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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em História Entre Narros & Mulungos Colonialismo e paisagem social em Lourenç o Marques c. 1890- c.1940. Valdemir Donizette Zamparoni Tese apresentada para a obtenção do grau de Doutor em História Social junto à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, sob a orientação do Prof. Dr. Carlos Gui- lherme Mota. ____________________________________________________________________ São Paulo, 1998

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas Programa de Ps-Graduao em Histria

    Entre Narros & Mulungos Colonialismo e paisagem social em Loureno Marques

    c. 1890- c.1940.

    Valdemir Donizette Zamparoni

    Tese apresentada para a obteno do grau de Doutor em Histria Social junto Faculdade de Filosofia, Letras e Ci ncias Humanas da Universidade de So Paulo, sob a orientao do Prof. Dr. Carlos Gui- lherme Mota.

    ____________________________________________________________________

    So Paulo, 1998

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  • ndice INTRODUO ..................................................................................................................... 1

    PARTE I - PARADIGMAS DA DOMINAO

    1. DO ESCRAVO AO CHIBALO........................................................................................... 13

    1.1 Da troca conquista militar ...................................................................................... 13 1.2 A Moral do trabalho.................................................................................................. 26

    2. MECANISMOS DE DOMINAO ..................................................................................... 43

    2.1 O Imposto de Palhota: importncia e caractersticas................................................ 43 2.2 A expropriao de terras ........................................................................................... 55

    3. O TRABALHO COMPELIDO: FORMAS E DIMENSES........................................................ 87

    3.1 Trabalho prisional ..................................................................................................... 89 3.2 Chibalo...................................................................................................................... 93 3.3 Mulheres e crianas sob o chibalo .......................................................................... 108 3.4 Rgulos e Sipaios.................................................................................................... 127 3.5 Da fuga ao boicote .................................................................................................. 132

    4. O TRABALHO VOLUNTRIO ........................................................................................ 142

    4.1 Mamparras & Magaas.......................................................................................... 142 4.2 Cozinheiros, mainatos & muleques. ....................................................................... 175 4.3 As raas dos empregos............................................................................................ 190

    PARTE II - XI-LUNGUNE: ESPAO URBANO, ESPAO BRANCO?

    5. A FORMAO DO ESPAO URBANO............................................................................. 250

    5.1. A teia da aranha ..................................................................................................... 251 5.2. Luz nas trevas ........................................................................................................ 257 5.3. Bondes, negros e ces ............................................................................................ 260 5.4. As muralhas invisveis ........................................................................................... 269

    5.4.1. A morada do homem e o mundo da mulher ................................................... 270 5.4.2. Jaqueto, rendas e capulanas... ....................................................................... 282 5.4.3. Chapas e passes............................................................................................... 291 5.4.4. Monhs & Chinas ........................................................................................... 301 5.4.5. Canio, zinco e alvenaria ................................................................................ 308 5.4.6. Compounds e bairros ...................................................................................... 314 5.4.7. Negros males................................................................................................... 321 5.4.8. Areias brancas, guas negras. ......................................................................... 329

    6. COPOS E CORPOS: A DISCIPLINA DO PRAZER............................................................... 334

    6.1. Vinho colonial & bebidas cafreais ........................................................................ 338 6.2. Negras nas cantinas, brancas nos bars ................................................................... 350 PARTE III - A EMERGENTE PEQUENA BURGUESIA FILHA DA TERRA 7. NOTAS SOBRE CLASSE EM FRICA ............................................................................. 364

    7.1 A questo classe vista pelos Pais da Ptria. ................................................... 366 7.2 Intelectuais contra classe. .................................................................................... 372

  • 7.3 A afirmao da existncia de classes. ..................................................................... 380 7.4 Moambique: classe ou elite? ................................................................................. 386

    8. ESPOSAS, CONCUBINAS & MESTIOS......................................................................... 394

    9. EDUCAR CIVILIZAR: AS CORES DO ENSINO ............................................................... 416

    9.1 Catlicos x Protestantes: Deus branco & almas negras .......................................... 416 9.2 As escravas perptuas & o ensino prtico .................................................... 437 9.3 A instruo para todos .................................................................................... 448 9.4 Ensino regular, ensino rudimentar .......................................................................... 457

    10. DO INDGENA AO ASSIMILADO.................................................................................... 467

    10.1 O bacharel negro & o europeu selvajo...................................................... 478 10.2 Frugalidade, moralidade e respeito ....................................................................... 493 10.3 Mulatos x negros: bailes & futebol....................................................................... 505 10.4 De fartos de vos aturar a prontos a colaborar ................................................ 522

    CONCLUSO................................................................................................................... 550

    FONTES & BIBLIOGRAFIA .............................................................................................. 553

  • ndice de tabelas e quadros

    Receita de Moambique em ris ..................................................................................... 47

    Trabalhadores fornecidos - Moambique - 1926/1928................................................... 97

    Mortalidade de trab. moambicanos no Transvaal - 1917/1938................................... 158

    Mapa necrolgico de trab. no Transvaal - 1913 ........................................................... 159

    Distribuio profissional consoante grupos raciais - Loureno Marques - 1894 ......... 191

    Profisses desempenhadas por africanos - Loureno Marques - 1894........................ 192

    Profisses segundo raas - Loureno Marques - 1912 ................................................. 194

    Salrios em Loureno Marques - 1908 ......................................................................... 201

    Preos dos gneros em Loureno Marques - 1908-1917.............................................. 204

    Salrios na Ponte-Cais de Loureno Marques - 1914-1920 ......................................... 205

    Profisses segundo raas - Loureno Marques - 1928 ................................................. 219

    Desempregados em Loureno Marques, segundo raa - 1927-1935 ............................ 227

    Distribuio profissional na construo civil - Loureno Marques - 1928................... 232

    Populao, segundo gnero - Distrito de Loureno Marques - 1912............................ 242

    Profisses - mulheres no-brancas - Loureno Marques, 1928 .................................... 278

    Populao de Loureno Marques - cidade e subrbios, 1912....................................... 295

    Vinho importado para L. Marques, 1897-1914 ............................................................ 340

    Principais Mercadorias Importadas pela Colnia de Moambique, 1929-1931........... 340

    Proporo entre sexos e origem racial - Loureno Marques, 1894-1940 ..................... 404

    Mestiagem segundo origem racial dos pais - Moambique, 1940.............................. 407

    Crescimento dos grupos raciais - Moambique, 1928-1940......................................... 408

    Matriculados no Liceu 5 de Outubro - L. Marques, 1931-1934 ................................... 461

    Alunos liceais segundo raa e sexo - 1935. .................................................................. 462

    Assimilados por faixa etria - Moambique, 1917-1922.............................................. 495

  • memria de Aquino de Bragan a

  • Agradecimentos

    Fazer agradecimentos sempre um risco. No h como agradecer a todos que,

    direta ou indiretamente, colaboraram para que um trabalho de anos pudesse se

    concretizar. Sempre, por um pecado da memria, deixamos, injustamente, algum de

    fora. Por outro lado, ingratido maior seria no nomear as pessoas que estiveram mais

    presentes ao longo do processo. Por isto vou correr o risco e pedir, de antemo, perdo

    pelas omisses, esperando que o inferno no me aguarde.

    Agradeo, antes de mais ningum, a Carlos Guilherme Mota e a Aquino de

    Bragana (in memoriam), cuja generosidade e crena no projeto foraram portas

    resistentes a um recm-graduado, o que me permitiu viver em Moambique. L s

    cheguei devido bondade e apoio do Carlos Guilherme Mota, que mal me conhecia,

    mas que, ao arrepio da burocracia e dos contratempos, batalhou para que eu obtivesse

    uma bolsa da FAPESP. Carlos tambm se mostrou, ao longo destes anos, um orientador

    compreensivo e benevolente. O saudoso Aquino de Bragana foi quem me abriu as

    portas do Centro de Estudos Africanos da Universidade Eduardo Mondlane, e, de

    Diretor, passou a interlocutor, a conselheiro e a amigo.

    No Centro de Estudos Africanos, tenho que agradecer ainda aos colegas da

    Oficina de Histria: Yussuf Adam, Annamaria Gentilli, Jacques Depelchin, Isabel

    Casimiro, Paulo Soares, Salomo Zandamela, Sipho Dlamini e Alpheus Manghezi, cuja

    boa vontade permitiu-lhes desviar-se dos seus prprios afazeres para dedicarem sua

    ateno s minhas interrogaes ou para que eu pudesse ter acesso aos textos em Ronga

    e Zulu. Em Moambique tenho que agradecer de modo especial equipe do Arquivo

    Histrico de Moambique, particularmente sua Diretora Maria Ins, ao Lemos e ao

    Sopa, que suplantando as limitaes materiais e os problemas conjunturais por que tem

    passado Moambique, construram um magnfico e respeitvel centro de documentao

    de fazer inveja a gente muito mais aquinhoada de dinheiro e de recursos humanos. Eles

    no s puseram os meios materiais de que dispunham minha disposio, como

    contriburam, fazendo sugestes e indicando pistas e materiais. Agradeo ainda a dois

    moambicanos, Brazo Mazula e a Miguel Buendia, com os quais compartilhei

    ansiedades e idias, tanto sobre a histria passada, quanto sobre a realidade presente

    moambicana, quando pudemos conviver alguns anos em So Paulo.

    Em Portugal, agradeo especialmente a Alfredo Margarido, um dos ltimos

  • grandes humanistas portugueses, que esconde por trs de sua aparente dureza, uma

    imensa e bondosa alma e de quem, atravs de embates, passei de orientando a amigo;

    querida Isabel Castro Henriques, uma interlocutora atenta e minuciosa, e a Almeida

    Serra sempre pronto a me ajudar. Eles repartiram prodigamente seus conhecimentos,

    abrindo seus coraes e casas, com quem partilhei saborosos momentos de letras, copos

    e garfos.

    No Brasil, foi importante a figura de Fernando Augusto de Albuquerque

    Mouro, que, como consultor secreto da FAPESP, deu valiosas sugestes de leitura,

    quer na fase inicial da pesquisa, quer mais tarde, e que liberalmente emprestou alguns

    dos milhares de livros que possui. Agradeo a Maria Odete Ferreira, incansvel

    secretria do CEA/USP cuja solicitude e eficincia facilitaram meu trabalho; a Fernando

    Novais e a Kabenguele Munanga, por terem acreditado no trabalho e aprovado minha

    passagem para o doutorado direto, bem como pelas sugestes bibliogrficas e

    orientaes quando do exame de qualificao.

    Agradeo ainda aos amigos Leny Caselli Anzai, Oswaldo Machado, Regina

    Beatriz Guimares Neto, Joo Jos Reis, Selma Pantoja e Manoel de Souza e Silva que,

    em momentos diferentes, tiveram a pacincia de ler trechos avulsos deste trabalho e

    aportaram significativas crticas e sugestes, e amiga Matilde Araki Crudo, que alm

    do mais, deixou de lado a sua prpria tese para me socorrer tambm nos meandros e

    armadilhas burocrticas, no momento em que eu estava na reta final deste trabalho.

