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ENTRE GLOBALIZAÇÃO E EXÍLIO: DESLOCAMENTOS EM PERSÉPOLIS DE MARJANE SATRAPI Luciane Alves * RESUMO: A facilidade dos deslocamentos no mundo contemporâneo, sejam físicos ou virtuais, permite o acesso a diferentes espaços, saberes e culturas. Como consequência, as fronteiras entre culturas, em especial entre os chamados “Oriente” e “Ocidente”, que antes pareciam barreiras sólidas e estáveis começam a diluir- se e, em seu lugar, surgem novas perspectivas em relação ao Outro e até mesmo diferentes limitações. Neste contexto ganham lugar as narrativas com caráter memorialista de autores provindos de lugares historicamente silenciados. Tentativas de contar uma versão própria dos fatos, de ser uma voz em meio às histórias preestabelecidas. Com base nestes aspectos, o presente ensaio busca analisar os deslocamentos e trânsitos presentes na obra Persépolis de Marjane Satrapi, através dos intercâmbios possibilitados pela globalização e o exílio, bem como verificar de que forma as relações entre Oriente e Ocidente aparecem nestes processos. PALAVRAS-CHAVE: Persépolis, Globalização, Oriente/Ocidente, Relações culturais. RESUMEN: La facilidad de los desplazamientos en el mundo contemporáneo, sean físicos o virtuales, permite el acceso a diferentes espacios, saberes y culturas. Como consecuencia, las fronteras entre culturas, principalmente entre los “Oriente” y “Occidente”, que antes parecían sólidas y estables barreras empiezan a diluirse y, en su lugar, aparecen nuevas perspectivas en relación al Otro e incluso diferentes limitaciones. En este contexto se da lugar a las narrativas con carácter memorialista de autores nacidos en lugares históricamente silenciados. Intentos de contar una versión propia de los hechos, de que sean una voz entre historias preestablecidas. Basado en estos aspectos, el ensayo pretende hacer un análisis de los desplazamientos y tránsitos presentes en la obra Persépolis de Marjane Satrapi, a través de los intercambios posibilitados por la globalización y el exilio, y también verificar de que manera las relaciones entre Oriente y Occidente aparecen en estos procesos. PALABRAS CLAVE: Persépolis, Globalización, Oriente/Occidente, Relaciones culturales. O mundo contemporâneo se caracteriza por um acesso rápido a diferentes informações, lugares e situações. Seja por meios físicos ou virtuais, os deslocamentos na nossa sociedade são de todos os tipos e de forma constante, sendo praticamente a essência da vida diária no mundo pós-moderno. Como não poderia ser diferente, estes inúmeros trânsitos acabam sendo refletidos na ficção e, cada vez mais, a literatura e as demais manifestações artísticas se apresentam como um espelhamento das diversas movimentações vividas neste nosso tempo, onde nada mais parece fixo e imutável em meio à mistura de mundos e culturas da era globalizada. A já antiga – e aparentemente sólida – divisão global polarizada, que por meio de um meridiano erguia um imponente muro imaginário, separando a esfera terrestre em * Aluna de Mestrado em Literatura Comparada - UFRGS

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ENTRE GLOBALIZAÇÃO E EXÍLIO: DESLOCAMENTOS EM PERSÉPOLIS DE MARJANE SATRAPI

Luciane Alves*

RESUMO: A facilidade dos deslocamentos no mundo contemporâneo, sejam físicos ou virtuais, permite o acesso a diferentes espaços, saberes e culturas. Como consequência, as fronteiras entre culturas, em especial entre os chamados “Oriente” e “Ocidente”, que antes pareciam barreiras sólidas e estáveis começam a diluir-se e, em seu lugar, surgem novas perspectivas em relação ao Outro e até mesmo diferentes limitações. Neste contexto ganham lugar as narrativas com caráter memorialista de autores provindos de lugares historicamente silenciados. Tentativas de contar uma versão própria dos fatos, de ser uma voz em meio às histórias preestabelecidas. Com base nestes aspectos, o presente ensaio busca analisar os deslocamentos e trânsitos presentes na obra Persépolis de Marjane Satrapi, através dos intercâmbios possibilitados pela globalização e o exílio, bem como verificar de que forma as relações entre Oriente e Ocidente aparecem nestes processos. PALAVRAS-CHAVE: Persépolis, Globalização, Oriente/Ocidente, Relações culturais. RESUMEN: La facilidad de los desplazamientos en el mundo contemporáneo, sean físicos o virtuales, permite el acceso a diferentes espacios, saberes y culturas. Como consecuencia, las fronteras entre culturas, principalmente entre los “Oriente” y “Occidente”, que antes parecían sólidas y estables barreras empiezan a diluirse y, en su lugar, aparecen nuevas perspectivas en relación al Otro e incluso diferentes limitaciones. En este contexto se da lugar a las narrativas con carácter memorialista de autores nacidos en lugares históricamente silenciados. Intentos de contar una versión propia de los hechos, de que sean una voz entre historias preestablecidas. Basado en estos aspectos, el ensayo pretende hacer un análisis de los desplazamientos y tránsitos presentes en la obra Persépolis de Marjane Satrapi, a través de los intercambios posibilitados por la globalización y el exilio, y también verificar de que manera las relaciones entre Oriente y Occidente aparecen en estos procesos. PALABRAS CLAVE: Persépolis, Globalización, Oriente/Occidente, Relaciones culturales.

