Entre Marshal e as Mulas-sem Cabeça
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Revista Alamedas Revista Eletrnica do NDPV.1, n.1, jan./jun.2006 ISSN 1981-0253
ENTRE MARSHALL E MULAS-SEM-CABEA:
EPISDIOS DA CONSTRUO DA CIDADANIA NO BRASIL
Osmir Dombrowski1
Resumo: Este artigo aborda a famosa tese do socilogo ingls T. H. Marshall sobre o processo
de conquista de direitos de cidadania pela classe trabalhadora a partir de dois casos retirados de
uma pesquisa que o autor desenvolveu junto aos autos civis e criminais da Comarca de Toledo
que se encontram sob a guarda do NDP.
Palavras-chave: Cidadania, Marshall, Trabalhadores Rurais.
1 Cientista Poltico, docente do curso de Cincias Sociais da Universidade Estadual do Oeste do Paran UNIOESTE / Campus de Toledo.
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Revista Alamedas Revista Eletrnica do NDPV.1, n.1, jan./jun.2006 ISSN 1981-0253
No incio da dcada de 1950, o socilogo ingls T. H. Marshall pronunciou algumas
conferncias sobre o processo de formao da cidadania onde enunciava uma tese que, at hoje,
permanece paradigmtica. De acordo com Marshall (1967), a moderna noo de cidadania foi
historicamente moldada, em um processo de contnua ampliao que tem incio com a conquista
dos direitos civis, durante o combate s ambies do estado absolutista no sculo XVIII,
seguindo-se da conquista dos direitos polticos no correr do sculo XIX, onde marcante a luta
pelo sufrgio universal, para finalmente consumar-se, j no sculo XX, com a conquista dos
chamados direitos sociais.
No esquema de Marshall, os direitos civis constituem a chave para a entrada da
humanidade no mundo moderno: eles significam o fim da estratificao e a instituio da
igualdade como base legal para toda a organizao da sociedade. Com a instituio dos direitos
civis, ningum mais est acima da lei e todos esto sujeitos a ela em condio de igualdade.
Quase que a totalidade das constituies dos estados modernos preconizam, em algum
momento, que todos os cidados so iguais perante a lei. Ainda que muitos insistam que
dispositivos desse gnero esto fadados a tornarem-se letras mortas enquanto persistirem outras
desigualdades no interior da sociedade, a idia de que, em essncia, todos os homens so iguais
em direitos, uma idia socialmente vitoriosa na modernidade, de tal modo que nos
verdadeiramente impossvel conceber alguma forma de organizao poltica ou jurdica que no
esteja baseada na igualdade de direitos entre os homens.
Efetivamente, a instituio da igualdade como base legal para a organizao da
sociedade representava para os burgueses o fim dos privilgios medievais e era o destino natural
da sua luta contra a aristocracia feudal. Mas, no sculo XVIII, representava tambm o
estabelecimento de mecanismos de controle sobre o estado absoluto. Estou querendo deixar
claro que desprovido de controles sociais, o estado pode criar novas desigualdades com aes
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discricionrias. Alis, a noo de igualdade incompatvel com a de aes discricionrias: se
todos so iguais, no pode haver tratamento diferenciado para ningum. Isto significa que os
direitos civis estavam constantemente ameaados enquanto no houvessem sido
institucionalizados mecanismos de controle do estado pela sociedade. A igualdade preconizada
pelos direitos civis recebe, ento, a complementao dos direitos polticos; um conjunto de
direitos que se referem ao poder de participar dos governos e de legislar que, por ser igualmente
distribudo, funciona como garantia de que no interior nenhuma pessoa ou grupo,
monopolizando o aparelho do estado, ou legislando em causa prpria, re-introduza privilgios e
institua a desigualdade, novamente, como o critrio das relaes polticas.
Por isso, no correr do sculo XIX, aqueles que mais fortemente sentiam as
conseqncias das desigualdades ainda existentes no interior da sociedade, encontrariam no
sufrgio universal o mote da sua luta. A igualdade havia deixado de ser, naquele momento, uma
reivindicao burguesa dirigida contra os privilgios da nobreza. Completadas as revolues
burguesas, a igualdade passou a ser o objetivo das lutas operrias e a conquista de direitos
polticos pelos trabalhadores parecia ser o caminho natural para sua instituio definitiva. O
prprio Engels, no final do sculo, reconhecia a importncia da conquista do sufrgio universal
para a libertao da classe trabalhadora, mesmo que no interior do movimento operrio sempre
houvesse aqueles que desconfiassem deste caminho, originalmente trilhado pela burguesia. Para
Engels (1981, p 195), o proletariado ganharia experincia poltica e conheceria os limites do
estado burgus participando das eleies.