    Agradeo a Jos Capela pela cortesia em ceder suas cpias de microfilmes,

    fundamentais para a existncia deste trabalho, e a Colin Darch, que, apesar de estarmos

    em continentes diferentes, esteve sempre pronto a me socorrer. Deixo aqui um abrao

    virtual aos interlocutores tambm virtuais que, solcitos, atendiam s minhas

    interrogaes com a presteza que s a infovia permite.

    Agradeo FAPESP, CAPES, ao CNPq e Fundao Calouste Gulbenkian

    que, em momentos diferentes, propiciaram recursos para a realizao deste trabalho.

    E, por fim, tenho que agradecer especialmente minha mulher Catarina e

    minha filha Carolina. A ambas deixei de dar a ateno que mereciam ter tido nestes

    ltimos anos. Catarina, sobretudo, muitas vezes, privou-se, em solidariedade, de

    usufruir de prazeres e lazeres e, pior, teve que suportar meus momentos de mau humor,

    minhas irritaes e at minhas alegrias que, pareciam-lhe, por vezes, descabidas e, alm

    de tudo, incumbiu-se da maante tarefa da leitura final e reviso do texto. Se persistirem

  • erros, trata-se to somente de irresponsabilidade minha, que, socapa e sua revelia,

    voltava, mesmo ltima hora, a reescrever trechos j revisados.

  • PARTE I

    PARADIGMAS DA DOMINAO

  • 13

    1. DO ESCRAVO AO CHIBALO

    1.1 DA TROCA CONQUISTA MILITAR

    O Ocidente no lhes dar, como espcies por elas assimilveis, mais do que panos para se vestirem,

    aguardente para se embriagarem, plvora para se exterminarem.

    Oliveira Martins

    A presena portuguesa na costa oriental da frica, na regio que viria a constitu-

    ir Moambique, relacionou-se expanso para o Oriente em busca de especiarias, no

    sculo XVI, e assentou-se no sistema de feitorias e portos para abastecimento desta nova

    rota. A regio, notadamente acima do Zambeze, mantinha desde h sculos relaes

    comerciais e culturais com o ndico sendo comum a presena de populaes arabizadas

    pelo contato com comerciantes levantinos. Os portugueses integraram-se como um dos

    elementos neste espao, no sem oposio do capital mercantil representado pelos co-

    merciantes rabes e swahlis anteriormente instalados e que contavam com a retaguarda

    dos capitais mais slidos de origem indiana sediados em Zanzibar6. Os portugueses no

    exerciam qualquer domnio real para alm dos arredores das precrias feitorias semi-

    fortificadas construdas, algumas fruto de presso militar, mas em geral sob autorizao

    6 BOXER, Charles. Os Portugueses na Costa Suili, 1593-1729. In: BOXER, Charles e AZEVEDO,

    Carlos de. A Fortaleza de Jesus e os Portugueses em Mombaa. Lisboa, Centro de Estudos Histricos Ultramarinos, 1960, pp.13:77; HAFKIN, Nancy Jane. Trade, Society and Politics in Northern Mozam-bique, c. 1753-1913. Boston University, (Ph. D. thesis) University microfilms, 1973, particularmente pp. xi:xiii; 135:9, 168:189; CHITTICK, H. Nevill e ROTBERG, Robert I. (eds). East Africa and the Orient: Cultural Syntheses in PreColonial Times. New York, Holmes & Meier, 1975; LOBATO, Ale-xandre. Sobre cultura moambicana. Lisboa, ed. do Autor, 1952, principalmente pp. 28:29 e SWAI, Bonaventure. Precolonial states and European merchant capital in Eastern Africa. In: SALIM, Ah-med Idha (Ed.). State Formation in Eastern Africa. Nairobi, Heinemann, 1984, pp. 15:35; SHERIFF, Abdul. Slaves, Spices and Yvory in Zamzibar: integration of an East African Commercial Empire into the World Economy, 1770-1873. London, James Curvey, 1987; KAGABO, Joseph H. Les rseaux marchands arabes et swahili en Afrique orientale. In: LOMBARD, Denys e AUBIN, Jean. Marchands et Hommes daffaires asiatiques dans lOcan Indien et Mer de Chine, 13-20mes sicles. Paris, EHESS, 1988, pp. 237:252; MIDDLETON, John. The World of the Swahli. An African mercantile civilization. London, Yale Univ. Press, 1992; BENTO, Carlos Lopes. As Ilhas Querimba ou de Cabo Delgado: situao colonial, resistncia, mudana (1742-1822). Tese de doutorado apresentada ao Ins-tituto Superior de Cincias Sociais e Polticas da Universidade Tcnica de Lisboa, 1993.

  • 1. Do escravo ao Chibalo

    14

    ___ frutos de muita diplomacia, longas negociaes e saguates (presentes a ttulo de

    direito de passagem) ___ dos potentados locais com os quais procuravam manter as

    mais cordiais relaes, essenciais para que as mercadorias aflussem para os seus portos

    e no para os de seus concorrentes7.

    A intensificao do trfico de escravos rumo s Amricas e particularmente para

    o Brasil, a partir das ltimas dcadas do sculo XVIII8, deu significativo impulso a esta

    rede comercial, no alterando no entanto, sua caracterstica bsica: os portugueses eram

    intermedirios, como outros, integrados numa extensa rede comercial que ia dos sertes

    s feitorias do litoral e da pelos mares afora. Em troca de aguardente do Brasil, panos

    da ndia, ferro, vidrilhos, espelhos, missangas9, plvora e armas, os europeus e rabes

    recebiam escravos, marfim, mbar, urzela10, tabaco, pontas de rinoceronte, dentes de

    7 Entre outros ver: CADAMOSTO, Lus de. Viagens. Lisboa, Portuglia, s/d. pp. 50:55; 72:3; 112:9 e

    136:7. (A 1a edio de 1507, publicada em Vicenza, sob o ttulo: Aloysio de Cadamosto libro della prima navigatione per Oceano alla terra dei Negri et della bassa Ethiopia per commandamento del in-fante D. Henrico di Portogallo. Narra as viagens do autor realizadas entre 1455/63); GASPAR COR-REA. Lendas da ndia. Coimbra, Imprensa da Universidade, 1922-1931, 3 tomos; GOES Damian de. Chronica do felicissimo rey D. Emanuel. Lisboa, 1749. pp. 170:3 e 246:9. (a 1a edio de 1566/7) e LOBATO, Alexandre. Para a Histria da penetrao portuguesa na frica Central. In: Colonizao Senhorial da Zambzia e outros estudos. Lisboa, Junta de Investigaes do Ultramar, 1962, p. 78 e do mesmo Alexandre Lobato. Aspectos de Moambique no antigo regime colonial. Lisboa, Livraria Por-tugal, 1953, p.17.

    8 CAPELA, Jos. O Escravismo Colonial em Moambique. Porto, Afrontamento, 1993, p. 193. As 239 aportagens ocorridas entre 1811 e 1830, no Rio de Janeiro, de navios negreiros oriundos da ento cha-mada frica Oriental Portuguesa e particularmente da Ilha de Moambique e de Quelimane, com 93% do total, representaram um crescimento de 1493% em relao s 15 aportagens ocorridas no perodo de 1795 a 1811. Cf. FLORENTINO, Manolo Garcia. Em costas negras: uma histria do trfico atlntico de escravos entre a frica e o Rio de Janeiro (sculos XVIII e XIX). Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1995, p. 87.

    9 Adoto esta grafia e no mianga tal como grafada por Aurlio Buarque de Holanda Ferreira em seu Novo Dicionrio da Lngua Portuguesa, 1a ed., Rio de Janeiro, na medida em que me parece mais pr-xima de sua raiz etimolgica conforme apontam Jos Pedro Machado em seu Dicionrio Etimolgico da Lngua Portuguesa. 3a ed., Lisboa, Livros Horizonte, 1977 e ainda Antonio Jos de Carvalho e Joo de Deus em seu Diccionrio Prosdico de Portugal e Brazil. 4a ed. rev. e aug., Porto/ Rio de Janeiro, Lopes & C.a e Frederico Augusto Schmidt, 1890.

    10 Espcie de lquen tintorial (Roccela tinctoria) que nasce e cresce espontaneamente nos rochedos vira-dos ao mar. Submetida a devido preparo, produz um corante azul-violceo, que foi largamente utiliza-do na tintura de papel e principalmente de txteis ___ sedas, musselinas e outros tecidos finos. Embora fosse utilizada eventualmente nas trocas, o primeiro carregamento de urzela moambicana seguiu para Lisboa somente em 1841 e foi tornar-se comercialmente rentvel somente aps 1860 pois, at ento a urzela obtida em Cabo Verde e outras ilhas atlnticas era mais barata. Sua extrao durou at o comeo da dcada de 20 tendo sido substituda pelos corantes qumicos. Inglaterra, Holanda e Frana foram, no passado, seus mais destacados compradores. Cf. LIESEGANG, Gerhard. A first look at the import and export trade of Mozambique, 1800-1914. In: LIESEGANG, G., PASCH, H. & JONES, A. (eds.). Figuring African Trade. Berlin, Dietrich Reimer, 1986, p. 467 e CARREIRA, Antnio. Estudos de e-conomia caboverdiana. Vila da Maia, Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 1982. pp. 9:236.

  • 1. Do escravo ao Chibalo

    15

    hipoptamo, mel, cera, cobre e ouro num prolfico comrcio proveitoso para ambas as

    partes11.

    Entre 1770 e 1850, o trfico de escravos constituiu-se na principal atividade eco-

    nmica da colnia. Em 1829, 75% das rendas alfandegrias eram dependentes do trfico

    de escravos12 e isto permitiu e exigiu a expanso de uma rede administrativa colonial

    portuguesa que, ainda que no conseguisse faz-lo como o desejado, buscava o controle

    dos portos como condio bsica para a metrpole exercer o seu poder arrecadador alm

    de propiciar negociatas tanto a particulares quanto a agentes do Estado.

    As constantes presses do capital ingls que culminaram com o Abolition Act de

    25 de maro de 1807 e as operaes da Royal Navy, a partir da promulgao, em 1810,

    do Tratado de Aliana e Amizade firmado entre a Inglaterra e coroa portuguesa no Rio

    de Janeiro, particularmente ativa na costa oeste africana especialmente ao Norte de Ben-

    guela, nada mais fizeram que intensificar o trfico luso-brasileiro no apenas nas regies

    acima do Zambeze mas em toda a costa moambicana, embora, como afirma Patrick

    Harries, h toda uma tradio historiogrfica, que rene tanto modernos historiadores e

    antroplogos anticolonialistas quanto os historiadores e administradores coloniais por-

    tugueses, que parece querer ignorar a importncia da escravatura entre as sociedades

    africanas ao Sul do Save, existente antes e sob o domnio Nguni e o envolvimento des-

    tas com o trfico para o Atlntico e o ndico13. Como Portugal reivindicava, mas no

    exercia de facto suserania sobre o Estado de Gaza, procurava, de sua parte, esconder o

    trfico existente dos olhos da cobia imperialista britnica, alm disso, a natureza clan-

    destina de tal trfico, oriundo de Loureno Marques e Inhambane, evitou deixar regis-

    tros precisos de tais operaes, em nada numericamente desprezveis.