O mundo contemporâneo se caracteriza por um acesso rápido a diferentes

informações, lugares e situações. Seja por meios físicos ou virtuais, os deslocamentos na

nossa sociedade são de todos os tipos e de forma constante, sendo praticamente a essência

da vida diária no mundo pós-moderno. Como não poderia ser diferente, estes inúmeros

trânsitos acabam sendo refletidos na ficção e, cada vez mais, a literatura e as demais

manifestações artísticas se apresentam como um espelhamento das diversas

movimentações vividas neste nosso tempo, onde nada mais parece fixo e imutável em meio

à mistura de mundos e culturas da era globalizada.

A já antiga – e aparentemente sólida – divisão global polarizada, que por meio de

um meridiano erguia um imponente muro imaginário, separando a esfera terrestre em

                                                            * Aluna de Mestrado em Literatura Comparada - UFRGS

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mundos antagônicos chamados de Oriente e Ocidente, parece estar se deteriorando diante

da descoberta de um Outro não tão diferente quanto parecia. Como afirma Edward Said

tanto quanto o próprio Ocidente, o Oriente é uma ideia que tem uma história e uma tradição de pensamento, um imaginário e um vocabulário que lhe deram realidade e presença no e para o Ocidente. As duas entidades geográficas, portanto, sustentam e, em certa medida, refletem uma à outra. (2007, p. 31)

O Oriente, por anos silenciado diante da voz dominante de um Ocidente que se

sentia no direito de estabelecer a palavra final que caracterizaria o que estava do outro lado

do muro, parece por fim ganhar voz, uma voz que lhe permite falar de si mesmo, de

mostrar ao seu vizinho a realidade de sua própria versão dos fatos, levando à surpreendente

revelação de que não éramos tão distantes quanto a linha marcada por Greenwich parecia

afirmar.

Neste processo de busca por uma voz própria reaparece a consoladora presença da

arte – passaporte para outros mundos, tradutora das diferenças e das barreiras culturais

aparentemente intransponíveis. Em meio a todos os preconceitos reacendidos por um 11

de setembro marcado pela intolerância, os artistas do “outro lado” conseguem uma brecha

no muro para contar a sua versão da História. Desta forma, as expressões artísticas

contemporâneas provindas do Oriente parecem marcadas pelo signo da experiência, da

biografia, da vivencia e da vontade de ser a voz em meio ao silencio de décadas, imposto

pela divisão global, na qual apenas um lado detinha o direito de expressão.

Na busca pelo “diferente”, pelo “novo” (que estava ao nosso lado desde sempre) em

um mundo que parece cada dia mais igual diante de suas fronteiras flutuantes, alguns

textos e autores acabaram ganhando popularidade. É o caso da iraniana Marjane Satrapi,

autora de Persépolis. A primeira parte da história em quadrinhos com toque de

autobiografia foi publicada na França no ano 2000, sendo seguida por mais três partes. A

história teve tanto sucesso que, posteriormente, no ano de 2007, acabou ganhando uma

versão cinematográfica.

Com traço simples e contraste em preto e branco, os quadrinhos de Satrapi

rapidamente receberam o merecido reconhecimento do público interessado em sua

singularidade. Muito longe de se parecer aos quadrinhos que líamos na infância, nos quais

super heróis fantasiados com roupas justas e capas esvoaçantes tentavam salvar as grandes

metrópoles do mundo ocidental, atacadas por inimigos terríveis (ou seriam terroristas?) que

não estavam de acordo com a moral e a justiça de uma sociedade padrão, as histórias

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contadas por Marjane Satrapi têm como inimiga uma História que por anos se mostrou

tapada pelo véu do desconhecimento.

