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    Actualmente acentua-se um movimento de institucionalizao de prticas artsticas

    efmeras, ou de natureza no objectual. Num primeiro momento iremos deter-nos

    brevemente sobre as formas de legitimao das propostas artsticas e o conceito de

    institucionalizao no territrio da arte.

    As instituies do territrio da arte constituem-se de forma diversa de acordo com adefinio da sua misso, posicionando-se num espectro de graus de cristalizao. No

    extremo de baixa frequncia desse espectro podemos localizar os espaos geridos por

    artistas. Os traos comuns a esses espaos sero a indefinio de fronteiras entre estdio

    e galeria, o nfase no processo por oposio ao produto artstico, e a constituio de uma

    comunidade de pares que legitimizam a prtica artstica no momento do seu

    aparecimento, inscrevendo-a assim no campo da arte. Estas instituies sero as mais

    fludas no territrio da arte, adaptando as suas prticas institucionais s prticas artsticasdos seus membros. Enquanto instituies abertas, indeterminadas, poderemos consider-

    las instituies em processo, instituies em devir. Pelo profundo entrelaamento de

    prticas artsticas e da sua apresentao no contexto destas instituies, no poderemos

    falar aqui de institucionalizao, uma vez que as propostas artsticas so criadas desde

    dentro da instituio.

    Poderemos localizar, em diferentes momentos, posies diversas de instituiesnesse espectro, como os espaos independentes, os crticos, os historiadores de arte, oscoleccionadores, as galerias comerciais, as bienais, as feiras internacionais, etc...

    No entanto, desde o seu aparecimento os museus tm ocupado as posies de mais

    elevada frequncia no espectro de cristalizao da arte, sendo as suas funes desde

    logo definidas em torno da constituio da memria e da preservao para o futuro. Esta

    preservao implica uma seleco daquilo a preservar que destaca esse elemento, se

    apropria dele, e pela sua incorporao na instituio o legitimiza no territrio da arte.

    Ao longo desta comunicao iremos focar-nos nas prticas de inscrio depropostas artsticas no territrio da arte desde dentro do prprio acto de criar, em

    contraponto institucionalizao da arte no seu modo extremo de cristalizao das

    propostas artsticas, pela incorporao e preservao no museu.

    A segunda delimitao no territrio desta anlise ser em torno do conceito deprticas artsticas efmeras, ou de natureza no objectual.

    Lucio Fontana, no Primeiro Manifesto do Espacialismo, de 1947 afirmou, e passo a

    citar: "A arte eterna, mas no pode ser imortal. eterna uma vez que um gesto seu,

    como qualquer outro gesto, no pode deixar de permanecer no esprito do Homem como

    irradiao perpetuada. (...) ser eterna no significa ser imortal. Alis, a arte nunca

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    imortal. Poder viver um ano ou milnios, mas chegar sempre o momento da sua

    destruio material. Permanecer eterna como gesto, mas morrer como matria." (Lucio

    Fontana, 1947, Primeiro Manifesto do Espacialismo)

    A arte contempornea caracteriza-se pelo uso de materiais comuns, criados parafins industriais e domsticos, aos quais no era at ento conferida artisticidade, e quepela sua incorporao numa prtica artstica adquirem essa funo esttica. Podemos

    distinguir um movimento na arte contempornea de uso deliberado de materiais efmeros

    como organismos vivos, materiais instveis e perecveis, que marcam uma posio em

    relao ao mercado estabelecido da arte e s suas instituies. Reconhecemos nessas

    obras a vontade de no perdurar. Expondo obras que se transformam com o decorrer do

    tempo os artistas propem o debate entre arte e vida, incorporando o quotidiano nas suas

    prticas artsticas. As formas materiais de arte efmera incorporam o processo deenvelhecimento da matria no seu conceito. A perecibilidade da matria contraposta

    perenidade do conceito da obra, num jogo entre legado material e imaterial da arte.

    O tempo entendido enquanto medium, a sua passagem est na base da construo do

    objecto artstico.O tempo e a sua actuao sobre a matria tornam-se parte integrante daobra, e assim o tempo tambm ele matria da arte. Esta incorporao do tempo como

    medium e como matria da obra tem como consequncia uma marcada indeterminao e

    redefinio da obra ao longo do tempo.Esta abordagem tem um forte impacto na recepo das obras, pretendendo-se que

    o pblico assista ao processo de envelhecimento e de degradao da matria que

    compe as obras de arte, que no caso da arte materialmente efmera tem habitualmente

    um ritmo acelerado. Em muitas situaes a durao fsica da obra de arte apenas a do

    perodo da sua apresentao, sendo o material destrudo no final da exposio. Noutras

    situaes, em que o processo de envelhecimento do material utilizado mais lento, a

    obra sobrevive fisicamente sua primeira apresentao.As prticas de arte efmeras parecem ir contra as funes de cristalizao, de

    conservao e de criao de memria do museu, permitindo em muitos casos apenas a

    conservao da ideia enquanto estratgia museolgica. Para Deleuze e Guattari A arte

    conserva, e a nica coisa no mundo que se conserva. Ela conserva e conserva-se em si

    (quid jri?), ainda que de facto no dure mais do que o seu suporte e os seus materiais

    (quid facti?) (...) no entanto a sensao no a mesma coisa que o material. (...)