    Nesta conjuntura internacional em que a sorte da monarquia portuguesa estava

    extremamente dependente de suas alianas com a Inglaterra, e apesar de legislao ante-

    11 RITA-FERREIRA, Antnio. A Sobrevivncia do mais fraco: Moambique no 3o quartel do Sculo

    XIX. In: I Reunio Internacional de Histria de frica - Relao Europa-frica no 3o quartel do Sc. XIX (Actas). Centro de Estudos de Histria e Cartografia Antiga, IICT, 1989, pp. 321:4; MONTEZ, Caetano. Descobrimento e Fundao de Loureno Marques (1500-1800). Loureno Marques, 1948 p. 65 e VASCONCELLOS E CIRNE, Manuel Joaquim Mendes de. Memria sobre a Provncia de Mo-ambique. 2a ed., Maputo, Arquivo Histrico de Moambique, 1990, prefcio e notas de Jos Capela, p. 25. A 1a edio de 1890.

    12 LIESEGANG, Gerhard. Op. cit. p. 460:7. 13 HARRIES, Patrick. Slavery, social incorporation and surplus extraction; the nature of free and unfree

  • 1. Do escravo ao Chibalo

    16

    rior, o trfico foi oficialmente abolido somente em 10 de dezembro de 1836, atravs de

    decreto do ministro S da Bandeira, de resto, um ato de pouca significncia concreta,

    mas que teve ampla resistncia porque a opinio pblica portuguesa no s no estava

    ao lado do abolicionismo como considerou tal deciso um ato de subservincia a uma

    potncia estrangeira14. Embora tardio e ineficiente, o decreto e as posteriores justificati-

    vas de S da Bandeira acabaram por constituir-se no gesto fundador do mito da prece-

    dncia do abolicionismo portugus. Note-se que o decreto proibia qualquer forma de

    exportao de escravos, fosse por mar ou por terra, mas a importao somente era inter-

    dita por mar, o que significa que a inteno era impedir a continuidade do trfico para o

    Brasil, j independente, e alijar os traficantes brasileiros, abrindo espao para os comer-

    ciantes portugueses e para uma mais intensa utilizao do trabalho escravo nas colnias

    africanas portuguesas15.

    Embora Portugal reivindicasse a soberania sobre todo o territrio, esta de fato,

    em meados do sc. XIX, estava limitada a pontos costeiros: ao Ibo, Ilha de Moambi-

    que e sua estreita faixa fronteiria, s Ilhas Querimbas, a Quelimane, Inhambane, Bei-

    ra, Xai-Xai e Loureno Marques, sendo que esta fraca presena portuguesa no territrio,

    mesmo quando queria, pouco podia fazer em relao continuidade do trfico. No inte-

    rior, no se tinha controle sobre as atividades dos potentados e chefaturas africanas e,

    nas reas em que este controle teoricamente se exercia, a represso ao trfico no era

    levada a cabo, dado o envolvimento das instncias administrativas no lucrativo negcio:

    do Governador Geral aos funcionrios administrativos e ao clero, todos tinham alguma

    relao com o comrcio de negros e, no raro, estavam envolvidos ou se deixavam en-

    volver diretamente pelos interesses dos partidos de negreiros, verdadeiras redes de co-

    merciantes que integravam europeus, seus descendentes africanizados e os potentados

    africanos16. Tal rede possua vinculaes no Brasil, Caribe e Angola, alm de fortes lob-

    labour in South-East Africa. In: Journal of African History. 22, 1981, pp. 309:330.

    14 Para uma anlise das relaes entre diplomacia e trfico de escravos ver: MARQUES, Joo Pedro [Simes]. Manuteno do trfico de escravos num contexto abolicionista. A diplomacia portuguesa (1807-1819). In: Revista Internacional de Estudos Africanos, 10-11, jan-dez 1989, pp.65:99.

    15 MARQUES, Joo Pedro. O mito do abolicionismo portugus. In: Actas do Colquio Construo e Ensino da Histria de frica. Lisboa, Grupo de Trabalho do Ministrio da Educao para a Comemo-rao dos descobrimentos Portugueses, 1995, pp. 245:257 e ALEXANDRE, Valentim. Origens do Co-lonialismo Portugus Moderno. Lisboa, S da Costa, 1979, p.16

    16 OLIVEIRA MARTINS, J.[Joaquim] P.[Pedro] de. O Brazil e as Colnias Portuguesas. 5a ed. aumen-

  • 1. Do escravo ao Chibalo

    17

    bies na metrpole, e seus interesses e poderes suplantavam os dos governadores17. Mui-

    tos destes governadores procuravam minimizar a existncia de trfico em territrios sob

    sua jurisdio simplesmente para desviar a ateno oficial sobre os negcios que ali se

    realizavam. O Governador de Inhambane, Domingos Correa Arouca, por exemplo, in-

    forma em 1828 que, naquela regio, pouca influncia teve a legislao anti-escravagista

    editada em 1826, pois o principal produto comercial era o marfim, embora, neste mes-

    mo ano de 1828, cerca de 35.600 escravos tenham sido exportados a partir dos diversos

    portos moambicanos. Ainda em 1844 um traficante de escravos brasileiro carregou

    dois navios com 1.000 escravos de Inhambane e 400 de Loureno Marques18.

    O prprio S da Bandeira reconhecia a impotncia administrativa diante dos in-

    teresses escravistas ao afirmar que, em Moambique, dos dois ntegros governadores

    geraes incumbidos de fazer cessar o trfico; um, o marquez de Aracaty, succumbio fal-

    lecendo; e o outro, o general Marinho, teve de retirar-se da provncia por motivo de

    uma insurreio, suscitada contra elle pelos negociantes negreiros19. Os interesses

    escravistas coloniais eram to poderosos que, tanto em Angola como em Moambique,

    articularam-se tentativas de rompimento com Portugal e a anexao daquelas colnias

    ao Imprio brasileiro onde prosperava o negcio de escravos. De resto a sucessiva legis-

    lao versando sobre o mesmo assunto mostra, de per si, a sua ineficcia quando se tra-

    tava de passar do papel ___ para ingls ver ___ prtica20.

    tada, Lisboa, Parceria Antonio Maria Pereira Livraria editora, 1920. pp. 224:231. A primeira edio de 1880; ZAMPARONI, Valdemir D. A imprensa negra em Moambique: a trajetria de O Africano - 1908-1920. In: Africa: Revista do Centro de Estudos Africanos (USP), So Paulo, 11 (1), 1988, p. 77.

    17 S DA BANDEIRA, Marquez de. O Trabalho Rural Africano e a Administrao Colonial. Lisboa, Imprensa Nacional, 1873, pp. 17, 27:29; FARINHA, Pe. Antnio Loureno. A expanso da F na -frica e no Brasil - Subsdios para a Histria Colonial. Lisboa, Agncia Geral das Colnias, 1942, vol. I, pp. 335, 337, 340; CAPELA, Jos. Mentalidade escravista em Moambique, 1837-1900. In: Cader-nos de Histria. (Boletim do Depto de Histria da Universidade Eduardo Mondlane), Maputo, no 2, Agosto 1985, p. 26 e ainda do mesmo autor O Escravismo Colonial em Moambique. Porto, Afronta-mento, 1993.

    18 Ver SANTANA, Francisco. Documentao Avulsa Moambicana do Arquivo Histrico Ultramarino. Lisboa, Centro de Estudos Histricos Ultramarinos, 1964, I, p. 660 e segtes; LIESEGANG, Gerhard. Op. cit. Cf. tabela XV.2, p. 463 e HARRIES, Patrick. Op. cit. p. 316.

    19 S DA BANDEIRA, Marquez de. O Trabalho Rural Africano e a Administrao Colonial. Lisboa, Imprensa Nacional, 1873, p. 17.

    20 ALEXANDRE, Valentim. Op. cit., pp. 32:3; S DA BANDEIRA, Marquez de. O Trabalho Rural Africano e a Administrao Colonial. Lisboa, Imprensa Nacional, 1873, principalmente pp. 11:103. Para uma leitura circunstanciada dos limites e da ineficcia desta legislao, ver particularmente: TORRES, Adelino. Legislao do Trabalho nas Colnias Africanas no 3o Quartel do Sculo XIX: Ra-

  • 1. Do escravo ao Chibalo

    18

    Somente com a crescente presso diplomtica e a eficcia fiscalizadora por parte

    dos britnicos em guas sul atlnticas, particularmente aps o bill de Palmerston de

    1839 que autorizava a ao unilateral dos britnicos no apresamento de navios portu-

    gueses e brasileiros, que os comerciantes negreiros, brasileiros e portugueses, foram

    paulatinamente se retirando para o Brasil at que, com a proibio do trfico pelas leis

    brasileiras, aps 1853, este praticamente se extinguiu, redirecionando-se, seno em vo-

    lume, ao menos em lucratividade para os EUA e Cuba21. Entretanto, o grosso desse tr-

    fico passou, ento, a concentrar-se no centro-norte de Moambique: rabes omanitas,

    mouros, swahlis, antalaotra e ajojo22, desde h muito envolvidos no comrcio de ho-

    zes do Fracasso da Poltica Liberal Portuguesa. In: I Reunio Internacional de Histria de frica - Relao Europa-frica no 3o quartel do Sc. XIX (Actas). Centro de Estudos de Histria e Cartografia Antiga, IICT, 1989, pp. 65:80; ver ainda SANTOS, Maria Emlia Madeira. Abolio do trfico de es-cravos e reconverso da economia de Angola: um confronto participado por brasileiros. In: Studia, Lisboa, no 52, 1994, pp. 221:244. interessante consultar, ainda que contenha imprecises quanto s datas, a relao dessa legislao que nos oferece OLIVEIRA MARTINS, s pginas 187:8 do seu O Brazil e as Colnias Portuguesas: 1771 - Liberdade dos escravos ao desembarque no continente. 1773 - Livres os filhos de mulher escrava, no reino. Abolio gradual da escravido no reino. 1810 - Nos tratados com a Inglaterra assenta-se em abolir gradualmente a escravido colonial. Limi-ta-se o trfico. 1815 - Ratificao das convenes de 1810. 1817 - Estabelecimento dos Cruzeiros e tribunais mixtos, na conveno de Londres. 1818 - Promulgao do cdigo penal contra negreiros. 1835 - O marques de S da Bandeira, chefe do movimento anti-slavista. Proibio do trfico em todas as colnias portuguesas. 1836 - Decreta-se a abolio da escravido colonial, mas no se realiza. Insurreio dos slavistas em Angola e Moambique. 1838 - Franquia dos portos coloniais ao comrcio de todas as naes. 1842 - Tratado anglo-portugus, confirmando a abolio da escravido. 1854 - Alforria dos escravos da cora. Arrolamento dos escravos particulares: livres os no recense-ados. Juntas de proteo; faculdade da auto-alforria. Resgate dos recm-nascidos. 1855 - Ocupao do Ambriz, para a represso do trfico. 1856 - Abolio da escravido no Ambriz e em Cabo-Verde. Livres os filhos de mulher escrava. Abo-lio do trabalho forado dos carregadores. 1858 - Decreto fixando para 1878 a abolio definitiva da escravido colonial. 1868 - Decreto de abolio imediata, assinado mas no promulgado. 1869 - Abolio da escravido (25 de fevereiro). Indenizao dada pelo trabalho gratuito e forado dos libertos, at 1878. 1876 - Extino do trabalho forado dos libertos.