Sua biografia em forma de quadrinhos mostra a vida de uma menina que vai

crescendo em meio aos conflitos históricos de seu país e as incertezas de uma identidade

formada no encontro com outras culturas. Os deslocamentos trazidos por esta ficção são

muitos, desde sua forma pouco comum para uma narrativa de memórias, até as

experiências vividas pela personagem em meio à globalização e à migração, responsáveis

pelo contato e a busca do entendimento da cultura ocidental.

1 Globalização

O processo de globalização, com seus deslocamentos culturais diários, permitiu que

mundos antes tão distantes pudessem estabelecer pontos de contato. O jovem com o tênis

Nike comendo McDonald’s com Coca Cola, enquanto escuta os mais novos hits da música

pop em seu último modelo de IPod, pode estar em Porto Alegre, Manhattan ou Istambul.

Nos dias de hoje essa imagem, que talvez um dia tenha caracterizado um adolescente

estadunidense, não possui marcas culturais, simbolizando através dos trânsitos da indústria

global um dos tantos tipos de “cidadãos do mundo” ou, como caracteriza Kathryn

Woodward (2004, p. 20), “‘consumidores globais’ que podem ser encontrados em qualquer

lugar do mundo e que mal se distinguem entre si”.

Em Persépolis há muitas referências a produtos da moda almejados por uma garota

dos anos 70/80. A personagem Marjane, filha única de uma família bastante liberal, cuja

mãe viveu sob um regime que ainda não obrigava o uso do véu e as restrições impostas às

mulheres depois da Revolução Islâmica de 1979, tinha a grande maioria de seus sonhos

consumistas realizados. Devido à boa situação econômica dos pais, que podiam viajar para

fazer compras em países vizinhos durante a época de escassez de produtos no Irã, o quarto

da personagem se via repleto de pôsteres de bandas de rock mundiais enquanto ela calçava

o último modelo da Nike com uma jaqueta jeans adornada com um button de Michael

Jackson. Ao som de Bee Gees e Iron Maiden, a adolescente iraniana dançava no quarto se

assemelhando a qualquer jovem ocidental da mesma época. Era a cultura vendida pelo

Ocidente entrando ilegalmente nas casas iranianas.

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Figura 1 – (Fonte: SATRAPI, 2007) 1

Estes trânsitos culturais proporcionados pela indústria do consumo, no entanto,

podem causar tensões dentro de um sistema social, favorecendo a expressão do

regionalismo como tentativa de impedimento da fragmentação dos modelos tradicionais

locais em virtude do que vem de fora. Desta forma, como é retratado em Persépolis, a

obtenção de artigos provindos do ocidente era feita através do mercado negro ou da

compra ilegal em países vizinhos, não podendo ser exibidos em qualquer local. Em um dos

episódios vividos pela personagem central vemos a possibilidade de punição pelo uso de

roupas e acessórios estrangeiros.

                                                            1 A edição não apresenta número de página.

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Figura 2 – (Fonte: SATRAPI, 2007)

No episódio destacado é interessante notar duas situações: A primeira se refere à

visão do Ocidente como lugar de decadência, sendo a cultura pop, simbolizada por

Michael Jackson, o exemplo da situação ocidental na visão das iranianas que repreendem

Marji. Outro fator relevante neste recorte é o deslocamento dos elementos culturais

ocidentais e sua adaptação ao contexto iraniano. O visual da personagem é composto pela

jaqueta jeans com o button do Michael Jackson, acompanhados pelo uso do véu e da

vestimenta feminina imposta pelo islamismo. Como aponta Octavio Ianni,

[j]untamente com o que é local, nacional e regional, revela-se o que é mundial. Os indivíduos, grupos, classes, movimentos sociais, partidos políticos e correntes de opinião pública são desafiados a descobrir as dimensões globais dos seus modos de ser, agir, pensar, sentir e imaginar. (2007, p. 22)

Revela-se, assim, a complexidade dos trânsitos globais, que podem ter sua forma

original adaptada a cada contexto e sofrer transformações e ajustes nas diferentes culturas

por onde passam. De acordo com IANNI, “... a sociedade global é um universo de objetos,

aparelhos ou equipamentos móveis e fugazes, atravessando espaços e fronteiras, línguas e

dialetos, culturas e civilizações.” (2007, p 27). Através do que Stuart Hall (2006) considera

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uma diáspora cultural, percebemos um afrouxamento dos laços culturais tradicionais, pois,

embora possamos considerar que a cultura possui um local, já não é tão fácil determinar

uma origem. Essa complexidade aumenta quando os trânsitos são dos próprios indivíduos

através de outros espaços culturais, acentuando-se as tensões simbolizadas pelos objetos de

consumo e as incertezas diante do contato com o que é diferente, podendo surgir a difícil

posição de não pertencimento vivida pelo viajante.