    Enquanto o material durar, de uma eternidade que a sensao goza nesses

    momentos. (DELEUZE e GUATTARI, O que a Filosofia, Lisboa, Editorial Presena,

    1992, pp. 144 e 147.

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    A institucionalizao de obras de arte materialmente efmeras coloca desafiosparticulares. justamente a funo de cristalizao do tempo do museu, enquanto lugar

    de preservao de memria, que posta em causa com estas obras de arte, compostas

    de elementos no cristalizveis. Como pode ento o museu acolher obras de arte

    materialmente efmeras sem as desvirtuar? Voltemos o nosso olhar para as prticas deinscrio de propostas artsticas no territrio da arte desde dentro do prprio acto de criar.

    Como exemplo paradigmtico de prticas artsticas efmeras analisemos aperformance arte. As prticas artsticas de representao da performance na histria

    oscilam entre duas formas radicalmente opostas. De um lado encontramos artistas que

    desde o incio da sua prtica, nas dcadas de 1960 e 1970, incorporaram a

    documentao na performance, como Vitto Acconci e Adrian Pipper, assumindo os

    vestgios da performance ou a sua documentao como parte integrante da sua prticaartstica e como meio de disseminao da performance. A fixao de imagens hpticas

    criticamente seleccionadas pelo artista, consciente da documentao como narrativa de

    uma aco, e que se inscrevem como imagens icnicas, constituem-se como nico indcio

    da performance. Por outro lado encontramos artistas que recusam qualquer registo visual,

    como Allan Kaprow e Tino Seghal, que favorecem a tradio de transmisso do

    acontecimento pelas suas testemunhas, nas quais os artistas tambm se incluem.

    Curiosamente esta atitude dos artistas face documentao do seu trabalho no demoveos museus de os exporem ou coleccionarem. Neste momento obras de Kapprow so

    exibidas em cinco exposies de museus e bienais, e obras de Tino Sehgal fazem parte

    das coleces dos principais museus de arte contempornea.

    A questo da documentao gera controvrsia tanto junto dos artistas como dasinstituies, pela forma como gerada e pela forma como apresentada. Se por um lado

    h artistas que rejeitam a documentao da performance, os que a integram na sua

    prtica artstica fazem-no de diferentes modos e com objectivos diversos. Poderodocumentar a performance como forma de informar o seu trabalho, podero usar os

    registos como forma de transportar o seu trabalho para outro tempo e espao para alm

    da sua apresentao original, ou podero recorrer documentao como nica forma

    mediada de apresentao da performance ao pblico. Podemos incluir dois tipos de

    registos na documentao, o testemunho do artista e o registo de imagens. Mas que valor

    podemos atribuir a estes registos? Podemos entender que estes registos documentam

    uma ilustrao da performance e no a performance em si tal como aconteceu na sua

    apresentao originria. Ento, onde se situa a obra? Na performance realizada ou no

    documento que o artista escolhe apresentar ao pblico?

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    Podemos ir mais longe e identificar registos ficcionados de performances, comoLeap Into The Void, de Yves Klein (1960). E deparamo-nos com uma diviso entre

    registos documentais e registos teatrais, segundo Philip Auslander (2006), sendo que os

    primeiros documentam eventos de performance apresentados perante um pblico, e os

    segundos so encenados perante a cmara, quer aconteam tal como so registados ousejam fruto de manipulao. Ser a imagem ainda assim documento?

    A documentao tem a potencialidade de clarificar e narrar, mas tambm de

    cristalizar um acontecimento, nomeadamente pelo recurso ao registo de imagens. Esta

    vertente da documentao apresenta-se como particularmente relevante para as prticas

    artsticas efmeras, que incorporam a aco do tempo como medium e matria.

    Evidentemente que estes registos visuais fragmentrios de um processo

    complementaro a documentao em diferentes formatos, proveniente de diferentesfontes, formando uma tecitura que constituir a memria da obra de arte materialmente

    efmera. Se o registo de imagens permite cristalizar momentos do processo para os

    eternizar, a reconstituio da obra para uma nova apresentao poder ser materializada

    atravs da sua documentao, como acontece muitas vezes com a performance arte.

    Para a construo da memria de um objecto artstico efmero os registos visuais

    sero sempre fragmentos essenciais, mas por si s no podero transmitir uma imagem

    do objecto na sua plenitude, pelo que a documentao visual ser sempre complementara outras fontes de conhecimento da obra, das quais se destaca o prprio artista. A recolha

    do testemunho do artista fundamental para a construo da memria da sua obra, seja

    atravs da recolha de textos e materiais visuais produzidos sobre a obra, do projecto, da

    memria descritiva, do mapeamento da espacializao, do manual de instrues para a

    sua materializao, do histrico da apresentao da obra, das determinaes e intenes

    do artista, nomeadamente no que diz respeito permanncia da obra e aos aspectos em

    aberto, resultado do processo de envelhecimento.As prticas artsticas efmeras constituem memria atravs da documentao e do

    testemunho. A obra existe na mente, na memria e na imaginao, mesmo quando

    materializada numa forma efmera. Estas prticas artsticas indicam uma possibilidade

    para a institucionalizao destas formas de arte.

    O testemunho do artista, no caso de prticas materialmente efmeras, deve

    acompanhar o processo de envelhecimento da proposta artstica. A documentao visual

    complementa o testemunho no sentido de acrescentar uma camada visual que informa

    sobre a linguagem prpria dos objectos, a eloquncia do material, a indefinvel poesia do

    tempo.