O fato que durante o sculo XIX os trabalhadores descobriram a importncia de
possurem direitos polticos e de construrem, eles mesmos, os meios necessrios para o
exerccio destes direitos: clubes, associaes, sindicatos e, principalmente, partidos polticos
que representassem os interesses dos trabalhadores. E o sculo XX conheceu o resultado da
participao poltica dos trabalhadores nas sociedades democrticas na forma da efetivao de
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uma srie de direitos sociais; o direito educao, sade, alimentao, moradia, previdncia e
assistncia social, em sntese, o direito a todos os bens necessrios para garantir ao cidado uma
vida minimamente digna no seio de uma sociedade que distribui suas riquezas e o produto do
seu trabalho de forma desigual.
evidente que Marshall contou com a sorte de ter nascido ingls, como diz Ralph
Dahrendorf (1992 p. 52). O esquema que ele produziu resulta exato na histria da Inglaterra,
onde cada sculo corresponde a uma srie de direitos. O mesmo, porm, no se pode dizer da
histria dos pases de democracia tardia. No Brasil, por exemplo, esta histria se comprime,
fundamentalmente, em uma frao do sculo XX. O sufrgio universal em eleies secretas
produto da revoluo de 1930, da mesma forma que os direitos sociais, que somente seriam
conquistados pelos trabalhadores brasileiros a partir daquela dcada. E, ainda assim, restrito aos
trabalhadores urbanos. Os trabalhadores rurais ficaram excludos do sistema de proteo social
oficial at 1963 quando foi institudo o Estatuto do Trabalhador Rural e permaneceram
excludos tambm da arena eleitoral enquanto durou a interdio do voto ao analfabeto.
Disto se conclui que o esquema proposto por Marshall no seja vlido para a anlise da
realidade nacional brasileira? A resposta inicialmente parece ser afirmativa. Na verdade, porm,
tenho razes para crer que o esquema de Marshall permanece vlido, naquilo que considero o
mais importante: ele revela que a extenso dos direitos de cidadania classe trabalhadora
resulta da prpria ao poltica dos trabalhadores.
Dois casos retirados de uma pesquisa junto aos autos civis e criminais da Comarca de
Toledo que se encontram sob a guarda do Ncleo de Documentao, Informao e Pesquisa /
NDP2, ilustram a condio do trabalhador rural no Brasil e a luta pela construo da sua
cidadania. L-se nos autos de um processo aberto em 1953:
2 Terra e trabalho nos autos cveis e criminais da Comarca de Toledo (1953-1963), projeto coordenado pelo autor e que conta com a colaborao de Eduardo Bregolato como estudante estagirio.
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No dia 4 de janeiro do corrente ano, na zona do Rio Piquiri, onde se procedia aos
trabalhos de uma construo de estrada de rodagem que ligaria Toledo-Guara,
construo essa feita s expensas da Cia Pinho & Terra, o denunciado, DMF,
intitulando-se de Polcia Secreta do Estado, efetuou a priso de vrios operrios,
detendo-os arbitrariamente sob violncia e ameaas com armas, e em seguida levou-os
para o acampamento central da Cia. Colonizadora Paran S.A., privando-os da
liberdade de locomoo, sujeitando-os a trabalhos forados e privaes3.
Em resumo, 21 operrios ficaram detidos por 18 dias e outros 13, por 16 dias. O
inqurito, que levou quase dez anos para ser concludo, iria revelar que, de fato, tratava-se de
uma disputa por posse de uma gleba devoluta na regio do Rio Piquiri. O acusado era scio de
deputados, secretrios e ministro de estado, e realmente possua uma carteira de agente
reservado da polcia civil.
No se pretende aqui entrar no mrito da disputa. Entre as duas companhias, estavam os
trabalhadores desprovidos de direitos trabalhistas e violados em seus direitos civis mais
elementares. Percebe-se o quo distante encontravam-se aqueles trabalhadores da condio de
cidados!