Em relação à literatura, nos deparamos com a dificuldade de encaixar determinados

textos nas tradicionais divisões por país de origem, pois muitos autores contemporâneos

viveram algum tipo de diáspora e o mosaico cultural de suas próprias vivências acaba se

refletindo nas obras. Essas experiências reafirmam as discussões que já vêm sendo feitas

há um bom tempo dentro dos Estudos de Literatura Comparada, que colocam em xeque os

antigos padrões de entendimento da origem das obras, evidenciando o quão tênues são as

fronteiras da cultura e da arte. No caso de Persépolis, embora o texto relate a história do

Irã, não está sendo feito dentro desta cultura, há um deslocamento do olhar, pois a autora,

exilada na França desde a juventude, escreve e publica sua obra na Europa, se tornando

inútil qualquer definição de origem. Na obra de Marjane Satrapi, personagem, autora e

texto, são exemplos do “entre-lugar” trazido pelas vivencias diaspóricas.

2 Exílio: andanças pelo limbo cultural

No Irã a personagem Marjane já se encontrava, de certa forma, deslocada do padrão

social do país, pois sua família não estava de acordo com o regime autoritário e alguns

parentes seus haviam sido contestadores dessas políticas, sendo até mesmo presos e

executados, como seu tio Anuch, acusado de espionagem. É este tio que conta à menina

parte de sua vida e pede que ela não deixe que se perca a história familiar, pois através da

memória passada de geração a geração esta se manteria viva para sempre.

Com o endurecimento do regime islâmico, seus pais decidem mandá-la estudar na

Áustria. Com apenas 14 anos, e sem nenhum conhecimento da língua alemã, a jovem se vê

diante do exílio e das inúmeras experiências oferecidas pelo mundo europeu. O país

estrangeiro traz a liberdade não oferecida no Irã e, ao mesmo tempo, as dúvidas e culpas

resultantes do medo de perder os valores da cultura de origem.

Na Europa ela desperta o interesse dos primeiros amigos por seu exotismo, ficando

marcado o seu lugar de “outro”, que atrai pela diferença e pela imagem estereotipada de

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sua cultura. O grupo do qual passa a fazer parte é justamente o dos “diferentes” da escola

que, por se encontrarem à margem de sua própria sociedade, poderiam aceitar mais

facilmente alguém provindo de uma cultura diversa.

Figura 3 – (Fonte: SATRAPI, 2007)

Notamos nesse episódio a presença de uma associação direta do Irã com a guerra.

Ser iraniano seria conhecer a violência e a morte de perto. Em um episódio posterior,

Marjane chega a comentar que sua opinião acabava sendo respeitada pelo simples fato de

ela haver conhecido a guerra, o que fascinava seus amigos europeus e lhe garantia uma

imagem de experiência. A imagem das guerras e da violência era a única informação sobre

o Irã que chegava à Europa, mas, de qualquer modo, era uma informação que fazia com

que o país existisse, que se materializasse, embora de forma parcial, diante dos cidadão

austríacos. Como comenta Marc Augè,

é preciso que falemos dos mundos e não do mundo, mas sabendo que cada um deles está em comunicação com os outros, que cada um possui pelo menos imagens dos outros – imagens eventualmente truncadas, deformadas, falsificadas, às vezes reelaboradas por aqueles que, ao recebê-las, procuram nelas os traços e os temas que lhes falavam primeiramente deles mesmos, imagens cujo caráter referencial é, no entanto, indubitável, de forma que ninguém mais pode duvidar da existência dos outros. Mesmo estes que afirmam com o máximo de vigor uma identidade irredutível e intocável tiram sua força e sua convicção apenas de sua oposição à imagem de um outro que mistificam para se livrar de sua insuportável realidade. (1997, p. 141)