    21 Para as peripcias e estratgias de burla quer legislao quer fiscalizao inglesa veja-se, por exem-plo: ALEXANDRE, Valentim. Op. cit., pp. 34:70.

    22 Ajojo palavra de origem Swahli, plural de Mjojo, denominao recebida pelos comerciantes islami-zados, de cultura Swahli, das Comores. Antalaotra designa os comerciantes de cultura swahli, estabe-lecidos no noroeste de Madagascar. Ver: RITA-FERREIRA, Antnio. A Sobrevivncia do mais fraco: Moambique no 3o quartel do Sculo XIX. In: I Reunio Internacional de Histria de frica - Rela-o Europa-frica no 3o quartel do Sc. XIX (Actas). Centro de Estudos de Histria e Cartografia An-tiga, IICT, 1989, p. 301 e ainda CAPELA, Jos. Arbios, Mujojos & Ca. In: O Escravismo Colonial

  • 1. Do escravo ao Chibalo

    19

    mens, assumiram rapidamente o espao deixado e ampliaram suas remessas rumo a Ma-

    dagascar e s demais colnias francesas do ndico, onde o negcio florescia num contex-

    to em que, embora fosse crescente a presso diplomtica britnica, a presena e ao dos

    barcos ingleses era menos ostensiva. Esta frutfera rota de escravaria durou, em menor

    escala, at os primeiros anos do sculo XX23.

    O Decreto de 14 de dezembro de 1854 tornou obrigatrio o registro dos escravos

    em todo o Ultramar, considerou libertos os no registrados e os pertencentes ao Estado,

    e estabeleceu que todo escravo importado por terra seria considerado liberto, com a

    obrigao, porm, de continuar a servir o senhor por tempo de dez anos, nos termos

    do Regulamento sobre os libertos posto em vigor pelo Decreto de 25 de outubro de

    1853. Inicialmente criado para regulamentar a ida de trabalhadores de Benguela para a

    Ilha do Prncipe, este Regulamento abolia a escravatura para estes trabalhadores e criava

    a figura jurdica do liberto, segundo a qual os senhores perdiam a propriedade, porm

    mantinham a posse e o usufruto do trabalho dos libertos que estavam obrigados a conti-

    nuar a trabalhar para seus antigos proprietrios por mais sete anos e, se fossem menores

    de treze, at os vinte. Findo seis anos, o liberto que houvesse se comportado sempre

    bem, de maneira que suas aces, a todos os respeitos, [devessem] ser consideradas

    exemplares, e do maior proveito para seu libertador, estaria livre de suas obrigaes,

    cabendo Junta de Superintendncia dos Libertos decidir se o liberto estaria no caso

    de merecer similhante benefcio24. O Decreto de 1854 avanava um pouco mais e pas-

    sava a possibilitar que todo escravo que por si e por seu prprio peclio, ou por esmo-

    em Moambique. Porto, Afrontamento, 1993, pp. 117:125.

    23 Particularmente sobre o trfico no ndico, ver entre outros: CAMPBELL, Gwyn. Madagascar and Mozambique in Slave Trade of the Western Indian Ocean, 1800-1861. In: Slavery & Abolition, 9, Dec 1988, 166:193; CAPELA, J. Op. cit., 1993, pp. 75:132; GERBEAU, Hubert. O Trfico esclavagista no Oceano ndico: problemas postos ao historiador, pesquisas a efetuar. In: O Trfico de Escravos Negros, sculos XV-XIX. Lisboa, Ed. 70, 1981, pp. 181:238; GREGORY, R. G. India and East Africa. A history of race relations within the British Empires - 1880-1939. Oxford, Claredon, 1971, pp. 20:1, e sobre sua permanncia tardia ver, CAPELA, Jos & MEDEIROS, Eduardo. O Trfico de Escravos de Moambique para as Ilhas do ndico, 1720-1902. Maputo, Universidade Eduardo C. Mondlane, 1987, estudo este atualizado e republicado em CAPELA, Jos. O Escravismo Colonial em Moambique. Por-to, Afrontamento, 1993, pp. 75:132. Ver ainda MEDEIROS, Eduardo. As Etapas da Escravatura no Norte de Moambique. Maputo, Arquivo Histrico de Moambique, 1988, que rene a principal bibli-ografia sobre o assunto, e GERBEAU, Hubert. Op. cit.

    24 Ver particularmente os Artigos 1o, 10o e 11o do Regulamentos sobre libertos, que, pelo artigo 8o do Decreto desta data, podem ser transportados da Provncia de Angola para a Ilha do Prncipe, e a que se refere o mesmo artigo. In: VASCONCELLOS, Jos Maximo de Castro Neto Leite e. Colleco Of-ficial da Legislao Portugueza - anno de 1853. Lisboa, Imprensa Nacional, 1854, pp. 678:684.

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    20

    la e favor de outrem, obtivesse os meios, teria o direito de reivindicar a sua natural

    liberdade, resguardando porm ao senhor o justo preo do seu servio, ou seja, des-

    de que seu senhor fosse adequadamente indenizado. O procedimento judicial previsto

    para se determinar este justo preo, embora aparentemente sumrio, certamente no era

    nada encorajador para escravos analfabetos e que sempre viram as autoridades, agora

    investidas como seus protetores, praticarem os mesmos atos que os demais senhores25.

    Alm disso, nos meios coloniais, a influncia e os poderes dos senhores de escravos

    eram tais que raramente os encarregados das Juntas Protectoras dos Escravos e Libertos

    teriam meios ou interesse em contrari-los. Comungando dos mesmos valores culturais,

    era-lhes mais fcil identificarem-se com os interesses dos poderosos senhores escravo-

    cratas e traficantes do que advogarem a causa dos escravos.

    Ao lado do trfico para o ndico permaneciam prticas de carter escravista,

    mesmo nas reas onde era mais efetiva a presena da administrao portuguesa. Diocle-

    ciano Fernandes das Neves ___ um caador e comerciante de marfim, cujo sucesso de-

    pendia das boas relaes que mantinha com os potentados locais, da eficcia dos presen-

    tes que dava e da lealdade dos caadores negros que o acompanhavam, indigna-se quan-

    do fica sabendo, por um de seus caadores, que um soldado branco que o acompanhava

    numa viagem de retorno a Loureno Marques, em 1861, tinha agarrado duas crianas

    que naturalmente, havia calculado vender por cinco ou seis libras cada uma.26 Nos

    anos de 1840, devido atividade britnica que tornava o trfico arriscado ao Sul do Sa-

    ve, Manikussi, ento frente do Estado Nguni de Gaza, proibiu o comrcio martimo de

    escravos; entretanto, era comum, ainda que em escala reduzida, a venda de pessoas para

    trabalhos diversos ___ agricultores, carregadores, domsticos ___ tanto para os colonos

    europeus instalados em Loureno Marques, como para atender demanda dos boers

    instalados no Transvaal27. Na regio do Zambezi, contudo, mesmo nas ltimas dcadas

    25 Ver nomeadamente os artigos 1o, 2o, 4o, 6o, 19o ao 26o do Decreto de 14 de dezembro de 1884. In:

    VASCONCELLOS, Jos Maximo de Castro Neto Leite e. Op. cit., pp. 836:42. 26 NEVES, Diocleciano Fernandes das. Itinerrio de uma viagem caa dos elephantes. Lisboa, Typo-

    graphia Universal, 1878, p. 202. Passado um sculo, Ildio Rocha agregou obra de Diocleciano F. das Neves um posfcio dedicado s figuras deste autor e de Joo Albasini, a deste ltimo calcada em bio-grafia anterior, republicando-se a obra sob o ttulo Das Terras do Imprio Vtua s Praas da Rep-blica do Transvaal. Lisboa, Publ. Dom Quixote, 1987. Ver FERREIRA MARTINS, Gen. Joo Albasi-ni e a Colnia de S. Lus. Lisboa, AGU, 1957.

    27 Para uma sntese histrica do domnio Ngni e suas relaes com os demais povos do sul de Moambi-

  • 1. Do escravo ao Chibalo

    21

    do sculo XIX, Ngungunhane, neto de Manikussi, vendia escravos para traficantes ra-

    bes da costa e a escravido domstica, com particular destaque para a escravido femi-

    nina, permaneceu sendo prtica corrente no Estado de Gaza at sua derrota frente aos

    portugueses em 189528.

    Ainda que a abolio do trfico no tenha significado a imediata supresso da

    escravatura e, mesmo quando esta foi legalmente suprimida, persistissem prticas de

    tipo escravista mais ou menos escamoteadas sob frmulas jurdicas diversas, a abolio

    tanto do trfico quanto da escravatura apontavam para uma necessria reorientao da

    prtica colonial e prenunciavam o desencadeamento do processo de paulatina substitui-

    o do carter mercantil pela atividade produtiva intrnseca ao capitalismo da segunda

    metade do sculo XIX, ainda que tal reorientao, de facto, pouco tenha mudado as

    condies impostas aos trabalhadores africanos29.

    O que se v em Moambique, a partir destas duas ltimas dcadas do sculo

    XIX, a constituio de um novo tipo de colnia baseada sobretudo na prestao de

    servios ___ portos, ferrovias ___ e no fornecimento de fora de trabalho migrante para as

    colnias vizinhas do hinterland e para as plantations nas reas controladas pelas com-

    panhias concessionrias capitalistas. Adelino Torres interroga-se sobre a possibilidade

    de se falar em capitalismo nas colnias portuguesas africanas, na medida em que, se-

    gundo ele, em nenhuma delas havia a juno do trabalho assalariado livre, a existncia

    de uma mercado interno integrado e a circulao de moeda fiduciria. Assim, afirma que

    o modelo que influenciou, decisivamente, a histria colonial portuguesa, pelo menos at

    a segunda guerra mundial, seno at 1961, era resultante da sobrevivncia e dominao

    do mercantilismo e no do projeto do capitalismo liberal30. Acrescenta ainda que os

    monoplios coloniais, o esprito guerreiro da expanso e o trabalho compulsrio so

    que ver COVANE, Lus Antnio. Migrant labour and agriculture in southern Mozambique with spe-cial reference to Inhamissa (lower Limpopo), 1920 - 1992. tese de doutoramento apresentada ao Insti-tute of Commonwealth Studies, University of London, 1996, cap. 02.

    28 XAVIER, Alfredo Augusto Caldas. Reconhecimento do Limpopo: os territrios ao sul do Save e os Vtuas. Lisboa, Imprensa Nacional, 1894, p. 148; HARRIES, Patrick. Slavery, social incorporation... Op. cit. p. 316:326.

    29 Em 1861 Inhambane contava com 3.116 escravos e Loureno Marques com 276. Ver respectivamente Boletim Oficial no 23 de 07/06/1862 e no 44 de 05/12/1862 e ainda ALEXANDRE, Valentim. Op. cit., p.16. Adelino Torres de opinio que o trabalho escravo ou semi-escravo o que caracteriza as col-nias portuguesas no sculo XIX e princpios do XX. Op. cit. p. 65.

