja os

Canelas os que portam a câmera, podemos dizer que algo do seu mundo nos chega por meio

das muitas vozes e conversas que o filme faz circular.

Conclusão

O processo de análise das vozes de Conversas no Maranhão é atravessado pela

opacidade e pela dificuldade de se utilizar algumas teorias da enunciação fílmica. Conversas

no Maranhão estabelece uma relação peculiaríssima com o espectador, que é convidado a

abrir mão dos esquemas explicativos (de natureza histórica ou etnográfica), do entendimento,

da compreensão das falas dos indígenas (quando ditas na língua deles). E mesmo quando eles

falam o português, nem sempre o sentido é claro, e o outro crava sua diferença na língua dos

colonizadores e invasores.

Embora o aparato do cinema e seus procedimentos costumeiros estejam sempre

presentes, Tonacci cria uma mediação fílmica que, valendo-se dos recursos do documentário

(em sua modalidade observativa e participativa), nos dá a ver (e a escutar) o mundo dos

Canela sem que ele seja recoberto pelas projeções do espectador branco. Parece-nos que

também aí, do lado, do espectador, a subjetividade encontrou uma barreira, deixada aí

propositadamente pelo cineasta. O espectador é convidado a um exercício atentíssimo de

escuta e de percepção, às voltas tanto com o que entende (às vezes, apenas de modo lacunar)

e com o que não entende, e que deve ser alcançado pelas vias do sentido sensível.

As muitas conversas que circulam e reverberam pelo filme, atravessadas por lacunas,

equívocos, ruídos, discordâncias, divergências e até mesma pela total incompreensão dos

sentidos em jogo demonstram que, nessa aproximação com o mundo dos Canelas, o que

chamamos comumente de “diálogo” do cineasta com os sujeitos filmados requer a presença

viva dos corpos, o contato próximo, as vozes encarnadas, um espaço partilhado, a atenção da

escuta, a agudeza e a sensibilidade do olhar. Assim, o que poderia ser, à primeira vista, um

tema imediatamente reconhecido em sua militância indigenista – a demarcação das terras dos

Canelas – surge envolvido, polifonicamente, por várias vozes que mostram o quanto a

questão é multifacetada. E sobretudo, a questão dificílima demarcação das terras indígenas

surge nas vozes dos seus protagonistas.

Referências

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