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O mito acerca do Irã torna Marjane interessante para alguns, como seu grupo de

amigos da escola, mas também causa a rejeição por parte de outros, como no episódio em

que sua cultura é atacada por uma das freiras do pensionato onde a jovem vivia,

relacionando o mau comportamento da moça ao fato de ela ser iraniana, afirmando assim o

estereótipo criado sobre o Irã – uma imagem parcial que passa a ser legitimada por um

discurso dominante que generaliza o comportamento dos indivíduos e define a outra

cultura como símbolo negativo. Podemos perceber a ideia da identidade nacional como

algo pertencente à própria constituição do indivíduo, como essência, predeterminante de

atitudes e pensamentos, um sistema fixo e imutável fundado na mitificação do

pertencimento a uma comunidade onde todos os sujeitos apresentam o mesmo

comportamento e características semelhantes.

Figura 4 – (Fonte: SATRAPI, 2007)

Situações como essa acabam levando a personagem a negar sua origem para sentir-

se integrada na nova sociedade, assumindo posturas e comportamentos que ferem os

princípios de sua cultura. Enquanto conhece as drogas, o sexo e a liberdade de decidir o

que fazer com seu corpo e sua vida, Marjane sente culpa por mentir para os pais. Ela se

encontra, assim, em um “entre-lugar” cultural, absorvendo novos padrões de

comportamento, ao mesmo tempo em que convive com os velhos tabus de sua cultura de

origem.

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Figura 5 – (Fonte: SATRAPI, 2007)

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Muitas situações similares a essa são vividas por Marjane na busca de algum tipo

de identificação, na fuga constante da solidão presente no exílio. Merecem destaque, no

que se refere à situação da garota no país estrangeiro, os episódios em que ela vai ao

supermercado. Em momentos de solidão, os passeios pelos corredores repletos de comidas

e produtos, que não podiam mais ser encontrados no Irã devido à escassez de mantimentos,

parecem preencher de alguma forma o vazio do não pertencimento social. Este ambiente

classificado por AUGÈ como um “não-lugar” marca um espaço neutro, pois, como

comenta o autor,

é nos espaços mais despersonalizados (um aeroporto, um supermercado, uma auto-estrada, um grande hotel de uma cadeia internacional) que o viajante vindo de longe para um país que não conhece pode sentir-se menos deslocado. Ele não está em casa, mas também não está na casa de ninguém. (1997, p. 177)

Observe-se que, mesmo ao voltar para o Irã, a sensação de deslocamento não

desaparece. Após o tempo de exílio, Marjane passa a habitar o “entre-lugar” destinado ao

estrangeiro que nunca pertenceu completamente ao país que o acolheu e tampouco poderá

voltar a pertencer ao lugar de origem após tantas experiências vividas fora dele. A presença

de Marjane como “outro” na Áustria causou uma desestabilização na comunidade em que

se inseriu e na configuração de sua própria identidade. Da mesma forma, ao voltar para

casa, sua presença passa a ser novamente a presença da diferença, daquele que sai e

regressa trazendo na bagagem todas as histórias, vivencias e novidades de um lugar

distante e muitas vezes inatingível para os que ficaram. Neste sentido, Julia Kristeva

aponta que

[e]stranhamente, o estrangeiro habita em nós: ele é a face oculta da nossa identidade, o espaço que arruína a nossa morada, o tempo em que se afundam o entendimento e a simpatia. Por reconhecê-lo em nós, poupamo-nos de ter que detestá-lo em si mesmo. Sintoma que torna o ‘nós’ precisamente problemático, talvez impossível, o estrangeiro começa quando surge a consciência de minha diferença e termina quando nos reconhecemos todos estrangeiros, rebeldes aos vínculos e às comunidades. (1994, p. 9)

O caráter de estrangeiro passa a ser um lugar quase permanente na configuração da

identidade de quem passou muito tempo fora, o que leva certos indivíduos a optarem por

uma vida de viagens e deslocamentos constantes, por já não poderem adaptar-se a lugar

algum. Essa é a experiência da diáspora, definida por Stuart Hall como “longe o suficiente

para experimentar o sentimento de exílio e perda, perto o suficiente para entender o enigma

de uma ‘chegada’ sempre adiada” (apud CHEN, 2003, p 415).

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A percepção de que, mesmo em seu país de origem, terá que conviver com histórias

de si criadas pela visão dos outros, acaba levando Marjane ao desânimo e à depressão.