    30 TORRES, Adelino. O Imprio Portugus entre o real e o imaginrio. Lisboa, Escher, 1991, p. 38, no

  • 1. Do escravo ao Chibalo

    22

    demonstrativos da hegemonia do mercantilismo sobre as idias liberais, isto , capitalis-

    tas, constituindo o que denomina de proto-capitalismo31. Ora, a falta de um mercado

    interno, a presena do esprito guerreiro e a imposio de mtodos coercitivos para a

    extrao de fora de trabalho barata no so prticas de uso exclusivo portugus; veja-se

    as colnias francesas, o Congo-Belga e mesmo as colnias britnicas, onde tambm era

    usual a prtica do chibalo32. Seriam ento todos os empreendimento colonialistas na

    frica, e no s o portugus, uma sobrevivncia do mercantilismo? Julgo que o que se

    passa que justamente devido ao momento de transio em que vivia o capitalismo, a

    este j no bastavam as trocas primrias; era preciso assegurar mercados, fontes produ-

    toras de matrias primas produo industrial ___ madeiras, borracha, urzela, oleagino-

    sas, minrios ___ e garantir fora de trabalho barata, semi-proletarizada, enfim, assegu-

    rar faco nacional do capital um lugar seguro para onde exportar excedentes financei-

    ros, possibilitando-lhe a maior rentabilidade possvel, embora, no caso portugus, nem

    sempre isto realmente tenha ocorrido, j que a maior rentabilidade obtida com a explo-

    rao colonial nas colnias portuguesas era apropriada por empresas estrangeiras33: as

    minas do Rand absorviam grande parte da fora de trabalho moambicana e no que tan-

    ge s oleaginosas ___ gergelim, cocos, amendoim, copra, mafurra, entre outros ___ repre-

    sentantes comerciais de casas marselhesas instaladas nos portos da Ilha de Moambique,

    Ibo, Sofala, Quelimane, Inhambane e Loureno Marques incentivaram sua produo e

    praticamente monopolizaram o seu comrcio na segunda metade do sculo XIX34. Ape-

    sar disto, esta nova tnica que assumia o capitalismo em sua vertente colonial brilhan-

    temente expressa por um pensador do colonialismo portugus nos seguintes termos:

    O que absolutamente indispensvel para todas as fa-zendas, metropolitanas ou ultramarinas, o capital. mistr

    original o trecho est destacado em negrito.

    31 Idem, Ibidem, pp. 39 e 42. 32 Ver, por exemplo, ONSELEN, Charles van. Chibaro: African Mine Labour In Southern Rhodsia,

    1900-1933. Johannesburg, Ravan Press, 1976. 33 Adelino Torres reconhece que a busca por fora de trabalho barata foi sempre uma necessidade e um

    objectivo da colonizao, em qualquer poca e pas.. In: O Imprio Portugus entre o real e o ima-ginrio. Op. cit., p. 89.

    34 Ver: CHILUNDO, Arlindo. Quando comeou o comrcio das oleaginosas em Moambique? Levan-tamento estatstico da produo e exportao no perodo entre 1850-1875. In: I Reunio Internacio-nal de Histria de frica - Relao Europa-frica no 3o quartel do Sc. XIX (Actas). Centro de Estu-dos de Histria e Cartografia Antiga, I.I.C.T., 1989, pp. 11:21.

  • 1. Do escravo ao Chibalo

    23

    dissecar os pntanos, navegar os rios, abrir as estradas, cons-truir os armazns e obter os braos, ferramenta humana de tra-balho. Outrora a escravido supria isso, e o capital consolida-va-se no preo dos negros. Hoje consolida-se nos adiantamentos e salrios dos imigrantes, negros ou chineses contratados para os territrios despovoados. Nas regies habitadas por povos in-dgenas susceptveis da submisso rudimentar da civilizao, o capital intervm sob uma forma, s aparentemente diversa. A fora e no o contrato sua expresso ativa; e as guarnies com que, na ndia os ingleses, em Java os holandeses, mantm submissos os rgulos indgenas que fazem trabalhar mais ou menos servilmente as populaes, correspondem economica-mente ao preo do escravo, ou ao salrio do colono contratado. Capital, pois, ou sob a forma de valor, ou sob a forma de fora, eis a o indispensvel para a manuteno das fazendas ultramarinas.35

    Com estas palavras de Oliveira Martins, est claro que no em Adam Smith

    que se deve buscar a especificidade do capitalismo colonial e sim em Wakefield, ao

    propugnar pelo intervencionismo estatal como o regulador necessrio e condio sine

    qua non para o estabelecimento de relaes econmicas capitalistas nas colnias36. En-

    tretanto, no toa que Adam Smith est citado na bibliografia de sua obra37. Para A-

    dam Smith somente por meio de um exrcito efetivo e bem organizado era que um pas

    brbaro podia ser civilizado, com rapidez e de modo razovel; ora, justamente isto o

    que Oliveira Martins prega e o que a ao colonial portuguesa persegue, ao efetuar a

    conquista militar e ao estabelecer formas de controle sobre a fora de trabalho38. Se no

    se tinha nas colnias as condies para a acumulao capitalista tal como estas se mani-

    festam na Europa, tratou-se de cri-las e, na impossibilidade da reproduo in totum do

    modelo, buscou-se a criao de mecanismos prprios e adequados conjuntura. Esta

    especificidade da manifestao concreta do capitalismo nas colnias parece escapar a

    35 OLIVEIRA MARTINS, J. P. de. Op. cit., p. 205. 36 Sobre o pensamento de Edward Gibbon Wakefield ver suas obras: England & America: A comparison

    of the social and political state of both nations. New York, Augustus M. Kelley Publ., 1967 e A View of the Art of Colonization. New York, Augustus M. Kelley Publ., 1969. As primeiras edies so respec-tivamente de 1834 e 1849. Em portugus consulte-se SMITH, Roberto. Propriedade de Terra e Tran-sio. So Paulo, Brasiliense, 1990, particularmente as pginas 240:284.

    37 Cita a edio francesa: Recherches sur la nature et causes de la richesse des nations. (trad. Blanqui) Paris, 1842.

    38 SMITH, Adam. A Riqueza das Naes: Investigao sobre sua natureza e suas causas. So Paulo,

  • 1. Do escravo ao Chibalo

    24

    Adelino Torres, que v mercantilismo onde j se desenvolvem formas de transio ao

    moderno capitalismo.

    O esprito que prevaleceu na Conferncia de Berlim de 1885, na qual se estabe-

    leceu o princpio do domnio efetivo como garantia para a posse das colnias, foi

    brilhantemente expresso pela frase de Cecil Rhodes ___ se pudesse anexaria as

    estrelas ___ que sintetizava a sanha expansionista do capitalismo mais dinmico da

    Europa39. Foi justamente este expansionismo desenfreado que fez renascer em Portugal

    o que Valentim Alexandre chamou de o mito da herana sagrada, potencializado

    aps o ultimatum britnico de 1890: este mito ganhava novos coloridos justificando no

    apenas a conservao do territrio at ento ocupado, mas uma expanso mxima pelos

    territrios africanos sobre os quais se julgava ter direitos ancestrais, convertendo-se no

    elemento central do nacionalismo portugus, numa verdadeira misso, razo de ser da

    nao40.

    Anos antes Oliveira Martins, ento considerado um pessimista, mas efetiva-

    mente um homem do seu tempo e realista em questes coloniais, argumentava que dian-

    te dos acanhados recursos e da manifesta incapacidade administrativa portuguesa, me-

    lhor seria por de parte os domnios vastos e as tradies histricas, concentrando num

    lugar [Angola] os recursos e as foras disponveis, se acaso os h. Alienar mais ou me-

    Abril Cultural, 1983, vol. II, p. 162.

    39 A Ata Geral da Conferncia, repudiando o princpio dos chamados direitos histricos como reivindi-cava Portugal, estabeleceu em seu artigo 35o o princpio da ocupao efetiva e a obrigao de assegu-rar nos territrios ocupados nas costas do Continente Africano a existncia duma autoridade suficien-te para fazer respeitar os direitos adquiridos e, em caso de necessidade, a liberdade de comrcio e de trnsito, nas condies em que for estipulada. Apud BRUNSCHWIG, Henri. A Partilha da frica Negra. So Paulo, Perspectiva, 1974, p. 90.

    40 O ultimatum relaciona-se disputa pela rea do hinterland entre Angola e Moambique que Portugal reivindicava para si no famoso mapa cor-de-rosa, pretenso contestada pelos britnicos que ameaa-ram invadir e anexar Moambique caso Portugal no abdicasse de suas pretenses. A bibliografia sobre o tema extensa, mas para uma anlise especfica sobre o mapa cor-de-rosa numa perspectiva portu-guesa ver: NOWELL, Charles E. The Rose-Colored Map - Portugals attempt to build an african em-pire from the Atlantic to the Indian Ocean. Lisboa, Junta de Investigaes Cientficas do Ultramar, 1982. Sobre a reao ao ultimatum na voz e na perspectiva nacionalista de um contemporneo veja-se: OLIVEIRA MARTINS, F. A. O Ultimatum visto por Antnio Enes - com um estudo biogrfico. Lisboa, Pareceria A. M. Pereira, 1946; DALMADA, Jos. Diligncias Diplomticas em torno de Mo-ambique. Coimbra, Coimbra editora, 1970 e ALEXANDRE, Valentim. A frica no Imaginrio Pol-tico Portugus (sculos XIX-XX) In: Actas do Colquio Construo e Ensino da Histria de frica. Lisboa, Grupo de Trabalho do Ministrio da Educao para a Comemorao dos Descobrimentos Por-tugueses, 1995, pp. 231:44.

  • 1. Do escravo ao Chibalo

    25

    nos claramente, alm do Oriente, Moambique, por enfeudaes a companhias41, o

    que de fato acabou por ocorrer: sem capitais suficientemente abundantes que pudessem

    exportar para ampliar seu domnio, at ento, nominal e restrito, e com capitalistas da-

    dos ao lucro especulativo e mesmo usura42, Portugal entregou dois teros do territrio

    de Moambique ___ o centro e o norte ___ s Companhias Concessionrias, que se

    formaram para tal. Tais Companhias, constitudas principalmente por capitais estrangei-

    ros ___ ingleses e franceses ___ tornaram-se verdadeiros Estados, tendo direitos polti-

    co-administrativos, poderes policiais, emitindo selos e moeda prprios43. As datas de

    fundao e os capitais envolvidos nas mesmas mostram que a um s tempo sua criao

    foi uma tentativa da metrpole para enfrentar a concorrncia aberta pelo imperialismo

    britnico, adequando-se s exigncias da Conferncia de Berlim ao abrir a colnia s

    novas exigncias do mundo capitalista, bem como um indicativo da sua internacionali-

    zao. A Cia. de Moambique, fundada em 1888, foi a mais importante e duradoura

    dentre elas, recebeu um estatuto de Cia. Majesttica em maio de 1892 e a partir de 1893

    passou a controlar, at 1942, a totalidade dos distritos de Manica e Sofala numa rea de

    134.822 km2 ao Norte do paralelo 22 at s margens do Zambeze. Esta Companhia e

    outra majesttica, a Cia. do Nyassa, criada em 1891, controlavam cerca de 50% da rea

    de Moambique. Alm destas duas fundaram ainda a Cia da Zambzia, em 1892, a Cia.

    do Boror, em 1898, a Socit du Madal, em 1904, e a Cia. Agrcola do Lugela, em 1908.

    Algumas destas ltimas eram sub-concessionrias das maiores e mais antigas44.