No sendo admissvel o trabalho escravo, o processo seguia exigindo do indiciado o
pagamento pelos dias trabalhados (nenhuma outra forma de indenizao!), da seguinte forma:
Cr$ 55,00 por dia para cada operrio, Cr$ 100,00 para cada dia do feitor e Cr$100,00 por dia
para uma carroa com duas mulas. Ou seja, para os operrios se exigia quase o mesmo que para
as mulas! Esse era o status do trabalhador rural; sem direitos de qualquer espcie: quase-
mulas.
3 Ver processo arquivado no NDP, sob o n. 320/027, da Coleo dos Autos Criminais da Comarca de Toledo.Revista Alamedas Revista Eletrnica do NDP
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Outro processo ajuda a conhecer o tortuoso caminho da construo da cidadania pelos
trabalhadores rurais no Brasil. Uma instruo para abertura de um Inqurito sobre perturbao
da ordem movimento subversivo encontra-se redigida desta forma:
Chegando ao conhecimento desta Delegacia de Polcia que, ontem em Terra Roxa, mais
ou menos duzentas pessoas reuniram-se e aglomeram-se em frente ao hospital do Dr.
CT com a finalidade de coagir o referido mdico, para mandar abrir a farmcia de JG,
que fora fechada por determinao da Secretaria da Sade, determino que seja
instaurado competente inqurito para apurar os cabeas do movimento4
Duzentas pessoas reunidas para exigir alguma coisa, principalmente se a maioria delas
era constituda de agricultores, era considerado perturbao da ordem e movimento
subversivo.
Tal comportamento da parte de quase-mulas no podia ser aceito. Sequer podia ser
imaginado. Assim, se tal movimento ocorreu, a explicao encontrada que alguns indivduos
se prestaram para insuflar humildes lavradores, agitando-os no sentido de promoverem um
movimento (fl 49). Por isso toda a investigao dirigida para identificar os cabeas do
movimento. Os quase-mulas, portanto, so concebidos como verdadeiras mulas-sem-
cabea, desprovidos de vontade prpria e de capacidade de se expressarem de forma
independente. Em vez de serem reconhecidos como seres humanos e, ipso facto, portadores de
direitos, so concebidos como alguma espcie, indescritvel, de animal. Trata-se, pois, de uma
cabal negao da condio de igualdade, base sobre a qual a noo moderna de cidadania
haveria de ser erguida.
4 Ver processo arquivado no NDP, sob o n 165/015, tambm da Coleo dos Autos Criminais da Comarca de Toledo.
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No a mesma, entretanto, a imagem que transmite o depoimento de um lavrador
ouvido no inqurito. Nele um agricultor afirma que,
[ouviu] que o povo todo da roa se movimentaram para reunir-se em Terra Roxa, que
essa movimentao de todo o povo, se prendeu ao fato do Sr. JG ser pessoa muito boa,
prestativa e caritativa, que o declarante reuniu-se massa concentrada no centro da
cidade, porm no falou com ningum, pois no sabia quem era o cabea do pedido a
ser formulado... (fl.11. Destaques meus).
O depoimento deste lavrador revela, portanto, que o povo da roa se sentia igual a
todo o povo, capaz de se expressar por sua prpria cabea, de fazer juzos e de lutar pelo que
avaliasse ser direito.
Assim, ainda que no Brasil a seqncia da conquista dos direitos (civis, polticos e
sociais) pelos trabalhadores no seja exatamente a mesma que em outros pases, vale a pena
reafirmar que o esquema de Marshall permanece vlido neste ponto: a moderna noo de
cidadania corresponde muito mais luta dos operrios pela sua liberdade e pela igualdade do
que aos interesses dos burgueses. O que implica em dizer, e isso no pouca coisa, que a
prpria democracia, compreendida alm da sua dimenso formal, possui muito pouco da
paternidade burguesa, antes, ela resulta da ao poltica da classe trabalhadora.
Referncias
DAHRENDORF, Ralf. O Conflito Social Moderno: um ensaio sobre a poltica da liberdade.
Rio de Janeiro : Zahar; So Paulo : Edusp, 1992.
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ENGELS, Friedrich. A Origem da Famlia, da Propriedade Privada e do Estado. Rio de
Janeiro : Civ. Bras. Ed., 1981.
MARSHALL, T. H. Cidadania, Classe Social e Status. Rio de Janeiro : Zahar; 1967.
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