Voltar para casa não se traduz em pertencimento, ela continua sendo um ser deslocado e

mal compreendido pelos demais. Sua visão ocidentalizada sobre o comportamento e

atitudes a respeito do sexo e da liberdade da mulher causa espanto no meio conservador

islâmico, no qual a mulher deve manter-se virgem até o casamento e evitar

terminantemente o olhar e a proximidade com o sexo oposto. Ao contar a uma colega que

tomava pílulas anticoncepcionais por ter uma vida sexual ativa, por exemplo, Marjane

recebe como resposta o espanto das moças ao redor, que julgam seu comportamento como

indecente e passam a rejeitá-la no grupo.

Figura 6 – (Fonte: SATRAPI, 2007)

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Em meio à outra metade de colegas, que não se sentem ofendidas por sua atitude,

Marjane encontra novas amigas, o que, no entanto, não diminui sua sensação de não-

pertencimento. Assim, após inúmeras tentativas de adaptação, entre as quais um casamento

seguido de um divórcio em poucos anos, ela parte novamente para o exílio, desta vez rumo

à França.

O final de Marjane demonstra a complexidade dos deslocamentos culturais, em que

as fronteiras se fragmentam causando mudanças frequentes que colocam o sujeito em uma

posição de constante ir e vir entre as diferentes experiências vividas. O “entre-lugar” em

que vive o estrangeiro é marcado, sobretudo, pela contradição de sentimentos: a melancolia

pela impossibilidade de uma volta ao lar ou a satisfação trazida pela liberdade de pertencer

a todos os lugares sem pertencer, de fato, a nenhum.

A narrativa também mostra as dificuldades trazidas pelo estranhamento cultural

derivado da polarização “Oriente” “Ocidente”, em que há um verdadeiro desconhecimento

da cultura do outro, cujas lacunas são preenchidas com o imaginário, geralmente negativo,

dos estereótipos. Ao estrangeiro no Ocidente não é dada a oportunidade de mostrar quem é,

pois no lugar de sua fala está a força maior das histórias já estabelecidas sobre ele, não

havendo a possibilidade de integração e aceitação real. Da mesma forma, a história criada

no país de origem a respeito do lugar de exílio, como no caso de Marjane, não permite a

expressão da realidade de suas vivencias, marcadas por angústias, dificuldades, decepções,

mas também por experiências benéficas e aprendizado. Há sempre a esperança de redenção

no país outro ou a ideia de uma total falta de valores e negatividade. Sendo assim, o que

regressa não pode contar sua história, pois, mais uma vez, já está marcado pelas histórias

provindas do imaginário dos que ficaram.

Podemos entender, então, que os trânsitos globais ao mesmo tempo em que

transformam as fronteiras em lugares flutuantes, de intercâmbios e proximidades, também

criam novos limites aos sujeitos, estabelecendo os “entre-lugares”, a terceira margem aos

que participam das idas e vindas entre culturas. Cabe a nós, estudiosos e críticos das

humanidades o papel de mediadores de discussões que possibilitem melhor entendimento

destes processos, para que cada vez mais os intercâmbios culturais possam levar ao

aprendizado acerca de outras culturas de forma que não ocasionem isolamento e/ou lugares

de “limbo cultural”. Que neste lugar de “meio” esteja presente a tolerância e não outra

margem de exclusão. Seguindo as palavras de Edward Said, pensemos que “o humanismo

é nossa única possibilidade de resistência – e eu chegaria mesmo ao ponto de dizer que é a

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nossa última possibilidade de resistência – contra as práticas desumanas que desfiguram a

história humana.” (2007, p. 26).

REFERÊNCIAS AUGÉ, Marc. Por uma antropologia dos mundos contemporâneos. Tradução de Clarisse Meireles e Leneide Duarte. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. CHEN, Kuan-Hsing. A formação de um intelectual diaspórico: uma entrevista com Stuart Hall. IN: SOVIK, Liv. (Org.) Da diáspora. Identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG/UNESCO, 2003. P 407-433. IANNI, Octavio. A era do globalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. HALL, Stuart. Da Diáspora. Belo Horizonte: UFMG, 2006. KRISTEVA, Julia. Estrangeiros para nós mesmos. Tradução: Maria Carlota Carvalho Gomes. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Tradução de Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. SATRAPI, Marjane. Persépolis. Trad. Paulo Wernek. São Paulo: Cia das Letras, 2007. WOODWARD, Kathryn. Identidade e Diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, Tomaz Tadeu. Identidade e Diferença – A Perspectiva dos Estudos Culturais. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2004.