    41 OLIVEIRA MARTINS, J. P. de. Op. cit. p. 233. O prprio Oliveira Martins foi um dos fundadores da

    Cia. de Moambique. Ver MARTINS, Francisco de Assis Oliveira. Oliveira Martins perante o pro-blema colonial e a crise. Estas idias eram partilhadas por muita gente importante inclusive por Ea de Queirs. Ver: ALBUQUERQUE, Ruy. O Pensamento Colonial de Oliveira Martins. Separata dos nos 13 e 14 da Revista do Gabinete de Estudos Ultramarinos. Lisboa, 1957, pp. 13:15 e 31 e ENNES, An-tnio. Moambique - Relatrio apresentado ao Governo. 4a ed., fac-similada pela de 1946, Lisboa, Agncia Geral do Ultramar/Imprensa Nacional, 1971, p. 254. A primeira edio de 1893. Embora nesta edio o nome do autor aparea, sem maiores explicaes, grafado com um nico n, opto por uniformizar a grafia consoante as edies anteriores, de 1893 e 1913, e demais publicaes do autor.

    42 Ver TORRES, Adelino. O Imprio Portugus entre o real e o imaginrio. Lisboa, Escher, 1991, pp. 56:9.

    43 No que tange Cia de Moambique ver entre outros: COSTA, Maria Ins Nogueira da. No centenrio da Companhia de Moambique, 1888-1988. In: Arquivo. Maputo, no 06, outubro de 1989, pp. 65:76.

    44 Ver: LEITE, Joana Pereira. La formation de lconomie coloniale au Mozambique. Tese de doutorado apresentada EHESS, Paris, 1989; ALMEIDA, Pedro Ramos de. Histria do Colonialismo Portugus em frica. cronologia sculo XIX . Lisboa, Estampa, 1979, vol. II; Anurio de Loureno Marques - 1932. Loureno Marques, Tip. A. W. Bayly, 1932, pp. 703:824; COMPANHIA DE MOAMBIQUE.

  • 1. Do escravo ao Chibalo

    26

    No sul, eram as corridas ao diamante de Kimberley e, depois, ao ouro do Rand

    no ltimo quartel do sculo, que evidenciavam a febre imperialista. Loureno Marques

    rapidamente tornou-se a cidade mais importante de Moambique, pois seu porto era o

    caminho mais curto e rpido para se atingir a regio aurfera e carbonfera do Transvaal,

    por ali passando o grosso das mercadorias para o hinterland mineiro. Rapidamente fo-

    ram criadas as obras de infra-estrutura tanto para servirem ao novo e dinmico plo de

    desenvolvimento capitalista quanto para administrar o crescente fluxo de fora de traba-

    lho moambicana que a regio atraa.

    1.2 A MORAL DO TRABALHO...

    Ainda se no fez uma classificao de raas com base na preguia; mas assentou-se desde h muito, em que

    a preguia nos brancos uma qualidade do indivduo, e nos pretos um predicado da raa.

    Brito Camacho.

    Se os tericos do colonialismo portugus eram cnscios de que era indispensvel

    o capital abundante para desbravar o cho, para instalar as plantaes, para abrir os

    caminhos, e baratear o custo da produo, tambm o eram de que este no bastava;

    era preciso tambm contar com a abundncia desse instrumento de trabalho chamado

    homem, e por isso as fazendas s prosperam custa mais ou menos brutal dos braos

    indgenas 45. Oliveira Martins no estava falando novidade: Marx, comentando as an-

    lises de Wakefield sobre as colnias da Amrica e Austrlia, afirmara que este havia

    descoberto que nas colnias no bastava que uma pessoa possusse dinheiro, meios de

    vida, mquinas e outros meios de produo, para que se pudesse consider-lo como ca-

    pitalista, se lhe faltava o trabalhador assalariado, o outro homem obrigado a vender-se

    Territrio de Manica e Sofala: monografia apresentada Exposio Colonial Portuguesa no Porto, 1934. No surto nacionalista que se seguiu implantao da ditadura portuguesa em 1928 as concesses da Cia do Niassa que venceu em 1929 e da Cia de Moambique vencida em 1942, no foram renova-das, retomando o Estado o controle sobre seus territrios.

    45 OLIVEIRA MARTINS, J. P. de. Op. cit., p. 218

  • 1. Do escravo ao Chibalo

    27

    voluntariamente46. Ora, nos quadros da colnia portuguesa da frica Oriental, at ento,

    no havia condies objetivas que levassem a uma proletarizao imediata e voluntria

    das populaes locais, ou seja, no se encontrava uma conjuntura na qual as pessoas

    fossem se oferecer como braos para o trabalho assalariado, pelo contrrio, podiam evi-

    tar venderem-se, como fora de trabalho, no circuito capitalista, pois mantinham a posse

    da terra, o mais bsico meio de produo, e os instrumentos de produo, ainda que ru-

    dimentares47. Oliveira Martins estava plenamente consciente desta situao. Escrevendo

    em 1880, parece no s conhecer como parafrasear Marx ao afirmar que como os ter-

    renos no tm dono, nem limite; por que iria o preto servir e enriquecer um colono,

    quando ele em pessoa pode plantar, colher e vender?48. As formas produtivas no-

    capitalistas, embora comportassem conflitos sociais no negligenciveis, pois os cam-

    poneses indgenas no formavam um todo homogneo e indistinto sem hierarquias em

    seu seio, conseguiam sustentar suas necessidades de consumo e os excedentes, em geral,

    convertidos em tributos pagos aos rgulos e potentados diversos, quer africanos, afro-

    portugueses ou afro-islamizados, entravam no circuito de trocas; mas a terra era possu-

    da, de formas e por mecanismos variados, pelos membros da comunidade que dela des-

    frutavam49. No sul de Moambique, por exemplo, Junod afirma que embora o sistema

    de distribuio de terras comportassem privilgios quanto fertilidade do solo, ningum

    era despossudo de terras para se sustentar50.

    Nos marcos da economia mercantil, a utilizao da fora de trabalho africana,

    46 MARX, Karl. El Capital. Mxico DF, Fondo de Cultura Economica, 1975, tomo I, cap. XXV, p. 651. 47 CAPELA, Jos. O Imposto de Palhota e a Introduo do Modo de Produo Capitalista nas Colnias.

    Porto, Afrontamento, 1977, p. 23. 48 OLIVEIRA MARTINS, J. P. de. Op. cit., p. 221. MARX afirma: Aqui [nas colnias], o regime capi-

    talista tropea por todos os lados com o 'obstculo' do produtor que, achando-se na posse de suas condices de trabalho, prefere enriquecer-se a si mesmo com seu trabalho, a enriquecer o capitalis-ta. MARX. K. Op. cit. p. 650.

    49 Para o balano das diversas interpretaes ver BUNDY, Colin. The rise and fall of the South African peasantry. London, Heinemann, 1979, particularmente pp. 04:13. Para uma mais detalhada discusso a-cerca deste tema e da prpria validade da utilizao do termo campons ver: ALMEIDA SERRA, An-tnio Manuel de. Poltica Agrria e Desenvolvimento Econmico e Social na Repblica Popular de Moambique, 1975-85. Tese de doutoramento, Instituto Superior de Economia e Gesto da Universi-dade Tcnica de Lisboa, 1991, pp. 209:276; COVANE, Lus Antnio. Migrant labour and agricultu-re... Op. cit., p. 44. Estas ltimas duas referncias foram feitas a partir de verses eletrnicas gentilmente cedidas pelos autores e as pginas aqui indicadas podem no coincidir com as das verses apresentadas defesa.

    50 JUNOD, Henrique A. Usos e Costumes dos Bantos - A vida duma tribo do sul de frica. 2a ed., Lou-reno Marques, Imprensa Nacional, 1974, tomo II - Vida Mental, pp. 09:11. A grafia correta de seu

  • 1. Do escravo ao Chibalo

    28

    pelos europeus, em Moambique, era espordica e utilizada para cumprir misses espe-

    cficas: os comerciantes-caadores, atravs da diplomacia ou dos presentes/saguates,

    conseguiam dos potentados locais os trabalhadores de que necessitavam ___ carregado-

    res, caadores, machileiros, etc. ___ e, cumpridas essas misses, os homens voltavam a

    se integrar ao seu meio social, sem a constituio de uma populao permanentemente

    voltada para tais atividades51. As novas caractersticas assumidas pelo capitalismo, a

    partir da segunda metade do sculo XIX, exigiam a criao, nas colnias, de uma fora

    de trabalho permanentemente integrada esfera produtiva. Mas como obt-la? A fora e

    a sujeio pareciam ser o nico caminho, contudo, antes de mais nada, era necessrio

    estabelecer uma identidade distinta para o outro, de tal maneira que a dominao pudes-

    se ser exercida, sem qualquer constrangimento jurdico.

    Os textos constitucionais de 1822 e 1826, elaborados no bojo do movimento

    liberal do Porto, para atender s novas condies criadas com o retorno da famlia real

    portuguesa Metrpole e diante do fato novo que foi a independncia do Brasil, no

    faziam qualquer aluso ao carcter colonial duma parte do territrio da nao52.

    Nos projetos constitucionais de 1838, 1843, 1852 e no Decreto Orgnico de dezembro

    de 1869 a questo colonial era vista principalmente pelo prisma da independncia e e-

    quilbrio de poderes do Estado, das regalias do cidado, do perigo das ditaduras e

    doutras consideraes de carcter acentuadamente abstrato e doutrinrio, sem [...] o

    tratamento do assunto sob o ponto de vista utilitrio e prtico dos interesses e das

    necessidades instantes da administrao das colnias e do seu progresso, ou seja,

    nome Henri-Alexandre Junod.

    51 MAVULANGANGA. A Rusga. Carta aberta ao Exmo Sr. Delegado e Procurador da Cora e Fazen-da, Curador dos Orphos, serviaes e indgenas. Loureno Marques, Typographia de A. W. Bayly & Co, 1900, 16 p. Mavulanganga significa o que abre o peito e era o pseudnimo de Ernesto Torre do Valle, que chegou em Moambique como contratado para as obras da ferrovia ligando Loureno Mar-ques ao Transvaal. Em Angola, contudo, o uso de carregadores era extremamente disseminado mobili-zando, no final do sculo XIX, em torno de 200 mil homens, o que ocasionava graves prejuzos s po-pulaes, desequilbrios culturais, chegando a causar o despovoamento de certas regies. Ver Adelino Torres. O Imprio Portugus entre o real e o imaginrio. pp. 78:82.

    52 RIBEIRO, Artur R. de Almeida. Descentralizao na Legislao e na Administrao das Colnias, excerto do relatrio que precede a proposta de lei sobre a Administrao financeira das provncias ul-tramarinas de 1917. In: Antologia Colonial Portuguesa. Lisboa, Agncia Geral das Colnias, 1946, vol.I, p. 155. Grifo original.

  • 1. Do escravo ao Chibalo

    29

    vincados pela discusso terica liberal53. Assim ao considerar as colnias como pro-

    vncias ultramarinas, a monarquia liberal acabava por subordinar estas mesma legis-

    lao em vigor na Metrpole; e deste modo a Carta-Lei de 1o de julho de 1867 e o De-

    creto de 13 de novembro de 1869, estenderam s colnias, a partir de julho de 1870, o

    Cdigo Civil em vigor na Metrpole54, reeditando, um sculo depois, a iniciativa de

    Pombal que, atravs do decreto de 02 de abril de 1761, passara a considerar os sditos

    asiticos e africanos, batizados cristos, com os mesmos direitos legais e sociais que os

    brancos nascidos em Portugal, pois Sua Majestade no distingue seus vassalos pela

    cor mas por seus mritos55. Esta universalizao do direito de cidadania s colnias

    estava condicionada, no que tange aos africanos, ao grau de insero do indivduo no

    restrito espao poltico e cultural do dominador, como foi o caso das mais de cem fam-

    lias de origem africana radicadas h geraes na Ilha de Moambique, ento capital da

    Colnia56. A esmagadora maioria da populao permanecia sua margem e no era afe-

    tada, ao menos diretamente, por tais atos. Claro est que em nenhum momento os ind-

    genas foram de fato tratados igualitariamente, como cidados plenos, perante a lei. O

    Decreto de 1854 j considerara como cidados o restrito grupo de indivduos africanos

    ou mestios formados pelos bacharis, clrigos, oficiais do exrcito ou da armada, pro-

    fessores, vereadores ou ocupantes de cargos administrativos similares, juzes, escrives,

    tabelies, negociantes de grosso trato, guarda-livros, 1os caixeiros, proprietrios territo-

    riais e os administradores de fazendas rurais e fbricas57 mas, no que tangia aos indge-

    nas a expresso mais significativa deste pretenso esprito liberal somente foi manifesta-

    da pela Carta-Lei de 29 de abril de 1875 que extinguiu legalmente a condio servil nas

    provncias ultramarinas, pondo fim figura do liberto e lanando as bases do trabalho

    assalariado ficando, porm, os indivduos por ela abrangidos, obrigados a contratar os

    seus servios por dois annos e preferencialmente com os antigos patres, caso estes o

    53 Id. Ibid. p. 157. 54 FEIO, Manuel Moreira. Indgenas em Moambique. Estudos Sociolgicos. Lisboa, Typ. do Commr-

    cio, 1900. p. 05. A obra foi escrita em 1892. 55 Apud BOXER, Charles Ralph. Relaes Raciais no Imprio Colonial Portugus, 1415-1825. Porto,

    Afrontamento, 1977. p. 74. 56 ZAMPARONI, Valdemir D. Op. cit., p. 75. 57 Art. 33 do Dec. de 14/12/1884. In: VASCONCELLOS, Jos Maximo de Castro Neto Leite e. Op. cit.,

    p. 840.

  • 1. Do escravo ao Chibalo

    30

    desejassem58. A Carta-Lei foi complementada pelo Regulamento para os contratos de

    serviaes e colonos nas provncias da frica portugueza, posto em vigor em 21 de no-

    vembro de 1878, que a ratificava e ainda suprimia a tutela pblica sobre os ex-escravos

    e estabelecia a liberdade dos africanos poderem contratarem-se livremente com qualquer

    patro e no exclusivamente com seu antigo senhor. Uma vez, porm, contratado, no

    poderia o indivduo romper o contrato e mudar de patro sob pena de ser preso por va-

    diagem, nos termos do Cdigo Penal e o seu novo patro ser multado59. Ainda que o

    Cdigo Penal aplicado s colnias fosse o mesmo da Metrpole, a pena por vadiagem,

    por exemplo, prevista no Regulamento, a ser aplicada nas colnias, durava quatro vezes

    mais do que em Portugal60. Acrescente-se a esta disparidade de tratamento a ampla mar-

    gem de manobra e de interpretao aos executores da lei em terras coloniais.

    O Decreto de 03 de novembro de 1881, que procurava dar maior autonomia ad-

    ministrativa s colnias, face crescente e mais efetiva presena de europeus no territ-

    rio, at ento restrita s fortalezas e entrepostos comerciais, mantm o esprito liberal; o

    relatrio que o precede defende a assimilao do indgena a partir da expanso igualit-

    ria da lei portuguesa, considerada como portadora dos desgnios civilizatrios. Segundo

    o texto, em exemplo referente ndia, mas extensivo s demais colnias, era:

    necessrio chamar o elemento indgena s funes pblicas, fazendo-o interessar-se pelos negcios da colnia [...] reconhe-cida a sua igualdade civil e poltica perante a lei [...] o projeto no conhece diferenas de religio nem de castas, reconhece apenas cidados sob domnio da soberania portuguesa; as ra-as votadas ao obscurantismo pelos preceitos das velhas tradi-es do oriente aprendero a exercer e a ter conscincia dos

    58 Carta-Lei de 29 de abril de 1875. In: Colleco Official da Legislao Portugueza - anno de 1875.

    Lisboa, Imprensa Nacional, 1876, pp. 125:7. 59 Regulamento para os Contratos de Serviaes e Colonos nas Provncias da frica Portugueza. In:

    Colleco Official da Legislao Portugueza - anno de 1878. Lisboa, Imprensa Nacional, 1879, pp. 380:7.

    60 O Art. 256 do Cdigo Penal afirmava: Aquelle, que no tem domiclio certo em que habite, nem mei-os de subsistncia, nem exercita habitualmente alguma profisso ou offcio, ou outro mister, em que ganhe sua vida; no provando necessidade de fora maior, que o justifique de se achar nestas cir-cunstncias, ser competentemente julgado e declarado vadio, e punido com priso correcional at seis mezes, e entregue disposio do Governo para lhe fornecer trabalho pelo tempo que lhe parecer conveniente.In: Cdigo Penal. Approvado pelo Dec. 10 de Dezembro de 1852. Lisboa, Imprensa Na-cional, 1853. A sujeio ao trabalho obrigatrio era extendida, nos termos do art. 90 do Regulamento, para at dois anos.

  • 1. Do escravo ao Chibalo

    31

    seus direitos; o novo cdigo ser para elas escola e catecismo de liberdade.61

    Contra este esprito assimilacionista, Oliveira Martins, adepto da antropologia

    fsica predominante no final do sculo XIX, em obra que veio luz no mesmo ano do

    Decreto, vituperava, lastreado nas disseminadas teorias filosficas e cientficas coevas, e

    com a objetividade esperada do discurso positivista mesclado crueza dos interesses

    capitalistas62, que

    H decerto, e abundam documentos que nos mostram no negro um typo anthropologicamente inferior, no raro prximo do an-thropoide, e bem pouco digno do nome de homem. A transio de um para outro manifesta-se, como se sabe, em diversos ca-racteres: o aumento da capacidade da cavidade cerebral, a di-minuio inversamente relativa do craneo e da face, a abertura do ngulo facial que d'hai deriva e a situao do orifcio occipi-tal. Em todos estes signaes os negros se encontram collocados entre o homem e o anthropoide.63

    Na verdade, trata-se de uma verso cientificista das palavras que Gomes Eanes

    61 RIBEIRO, Artur R. de Almeida. Op. cit., p.161. 62 Oliveira Martins foi autor de vasta obra acadmica mas tambm scio-fundador e presidente da Socie-

    dade de Geografia Comercial do Porto e, como referido, um dos fundadores da Cia de Moambique. Esta antropometria permaneceu como atividade cientfica portuguesa at meados do sculo XX. Veja-se por exemplo os artigos de Amrico Pires de Lima, frutos de observaes feitas entre 1916/17: No-tas Etnogrficas do Norte de Moambique e Contribuio para o estudo Antropolgico dos indgenas de Moambique ambos em: Anais Cientficos da Faculdade de Medicina do Prto, vol. IV, no 2 e no 3 de 1918, republicados em 1943: LIMA, Amrico Pires de. Exploraes em Moambique. Lisboa, Agncia Geral das Colnias, 1943.

    63 Para dar sustentao sua tese indica, em nota, os seguintes dados tomados de especialistas: a) capacidade craneana em centmetros cbicos: Broca Morton Europeus parisienses 1.558 ---- Bascos espanhis 1.574 1.534 Corsos ---- 1.552 Negros africanos (ocidentais) 1.430 1.364 Americanos ---- 1.239 b) Relao do craneo para a face; Cuvier:

    Brancos 1:1 Negros 1,25:4

    d) o orifcio occipital acha-se no europeu a igual distncia da parte anterior e posterior do craneo; no negro mais posterior; no antropide muito; at que no cavalo e no hipoptamo deixa de fazer parte da base do craneo(Broca). Os ossos prprios do nariz ficam separados da linha mdia, at uma avan-ada idade, no europeu; at aos 20 ou 25 anos no hotentote e no negro; e at aos dois, apenas, nos antropides. OLIVEIRA MARTINS, J. P. de. Op. cit., pp. 284:5. Essas teses fazem eco no sculo XX: ver AHM-DSNI, Seco E, Instruo e Cultos, cx. 1292, Proc. 39/A, ano 1911, Informao do In-tendente de Negcios Indgenas e Emigrao ao Governador Geral, de 20/03/11.

  • 1. Do escravo ao Chibalo

    32

    da Zurara j havia escrito, h mais de trs sculos, em sua Crnica de Guin: os traos

    somticos eram tomados como um paradigma hierarquizador dos homens64. No basta-

    riam estas provas, argumentava Oliveira Martins, para demonstrar quo quimrica era a

    possibilidade de se civilizar os selvagens? Opondo-se s teses liberais argumenta:

    E se no h relaes entre a anatomia do craneo e a capaci-dade intellectual e moral, porque h de parar a philanthropia no negro? porque no h de ensinar-se a Bblia ao gorilla ou ao orango, que nem por no terem falla, deixam de ter ouvidos, e ho de entender, quasi tanto como entende o preto, a metaphisi-ca da encarnao do Verbo e o dogma da Trindade?65

    A educao vista pelos liberais, numa perspectiva iluminista, como o caminho

    para que o negro pudesse civilizar-se, isto , tornar-se verdadeiramente homem ao se

    adequar aos valores europeus, tidos como universais, era considerada por Oliveira Mar-

    tins como uma tese absurda no s perante a histria, como tambm perante a capa-

    cidade mental dessas raas inferiores66. Que se desiludissem, portanto, os que acha-

    vam ser possvel civilizar negros com a bblia, educao e panos de algodo, porque

    toda a histria prova, porm, que s pela fora se educam povos brbaros.67 Este

    discurso passa a sustentar uma nova perspectiva das relaes humanas nas colnias j

    que, at ento, era possvel encontrar na sociedade colonial uma mescla racial, com fa-

    mlias mulatas desfrutando de prestgio e poder econmico68. Tal discurso busca fundar

    as desigualdades raciais e sociais numa pretensa ordem natural das coisas, tornando

    impossvel a extenso de quaisquer direitos populao no-branca. O indgena no

    podia civilizar-se porque era inatamente inferior e no podia ser cidado porque no era

    civilizado. Estava pois fechado um perfeito crculo infernal para justificar a dominao

    colonial. Mesmo os que julgavam que Portugal devia pela instruco, pelo contacto

    com o indgena e pelo seu convvio ir preparando o selvagem, iluminando-lhe o espri-

    64 A zoomorfizao dos grupos no-brancos remonta aos primrdios da expanso portuguesa.

    MARGARIDO, Alfredo. La vision de l'autre (africain et indien d'Amrique) dans la renaissance portugaise. In: Le Humanisme Portugais et l'Europe (Actes du XIXe. Colloque Internacional d'tudes Humanistes). Paris, Fund. Calouste Gulbenkian, 1984, pp. 507:55.

    65 OLIVEIRA MARTINS, J. P. de. Op. cit, p. 285. 66 Idem, Ibidem, p. 286. 67 Idem, Ibidem, p. 283. 68 Ver por exemplo VASCONCELLOS E CIRNE, Manuel Joaquim Mendes de. Op. cit., p. 40 e 52:6;

  • 1. Do escravo ao Chibalo

    33

    to, como Manuel M. Feio, alinhavam-se com as teses de Spencer e advogavam que, em

    razo das diferenas sociolgicas entre as sociedades europias e africanas que se acha-

    vam na sua infncia, era preciso estabelecer leis distintas69. Eduardo da Costa, co-

    mungando as idias de Antnio Ennes, em comunicao apresentada ao Congresso Co-

    lonial Nacional, de 1901, assim argumenta:

    Na nossa terrvel mania assimiladora, no nosso prurido de liberdade e igualdade civil e poltica, para todos os habitantes sobre os quais ondeia a bandeira portuguesa, temos indo esten-dendo, sucessivamente e sem descanso, as instituies democr-ticas de nosso regime poltico aos stios mais longnquos das nossas colnias. [...] tm-se convencido os nossos legisladores para o ultramar que aplicando a mesma lei a todos os habi-tantes de uma colnia se obtinha a desejada igualdade deles todos perante esta lei. Quanta enganosa doutrina, quanta extempornea medida no tem tido origem nesta falsa idia!70

    Fazendo eco a tal tese, Marnoco e Souza, Ministro da Marinha e Ultramar no

    ltimo Governo da Monarquia e catedrtico no ensino de Administrao Colonial da

    Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, insurgindo-se contra a herana ilu-

    minista, afirmava que o que orientou a colonizao portuguesa nos trs primeiros quar-

    tis do sculo XIX foram as teorias do sculo XVIII, que julgava superficiais; estas ao

    atriburem a todos os homens uma mentalidade semelhante, ou pelo menos julgando-os

    susceptveis de a adquirir depois de uma breve educao, e admitindo um tipo nico e

    superior de civilizao que se tornava necessrio implantar por toda parte, levaram a

    substituir as instituies indgenas pelas leis europias o que considerava ter redundado

    em graves conseqncias para os resultados da obra colonial71.

    NEVES, Diocleciano Fernandes das. Op. cit., e FERREIRA MARTINS, Gen. Op. cit.

    69 FEIO, Manuel Moreira. Op. cit., pp. 148:52 e SPENCER, Herbert. Principes de Sociologie. 7e ed, trad. M. E. Cazelles, Paris, Ancienne Librarie Germer Baillire, 1903, tomo I, particularmente pp. 59:136.

    70 Eduardo da Costa foi chefe do Estado Maior de Antnio Ennes, tendo tomado parte ativa nas campa-nhas militares que culminaram com a ocupao do Sul de Moambique, a partir de 1895. Foi Governa-dor dos Distritos de Moambique (1897) e de Benguela (1904). Em 1907 foi nomeado Governador Ge-ral de Angola, onde faleceu. A memria apresentada foi publicada inicialmente como Estudo sobre a Administrao Civil das nossas Possesses Africanas. Lisboa, Soc. de Geografia, 1903, com 239 pgi-nas, da qual teve um excerto publicado sob o ttulo Princpios de Administrao Colonial na Antolo-gia Colonial Portuguesa. Lisboa, Agncia Geral das Colnias, 1946, vol. I, pp. 79:96. p. 85, grifos no original.

    71 MARNOCO E SOUZA. Regime Jurdico das Populaes Indgenas. In: Antologia Colonial Portu-

  • 1. Do escravo ao Chibalo

    34

    A tnica presente nestes argumentos recai sobre a inequvoca diversidade cultu-

    ral e a conseqente relatividade das instituies jurdicas, pois segundo se argumentava:

    homens de uso muito diferentes, de instintos muitas vezes an-tagnicos, de civilizao muito diversa, podem considerar de i-gual modo a lei, que a todos se aplica indistintamente? O qual ela tem, para uns, de bom, de moral e de justo, encerra, para outros, de injusto, de imoral e de nocivo, e a igualdade da lei produz a maior desigualdade possvel de condies perante e-la.72

    As leis em vigor em Portugal seriam, portanto, inteiramente imprprias para o

    meio indgena das colnias73. Ora ___ argumentava-se ___ se at mesmo a Frana re-

    volucionria excetuara os domnios coloniais dos termos de sua Constituio de 1791,

    passo seguido pelas demais naes colonizadoras, por que haveria Portugal de no o

    fazer? 74 Se h tais disparidades, antes de igualar a lei tornava-se necessrio igualar os

    homens, dando-lhes os mesmos sentimentos, os mesmos hbitos e a mesma civiliza-

    o, e como isto, se no fosse de todo impossvel, s se daria em poca muito longn-

    qua e indeterminada, era preciso, nas possesses portuguesas, a existncia de pelo

    menos, dois estatutos civis e polticos: um europeu, outro indgena75.

    Por trs de tais argumentos que aparentemente distanciavam-se de uma concep-

    o civilizatria eurocntrica e que pareciam querer resguardar os indgenas dos efeitos

    deletrios da aplicao indiscriminada da legislao metropolitana, pode-se vislumbrar

    sua inteno oculta, que era, ao traar uma identidade distinta e inferiorizante para a

    populao colonizada, exclu-la dos direitos de cidadania que poderiam significar empe-

    cilhos obteno coercitiva de fora de trabalho barata.

    J que consideravam impossvel elevar os indgenas, tidos como selvagens e

    indolentes, condio de cidados pela via da educao, o nico caminho para a civili-

    zao passaria necessariamente pelo trabalho na esfera capitalista. Imbudos da f pre-

    guesa. Lisboa, Agncia Geral das Colnias, 1946, vol. I, p. 99. Publicado originalmente em 1906.

    72 COSTA, Eduardo da. Op. cit. Loc. cit. grifos originais. 73 MARNOCO E SOUZA, Op. cit. p. 99. 74 RIBEIRO, Artur R. de Almeida. Op. cit. p. 153:5. A respeito da restrio dos direitos de cidadania aos

    homens de cor e a manuteno da escravatura nas colnias pela Constituinte de 1791, ver, entre ou-tros: SOBOUL, Albert. A Revoluo Francesa. Lisboa, Livros Horizonte, 1979, vol. I, pp. 144 e 155.

  • 1. Do escravo ao Chibalo

    35

    tensamente natural e universal de que o trabalho e a acumulao de seus frutos era a

    base de toda a vida, individual e social, faziam crer que aos civilizadores era imposta a

    tarefa de arrancar o indgena deste estado natural de indolncia e ociosidade e subme-

    t-lo a uma disciplina do trabalho, alterando sua conduta diante do mesmo, como con-

    forma este trecho de Oliveira Martins76:

    Trabalha [o negro], sim, mas no por hbito, por instin-to, com o fito de uma capitalizao ilimitada, como o europeu. Trabalha, sim, mas aguilhoado pela necessidade imediata: e as necessidades do negro so curtas, e satisfazem-se com pouco. No abandona a liberdade e a ociosidade, para ele felizes con-dies da vida selvagem, pelo trabalho fixo, ordinrio, constan-te, que a dura condio da vida civilizada. A escravido tinha pois um papel positivo e economicamen-te eficaz, sob o ponto de vista da prosperidade das plantaes. No basta dizer que o trabalho escravo mais caro, e que o preto livre trabalha ___ fatos alis exatos em si ___ porque mistr acrescentar que o preto livre s trabalha intermitente-mente ou excepcionalmente; e que o mais elevado preo do tra-balho escravo era compensado pela constncia e permanncia do funcionar desse instrumento de produo.77

    Apesar da defesa da racionalidade econmica da escravatura, era necessrio jus-

    tificar a sujeio das populaes e a criao de trabalhadores com novos argumentos,

    pois os vlidos para o perodo anterior perdiam sua eficcia diante dos novos tempos.

    Era necessrio descobrir um meio de tornar forado o trabalho do negro, sem cair no

    velho tipo condenado da escravido78. O objetivo perseguido, entretanto, no tinha

    como ser mais explcito: explorar em proveito nosso o trabalho de uns milhes de

    75 COSTA, Eduardo da. Op. cit. p. 86. Grifo original. 76 Ver a este respeito, por exemplo, as formulaes de Locke em seu Segundo Tratado sobre o Governo

    In: Locke. Os pensadores. So Paulo, Abril, 1973, particularmente o cap. V; Da Propriedade, pp. 51:60 e MACPHERSON, C. B. A Teoria Poltica do Individualismo Possessivo de Hobbes at Locke. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979, particularmente pp. 205:273 e ainda BRESCIANI, Maria Stella Martins. Lgica e Dissonncia - Sociedade de trabalho: lei, cincia, disciplina e resistncia operria. In: Revista Brasileira de Histria, v. 6, no 11, set.1985/fev.1986, p. 21.

    77 OLIVEIRA MARTINS, J. P. , Op. cit. pp. 219:20. Wakefield em seu A View of the Art of Coloniza-tion. New York, Augustus M. Kelley Publ., 1969, p. 324 afirma: At agora, nesse mundo, o trabalho nunca foi empregado em escala considervel, com constncia e combinao, exceto por um ou outro dos dois meios: ou pelo assalariamento ou por algum tipo de escravido. Apud SMITH, Roberto. Propriedade de Terra e Transio. So Paulo, Brasiliense, 1990, p. 271.

    78 Idem, Ibidem, p. 233.

  • 1. Do escravo ao Chibalo

    36

    braos, enriquecendo-nos custa deles . De tal modo se fez no Brasil79.

    J no final do sculo, Antnio Ennes, argumentava que a legislao liberal aca-

    bara por se constituir numa espcie de declarao dos direitos dos negros, que lhes

    dizia textualmente: de ora avante ningum tem obrigao de trabalhar, e que asse-

    gurava aos negros o sagrado direito de ociosidade.80 No Congresso Colonial Interna-

    cional que se realizou em Paris, em 1900, um poeta, administrador e grande proprietrio

    de terras em So Tom, fazendo eco ao pensamento colonial portugus expressou, de

    forma mais sutil ___ necessria diante da atenta platia internacional ___ mas nem por

    isto menos clara, suas teses acerca do assunto ao afirmar que a raa negra no estava

    pronta para receber o fim da escravatura, que to grande raio de luz a ofuscou, e em-

    bora considerasse que a liberdade fosse um direito natural, ela suporia implicitamente o

    cumprimento de deveres; entretanto, continua: assim que se deu ao negro a liberdade,

    no se lhe fez compreender em seguida e claramente que uma das caractersticas da

    mais s liberdade o enobrecimento pelo trabalho livre.81 Como, prossegue o autor, o

    negro considerava todo trabalho assalariado como escravido e no o buscaria seno

    constrangido pelas circunstncias e pela lei, era necessrio, ento, criar escolas onde se

    deveria, sobretudo, faz-lo compreender o respeito que devido s leis e autoridade

    e ainda a natureza de seu dever que o de prover os seus meios de existncia pelo tra